1992

Tensões sociais em Minas na segunda metade do século XVIII

por Laura de Mello e Souza

Resumo

Durante todo o século XVIII, as autoridades portuguesas propagaram discursos sobre o perigo da sublevação ou sobre a periculosidade potencial dos habitantes da Colônia. Em meados do século, as revoltas não são mais espetaculares, capitaneadas por poderosos. Elas tornam-se surdas, constantes, disseminadas, cotidianas. No imaginário político da época, a face do inimigo interno que assombrava os administradores a serviço da coroa portuguesa era a do gentio bravo, do quilombola fugidio, do vadio itinerante.

No imaginário colonial, índios eram inimigos da colonização, bárbaros, comedores de gente. Eram inimigos permanentes que, quando mansos, traíam, voltavam-se contra os brancos e, quando  bravios, comiam gente, ameaçavam os aldeamentos. Para impedir que se aliassem aos quilombolas, os poderes estabelecidos procuraram, desde cedo mandar esquadras de índios seguirem no encalço de negros fugidos.

A ideia de que uma Guerra opondo os colonos brancos aos escravos negros estava prestes a ocorrer nas Minas foi altamente difundida no século XVIII. Como estratégia, os homens designados para perseguir e prender quilombolas deveriam primeiro buscá-los nas imediações das estradas e depois passar para os quilombos, onde deveriam primeiro cuidar em prender os negros fugidos sem machucá-los. Se houvesse resistência, tinham autorização para matar, incendiar, destruir as aldeias.

Contra os quilombos, voltava-se também a “civil sociedade”. Particulares que, por conta própria, caçavam escravos fugidos. O medo da ação dos quilombolas levava ainda soldados a agirem por conta própria, sem ordem de superiores e com grande violência.

Já os vadios eram um grupo infrator caracterizado, antes de mais nada, por sua forma de vida. Por não terem laços — família, domicílio certo, vínculo empregatício — constituíam um grupo fluido e indistinto, difícil de controlar e até mesmo de enquadrar. Até a década de 1770, as autoridades se preocuparam mais com o modo de vida marginal dos vadios e com as formas possíveis de controlá-los do que com as alternativas para a sua utilização. Com o aprofundamento da crise aurífera, porém, surgiu a necessidade de transformar o “peso inútil da terra” em elemento útil à ordem pública. Neste contexto, cresceu a ideia de que os vadios poderiam ser úteis.

Nos vinte anos subsequentes, os ilustrados das Minas desenvolveram o hábito das reuniões domésticas e das conversas diárias. A situação explosiva da capitania tornara-se evidente não apenas para os governantes, para quem a continuidade da dominação colonial exigia urgência em encontrar soluções. Se os negros se sublevassem ou se os vadios tivessem consciência de seu peso, voaria em estilhaços o mundo restrito dos homens brancos, entre os quais se achavam os inconfidentes. Membros da elite mineira, os inconfidentes não foram apenas alguns intelectuais idealistas.

Desde 1717, pelo menos, falava-se de revolta em Minas, seja do lado do poder estabelecido, seja do lado dos colonos descontentes. No decorrer do século, a revolta passou a ser vista como cotidiana, pulsando nos quilombos, nas andanças desordenadas de vadios, na desobediência de índios semidomesticados. A partir da década de 1740, a revolta se infiltrou nos interstícios do tecido social.

Em 1776, no Curvelo, inaugura-se uma nova possibilidade de revolta nas Minas. Homens letrados discutiam ideias, apoiavam os jesuítas, criticavam a Monarquia com o poder de fogo das ideias ilustradas. Em 1789, Tiradentes pregava que o povo das Minas ficava pobre, sem nada de seu, enquanto Portugal sugava todo o seu ouro e enriquecia. Todos ouviram e muitos depuseram na devassa. A devassa foi pública, assim como público e exemplar foi o suplício de Tiradentes.

