2015

Qual “crise do espírito”, de 1914 até hoje

por Frédéric Worms

Resumo

Se os maiores intelectuais franceses e europeus falaram, depois da Primeira Guerra mundial, de uma “crise do espírito” (Paul Valéry), de uma “crise do espírito europeu” (Husserl), não foi por acaso. Não era apenas uma metáfora vaga, uma espécie de diagnóstico sociológico sobre uma crise dos “valores” ou do “espírito do tempo”. Com efeito, era o sinal de que o “espírito” representava então o problema central da época e de que a prova da guerra o haveria de abalar a partir do interior, a ponto de produzir uma ruptura maior entre duas épocas; portanto, era fazer passar a filosofia, na França e na Europa, não de um espírito a outro num sentido vago, mas do espírito a outra coisa, isto é, de um problema preciso a outro, e o problema que sucede ao do “espírito” (e de seu fundamento) é então, sem dúvida alguma, o da “história” (e de seu sentido). Será preciso toda uma geração para tomar consciência disso e ninguém o exprimirá melhor do que Merleau-Ponty num texto sobre a Segunda Guerra de título revelador. Em A guerra aconteceu, ele escreve: “Nós aprendemos a história e reivindicamos que não se deve esquecê-la”. “Nós”, isto é, os alunos dos filósofos do espírito que haviam esquecido a história; uma geração que criticará as filosofias do “espírito” para enfrentar as provas da história. Para compreender tal situação, é preciso, então, partir do diagnóstico “crítico” do período entreguerras, o de uma crise do espírito na filosofia europeia – francesa, em particular –: não só Valéry, como Brunschvicg, Bergson (especialmente em As duas fontes da moral e da religião, de 1932) e, especialmente, Alain, que, aliás, escreveu 81 capítulos sobre o espírito e as paixões e Marte ou a guerra julgada. Trata-se enfim de explorar a principal lição da guerra, que talvez seja a descoberta da história, e isso tanto nos textos da geração de 1930, quanto também nos da geração que “surge” e inspira-se, em particular, nos cursos de Kojève sobre Hegel. Nós saímos dessa “crise”; o que ela nos ensina sobre a que vivemos hoje? Qual é, em cada grande crise histórica e “espiritual”, o papel e o sentido da filosofia?


O objetivo desta exposição é responder a uma pergunta simples: pode-se retomar hoje, quando a[1] situação internacional é novamente a de uma grave crise, o diagnóstico de uma crise do espírito, tal como foi feito então, há um século, por intelectuais que acabavam de viver a Primeira Guerra Mundial, como Paul Valéry na França e Edmund Husserl na Alemanha (um falando de crise do espírito em geral e o outro de uma crise do espírito europeu)?

Compreende-se que há nessa retomada, no duplo sentido de um retorno histórico e de uma reatualização contemporânea e pela dupla razão de um centenário e de uma urgência, uma certa tentação, mas também uma utilidade e quem sabe até mesmo uma necessidade.

No entanto, tentaremos mostrar que a retomada desse tema da crise do espírito só é possível hoje com duas condições: uma primeira que apenas evocaremos rapidamente na introdução e uma segunda que será o objeto da maior parte de nossa exposição.

A primeira condição é doravante bem conhecida e não faremos mais que enunciá-la com brevidade: importa hoje, talvez mais do que nunca, ul­ trapassar as ambiguidades políticas ligadas ao tema de uma crise do espírito. Para compreender essa condição necessária, basta voltarmos rapidamente aos textos de Edmund Husserl, mas também de Paul Valéry, que citamos ao começar. Com efeito, tanto para um quanto para o outro, trata-se, sob o nome aparentemente universal de crise do espírito, de denunciar e deplorar o enfraquecimento de um espírito particular, certamente encarregado de representar e de testemunhar o universal, mas que é qualificado por um termo geopolítico (ou geofilosófico ): o espírito europeu. É esse espírito que, para ambos, foi abalado pela guerra, e sua esperada restauração deve ser não apenas intelectual; é também, num sentido político, a ideia de um privilégio espiritual da Europa, luz originária e última do mundo, que subjaz a esses dois escritos. Essas questões são bem conhecidas e numerosas polêmicas cercam desde então os textos de Husserl sobre o assunto, em particular sua conferência de 1935 em Viena sobre a crise do espírito europeu e a ciência; mas isso acontece igualmente com o texto de Paul Valéry (“A crise do espírito”, de 1919) no qual ele situa a Europa a meio caminho dos negros e dos faquires. Jacques Derrida, num livro essencial precisamente intitulado Do espírito, reconheceu, a propósito também de Heidegger e remontando a Hegel, esses pressupostos políticos da noção de espírito e, em particular, seus usos no entreguerras.

