2014

Sublime por atrofia

por Vladimir Safatle

Resumo

De Boileau até o romantismo alemão, a categoria moderna de sublime corresponde a um dos dispositivos centrais para a determinação de julgamentos estéticos capazes de aspirar autonomia. Distinto do conceito de belo, ela apareceu como a consciência da instabilidade das obras de arte em relação às capacidades construtivas e ordenadoras da forma, pois sublime é a manifestação que alcança os limites da representação e, por isso, adianta a novidade, isto é, a figura. Nesse sentido, a música é, para os românticos, a mais sublime das artes. Daí a maneira como Hofmann encontrará, no caráter grandioso e ilimitado da Quinta Sinfonia de Beethoven o exemplo maior de uma arte impulsionada pela procura da sublimidade. De fato, de Beethoven a Mahler, o recurso a tal categoria para pensar a racionalidade do pensamento musical justifica-se através, principalmente, da ampliação das intensidades e formas, da grandiosidade dos efeitos e da multiplicidade de temas e afetos que a narratividade sinfônica parecia ser capaz de produzir. Mas o século 20 conhecerá outra forma de sublime no interior da estética musical. O caráter monumental será sentido, cada vez mais, como expressão afirmativa de uma procura da infinitude que pode se passar por elevação de uma subjetividade em vias de se auto-hipostasiar. Em contraposição, surgirá uma espécie de “sublime por atrofia”, ou seja, uma estética que se serve extensivamente do silêncio e da desaparição de elementos fundamentais da gramática musical. Exemplo fundador disso é a música de Anton Webern, em que se conserva a consciência do colapso da estética da representação, assim como a procura romântica em pensar a expressão musical a partir das possibilidades de manifestação da infinitude. No entanto, é através da inversão da grandiosidade em silêncio que tal música opera. À sua maneira, ela dá continuidade à música de Beethoven, mas do Beethoven que participava do conceito de “estilo tardio”, segundo Adorno. Trata-se, pois, de discutir a validade do conceito de sublime para dar conta de algumas obras maiores de Anton Webern. Mais: mostrar como a estratégia weberiana será uma via frutífera devido a seus desdobramentos no interior da produção contemporânea. Nesse sentido, citem-se Rothko Chappel, do compositor norte-americano Morton Feldman, e Metastasis, do compositor grego Iannis Xenakis.


Você escava e eu escavo,

E eu me escavo até você

E do dedo desperta-nos o anel.

PAUL CELAN, “Havia terra neles”

Je réclame la restitution au silence.

STÉPHANE MALLARMÉ

A reflexão sobre a experiência estética contemporânea pede clareza em relação à sua especificidade. Isto implica, por exemplo, lançar luz sobre o sistema de empréstimos e dependências que perpassa os problemas que animam a produção das obras nos séculos XX e XXI e aqueles que, por sua vez, animam a produção das obras no século XIX. Através da análise das obras, poderemos compreender a relevância da possibilidade em utilizar conceitos produzidos no interior do debate próprio ao Romantismo para esclarecer certas linhas de força da produção recente.

Neste sentido, vale a pena lembrar como um conceito recorrente na análise da produção estética dos últimos cinquenta anos, seja no campo das artes visuais quanto no campo da produção musical, é a categoria de “sublime”[1]. Gostaria aqui de começar a discutir a relevância em sustentar a pertinência de tal recorrência, levando em conta o campo aberto pela discussão sobre a contemporaneidade do sublime tal como ela aparece, entre outros, na obra de Theodor Adorno. Isto nos obrigará a uma discussão sobre dois momentos da produção musical, a saber, aquela marcada pela obra de Beethoven e aquela vinculada à obra de Anton Webern. Em outra ocasião, tal movimento será completado através da passagem à análise de um compositor mais recente, Morton Feldman. Maneira de mostrar a relevância da discussão para pensar obras mais próximas do nosso tempo.

Mas, antes de iniciarmos a discussão sobre as obras, vale a pena insistir em uma questão de método. Procurar a relevância em pensar algumas peças fundamentais do repertório musical moderno e contemporâneo a partir do conceito de sublime deve partir da tentativa de esclarecer uma questão propriamente histórica, a saber: até que ponto precisamos de categorias estéticas próprias ao Romantismo para compreender problemas norteadores da produção estética contemporânea? Pois poderíamos defender estarmos em um contexto sociohistórico radicalmente estranho a conceitos forjados para pensar um regime estético de obras que talvez não seja mais o nosso. Aceitar que um conceito estético como “sublime” possa continuar a ser aplicado, mesmo que com algumas modificações estruturais em seu sentido, implica necessariamente reconhecer que as obras a partir das quais ele foi inicialmente pensado ainda fazem parte, de uma forma ou outra, do horizonte regulador de nossa produção estética atual. Falar, por exemplo, em uma modificação no significado de um conceito só faz sentido se aceitarmos a existência de uma continuidade de problemas entre dois ou três momentos distintos que tal conceito pretensamente procura colocar em relação. Se não fosse assim, melhor seria simplesmente desenvolver novos conceitos, ou seja, no nosso caso, simplesmente abandonar o uso do conceito de sublime. Assim, falar de certa modalidade possível de uso do conceito de sublime implica, necessariamente, acreditar que devemos estar atentos a uma continuidade de problemas que liga nossa época à produção estética própria ao Romantismo musical, por mais que tal proposição possa parecer contraintuitiva.

De fato, o conceito de sublime não é uma invenção do Romantismo. Suas raízes se encontram em um tratado de retórica do século III atribuído normalmente a Cássio Longino, o Tratado do sublime e do maravilhoso no discurso (Peri Hypsous – Da grandeza). Em Longino, o sublime simplesmente caracterizava o ponto mais alto e a excelência do discurso, ponto capaz de produzir efeitos de êxtase e arrebatamento[2]. Aqui, a força do discurso excederia a capacidade de resistência do sujeito, subjugando-o.

O uso do conceito de sublime no interior de um debate propriamente estético, e não apenas retórico, precisará esperar até 1674, quando Nicolas Boileau traduz para o francês o tratado. Boileau foi uma das figuras-chave da “Querelle des anciens et des modernes”, debate fundamental na constituição da consciência da modernidade estética. Representando a linha de frente dos anciens contra os modernos, Boileau recorre ao sublime para mostrar como a estética clássica não seria um formalismo estéril, mas a contínua construção de equilíbrio entre grandeza desmesurada e concisão, entre arrebatamento e simplicidade. Para Boileau, através da discussão sobre o sublime, os antigos teriam sido capazes de pensar o que provoca arrebatamento sem, com isto, precisar colocar em risco a harmonia da bela forma. Ou seja, nesse momento, não há distinções estritas entre belo e sublime, como será o caso na estética romântica.