Dez anos após a prisão dos conspiradores, denúncias de inconfidências ainda amedrontavam os habitantes da capitania do ouro. Mas revoltas podiam estar deixando o segredo das reuniões domésticas e ganhando as ruas, como o levante que os baianos promoveram em Salvador, em 1798. Mas a coerção, a violência, a representação emblemática do poder ainda disseminavam o medo entre os mineiros e trazia a desagregação do tecido social.


1

Em 21 de abril de 1792, no Campo de São Domingos, Rio de Janeiro, a justiça de Sua Majestade dona Maria I mandava executar o réu Joaquim José da Silva Xavier pelo “horroroso crime de rebelião e alta traição” de que foi considerado chefe, já que, na distante capitania de Minas Gerais, atentara “com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberania, e Suprema autoridade da mesma Senhora”. Com baraço e pregão, o réu deveria ser levado pelas ruas públicas da então capital da Colônia, e, no lugar da forca, morrer “morte natural para sempre”, tendo separada do corpo a cabeça, e esta levada a Vila Rica, onde se conservaria “em poste alto junto ao lugar de sua habitação”, até que o tempo a consumisse. Quanto ao corpo, determinava-se que fosse dividido em quartos, e estes “pregados em iguais postes, pela estrada de Minas, nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha e Cebolas”. A casa em que tinha residido deveria ser destruída e salgada, levantando-se, entre suas ruínas, um padrão que perpetuasse, na posteridade, “a memória de tão abominável réu e delito”, infamando ainda, através dos tempos, a descendência do réu.[1]

Em regozijo pela descoberta da conjuração, realizaram-se cerimônias religiosas em que se deram graças a Deus por ter o episódio ficado circunscrito às Minas, sem contagiar a capital da Colônia, e se procurou persuadir os povos a permanecerem fiéis a uma soberana “tão amável, tão pia, tão clemente”, rogando ainda a Deus por sua vida e saúde. Estiveram presentes o vice-rei, a vice-rainha, o bispo, as várias hierarquias de que se compunha o povo. Ardiam na igreja mais de duzentas velas, “que todas trocavam a noite em dia”. Sobre o arco cruzeiro, se via um emblema que representava simbolicamente o poder e o controle da Monarquia portuguesa sobre a possessão americana, celebrando-os. Sentada no trono, dona Maria I tinha, à sua direita, as armas de Portugal guardadas por Hércules, maça ao ombro e músculos à mostra. Do lado esquerdo da rainha estava Astréia com todas as insígnias da Justiça, e no olhar manifestava à soberana a presteza com que executava suas leis.

Sua majestade com a mão esquerda tocava o próprio peito, e com o cetro, que tinha na mão direita, apontava para a figura da América, que aos pés do trono, muito reverentemente, lhe oferecia uma bandeja de corações, que significavam o Amor, e Fidelidade dos Americanos. Mais ao longe, e como em campo muito distante, se viam os sublevados, representados na figura de um índio, posto de joelhos, despojado dos seus vestidos e armas, com as mãos erguidas e em um braço uma cobra enrolada, protestando a eterna vassalagem e suplicando a piedade da soberana.[2]

A ordem de execução de Tiradentes e a alegoria que celebrava o fim da conjura imprimiam no cotidiano o suplício do insubordinado e a afirmação do poder. Se o réu da horrível conspiração morara em Minas e inúmeras vezes, percorrera os caminhos que ligavam a capitania interiorana à sede do governo dos vice-reis, situada em terras litorâneas, era ao longo dos caminhos que seu cadáver deveria ficar exposto. Desarticulado, putrefato, feito em mil pedaços, o corpo lembrava que o suplício era iminente para os que ameaçavam a integridade da Monarquia, esta sim um todo indivisível. O suplício e a lembrança dele talvez subordinassem o povo das Minas, que a tradição política setecentista pintara, no correr do século, como inquieto, revoltoso, sempre prestes a se amotinar. A rainha, por sua vez, tinha a seu lado verdadeiros Hércules, heróis fortes e corajosos que não mediam esforços nem deixavam de recorrer à força bruta para mantê-la sentada no augusto trono. A justiça também estava com ela, e nem tardava, nem falhava. Os súditos americanos lhe eram fiéis em corpo e em alma, capazes de tirar o coração do peito para lhe oferecerem. E o colono, este ser ambíguo, mutável, ameaçador muitas vezes, rude e selvagem como os índios, habituado a conviver com feras, tinha, ao fim e ao cabo, de se acostumar com o jugo da Monarquia lusitana, amável, clemente, pia, civilizadora.