Tal seria, portanto, a primeira condição para falar hoje de uma crise do espírito: criticar as ambiguidades políticas desse tema, o que se torna ainda mais necessário dada a persistência ainda hoje da reivindicação identitária e espiritual. É uma tarefa que não se deve abandonar. No entanto, ela é bem conhecida por si só e é sobre outro aspecto que gostaríamos de insistir no que vamos expor.

Com efeito, a segunda condição para falar hoje de uma crise does­ pírito consiste, a nosso ver, num retorno crítico às filosofias do espírito que caracterizaram o que chamamos de momento filosófico da Primeira Guerra Mundial ou, de maneira mais ampla, o momento 1900 da filosofia, que foi brutalmente abalada pela guerra de 1914-1918, mas também que tentou reagir a isso e foi seguido um pouco mais tarde de outro momento, um momento de ruptura violenta nos anos 1930. Sustentaremos (e é uma tese que seguramente vale também para Husserl e Valéry) que esse momento se caracterizou não pelo tema político vago, mas pelo problema filosófico preciso do espírito, e que, para além ou aquém de certos usos ideológicos como os que acabamos de constatar e aos quais muitos filósofos desse tempo não resistiram, alguns deles também formularam esse problema para tentar pensar a violência e a guerra recorrendo a um retorno crítico, na medida em que, se em alguns aspectos essa questão merece ser ultrapassada, em outros é preciso retomá-la. Esse esforço para pensar a violência e a guerra a partir, não do tema vago da crise, mas do problema preciso da divisão e mesmo do dilaceramento do espírito humano é o que gostaríamos hoje de examinar, considerado em seus limites e em suas contribuições, e isso principalmente em dois autores a nosso ver centrais sobre essa ques­ tão na França. Um deles é Alain (que, após participar voluntariamente da Primeira Guerra, escreveu vários livros, entre os quais 81 chapitres sur l’esprit et les passions [81 capítulos sobre o espírito e as paixões], mais tarde intitulado Éléments de philosophie [Elementos de filosofia], e Mars ou la guer­ re jugée [Marte ou a guerra julgada]); o outro é Bergson (que pronunciou durante a guerra discursos políticos muito comprometedores, mas depois publicou em 1932 seu grande livro As duas fontes da moral e da religião).

Não se trata, porém, de voltar diretamente a essas obras, como se pudéssemos lê-las independentemente da história e retomá-las de imediato hoje. Houve uma ruptura que separou momentos filosóficos, e só depois de tê-la examinado é que poderemos nos perguntar se é possível retomar hoje um ensinamento essencial dessa crise entre o espírito e as paixões, ou entre as duas morais e as duas religiões que são, mais exatamente, dois aspectos ou duas formas de cada moral e de cada religião, fechadas ou abertas, que levam à guerra ou à paz.

O movimento desta exposição, portanto, será simples e comportará quatro momentos rápidos. Nos dois primeiros examinaremos as posições de Bergson e de Alain, não apenas em si mesmas mas através das críticas de que elas foram historicamente o objeto no entreguerras, na passagem não apenas de uma guerra a outra mas de um momento filosófico a outro (crítica de Bergson por Politzer e de Alain por Merleau-Ponty; portanto, também de uma geração por outra). Nos dois últimos momentos estudaremos o que deve ser retomado deles: uma análise das paixões e do poder, por um lado, do fechado e do aberto, por outro, e também uma relação com a guerra e a paz que deve ainda nos orientar no momento presente.