Se no Romantismo tal distinção se consolida, vindo das reflexões de Edmund Burke[3], é por ela ser o resultado mais visível da consciência da ruptura em relação ao classicismo das formas harmônicas e equilibradas, da regularidade dinâmica. Podemos mesmo dizer que a ruptura entre belo e sublime é o dispositivo central de consolidação da estética moderna. Uma ruptura que já se apresenta no Romantismo e que chegará, como é o caso atualmente, à pura e simples eliminação do belo como categoria adequada para dar conta dos critérios de avaliação das obras de arte.

Dentro do Romantismo, é no campo da estética musical que o uso do conceito de “sublime” ganhará mais força, graças à concepção romântica de que a música instrumental, música desligada de textos, programas e funções sociais específicas, era a mais sublime das artes. Pois a música instrumental teria a força de produzir expressão sem representação, expressão sem aderência a sentimentos específicos e determinações empíricas, expressão do que aparece quando as palavras silenciam. Assim, ela seria capaz de dar forma àquilo que se manifesta radicalmente como crítica à limitação de nossas convenções linguísticas e formais. Vejamos um pouco mais de perto a aplicação de tal maneira de pensar o sublime.

Embora haja controvérsias, é certo que o sistema de obras musicais ao qual o conceito de sublime parece inicialmente se relacionar tem seu eixo na produção de Beethoven, principalmente a partir de sua terceira sinfonia, embora seja através de uma crítica de E. T. A. Hoffmann à Quinta sinfonia, publicada em 1810, que se costuma assumir a produtividade do sublime na crítica musical. Como dirá Hoffmann:

A música de Beethoven suscita o medo, o horror, o terror e a dor, nos elevando a esta nostalgia infinita (unendliche Senhsucht) que é a própria essência do Romantismo. Beethoven é um compositor puramente romântico, e não seria por isto que ele está menos à vontade na música vocal, que não deixa lugar para as emoções indeterminadas (unbestimmten Sehnens) por representar tais emoções, que vem do reino do infinito, apenas através da determinação dos afetos pelas palavras?[4].

Aqui, Hoffmann apresenta alguns dos traços fundamentais que acompanharão o conceito de sublime durante todo o século XIX. Primeiro, Hoffmann afirma não apenas que Beethoven é puramente romântico, mas que a música é talvez a única arte puramente romântica, como se devêssemos assumir uma aproximação, cheia de consequências, entre “romântico” e “musical”. Beethoven é romântico por ser eminentemente “musical”. Seria interessante perguntar-se, no entanto, o que o adjetivo “musical” pode significar neste contexto. Seguindo as discussões a respeito da noção de música absoluta, podemos dizer que “musical” significa, primeiramente, a expressão do que se conserva em certa vagueza, daí o desconforto relativo de Beethoven com a música vocal. Pois o que é musical não tem a precisão do que se define no interior de um regime espacial de imagens ou do que se define pela capacidade de categorização das palavras. Desse modo, o que é musical desconhece a “determinação dos afetos”. Por isso, aquilo provido de qualidades musicais tem a força de provocar em nós uma “nostalgia infinita” por apresentar o que nunca está completamente presente.

Mas o vocábulo “infinito” não está aqui por acaso. Ele é importante por expressar o desconforto dos artistas do começo do século XIX com as convenções formais da linguagem e com a ordem social que elas representavam. Recorrer ao infinito era a maneira romântica de compreender, em um tempo de mutação no qual a ordem social não podia mais aspirar a fundamentação que outrora teve, no qual as normas que forneciam a funcionalidade da forma estética deviam ser sistematicamente questionadas por parecerem “finitas”. Assim, é interessante lembrar como escritores como Hoffmann diziam que a música era talvez a única arte realmente romântica por ter por único objeto a expressão do infinito. “Expressar o infinito”, neste caso, significa: expressão do que desarticula nossa capacidade de estabelecer relações de identidade e diferença e que, por isto, nega constantemente as aspirações construtivas da forma. O que é “musical” é pois indeterminado, dispõe-se em um jogo constante com o informe, não por deficiência em relação à prosa do conceito (como o antirromântico Hegel defendia), mas por proximidade com a experiência do infinito.

Hoffmann lembra como, para certo ouvinte médio da época, a música de Beethoven não seria desprovida de fantasia. No entanto, ela seria desorganizada, como se a fantasia subjugasse a forma, o que faria de suas sinfonias uma sucessão inconstante de sentimentos e caracteres. Como disse um crítico da época, os ouvintes de Beethoven eram “massacrados por uma massa de ideias sobrecarregadas e sem relação umas com as outras, assim como pelo tumulto incessante de todos os instrumentos”[5]. Música composta por temas fragmentados por serem, em sua maioria, pequenas ideias musicais de não mais do que quatro compassos, ideias cujas transições são muitas vezes abruptas, cortadas, marcadas por pausas e interrupções.

Hoffinann precisa lembrar-se das opiniões desse “populacho musical” (musikalischen PöheI) para afirmar que tal desarticulação dos princípios construtivos da forma, que tal desregulação das normas produzida pela música de Beethoven, não era simples maneirismo, mas modo de trazer para o interior da forma a tensão entre a expressão do infinito e a regularidade das convenções. Estes que reclamam de Beethoven procuram a unidade através do respeito às regras gramaticais da linguagem musical hegemônica[6]. Mas eles deveriam procurá-la na força unificadora da ideia.

Nessa tensão entre expressão do infinito e regularidade das convenções, a obra não se desagregaria em um mero jogo com o informe porque a música de Beethoven seria capaz de fornecer novos processos construtivos. Note-se, por exemplo, a maneira com que o arquifamoso primeiro movimento da Quinta sinfonia é organizado. Praticamente todos os motivos são derivados de uma mesma ideia musical, expressa logo nos primeiros compassos com sua figura rítmica suficientemente reduzida, simples e estrutural, para não indicar identidade alguma, nenhuma tonalidade que nos permitiria derivar qual será sua progressão harmônica (embora seja verdade que os próximos compassos já deixem claro que estamos em dó menor). Esta ideia musical não se desenvolve no sentido forte da palavra, mas se movimenta por contraste, por acumulação e modulação. A rememoração musical da ideia permite, inclusive, que os vazios, os cortes e as rupturas não comprometam a unidade da forma. É a força produtiva da ideia musical que produz aquilo que Hoffmann chama de uma “articulação interna profunda” (innere tiefe Zusammenhang), que é aproximação entre contrários e mediação entre extremos. Ou seja, a ideia musical aqui unifica contrariedades, absorve até mesmo o silêncio, desconstruindo determinações por reconduzir a diferença a uma identidade indiferenciada de base. É da desarticulação entre diferença e identidade que viria a expressão do infinito no interior da ideia musical beethoveniana.

CONTRA A COMUNIDADE

Um exemplo privilegiado do procedimento de Beethoven é a Abertura Coriolano, composta na mesma época em que a Quinta sinfonia. A obra é uma abertura para a versão escrita por Heinrichjoseph von Collin para a peça Coriolano, de Shakespeare. A peça de Shakespeare foca-se no desterro do general Coriolano, herói romano por sua bravura no comando das tropas contra os volscos.