2

A desordem era perigosa para o governo dos povos, ainda mais a milhas de distância do centro de poder. Nas Minas, era também um entrave à tributação, e Portugal logo percebeu a necessidade de enquadrar a capitania a fim de que o ouro e as gemas fluíssem melhor para o cofres do rei, fazendo de Vila Rica, como diria em 1733 o autor do Triunfo eucarístico, “por situação da natureza cabeça de toda a América, pela opulência das riquezas a pérola preciosa do Brasil”. Mas o controle sobre as Minas extravasou em muito as preocupações fiscalistas da Coroa, e se atrelou a um contexto mais vasto, de temor ante a consciência crescente do que seria, então, “viver em colônias”. Durante todo o século XVIII, as autoridades portuguesas não se cansaram de discorrer sobre o perigo da sublevação ou sobre a periculosidade potencial dos habitantes da Colônia, que, como o índio da alegoria acima descrita, poderiam até se submeter, mas traziam sempre uma serpente ao alcance da mão para, com ela, ferir as normas estabelecidas pelo poder central. Contra os propósitos normatizadores da Metrópole, conspiravam inúmeras variáveis, entre elas a distância. No final do século anterior, o grande jesuíta Antônio Vieira dizia:

A sombra, quando o sol está no zênite, é muito pequenina, e toda se vos mete debaixo dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no ocaso essa mesma sombra se estende tão imensamente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim nem mais nem menos os que pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o sol está no zênite, não só se metem estas sombras debaixo dos pés do príncipe, senão também dos de seus ministros. Mas quando chegam àquelas Índias, onde nasce o sol, ou a estas, onde se põe, crescem tanto as mesmas sombras, que excedem muito a medida dos mesmos reis de que são imagens.[3]

Dom Rodrigo José de Menezes, um dos governantes ilustrados de Minas no período imediatamente anterior à Inconfidência, constatava ser difícil impedir desmandos mesmo entre os membros da administração imperial:

Especialmente em colônias, que por estarem longe do trono não podem receber imediatamente dele, em tempo competente, o remédio às suas vexações, e que, mais que a Mãe Pátria, necessitam de ser regidas com justiça e suavidade, sem as quais é impossível florescerem.

Como um de seus antecessores no governo, Gomes Freire de Andrade, conde de Bobadela, dom Rodrigo defendia a tática de se misturar o agro com o doce para melhor harmonizar e submeter os colonos:

Sempre me persuadi que uma bem calculada e dirigida prudência seria suficiente em quem governa, para ganhar os corações dos homens e obrigá-los com uma força voluntária a cumprirem as suas obrigações sem que parecessem conduzidos mais que pela própria vontade, e sem que percebessem mão superior e estranha que desse os movimentos às suas ações.[4]

3

Como introjetar o poder e as normas nas lonjuras do sertão? Como enquadrar os potentados, contornar o desejo de mando das câmaras municipais, ordenar a população heterogênea de várias gamas de mestiços, conter a violência sempre represada do contingente escravo?

Na segunda década do século XVIII, o Estado procurara tomar as rédeas do processo urbanizatório que os colonos turbulentos haviam iniciado nas Minas, e tratara de lhes cortar as asas, esmagando levantes como o dos Emboabas (1707-9) e o de Filipe dos Santos (1720). Foi este o primeiro tempo das Minas, quando o poder dos governantes ainda estava se estabelecendo, e nem mesmo as insígnias externas dele, como o Palácio dos Governadores, tinham o peso e a majestade que viriam a adquirir posteriormente. Fundamental, neste processo, mostrou-se a atuação do conde de Assumar, que dirigiu a capitania entre 1717 e 1721. Acuado pelos protestos contra a forma de tributação que, em nome da Coroa, deveria implantar nas Minas, e apavorado com a iminência de um levante escravo, inevitável, ante seus olhos, pela relação desequilibrada entre o pequeno número de brancos e o enorme contingente negro, o governo do conde foi um divisor de águas no que diz respeito ao exercício do poder em Minas, tendo sido ele o primeiro governante português que, na Colônia, executou sumariamente, sem processo, um homem branco e de certa qualidade social, passível, nesta condição, de ser julgado por uma Junta de Justiça.