A VIRADA DO ENTREGUERRAS: POLITZER CRÍTICO DE BERGSON

Qual é então, em primeiro lugar e a propósito de Bergson, o episódio central de que devemos partir e que marcou a ruptura não só entre temas vagos ou filosofias singulares mas realmente entre dois momentos filosóficos, como se houvesse aí uma passagem do espírito de uma guerra mundial a outra?

Situaremos esse episódio entre duas datas e entre dois livros, entre 1929 e 1933, e na diferença entre os dois. Em 1932, quando Henri Bergson publica seu último grande livro, As duas fontes da moral e da religião, poderia se dizer, de fato, que era tarde demais ou (sem julgamento de valor) que o mal estava feito, ou ainda, com mais precisão, que a virada do século já acontecera e girara justamente em torno da guerra, da relação da filosofia – e das filosofias – com a guerra. Isso, no entanto, poderia surpreender. Não está a guerra no centro desse livro que logo passou a ser comumente chamado de as duas fontes? Sim, ela está. Deve-se mesmo ir mais longe e dizer que a guerra está no centro desse livro não só como uma ameaça ou até como uma presença (que irrompe em pessoa, no seu segundo capítulo, no escritório do autor, numa impressionante evocação) mas, sobretudo como um critério, filosófico, moral e mesmo religioso. A guerra é o que revela de súbito, de maneira brutal, a verdade habitualmente oculta da moral que pretende ter valor universal, mas que em realidade só vale (como o mostra justamente a guerra, que a desmascara) para uns contra os outros (mais aquém e não mais além dessa ou daquela fronteira) – moral, portanto, que na verdade é uma moral fechada.

Quando afirmamos que o dever de respeitar […] outrem é uma exigência fundamental da vida social, de que sociedade falamos? Para responder, basta considerar o que se passa em tempos de guerra. O assassinato e a pilhagem, como também a perfídia, a fraude e a mentira, não se tornam apenas lícitos; são meritórios[…]. Seria isso possível, a transformação se daria de maneira fácil, geral e instantânea, se fosse realmente uma certa atitude do homem para com o homem que a sociedade nos recomendou até então?[2]

É a guerra, portanto, que é uma prova de verdade para a moral. Ela não só leva à crítica da moral fechada como traz em si a exigência de outra moral, a menos que seja a partir já dessa outra moral (como afirma Bergson) que criticamos a guerra.

Essa outra moral será de fato a moral universal; ou melhor, precisamente porque deve romper com um fechamento que não cessa de voltar, e porque sua universalidade não depende de uma lógica abstrata mas de um esforço concreto, ela será essa moral que Bergson chama de moral aberta.

A distinção entre o fechado e o aberto vale também, segundo Bergson, para a religião; mais ainda, é no apoio que a religião dá à abertura, mas também ao fechamento, que essa distinção encontrará sua maior prova.

O contraste é impressionante em muitos casos, por exemplo, quando nações em guerra afirmam, tanto uma quanto a outra, contar com um deus que se revela então o deus nacional do paganismo, enquanto o Deus do qual elas imaginam falar é um Deus comum a todos os ho­ mens, a simples visão do qual significaria a abolição imediata da guerra[3].

Assim, é na prova da guerra que Bergson encontra o critério moral e religioso último, aquele que faz a diferença. A guerra é o critério para a filosofia que, em troca, pode e deve (segundo o termo já usado por Alain) julgar a guerra, julgar segundo o critério da guerra. No entanto, como dissemos antes, talvez já fosse tarde demais.

Uma guerra não apenas tinha acontecido (como disse Merleau-Ponty), mas o próprio Bergson nela se envolvera e até se engajara; e um filósofo já o havia criticado duramente, recusando-lhe de antemão (e à filosofia em geral com ele) o direito de julgar a guerra, quando era antes a guerra, concreta, real e histórica que devia julgar a filosofia ou os filósofos. Portanto, não se trata aqui do problema teórico que, no pensamento mesmo de Bergson, é colocado pela ligação entre seus discursos de guerra e a mudança radical que lhes impôs o pensamento tão profundo de As duas fontes. Trata-se de uma mudança que aconteceu fora, noutro lugar, no debate político e na história.