Coriolano é a expressão dos ideais aristocratas de honra, bravura e arrogância. Por isso, sua relação com as demandas populares e com os tribunos sempre foi de completa incompreensão. Ao ser nomeado cônsul romano pelo senado e pedir o voto do povo, Coriolano mostra toda a sua inabilidade, conseguindo despertar a ira popular e ser banido de Roma. Ou seja, Coriolano é, acima de tudo, aquele que não sabe como falar com o povo, aquele que simplesmente não sabe como se expressar.

Na condição de banido, ele acaba por se aliar aos antigos inimigos a fim de marchar sobre a cidade. Às portas de Roma sitiada e indefesa, Coriolano prepara-se para o ataque final quando a mãe e a esposa aparecem rogando-lhe que abandone seu ódio e não invada a cidade. Tomado de tristeza, Coriolano ouve as mulheres e abandona seus planos, o que o levará à morte pelas mãos dos volscos.

Ao adaptar a peça de Shakespeare, Collin faz duas mudanças principais. Primeiro, ele atenua o aristocratismo da peça, retirando muitos dos momentos no qual o desprezo pela pretensa inconstância e pela irracionalidade da opinião popular são evidentes. Mas, principalmente, o Coriolano de Collin se suicida, deixando mais clara sua dimensão de herói trágico. Ele é o homem sem comunidade, sem lugar, cuja certeza de si o exila do contato com os outros homens. Personagem que representa com clareza a tensão da individualidade moderna nascente com sua potência de incomunicabilidade, com sua expressão assombrada pela indeterminação. Homem só capaz de parar diante do objeto de desejo em via de dissolução. Assim, ao escolher transformar a morte de Coriolano em suiádio, Collin permite a exploração da consciência da experiência moderna da desorientação diante da tentativa de ocupar um lugar marcado pelo desterro.

A composição de Beethoven dá forma à estrutura do conflito já na própria construção da ideia musical. Pois a ideia musical, exposta logo nos primeiros acordes, é baseada nas modulações possíveis de uma relação de polaridade e conflito entre dois grupos de notas. Tal polaridade irá estruturar praticamente toda a música, aparecendo como elemento construtor interno aos motivos (como podemos ver na partitura a seguir). Já o motivo que aparece nos compassos 15 a 19 demonstra claramente um procedimento no qual a polaridade opositiva entre duas notas serve de base construtiva. Tal polaridade nunca se resolve, mas é simplesmente cortada e suspensa antes de se completar (como no final deste primeiro motivo) ou aumenta por acumulação e intensidade. Ela é o melhor exemplo de como,

em Beethoven, ideias formais e detalhes melódicos vêm à existência simultaneamente; o motivo singular é relativo ao todo. Ao contrário, no final do século x1x a ideia melódica funciona como um motivo no sentido literal da palavra, colocando a música em movimento e providenciando a substância de desenvolvimento na qual o tema em si foi elaborado[7].

No caso da Abertura Coriolano, podemos dizer que o motivo é a própria ideia musical.

Esta permanência extensiva da ideia musical permite integrar acontecimentos que poderiam ser compreendidos como negações radicais da funcionalidade da obra. Um exemplo maior encontra-se na forma com que a polaridade dinâmica entre notas se transforma em polaridade conflitual entre motivos e temas. A peça toda é atravessada pelo antagonismo entre os motivos, associados a Coriolano e organizados basicamente através de polaridades entre duas notas e um tema melódico sinuoso associado às vozes femininas da mãe e da mulher. A primeira apresentação do motivo, pelo primeiro grupo de violinos e pelo grupo de violas, é na tônica de dó menor. A segunda é sob uma modulação para a tônica de si bemol menor. Não por acaso a construção da melodia feminina é baseada em um acorde perfeito de dó maior quando tocada pelos violinos e em um acorde perfeito de si maior quando tocada pelos clarinetes. A ideia de contraposição e distensão é evidente, embora não seja possível dizer que exista aí alguma organização baseada, por exemplo, no esquema antecedente-consequente ou mesmo em algum princípio de transição. Poderíamos pensar em uma relação de contraste, mas tal contraste não segue nenhuma forma de desenvolvimento orgânico. Em certos momentos, ele opera por simples justaposição ou se serve de longas pausas e suspensão da dinâmica para a melodia “feminina” ser reapresentada. É possível dizer que a peça se move por antíteses, já que os momentos, tomados individualmente, parecem contradizer uns aos outros. Ou seja, tomados isoladamente, cada um dos momentos musicais contradiz o que lhe segue. Esse caráter irresoluto do conflito chega até o final da peça, onde a transposição musical da ideia do suicídio de Coriolano ganha forma de um final sem superação, música que simplesmente se dissolve sem cadência conclusiva ou promessa de reconciliação teleológica. Ela não se resolve, ela simplesmente para.

Nesse ponto, encontramos uma ideia fundamental. A impossibilidade de resolução do conflito, a contínua luta contra a organicidade, não nos leva, como poderíamos inicialmente esperar, a uma forma sem força sintética. Pois a processualidade da ideia já fornece a unidade no nível construtivo. Este é o ponto central: a contradição entre os momentos, potencializada pela eliminação de processos visíveis de transição, não chega a eliminar a univocidade produzida pela relação de cada momento à ideia. A ideia tem a força de se refratar em atualizações contraditórias, sem com isto perder a univocidade. Pois ela desenvolve, ao mesmo tempo, o antagonismo entre a finitude de seus momentos e a univocidade de sua processualidade infinita que absorve a multiplicidade das determinações.

Mas, se a ideia musical está, no caso de nossa obra, ao mesmo tempo na voz de Coriolano e na voz de suas mulheres, se ela está, ao mesmo tempo, no reconhecimento da individualidade expulsa da comunidade e na voz da comunidade que pede para ser poupada, é porque a ideia expressa a inexistência de um solo comum, na efetividade, no qual essas duas vozes poderiam não entrar em contradição. Por isso, ela só pode aparecer como o que constitui os temas e motivos e o que os dissolve em um puro devir que expõe exatamente a fragilidade do enraizamento de todos os momentos. Tanto a comunidade quanto a individualidade são momentos a ser dissolvidos. Na Abertura Coriolano, Beethoven mostra de forma clara como a essência do que constitui as vozes já é o que as dissolve como momentos de um devir.

De certa forma, essa é uma interpretação que fundamenta boa parte da compreensão feita por Theodor Adorno a respeito de Beethoven. Tal compreensão parte da defesa de que a unidade da obra é fornecida pela exploração sistemática do caráter da forma como processo. Tomemos, por exemplo, uma afirmação a respeito da conhecida comparação adorniana entre Beethoven e Hegel:

A realização de Beethoven encontra-se no fato de que em sua obra – e apenas nela – o todo nunca é externo ao particular, mas apenas emerge de seu movimento, ou melhor, o todo é este movimento. Em Beethoven não há mediação entre temas mas, como em Hegel, o todo como puro devir é a mediação concreta[8].