No tempo de seu governo, o espaço interno da capitania de Minas Gerais se encontrava ainda em processo incipiente de configuração. Eram fluidas e indefinidas as fronteiras com as capitanias vizinhas, e o sertão, vasto e temido, era uma terra de ninguém, ou melhor, terra de índio bravo e de negro revoltoso. Fechado por montanhas para o viajante que deixava o litoral — a serra do Mar e, em seguida, a serra da Mantiqueira —, o território das Minas era de acesso difícil, dotado de condições climáticas peculiares. O clima instável, enevoado, traiçoeiro da capitania foi comparado pelo conde à população que a habitava, associando-se a revolta da natureza à natureza em revolta. Escrevendo ao brigadeiro João Lobo, em 1719, Assumar reprovou a rebelião que contra este intentara a Vila de Pitangui e o aconselhou quanto à maneira de pacificar os povos, dentre os quais haviam se destacado os negros: “que se aplaquem as tempestades e se serenem semelhantes borrascas, sempre perigosas para o bem comum e para o serviço de Sua Majestade”. A analogia entre revolta dos elementos e revolta social foi retomada quando, ao relatar ao conde de Vimieiro, governador da Bahia, os fatos ocorridos na Semana Santa de 1719 — ocasião em que se acreditou que os escravos, aproveitando-se do fato de os senhores se encontrarem na missa, promoveriam enorme matança de brancos e fugiriam em seguida —, o governador desvendou um pouco melhor o significado politico de que se revestiam: “[…] improvisa e repentinamente se levantou neste governo uma borrasca tão feia, que o podia, não só pôr em contingência, como a toda a América”. No famoso Discurso histórico político, escrito com o intuito de justificar a execução arbitrária de Filipe dos Santos, Assumar aperfeiçoou a analogia:

Os dias nunca amanhecem serenos; o ar é um nublado perpétuo; tudo é frio naquele país, menos o vício, que está ardendo sempre. […] a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; destilam liberdades os ares; vomitam insolências as nuvens; influem desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo e, amotinada lá por dentro, é como no inferno.

Na década de 1720, portanto, quando o Estado se instalava na convulsionada capitania das Minas, separando-a da de São Paulo para melhor governá-la, o conde de Assumar tinha claro que a revolta de colonos e de escravos podia pôr a perder os domínios portugueses na América do Sul; percebia também que o grande número de escravos negros e a minguada população de brancos fazia de Minas um barril de pólvora:

[…] que como ainda agora são aqui mui pouco os homens brancos, à proporção dos negros, tiveram estes atrevimento para intentar uma sublevação universal e se comunicavam das partes mais distantes […]

Apesar de escravos, tinham capacidade de organização, podendo ganhar adeptos para a sua causa. Dotado de aguda sensibilidade política e decifrando bem a trama social, o governador usava o imaginário demonológico para definir a natureza da sociedade mineradora e acusar a propensão à revolta: os colonos eram demônios, e a capitania, enevoada, borrascosa e hostil, lembrava as descrições do inferno correntes na época, como, por exemplo, as presentes no Compêndio narrativo do peregrino da América (1728), de autoria do moralista Nuno Marques Pereira. A negação da ordem social era coisa do Diabo, como o fora para muitos dos pensadores políticos ingleses que antecederam a Revolução de 1640. A revolta era o antimundo, assim como o inferno era a antítese do céu.[5]