O filósofo que lança assim um debate que ultrapassa de longe o ataque pessoal ou individual é Georges Politzer, em seu panfleto contra Bergson, que ele publica em 1929, tomando como pseudônimo o verdadeiro nome de Voltaire (François Arouet), com o título: La fin d’une parade philosophique, le bergsonisme (O fim de um desfile filosófico, o bergsonismo ). O final desse panfleto, ou melhor, o momento justamente em que essa crítica filosófica capital (que foi desconhecida nessa dimensão) vira um panfleto tem por objeto a atitude de Bergson durante a Primeira Guerra Mundial. “O sr. Bergson marchou”[4], escreve Politzer, sublinhando ele próprio essa formulação que busca resumir (pela dupla imagem da manipulação e do desfile militar[5]) o que essas passagens querem ter de contundente.

E ele prossegue:

O papel especialmente atribuído à filosofia da “profundidade” e da “sutileza” foi transpor em termos concretos e vitais o ópio da grande imprensa. “O maior filósofo desde Descartes” era encarregado de abençoar, em nome do concreto e da vida, as elucubrações dos redatores do Ministério da Guerra, do Interior e dos Assuntos Estrangeiros[6].

Não devemos aqui nos enganar. Não se trata apenas de uma retórica política ou, se preferirem, de um discurso de guerra contra outro. Certamente Politzer mobiliza as armas do debate político, e do militantismo comunista em particular, contra uma filosofia que havia de fato participado, como outras, mas não menos diretamente que outras, do engajamento partidário durante a guerra. Trata-se de algo diferente, de uma mudança bem mais profunda. Pois, ainda que Bergson tenha envolvido e arriscado sua filosofia na guerra, ainda que tenha a seguir, por 15 anos, submetido a guerra à sua filosofia (mas incluindo entre as duas, convém lembrar, uma intensa atividade diplomática a serviço da paz, da Sociedade das Nações e da comissão cultural e intelectual que presidiu em Paris, onde ela ainda existe sob o nome de Unesco), o essencial para ele, do começo ao fim, consistiu no julgamento da filosofia sobre a guerra, no critério e na crítica que a filosofia aplica à guerra. Ora, em realidade é isso que se inverte com o gesto de Politzer e que marca ou revela uma ruptura, histórica e filosófica, entre dois momentos filosóficos do século – e que marcará o século inteiro. Para Politzer, com efeito – e o mesmo acontecerá com Nizan em seu próprio panfleto, publicado também em 1932 (Les chiens de garde [Os cães de guarda])-, a guerra não julga apenas os filósofos, os atos desse ou daquele filósofo; ela julga a filosofia, que não deve colocar-se acima da guerra, pois encontra-se agora dentro dela, não mais além, portanto, mas, para usar a palavra que se torna então uma senha, na história.

É dessa mudança que cabe, a nosso ver, tirar todas as consequências ainda hoje. Mas, antes de esboçar algumas delas, convém apresentar desde já uma primeira confirmação.

OS DOIS “PÓS-GUERRA”: MERLEAU-PONTY CRÍTICO DE ALAIN

Essa confirmação pode ser encontrada num outro confronto não menos importante que o primeiro e, quem sabe, até mais revelador – confronto, desta vez, entre dois textos filosóficos de pós-guerra, sem dúvida alguma os dois maiores textos filosóficos (na França, pelo menos) posteriores às duas grandes guerras, cada um deles tirando uma lição. Trata-se de dois textos a que já fizemos alusão: um é Mars ou la guerre jugée, que Alain publica em 1921, mas que é concebido, e com ele o princípio real de toda a sua filosofia[7], já em 1916, nas trincheiras onde ele voluntariamente se engajara; o outro é La guerre a eu lieu (A guerra aconteceu), que Maurice Merleau-Ponty publica em 1945 no primeiro número da revista Les Temps modernes (que ele acabava então de fundar com Sartre, Aron e alguns outros), texto tão capital que, por uma escolha reveladora e abrupta, Claude Lefort acaba de colocá-lo na abertura do volume das CEuvres (Obras) de Merleau-Ponty[8], numa clara homenagem àquele que foi seu mestre pouco antes de sua própria morte.