Esta é a maneira de dizer que, em Beethoven, a ideia musical é o que constrói uma noção de totalidade dinâmica. Ideia que, pela sua clareza na apresentação (e por nunca quebrar algumas estruturas elementares de base, como, por exemplo, a polaridade entre tônica e dominante), permite ao ouvinte conservar a percepção da processualidade interna da forma, mesmo a despeito da presença de tudo aquilo que, à época, seria visto como índices de uma forma em desagregação, em flerte contínuo com o informe. Por isso, não há exatamente mediação entre temas, mas um devir contínuo, que nunca para por parecer ser capaz de se desdobrar em tudo.

Dessa forma, a temática do sublime pode aparecer como modo de compreensão da autonomia das obras em relação às regularidades formais e às convenções de estilo. Ela permite não apenas esclarecer como as obras só se constroem a partir da anulação dos elementos que conformam a linguagem às exigências da comunicação. Ela permite também que as obras de arte possam ser os momentos nos quais a linguagem se redimensiona através do deixar aparecer o fundamento do que se mostra.

O QUE É O TERROR?

Mas, se o caráter sublime da música de Beethoven está, por um lado, na sua capacidade de usar a ideia musical como um princípio inicial de indeterminação que produz, ao final, uma ordem mais elevada e englobante, há ainda um segundo ponto a salientar. Como diz Hoffmann, a música de Beethoven produz “medo, horror, terror”, embora a princípio não seja claro a que fenômeno musical ele exatamente se refere. Seria ao caráter massivo e descomunal do uso dos recursos musicais? Ou devemos procurar a matriz de produção de tais sentimentos em outro lugar?

Voltemos momentaneamente à discussão filosófica sobre o sublime. O terror sublime é um tema que acompanha as discussões do conceito ao menos desde Edmund Burke e sua maneira de ligar o sublime à dimensão dos prazeres negativos. Burke distingue dois tipos de prazeres produzidos pela contemplação estética: os positivos e os negativos. Os primeiros estariam vinculados à harmonia, clareza, suavidade e constituem o quadro de atributos da beleza. Já os segundos seriam produzidos pela contemplação de objetos propícios a ocasionar dor, pois de certa forma ameaçadores e perigosos. Pensando no prazer provocado pela contemplação do que ameaça nossa existência física, Kant dirá: “Sublime é o que apraz através da sua resistência contra o interesse imediato dos sentidos”[9].

A fórmula de Kant é precisa. Encontrar prazer no medo e na dor significa, neste contexto, descobrir o prazer de ir contra o interesse imediato dos sentidos, de descobrir algo em mim que não é apenas a expressão de meus interesses individuais de autoconservação. Lembremos, aqui, da maneira com que Kant acrescenta algo novo na ideia, própria aos sensualistas ingleses, de que seriam sublimes os fenômenos nos quais descubro o caráter descomunal e desmedido da natureza, como grandes tempestades, pradarias inabitadas, vastas cataratas, entre outros. Ele lembra que tais fenômenos não deveriam ser exatamente entendidos por sublimes, mas sim a descoberta de algo em mim que não os teme, algo em mim que os supera e os domina. Assim, Friedrich Schiller, profundamente influenciado neste ponto por Kant, podia afirmar que a contemplação da força da natureza, em segurança, nos abre à descoberta de uma resistência que não é resistência física, mas resistência vinda de nossa dissociação entre existência física e personalidade. Entusiasmamo-nos com o temível porque podemos querer o que os impulsos repudiam, porque há um querer para além dos impulsos sensíveis. Ou seja, no belo, razão e sensibilidade se harmonizam. No sublime, elas encontram seu ponto de desregramento.

Kant abre tal discussão estética por estar interessado em mostrar como o sublime é modo de experiência da autonomia, pois o prazer negativo no qual o sublime se assenta evidenciaria a existência de algo em nós que coloca entre parênteses nosso desejo de autoconservação, quebrando a capacidade de apreensão da imaginação. Por isso, Kant pode afirmar que o julgamento sobre o sublime assenta-se na disposição humana ao sentimento moral. Da mesma forma que o belo nos prepara para amar algo de maneira desinteressada, o sublime nos prepara para estimar aquilo que vai contra nosso interesse sensível[10].

Neste sentido, o que é exatamente monstruoso no sublime é a descoberta de algo em nós que é desmedido em relação às medidas da individualidade, algo em nós que não porta a imagem do individuo. Uma descoberta que só se dá através da descoberta do prazer de contemplar o que pode destruir nossa existência sensível ou que pode esmagar nossa dimensão finita e humana. Há sempre algo de profundamente inumano no sublime, e se a inflexão romântica do conceito aparece exatamente no momento em que as sociedades ocidentais começam a se constituir como “sociedades dos indivíduos” é porque a arte procura guardar uma experiência que tais sociedades só verão com os olhos de uma “nostalgia infinita”.

Mas talvez esta discussão filosófica pareça agora muito distante do universo musical, em especial o universo de Beethoven. No entanto, se recuperarmos neste contexto um conceito desenvolvido por Theodor Adorno para descrever as últimas obras de Beethoven, talvez tenhamos uma aproximação sugestiva. Procuramos algo, na música de Beethoven, desmedido e monstruoso em relação às medidas da individualidade. Poderíamos apelar para o excesso como manifestação da desmesura, ou seja, para a maneira com que algumas de suas obras são monumentais, excessivamente longas para os padrões da época, mobilizando largos recursos musicais, como a Nona sinfonia. Mas podemos também, e este me parece um caminho muito mais contemporâneo e interessante, procurar a desmesura na experiência da subtração. Uma subtração que, à sua maneira, nos lembra da presença monstruosa do que nos silencia e do que anula nossa individualidade, ou seja, a presença da morte. Este talvez seja o sentido da noção de “estilo tardio”, empregada por Adorno para falar das últimas obras de Beethoven.

Poderíamos inicialmente imaginar que o interesse de Adorno pelo “estilo tardio” viria de sua procura em entender experiências estéticas que parecem culminar nas últimas obras. Mas “culminar” não significa aqui a realização mais bem-acabada e harmônica de um projeto maturado. Como bem lembra o crítico literário Edward Said: “O poder do estilo tardio de Beethoven é negativo, ou melhor, é a própria negatividade: lá onde poderíamos esperar serenidade e maturidade, encontramos, ao contrário, uma mudança áspera, difícil, inflexível e, às vezes, inumana”[11]. Esta é uma maneira de afirmar que o caráter tardio de uma obra expõe, na verdade, sua capacidade de ser a forma de uma tensão explosiva entre forma e expressão. Dizer que o poder do estilo tardio de Beethoven é negativo significa afirmar que a tensão própria à fase dita clássica de sua obra será potencializada pelo próprio desenvolvimento da linguagem musical do compositor.