Governadores subsequentes talvez não tenham chegado a enxergar a população mineira com os olhos da demonologia, mas, a exemplo de Assumar, usaram as metáforas da natureza em revolta para ilustrar os perigos da sedição. Entre maio de 1736 e dezembro de 1737, o ilustrado português Martinho de Mendonça de Pina e Proença governou interinamente as Minas Gerais, queixando-se sempre do clima, dos mineiros, do cargo que o desgastava e exauria na idade provecta em que já se achava. Em 1736, reprimiu o levante de São Romão, no qual, talvez pela última vez até a Inconfidência, homens poderosos se insurgiram contra o governo da Metrópole.[6] Mas nunca dormiu tranquilo, sempre farejando sinais de uma revolta iminente, e na noite de 30 de outubro de 1737 sobressaltou-se com as vozes que, alto e bom som, proclamavam na principal rua da Vila do Carmo, depois Mariana: “Viva el-rei, viva o povo, e morra Martinho de Mendonça”. Refrão clássico dos levantes da sociedade de Antigo Regime, no qual se poupava a figura do rei, pai e protetor de seu povo, e se atacava a do executor das leis duras — no caso, a tributação do ouro —, o vozerio acabou por se mostrar de menor importância.[7] Mas o governante não sossegava, intuindo catástrofes futuras, dizendo-se precavido contra “uma tempestade” que via armada havia muito tempo, a gritaria noturna não sendo senão o “primeiro trovão”, tarde ou cedo fatalmente se lançando, “se não forem raios, ao menos relâmpagos”. Uma vez deflagrada, a revolta da sociedade, como a da natureza, não podia ser interrompida: era fatal e inexorável. Martinho de Mendonça dizia que, “movido e alterado uma vez o vulgo, não é fácil pôr termo aos seus desatinos”, ou que, “se uma vez se desenfreia este povo, não será fácil reduzi-lo”. “Posso ser medroso”, confessava o velho governante, “mas não sou visionário.” Se sua aflição passasse por “quimera melancólica”, se ele caísse em desgraça junto ao rei, ou se o matassem os súditos sublevados, prosseguia, “menor será a perda de minha casa, que a das Minas”. Nestas, sob seus olhos, se atiçava “uma fogueira oculta” mas com poder de destruição suficiente para fazer sair do letargo as autoridades metropolitanas, indiferentes ante os seus avisos, “desprezando as Minas como se não foram de mais importância que a Colônia”.[8]

4

Os anos compreendidos entre 1707 e 1740 foram desta maneira um período extremamente crítico para o governo das Minas, e a continuidade da dominação portuguesa sobre a capitania correu sério risco. As décadas de 1740 e 1750 presenciaram a irrupção de inúmeros quilombos, provocando a mobilização de tropas empenhadas em combatê-los e arrasá-los de forma sanguinária e brutal. Estes anos marcam talvez uma percepção diferente da revolta. Não houve mais revoltas espetaculares, capitaneadas por poderosos como Manuel Nunes Viana, um dos principais chefes emboabas em 1707-9; Pascoal da Silva Guimarães, que, em punição a seu destacado papel no episódio que culminou com a morte de Filipe dos Santos, em 1720, teve queimado pelo governador o morro em que residia, e que levava seu nome; ou dona Maria da Cruz, a virago sertaneja das lonjuras de São Romão que, chefe de família apotentada e revoltosa, foi presa pelos poderes estabelecidos em 1736 e trazida até Vila Rica em expedição fluvial pelo São Francisco e pelo rio das Velhas, a passagem de sua barcaça coberta de sola bordada provocando consternação e solidariedade entre a população ribeirinha.[9] A partir de meados do século, como se ia dizendo, as revoltas tornaram-se surdas, constantes, disseminadas, cotidianas: mudara tanto sua anatomia como a forma de encará-las. Desde então, e até o governo de Luís da Cunha Menezes, os oligarcas mineiros estiveram antes do lado do poder do que contra ele, gozando de benefícios e propinas; enraizando-se localmente, como viu Kenneth Maxwell em A devassa da devassa;[10] moldando-se cada vez mais pela vida intensamente urbana da capitania; dotando-se de feição específica, diferente da dos grupos de potentados patriarcais próprios de outras regiões da Colônia. No imaginário político da época, Inimigo com I maiúsculo se tornara, cada vez mais, o gentio bravo, comedor de gente nas florestas que margeavam o rio Doce; o quilombola fugidio, sempre pronto a atacar as colunas que entravam pelos matos, sempre presto na pilhagem de paiois e roças de fazendeiros imprevidentes; o vadio itinerante e biscateiro, que rodava pelo sertão e pelas vilas, pesando, com sua forma intermitente de trabalhar, por sobre os homens bem morigerados e nitidamente situados na hierarquia social. Era o inimigo interno que assombrava administradores desde a década de 1720, quando, nas vestes do escravo fugido, Assumar os temera como o diabo à cruz. Era o exército difuso e informal que homens como dom Antônio de Noronha, nos anos 70, viram tão perigoso como os castelhanos que, ao sul, fustigavam a fronteira ainda cambiante da colônia brasileira.