Pois aqui também o contraste é extremo e conduz às questões essenciais do século. E só poderemos apresentá-lo de maneira também concentrada e extrema.

Para Alain, não basta dizer que o espírito, o pensamento e a filosofia podem e devem julgar a guerra. Deve-se ir ainda mais longe. Deve-se dizer que esse julgamento, ou essa ausência de julgamento, da guerra pela filosofia, pelo pensamento e pelo espírito é que está na origem e é a causa real da guerra. A guerra não é apenas um objeto para o espírito que julga; ela acontece no espírito, o julgamento sendo então um ato, uma vitória ou uma derrota diante da guerra.

A seguinte formulação diz tudo: “A guerra só é guerra pelo espírito que consente”[9]

Há primeiro uma guerra do espírito contra as paixões, contra a imaginação que move o corpo. Mas isso não é metáfora; é ela que está no princípio da guerra real, entre os homens, no mundo, na história. É sempre a paixão que produz a guerra, se o espírito não resiste e a ela consente; e ele pode e deve sempre resistir. Alain certamente não é ingênuo. A guerra nem sempre poderá ser evitada quando as forças das paixões forem poderosas. Mas sempre se poderá e se deverá, por princípio, recusar-se a ela. É o que dizem as últimas palavras de Mars, suficientes para desfazer, segundo Alain, os prestígios desse deus: “Se somente um milhar de espectadores [ele fala de seus leitores] quisessem, em sua poltrona, consentir a si mesmos, que futuro! Não talvez sem guerra, mas pelo menos sem o consentimento do espírito”[10].

É o núcleo mesmo dessa posição, e não apenas um de seus aspectos entre outros, que será submetido a uma mudança radical pela prova da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, não basta criticar o pacifismo de Alain, na medida em que o conduziu de fato, arrastado ele também pelas mais graves paixões do século, a consentir com o Pacto de Munique. Não foi somente essa posição que levou a uma ruptura irreversível com toda uma geração de seus mais brilhantes alunos: Canguilhem, Aron, Simone Weil. Foi também uma mudança filosófica subterrânea e total. Ninguém exprimiu mais claramente isso, logo após a Segunda Guerra, que Merleau-Ponty no texto citado acima.

Em La guerre a eu lieu, cujo título já responde com ironia às ilusões do pré-guerra, brutalmente desfeitas, de Alain e de Giraudoux, Merleau­Ponty não se contenta em criticar a indiferença aparente de seus mestres espiritualistas, como Bergson, Brunschvicg ou Alain, com relação à história. Não se contenta em fazer esta célebre afirmação: ”Aprendemos com a história e afirmamos que não se deve esquecê-la”[11]. Tampouco mostra apenas, e isso em páginas admiráveis, como a guerra entrou na vida cotidiana e no espírito de cada um durante a ocupação. Consciente da profundidade da questão, ele mostra sobretudo que daí em diante não é mais o espírito que detém o julgamento ou a verdade da guerra, mas a guerra, por assim dizer, é que se tornou a verdade do espírito. Uma fórmula e um nome, dois anos mais tarde, vão se opor assim em outro texto de Merleau-Ponty, no mesmo terreno do consentimento, às palavras do seu mestre: “É preciso saber consentir a tudo, dizia Lênin”[12]• Pois esta é realmente a questão em jogo no século: a de um espírito que julga ou que é julgado, que paira acima do combate ou que é pego por ele, sem poder sair. É o debate das mãos sujas e dos justos no teatro de Sartre ou de Camus – debate que conduz não só os filósofos mas a filosofia como tal a uma questão crucial, cuja profundidade é mascarada então pelo termo engajamento (ou não engajamento), a partir do qual se deveria reescrever a história.