Muitas vezes, a peculiaridade de sua última fase foi colocada na conta de motivos psicológicos, como a extrema surdez e certo desespero advindo daí. No entanto, Adorno insiste que há uma razão interna ao desenvolvimento da linguagem musical. Isso nos permite dizer que a noção de estilo tardio não será apenas uma descrição de uma fase da experiência artística de Beethoven, mas uma chave de compreensão de obras de compositores variados como Schoenberg, Strauss, entre outros. Said chegará a afirmar, e neste caso ele não está completamente errado, que o conceito de estilo tardio é o conceito central da estética adorniana. Na verdade, ele seria a descrição da própria experiência da obra de arte em seu ponto de máxima tensão, pois exposição da profunda instabilidade formal, do acordo frágil e contraditório entre planos construtivos e demandas expressivas que não se colocam mais sob as formas do que entendíamos por “expressão”.

“Na história da arte, obras tardias são catástrofes.” Esta frase de Adorno é decisiva para nossa discussão. Se as obras tardias são catástrofes é porque elas aparecem como o locus de uma quebra em relação ao regime do funcionamento das determinações da convenção. Sobre as obras tardias de Beethoven, Adorno afirma, por exemplo, que a elas falta harmonia. Os silêncios são cada vez maiores, as quebras muitas vezes se dão nos meios das frases musicais, os contrastes parecem simplesmente justapostos. A princípio, poderíamos acreditar que tal falta de harmonia seria o resultado de uma subjetividade superdimensionada que procura alguma forma de expressão integral e que, por isto, não teme explorar extremos desprovidos de mediação. O que explicaria por que ela procuraria quebrar, ou ao menos ignorar, todas as regras até então respeitadas.

Mas esta desmesura aparece em Beethoven através do abandono do que parecia garantir à forma sua organicidade, assim como através do uso de convenções que aparecem de maneira explícita. Como se estivéssemos diante de uma espécie de indiferença à aparência que permite ao compositor usar fórmulas e fraseados deliberadamente convencionais. Mas um uso da convenção que não consegue mais garantir a aparência de organicidade.

Notemos assim que, se o poder de sua música é negativo e por vezes inumano, é porque o horror sublime que ela provoca vem de sua força de subtração e de recusa do que era até então compreendido como elementos fundamentais para o reconhecimento da “humanidade” da expressão, não de sua exposição grandiosa de materiais. Levando em conta seu estilo tardio, podemos dizer que Beethoven nos mostra como as obras sublimes parecem transformar a subtração em consciência aguda da atrofia da linguagem. No entanto, gostaria de mostrar como tal ideia de estilo tardio traz, no seu bojo, possibilidades de compreensão de processualidades da forma musical que nos fornecem a genealogia de estratégias composicionais mais próximas de nós.

POI A POI DI NUOVO VIVENTE

Dentre vários exemplos possíveis de estilo tardio, poderíamos analisar o adagio da Sonata para piano, n.31, opus 110, com sua articulação entre um arioso e uma fuga. Vários elementos nesta peça surpreendem o ouvinte de Beethoven. Primeiro, contrariamente à Abertura Coriolano e à Quinta sinfonia, a ideia musical não é claramente apresentada. Ao contrário, os sete primeiros compassos introdutórios são um dos mais impressionantes momentos de indeterminação musical na produção do Romantismo. A tonalidade é completamente oscilante. Sete compassos nos quais a música oscila entre, ao menos, si bemol menor, sol bemol maior, mi maior e dó bemol menor. Esta oscilação expressa o espírito de uma música em suspensão, que desenha um motivo para terminar abruptamente em um arpeggio, que suspende o desenvolvimento para insistir de maneira obsessiva na pura repetição da mesma nota por quase dois compassos. Quando a música de fato começar, com um arioso dolente, ela ainda não estará na tonalidade que lhe caracteriza (lá bemol maior). A estabilização da tonalidade s:ó virá quando uma fuga enfim aparecer.

A introdução do adagio funciona como o anúncio da monstruosidade de uma expressão sem gramática, que parece ter renunciado ao seu lugar como motor dinâmico da ideia musical, quebrando aparentemente a unidade que constitui a própria especificidade da experiência musical de Beethoven. A posição da expressão nesta situação levará a música a um movimento de profunda cisão, um pouco como vimos no antagonismo presente na dinâmica da Abertura Coriolano. No entanto, aqui a cisão se desenvolverá de outra forma. Com a retração da ideia musical, a obra se construirá através da radicalização do princípio de mediação pelos extremos, na qual a tendência à fragmentação é controlada não por uma síntese final, mas, como veremos, pela alteração interna das formas.

Se lermos de forma dialética a relação entre o momento clássico e tardio de Beethoven poderemos dizer que a retração da ideia abre a assunção de espaços de indeterminação formal nas obras. Mas a retração da ideia não é sua pura e simples anulação. Como foi ela que construiu a linguagem beethoveniana, como sua linguagem é definida por sua capacidade em produzir totalidades processuais nas quais identidades estão em contínua reconfiguração, algo da ideia pode permanecer mesmo quando ela está ausente, a saber, a noção de processo, mesmo que agora dramatizado pela retração do elemento que garantia sua unidade. Vejamos como isto se dá no interior da sonata.

A sonata se desdobrará através de uma justaposição entre duas formas: o arioso e a fuga. O arioso, com seu espírito entre a ária e o recitativo accompagnato, apresenta um extenso tema melancólico, em um tempo diferente do tempo da introdução (passamos do 4/4 para o 12/16) . Ele é acompanhado por uma fuga, em outro tempo (6/8) e tonalidade. Não há transição entre os dois materiais, um não é a introdução do outro, pois tudo que poderia funcionar como transição foi subtraído. Sai-se do adagio do arioso ao allegro da fuga de forma completamente inesperada. O que não poderia ser diferente já que estamos na posição de extremos: o caráter profundamente monofônico do canto meio falado do arioso e a polifonia da fuga.

O uso da fuga guarda, por sua vez, as marcas de uma forma gasta em relação ao estágio do material musical de então. Compor uma fuga em 1822 era revisitar um modo de composição envelhecido, com suas regras de contraponto e transposição que andavam na contramão da clareza harmônica e de uma certa liberdade expressiva defendida pelo Romantismo. Seria aparentemente a última coisa a fazer para quem procura afirmar uma “subjetividade desmesurada”. Mas, à sua maneira, o segundo movimento da sonata nos descreve o movimento de dar vida ao que parecia mera forma convencional.

Isto fica claro na passagem da segunda exposição do arioso à segunda exposição da fuga e ao final da sonata. Ao voltar ao arioso de forma completamente abrupta, parando uma frase ao meio, Beethoven escreve na partitura “perdendo le forze, dolente”. Deve-se tocar o piano com o horror dos que sentem a força indo embora. Ou seja, deve-se encontrar uma expressão que se esvanece, cuja intensidade vai do piano ao pianissimo, como quem faz do lamento recitado do arioso uma procura pelo grau zero.