ÍNDIOS

No imaginário colonial, índios eram, tradicionalmente, agentes de Satã que a catequese se esforçava por metamorfosear em almas de Cristo, antítese da cultura que a expansão das fronteiras e a conversão ao trabalho sistemático poderia, talvez, reduzir ao mundo dos brancos civilizados. No espaço geográfico das Minas, os índios foram vistos como os inimigos da colonização, como bárbaros comedores de gente, como feras indômitas. Mas, talvez pelo fato de o tráfico já se achar plenamente estabelecido — à diferença dos primeiros momentos de ocupação do espaço litorâneo —, talvez ainda porque, então, toda a lide colonial já residia, indubitavelmente, no trabalho de cativos negros, o índio não foi o maior dos pesadelos a assombrar burocratas, governantes e colonos nas Minas do século XVIII. Mesmo assim, atemorizou muito os homens brancos, por quem frequentemente foi associado aos bichos ferozes.

Na década de 1770, nas frentes avançadas de povoamento, os colonizadores brancos procediam a uma verdadeira tipologia dos índios com que mantinham contato. Havia os mansos, domésticos, como os manaxós e maxacalis, aos quais as expedições que entravam pelo sertão distribuíam ferramentas e rosários. Havia os pacíficos, mas traidores, capazes de matar outros índios ou soldados quando os achassem descuidados. Sendo infames, eram indignos de trégua, como os copoxós. Por fim, no limite, havia os puris e os botocudos, “nação tão brava, e de péssima natureza, que trazem contínua guerra com as mais nações, sustentando-se de carne humana, tanto dos índios que matam, como dos católicos”. Contra eles, havia que se mover a “peleja” de que falam os textos e que procurava extingui-los “por meio de ferro e fogo”, visto não quererem se utilizar da amizade dos brancos e continuarem escandalosamente sendo “verdugos e inimigos capitais do trato civil e humano”.[11]

Vendo como ilegítimos os atos de violência dos índios, os sertanistas relatavam de forma natural e serena os massacres cometidos contra aldeias, como o ocorrido no final da década de 1760, na região fronteiriça com a capitania do Espírito Santo:

Subindo pelo dito rio Doce, já perto da ilha da Esperança, um dia entramos a avistar fumaças de fogos do gentio Botocudo, e indo navegando em distância de meia légua os avistamos estarem passando o dito rio em balsas de pau do sul para o norte; virei as canoas rio abaixo um quarto de légua, e meti-me em uma ilha até serem perto de quatro horas da tarde por não sermos sentidos do dito gentio, e a essas horas passei para a parte onde estavam, endireitando a rumo direito para eles; caminhei de noite com luzes, até indagar estar perto dos ditos; chegada a madrugada, os mandei cercar, e sentindo-nos os cachorros do dito gentio, se embraveceram de sorte que os motivou a desconfiança, pegando logo nos arcos, e setas, e inda com escuro se iam retirando do alojamento, e rapidamente me vi precisado cometê-los, por ver perigo se chegassem a sair fora do dito alojamento pelas traições e ciladas com que haviam de nos atacar, e ajudou-nos Deus que ainda haviam de morrer deles para cima de vinte, e como o cerco não estava de todo fechado, fugiram por aquele mesmo lado desunido, e só fizemos de presa uma mulher com três filhos, e dois mais, que terão sete para oito anos pouco mais ou menos, com felicidade grande, sem pessoa alguma dos nossos ter perigo.[12]