Em realidade, o debate já havia sido aberto na cena francesa pela intervenção decisiva de Kojeve, que antes da Segunda Guerra, em seus cursos na École Pratique des Hautes Études, interpretou para toda uma geração de intelectuais franceses a luta de morte da Fenomenologia do espírito de Hegel como a verdade última da época e do pensamento ao mesmo tempo. Dessa vez a coisa parece clara. Não há mais saída fora desse combate. Portanto, não se trata apenas da gravidade da guerra, da destruição, dos massacres que aumentam de maneira ainda mais terrível de uma guerra a outra, da Primeira à Segunda Guerra Mundial. Trata-se da significação mesma da guerra que se metamorfoseia e revela assim a metamorfose da filosofia, de um momento de sua história para outro momento.

Precisamos registrar esse abalo, meditar sobre esse abalo. Mas podemos hoje nos restringir a isso? Na verdade, são duas séries de ensinamentos que devemos tirar desse abalo e que nos obrigam a ir mais adiante. É o que faremos através de duas séries de observações conclusivas sobre as lições profundas das filosofias de Alain e de Bergson (as paixões e o poder, de um lado, as duas morais, de outro) e a herança delas no século, de Merleau-Ponty até hoje. Aliás, essas duas séries de conclusões são ligadas por uma tese simples: a das oposições vitais e morais, filosóficas e políticas mais fundamentais, que se verificam plenamente hoje. Poderia se mostrar como a crítica das paixões e do poder, que resistem ao julgamento em Alain, e sobretudo a oposição radical do fechado e do aberto, em Bergson, conservam toda a sua atualidade hoje, para se pensar a seguir sobre uma oposição entre a guerra e a paz que atravessou o século, de Merleau-Ponty até o presente, e fundar o que chamamos de vitalismo crítico. Mas faremos aqui apenas uma breve observação conclusiva sobre o que nos parece ser o ensinamento essencial dos dois autores que acabamos de evocar.

AS PAIXÕES E O PODER

No que se refere primeiro a Alain, em Mars ou la guerre jugée, seria um erro acreditar, como o título do livro dá a entender e também as análises que acabamos de resumir, que a vitória do espírito sobre as paixões, e portanto sobre a guerra, é tão simples assim. Em realidade, há outro elemento em Alain que se acrescenta à análise das paixões para dar toda a importância ao seu pensamento no século passado e hoje. É a tese (que estabelece também o plano do livro) segundo a qual as paixões, em seu combate contra o espírito, são reforçadas por um mecanismo fundamental que é o do poder. Por si sós, as paixões seriam apenas da alçada do julgamento e do espírito; mas o poder consiste em reforçar as paixões para assentar sobre elas a dominação política, e assim Alain não se contenta em retomar o grande tema clássico (Descartes e Espinosa) das paixões, mas introduz na filosofia francesa a crítica do poder. Se pode parecer surpreendente a retomada por seus discípulos do tema das paixões (Merleau-Ponty analisa ainda o antissemitismo, mesmo nazista, como uma paixão, e Sartre vê a vida humana como paixão inútil), deve-se reconhecer em toda a filosofia do século a herança da crítica do poder, tanto em Simone Weil (que opõe força e justiça) como em Foucault. Le citoyen contre les pouvoirs (O cidadão contra os poderes), título de uma célebre coletânea de Alain (organizada por Jean Prévost, seu discípulo e herói da guerra), traça uma linha crítica no século. E mesmo os limites da política de Alain não diminuem em nada essa dimensão política que a guerra acrescenta de maneira imprevisível à sua filosofia moral. Mars ou la guerre jugée compõe-se de uma série de 93 tópicos, mas pode-se facilmente mostrar como eles se ordenam em três partes: as paixões (1 a 22), o espírito (52 a 93) e entre os dois o poder (23 a 51).

O FECHADO E O ABERTO

Certamente poderíamos tirar consequências ainda mais radicais e críticas a partir da oposição do fechado e do aberto em Bergson.

Mas apenas sublinharemos aqui uma simples aproximação, inespe­ rada talvez, com um texto mais tardio de outro autor, texto que tem afinidades com o de Bergson citado mais acima.