Notemos, no entanto, como nada disto implica suspensão efetiva da processualidade da peça. Como dirá Adorno, as últimas obras ainda permanecem um processo, embora ele não possa ser compreendido como desenvolvimento. Se não temos aqui exatamente a processualidade como movimento de superação de antagonismos através do desvelamento progressivo da força construtiva da ideia musical, como vimos na Abertura Coriolano, temos outra forma, baseada na posição do informe no interior das obras e sua transformação em motor de impulso para o processo de reconfiguração de formas convencionais. No caso da Sonata opus 110, tal transformação ocorre através do retorno final à fuga. Ao terminar a melodia do arioso, Beethoven apresenta uma sequência de treze acordes em ampliação de intensidade que tem como função mimetizar um movimento de emergência. O que nos explica por que a volta da fuga é exposta na partitura com a indicação “poi a poi di nuovo vivente”. É no interior da segunda exposição da fuga que, pouco a pouco, a vida retornará.

A respeito dessa sequência massiva de acordes em progressão, dirá Rosen: “Beethoven não apenas simboliza ou representa o retorno da vida, mas nos persuade fisicamente do processo” [12]. Sua análise ainda acerta ao lembrar que a reexposição da fuga é feita utilizando as regras mais elementares: a inversão do tema da fuga, o aumento e a diminuição. Ou seja, a vida que retorna pouco a pouco se serve das normas aparentemente ultrapassadas para, sempre pouco a pouco, mostrar como alterá-las. Nesse processo, a sonata produz sua realização mais surpreendente. Beethoven conserva o tema da fuga e suas transposições entre a mão esquerda e a direita, mas agora sem se servir do contraponto, usando acompanhamentos completamente estranhos à linguagem barroca, acompanhamentos da linguagem musical de seu tempo. Mas como tudo deve ser feito “poi a poi” (há três indicações na última parte da partitura), como não deve haver quebra na mutação das formas, elas agora se alteram em continuidade. E na alteração em continuidade torna-se possível a realização da integração entre dois tempos distintos do material musical. Assim, a fuga ainda permanece, mas sem ser mais fuga. Ela ainda pode ser identificável, mesmo que não haja mais o que identificar. A vida, que pouco a pouco retorna, encontra o caminho de produzir novas formas, quebrando a descontinuidade do tempo ao produzir-se como expressão do que já não está mais no tempo linear. Tempo cuja manifestação não seria possível sem o descolamento radical em relação à gramática da linguagem musical permitida pela posição, desde os primeiros compassos, da potência do indeterminado.

BACK TO THE PRESENT

Da reflexão romântica sobre o sublime em música, temos alguns temas estéticos maiores. Primeiro, a articulação entre sublime e indeterminação faz das obras espaço de tensão em direção ao informe, ou seja, as obras são habitadas por um princípio construtivo que, à primeira vista, parece ser impossível de realizar, de onde se segue uma tendência aparente em direção ao fragmentário. Tendência que é, na verdade, a primeira impressão de uma nova ordem que se constrói, superando contrariedades. Segundo, obras sublimes são monstruosas, eles provocam terror, não apenas devido à sua grandiosidade, por evocar algo maior do que a natureza em sua escala desumana. Obras sublimes são monstruosas devido à sua inumanidade, à sua subtração do que normalmente associamos à linguagem dos homens.

Tais tópicos que encontramos no Romantismo estarão presentes na recuperação contemporânea do conceito de sublime. Tal presença talvez nos indique uma permanência sugestiva de estratégias produtivas entre obras, para além da clara e evidente diferença de estilos. Mas podemos falar das obras levando em conta não apenas suas características formais, mas também suas questões internas. Portanto, talvez algumas de nossas questões estéticas maiores ainda guardem ressonâncias profundas do Romantismo.

Conhecemos dois filósofos que tentaram, cada um à sua maneira, repensar a atualidade do conceito de sublime, com recursos massivos à estética musical: Jean-François Lyotard e Theodor Adorno. Gostaria de me concentrar no segundo. No final dos anos 1960, Theodor Adorno intenta publicar uma Teoria estética, que só será editada após sua morte. Lá, encontraremos algumas páginas fundamentais a respeito da possibilidade do uso do conceito de sublime no interior da arte do século XX. A primeira coisa que nos chama a atenção no texto é o reconhecimento da função política que tal recuperação pode ter:

No mundo administrado, a forma adequada na qual as obras de arte são recebidas é a comunicação do incomunicável, a ruptura com a consciência reificada. As obras nas quais a forma estética se transcende sob a pressão do conteúdo de verdade ocupam a posição que uma vez o conceito de sublime sustentou. Nelas, espírito e material se distanciam um do outro no esforço de advir uno. O espírito se experimenta como o que não se representa sensivelmente (ais sinnlich nicht Dastelbares), e seu material, ao qual são ligadas para além de seus limites, se experimenta como inconciliável com a unidade das obras[13].

Há algumas ideias fundamentais aqui. Primeiro, no interior de um mundo administrado, mundo no qual os modos de determinação e representação apenas reproduzem realidades reificadas, não faz sentido apelar a alguma dimensão do originário ou do arcaico que prometeria formas de reconciliação. Melhor é transformar as obras de arte em exposição aberta de conflitos entre a comunicação e o incomunicável, entre a unidade da forma e a tendência de seus materiais. Neste sentido, obras de arte devem aparecer como aporias por apelarem a uma experiência que ainda não tem lugar na vida social. Esta aporia aberta tem, no entanto, força política por impulsionar a crítica contra modelos de reconciliações em vigor na realidade social. Daí por que nosso tempo não poderia mais dar lugar ao belo. O livre jogo das faculdades que o belo prometia não é mais historicamente possível, nem politicamente desejável. Talvez seja por isso que alguém como André Breton seja obrigado a dizer: “A beleza será convulsiva, ou não será beleza”. Convulsão, diga-se de passagem, nunca foi um sentimento que a tradição estética compreendeu como próprio à contemplação de objetos belos.

Ou seja, o recurso contemporâneo ao sublime está vinculado à necessidade de a arte não ocultar as contradições fundamentais que impedem a reconciliação social. Tais contradições não devem ser postas tendo em vista uma superação, mas tendo em vista a constituição de uma língua na qual “A reconciliação não é o resultado de conflitos; mas simplesmente o resultado de que uma linguagem foi encontrada”[14]. Ou seja, a contradição é sustentada através de uma língua que dá forma às marcas do irreconciliável.