A nosso ver, não é por acaso que outro filósofo recupera em 1961, após o tempo que lhe foi necessário para avaliar todo o seu alcance, uma tese muito precisa sobre esse ponto e, de fato, muito próxima daquela que ouvimos Bergson enunciar em 1932. Trata-se de Lévinas, na abertura de Totalité et infini (Totalidade e infinito): ”A guerra não se dispõe apenas como a maior dentre as provas de que vive a moral. Ela a torna irrisória”[13]. Mas o que a guerra torna irrisória não é qualquer moral. É somente aquela que pretende ser toda a moral, a moral da totalidade e do sistema que, por esquecimento do infinito que a ultrapassa também infinitamente, leva justamente à guerra! Em nome do infinito e contra a totalidade que ele lê em Hegel e seus discípulos contemporâneos, Levinas trava uma luta muito próxima daquela que Bergson esboçava sob o signo do fechado e do aberto. Ele a buscará no rosto do outro homem.

Não há como resolver aqui, entre versões diferentes, vigorosas, certamente inconciliáveis no fundo, essa tensão de princípio ou entre os princípios (fechado e aberto, totalidade e infinito, além de outras que a mantiveram ao longo do século). O que ela assim sublinha, indiretamente, é a própria persistência da tensão entre a filosofia e a guerra, entre a guerra e a filosofia, inclusive para além do século. A guerra faz parte das experiências que, como a violência ou a violação das relações humanas, fazem surgir entre os homens uma aspiração que os ultrapassa, um princípio que os norteia, uma ética e uma política; mas estas só têm sentido para retornar a tais experiências, para (como dizia Péguy do pensamento de Bergson) combatê-las, mas não aceitando o combate tal e qual tampouco se furtando a ele, e sim dando-lhe outro sentido, seu verdadeiro sentido. Esse sentido será, não o de um combate entre a guerra e a filosofia, como se uma devesse julgar a outra, mas o de uma tensão entre guerra e filosofia que pode retornar em ambas ainda hoje. Tensão que envolve uma dupla tarefa: como se a guerra pudesse ainda atravessar a filosofia, exigindo os recursos da crítica e do pensamento, mas como se hoje também, no interior dos combates que dilaceram os homens, das violações mais íntimas aos conflitos mais amplos, houvesse um lugar decisivo para uma filosofia que surja deles para pensá-los, criticá-los e agir de volta.

Tal seria ainda hoje a nossa crise do espírito.

  1. A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Paulo Neves.
  2. Citamos aqui a edição crítica organizada por F. Keck e G. Waterlot: Henri Bergson, Les deux sources de la mora!e et de la religion (As duas fontes da moral e da religião), Paris: PUF, 2008, p. 26, col. Quadrige.
  3. Henri Bergson, op. cit., p. 227.
  4. Georges Politzer, La fin d’une parade philosophique, le bagsonisme, Paris: Pauvert, 1968, p. 163, col. Pamphlets.
  5. No original: “M. Bergson a marché”. Além do significado de marchar, o verbo marcher tem também os sentidos de consentir e enganar. [N.T.]
  6. Georges Politzer, op. cit., pp. 167-8.
  7. Insistimos nesse ponto em nossa contribuição a Michel Murat e Frédéric Worms (org.), Alain, littérature et philosophie mêlées (Alain, literatura e filosofia mescladas), Paris: Éditions Rue d’Ulm, 2012.
  8. Maurice Merleau-Ponty, CEuvres, edição organizada e prefaciada por Claude Lefort, Paris: Gallimard, 2010, col.

    Quarto.

  9. Alain, Mars ou la guerre jugée, suivi de De quelques-unes des causes réelles de la guerre entre les nations civilisées (1916) (Marte ou a guerra julgada, seguido de algumas causas reais da guerra entre nações civilizadas [1916]), Paris: Gallimard, 1995, p. 263.
  10. Ibidem, p. 273.
  11. Maurice Merleau-Ponty; op. cit., p. 11.
  12. Ibidem, p. 280. Em 1955, em As aventuras da dialética, o primeiro autor citado será novamente Alain.
  13. Emmanuel Levinas, Totalité et infini, Paris: Le Livre de Poche, 1961, p. 1, cal. Biblio essais.

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