Se nos perguntarmos sobre como deve ser tal língua, talvez possamos dizer que ela será, necessariamente, inumana e silenciosa. Através do sublime, Adorno pode afirmar que a arte traz uma humanidade incompatível com a “ideologia do serviço aos homens”. Ou seja, ela só é fiel aos homens através de sua inumanidade contra eles (Treuen hält sie den Menschen allein durch Inhumanität gegen sie). Esta é, na verdade, uma espécie de leitura política da monstruosidade própria ao terror sublime. Ou seja, a recuperação do sublime visa afirmar que a arte fiel a seu conteúdo de verdade permite ao sujeito ir além da figura atual do homem, isto através da posição de uma inumanidade para com este. Assim, as obras de arte sublimes serão a exposição de certa estética da inumanidade que tira de circulação os afetos que lembram ao homem sua imagem.

Aqui, podemos compreender um desenvolvimento fundamental na recuperação adorniana do conceito de sublime. Contrariamente ao conceito romântico, baseado na experiência da dominação e superação da natureza, Adorno fala em certo “retorno da natureza” permitido pelas obras sublimes: “Tal emancipação [produzida pelo conceito de sublime] seria o retorno da natureza (Ruckkehr von Natur), e ela, imagem oposta à simples existência, é o sublime”[15]. Vimos como o uso romântico do sublime estava impregnado da crença na grandeza do homem enquanto dominador da natureza. Se é verdade que, através da contemplação em segurança da força descomunal da natureza descubro, ao mesmo tempo, a precariedade de minha individualidade empírica e a minha destinação maior como ser racional, que não se resume à dimensão empírica e ao sentimento de autoconservação, é porque posso assim reduzir a natureza a algo cuja força existe para ser dominada e sobrepujada. Daí o caráter grandioso das obras sublimes. Elas parecem contar a história do homem que sobrepuja as forças naturais.

Mas a recuperação adorniana parte da defesa de um sublime que teria perdido sua grandiloquência dominadora, já que tal grandiloquência soaria atualmente como despropositada, ou talvez ela só fosse possível como uma grandiloquência arruinada, como vocês conhecem graças à obra de Alselm Kiefer. Haveria uma bela discussão a ser posta aqui a respeito dos modelos de uso da monumentalidade na arte contemporânea e suas consequências políticas.

Este peculiar “sublime não grandioso” ou, se quisermos, um “sublime por atrofia”, é o que, no fundo, orienta o pensamento de Adorno. Ele aparece, de certa forma, em um texto seu sobre Anton Webern, no qual Adorno afirma que a lei formal da música de Webern é a atrofia (Schrumpfens). Uma atrofia que parece ir em direção à recuperação de um trabalho musical que abandona o tempo musical como grandeza extensiva e que, ao levar à frente tal abandono, deixa para trás a natureza arquitetônica da ideia tradicional de forma. Adorno insiste na conhecida característica reduzida das peças de Webern (todas as suas composições somadas não dão mais que três horas de duração) a fim de insistir na importância, para o compositor, de atrofiar o tempo musical, permitindo, assim, uma intensificação da expressão que coincide com a interdição da extensão temporal[16]. Dessa forma, Webern serve para Adorno afirmar não haver lirismo possível que não passe pela atrofia. Pois tal intensificação da expressão é, necessariamente, redução da música à gestualidade de uma “expressão absoluta”, o que permite a Adorno afirmar:

O som puro para o qual, como suporte de sua expressão (Ausdruckstriiger), o sujeito tende é liberado da violência que a subjetividade inflige ao material sonoro ao lhe dar forma. O sujeito, fazendo-se som, sem mediação alguma da linguagem musical, permite à música fornecer o som da natureza, e não mais da subjetividade[17].

As colocações de Adorno são fortes o suficiente para chamar a atenção. Uma expressão desprovida de mediação da linguagem, ou cuja verdadeira mediação é a própria atrofia da linguagem. Modo peculiar de mediação que permite ao sujeito liberar-se de uma subjetividade que operaria construindo organizações que são modos de dominação, liberar-se de sua própria imagem, fornecendo as condições para um “retorno da natureza” como processo orgânico. É isto que Adorno vê nas primeiras peças de Webern, o que não lhe impede de fazer fortes críticas ao desenvolvimento de sua linguagem devido ao uso fetichizado da série dodecafônica, haja vista a maneira crítica com que Adorno analisa uma peça como as Variações para piano, opus 27 [18]. Tentemos entender melhor, então, o que Adorno tem em mente.

György Ligeti afirmou, em importante artigo sobre Webern, que o compositor austríaco conseguira isolar, de sua rede de relações tradicionais, gestos e configurações musicais do Romantismo. Assim, a forma advém estática, pois não pode mais contar com suportes formais de desenvolvimento como a melodia infinita ou a continuidade da processualidade da ideia musical. Por isso, “à redução da expressão e da gestualidade a algumas células motívicas muito concentradas, acrescenta-se a impossibilidade de todo trabalho e de tódo desenvolvimento temático – o que por sinal está de acordo com o estatismo da forma”[19]. Neste gesto de redução, a rede entre elementos musicais ganha a forma da justaposição.

No entanto, essas peças concentradas não são desprovidas de todo princípio de construção. Elas são, na verdade, a redução do princípio de construção à enunciação de um gesto musical com grande força plástica, como se algo próprio à gestualidade corporal virasse, agora, fundamento produtivo da forma. O que pode nos explicar a ideia de haver uma transposição imanente da expressão à forma que não seja simplesmente a posição do informe. Na verdade, a ideia musical responsável pela produção da forma é imediatamente decalcada da gestualidade. Assim, a peça é, de algum modo, a ampliação da estrutura produtiva de um gesto instantâneo. Gesto que normalmente passaria de forma imperceptível. Gesto que só pode ser ouvido e liberado porque o tempo entrou em silêncio.

Vejamos, por exemplo, algumas características das Seis bagatelles para quarteto de cordas, opus 9. Composta em 1913, ou seja, antes da fase dodecafônica, a peça escolhe um gênero menor. Uma bagatelle é normalmente uma música curta e despretensiosa, escrita em estilo leve. Como se a leveza da escrita musical fosse proporcional à capacidade que ela tem de se deixar construir pela gestualidade que expressa.

Podemos usar como exemplo a quinta bagatelle. Sua construção parte de uma técnica cromática com preponderância de segundas menores. Já nos dois primeiros compassos encontramos a apresentação de uma densa rede cromática composta do dó – dó #, ré # e mi, no primeiro compasso, que será completada pelo ré do segundo compasso. Aos poucos esta relação de segundas menores aumenta, seja para o alto, seja para baixo; até o sétimo compasso. Mas essa ampliação do campo harmônico não é homogênea, como se seguisse uma regra. Ela é orgânica, por isto assimétrica e relativamente livre. Por exemplo, a simetria de ampliação entre os campos harmônicos agudo e grave é quebrada ao final do sétimo compasso. Para o alto, o campo amplia um grau a mais do que para baixo.

Devemos falar em “estruturas desenvolvidas mais ou menos livremente” porque, aqui, como dirá Ligeti, ordem e liberdade parecem procurar um ponto de equilíbrio. No entanto, a partir do sétimo compasso o gesto de ampliação continua, mas deixa de operar de maneira cromática por intervalos de segunda menor. Como se o princípio gestual de construção se liberasse até o ponto de tensão máxima da forma. Neste movimento, ela deixa de ser cromática, mas guarda da antiga figura seu princípio fundamental de movimento. Assim:

Estamos diante de um processo orgânico: a forma não é nem construída esquematicamente, nem livre de toda e qualquer restrição. Ela nasce, como tudo o que é vivente, do crescimento e da restrição, ampliando-se posteriormente até que enfim o campo harmônico se rasga[20].

Dessa forma, a peça traz a visibilidade da força produtiva de um gesto que pode ser lido como “retorno da natureza” na obra e, no mesmo movimento, a consciência da inquietude interna ao próprio gesto. Isto faz com que o tempo atrofiado da obra não seja um tempo imóvel. Pois ele não é a imobilidade da repetição que procura a estase. Ele é a contração do tempo que observa uma gestualidade em seu ponto de explosão.

No fundo, com suas discussões a respeito da atrofia da linguagem musical, com seus procedimentos que garantiriam a impressão de um tempo em desenvolvimento, assim como suas discussões a respeito da astúcia de uma expressão que quer mostrar sua irredutibilidade em relação à codificação fetichista dos afetos, Adorno radicaliza os princípios de análise que ele desenvolvera a falar do estilo tardio de Beethoven. O que não poderia ser diferente, já que estamos, na verdade, diante do desdobramento de um mesmo problema ligado aos usos possíveis da categoria de sublime no interior da estética musical.

Notas

  1. Só a título de exemplo, Jean-François Lyotard serve-se do sublime para falar sobre a pintura de Barnett Newman. Mark Taylor relaciona o sublime a artistas como Anselm Kiefer. Os usos de Rosalind Krauss a respeito do conceito de informe devem também ser compreendidos nessa chave.
  2. Cássio Longino, Tratado do sublime e do maravilhoso no discurso, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998.
  3. Edmund Burke, A philosophical enquiry into the origin of our ideas of beauty and sublime, Oxford: Oxford University Press, 2008.
  4. E. T. A. Hoffrnann, Kresleriana, Stuttgart: Reclarn, 1986.
  5. Apud Charles Rosen, Le style classique, Paris: Gallimard, p. 497.
  6. Por tal razão, Charles Rosen lembrará: “Antes de Beethoven, nenhum compositor tinha tão claramente ignorado o limite de seus intérpretes e de seu auditório”. Charles Rosen, Le style classique, op. cit., p. 488.
  7. Carl Dahlhaus, Between romanticism and modernism: four studies in the music of the late nineteenth century, Berkeley: University of California Press, 1989, p. 42.
  8. Theodor Adorno, Beethoven: Philosophie der musik: Fragmente und texte, Frankfurt: Suhrkamp, 2004, p. 24.
  9. Immanuel Kant, Kritik der Urteilkfrat, Hamburgo: Felix Meiner, 1993.
  10. Desenvolvi esse ponto de maneira mais extensa em Vladimir Safatle, O dever e seus impasses, São Paulo: Martins Fontes, 2013
  11. Edward Said, On late style: music and literature against the grain, New York: Vintage, 2007, p. 12.
  12. Charles Rosen, Beethoven’s piano sonatas, London: Yale University Press, 2002, p. 240.
  13. Theodor Adorno, Asthetische Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 1995, p. 292.
  14. Idem, ibidem, p. 294.
  15. Idem, ibidem, p. 293.
  16. Essa atrofia do tempo musical produz não apenas a transformação da forma, mas também da audição. Ela coloca a audição musical no limite do perceptível, como bem salientou Pierre Boulez ao afirmar, sobre a música de Webern: “A relação psicológica com o público não se pode estabelecer em um espaço amplo, se não se dispõe de margem de tempo e de ouvido suficientes; do contrário, o contato nem bem é estabelecido e já se rompe, e, a cada peça, deve-se recomeçar o esforço de recriar um ‘circuito de audição’. Daí resulta, para o intérprete, a impressão penosa de que não ‘prende’: não tem possibilidade, quase material, de absorver a atenção do público, porque uma outra dificuldade dessas obras é saber ouvi-las”. Pierre Boulez, Apontamentos de aprendiz, São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 327. Essa música já não é mais música dos homens.
  17. Theodor Adorno, Klangfiguren; musikalische Schriften I, Frankfurt: Suhrkamp, 1978.
  18. Sobre o problema do fetichismo da série em Webern, tomo a liberdade de remeter a Vladimir Safatle, “Fetichismo e mimesis na filosofia adorniana da música”. Revista Discurso. São Paulo: 2008, n. 37.
  19. Gyorgy Ligeti, Neuf essais sur la musique, Genebra: Contrechamp, 2001, p. 40.
  20. Gyõrgy Ligeti, Neuf essais sur la musique, op. cit., p. 48.

    Tags

  • Adorno
  • afetos que a narrativa sinfônica parecia ser capaz de produzir
  • ampliação das intensidades e formas
  • anton webern
  • arte impulsionada pela procura do sublime
  • auto-hipostasiar
  • Beethoven
  • Boileau
  • capazes de aspirar autonomia
  • caráter grandioso e ilimitado
  • caráter monumental
  • categoria moderna de sublime
  • compositor grego
  • compositor norte-americano
  • conceito
  • conceito de belo
  • consciência da instabilidade das obras de arte em relação às capacidades construtivas e ordenadoras da forma
  • consciência do colapso da estética da representação
  • continuidade à música de beethoven
  • desdobramentos no interior da produção contemporânea
  • determinações de julgamentos estéticos
  • discutir a validade do conceito de sublime para dar conta de algumas obras maiores de anton webern
  • dispositivos centrais
  • estética extensivamente do silêncio e da desaparição de elementos fundamentais da gramática musical
  • estilo tardio
  • estratégia weberiana
  • exemplo fundador
  • exemplo maior
  • expressão afirmativa de uma procura da infinitude
  • figura
  • grandiosidade dos efeitos
  • hofmann
  • iannis xenakis
  • interior da estética musical
  • inversão da grandiosidade em silêncio
  • mahler
  • mais sublime das artes
  • manifestação que alcança os limites da representação
  • metastasis
  • morton feldman
  • multiplicidadede temas
  • música
  • novidade
  • opera
  • operar
  • outra forma de sublime
  • passar por elevação de uma subjetividade
  • pensar a racionalidade do pensamento musical
  • possibilidades de manifestação da infinitude
  • procura romântica em pensar a expressão musical
  • quinta sinfonia de beethoven
  • recurso a tal categoria
  • românticos
  • romantismo alemão
  • rothko chappel
  • século 20
  • sublime
  • sublime por atrofia
  • via frutífera