Os próprios governantes justificavam a violência dos atos contra os índios com base na resistência que viessem a opor. Valadares, por exemplo, acreditava, na mesma época, que talvez o “bom agasalho” conquistasse mais do que o ferro, mas não titubeava em aconselhar dureza: disperso ou aldeado, o gentio deveria ser reduzido ao grêmio cristão — ou “com brando e suave modo”, ou, caso não quisesse abraçar o “amigável trato” dos brancos, com o terror provocado à força de ferro e fogo. Conseguir-se-ia, assim,

ou a redução do gentio, pelo meio da persuasão, ou arruiná-los de todo, para que vivam sossegados os moradores daquelas vizinhanças, em quem eles têm feito repetidas hostilidades.[13]

O temor às ações indígenas subvertia o corpo jurídico, já que leis como a do Diretório dos Índios pareciam, no cotidiano, terem se tornado letra morta. Ainda na região fronteiriça entre Minas e Espírito Santo, nas imediações do rio. Doce, onde matas espessas abrigavam tribos antropófagas, os índios se acharam aldeados na localidade de Nossa Senhora da Estrela. Munhoxós, comunhoxós e maxacalis eram dóceis e domésticos, mas os macunis, panhames e cataxós deveriam ser vistos com reserva, prontos para se rebelarem quando a submissão à vida do aldeamento deixasse de lhes ser interessante. Fingindo paz, sobretudo os cataxós continuavam matando gente branca. Minavam a base interna da organização dos civilizados, que tinham, como oponente externo e terrível, os lendários aimorés, “rebeldes, pertinazes e vorazes de carne humana, que nunca cessam nem cessarão de nos danificar, e aos nossos confederados”, afirmava o vigário da aldeia, Manuel Vieira Nunes. Para com os aimorés, “enquanto o seu orgulho não for prostrado como justamente pode e parece se deve efetuar”, caberia, para o vigário, ser

necessário e conveniente a escravidão, por ser a causa da nossa guerra agressiva e juntamente defensiva com título muito justo, em direito fundado, e os prisioneiros de justa guerra, não sendo católicos, têm por direito comum imperial a pena da servidão perpétua […]

O padre sabia que suas palavras podiam soar mal em tempos de reformismo ilustrado, como eram aqueles, capitaneados pelo ministro Pombal. Mas manteve a posição: a piedade que, a partir de Lisboa, se postulava para com os habitantes da América era “simulada” e irreal, posta na boca de indivíduos “nada zeladores do bem comum”, em cujos braços caíra, enganado, “até o gabinete de nossos augustíssimos reis, e até o Sólio Pontifício”. Censurar atos duros contra os índios propiciara “a última tragédia de tantos vassalos portugueses”, e clemência cabia apenas para com o gentio dócil, e não para com “tantas nações ferocíssimas e indomáveis que existem por esta América”… [14]

Índios eram, portanto, inimigos permanentes: quando mansos, traíam, desertavam, voltavam-se contra os brancos se a aliança com eles não mais interessasse. Se bravios, comiam gente, ameaçavam os aldeamentos, pelos quais o mundo civilizado procurava domar o sertão. Na documentação oficial, são os culpados de tudo, inclusive da violência dos brancos. Para impedir que se aliassem a outros seres temíveis, os quilombolas que também se embrenhavam pelos matos, os poderes estabelecidos procuraram, desde cedo — as primeiras referências remontam a 1714 —, mandar esquadras de índios seguirem no encalço de negros fugidos. Enquanto dividiam os opositores da ordem, tais medidas, astutamente, aproveitavam-se dos índios como capitães-do-mato pela maior familiaridade que tinham com o sertão. No tempo de Bobadela, chegou-se a determinar que cinquenta casais tapuias fossem deslocados de São Paulo para cada uma das comarcas mineiras:

Para dali saírem a destruir os quilombos dos negros que frequentemente costumam roubar e matar aos viandantes, visto que os meios que se têm aplicado para evitar estes insultos têm sido ineficazes.[15]

NEGROS

A ideia de que uma guerra campeava nas Minas, opondo os colonos brancos aos escravos negros, encontrou expressão admirável na representação anônima que, provavelmente na década de 1770, um colono brasileiro encaminhou ao monarca, talvez dom José I, talvez dona Maria I. Dizia o documento que os colonos, em nome dos quais falava, desejavam ardorosamente que a conquista portuguesa se propagasse, e se prontificavam a marchar, caso fosse necessário, para a defesa do território. Entretanto, deviam pôr na presença do rei o risco em que deixavam suas mulheres e filhas “nas mãos do inimigo mais pernicioso”, ou seja,

a gente preta bárbara de África e Guiné, que todos os moradores possuem, uns mais e outros menos, conforme suas posses com a sujeição de cativos, por os comprarem naquela região por dinheiro.

Os tais negros escravos eram importantes, dizia ainda o vassalo, porque todas as Minas eram por eles, e só por eles, cultivadas. Mas sua aparente domesticidade encobria a fereza natural, pois eram “domésticos à força de temor, e inclinados só a fazerem mal e matarem os brancos, que julgam capitães inimigos por os privar da liberdade”. Para cada branco pululavam nas Minas cem “etíopes”, ou seja, negros da África que tentavam, sempre que se oferecia a ocasião, “despojarem” os colonos brancos de suas vidas, mulheres e filhas. Dispersos pelos matos e brenhas, os escravos fugidos roubavam, matavam, atacavam as povoações que sabiam “menos fortificadas para a defesa”, erguiam suas malocas nas paragens mais inacessíveis aos brancos, onde viviam “sem lei nem obediência” às normas do Estado português. Com a diminuição do número de brancos, que seguiam para fora da capitania recrutados para as guerras do Sul, faltariam forças para enfrentar os negros, “vindo-se a seguir terrível perda de umas Minas que, pelos seus haveres de ouro e pedras preciosas”, continuava o vassalo, faziam Portugal “temida até do mesmo Turco”. Havia se passado cerca de meio século desde os tempos tumultuados do governo de Assumar, e, no entanto, continuava grande, talvez maior, até, o temor de que a multidão dos negros se voltasse contra a minoria branca das Minas. As medidas propostas pelo vassalo eram duras: invocava o bom tempo de Bobadela, quando, por prudência do governante, determinara-se que houvesse em todas as povoações um certo número de capitães‑do-mato pagos pelas câmaras para, “sem a mínima piedade”, matarem os negros que se encontrassem armados fora do domínio de seus senhores. Estes, por sua vez, deveriam ser instados a reprimirem duramente os ajuntamentos de escravos em assembleias, pois nelas não faziam outra coisa senão maquinarem a “intentada sublevação”. Ao finalizar, desvendava um pouco do complexo exercício do poder nas Minas: “É certo que vale mais sobras de cautelas do que falta delas”.[16]

Se a guerra campeava, era preciso desenvolver estratégias. Os homens designados para perseguir e prender quilombolas deveriam primeiro buscá-los nas imediações das estradas, que, reclamavam os habitantes, viam-se “infestadas” deles. Quando estivessem limpas, passariam então para os quilombos, onde deveriam primeiro cuidar em prender os negros fugidos sem machucá-los. Havendo resistência, tinham autorização para matar, incendiar, destruir as aldeias.[17] Contra os quilombos, eram enviadas expedições bélicas que, na maior parte das vezes, partiam sem alarde, às escondidas, para melhor surpreender o inimigo. Podiam contar cem homens, entre os quais havia dragões, soldados pedestres, auxiliares. A pólvora, o chumbo, as balas, os mantimentos seguiam em lombo de bestas, que eram vinte, trinta até, como as que acompanharam os destruidores do quilombo do Tabua, em 1769, onde se fizeram oitenta presos entre cativos e agregados “estabelecidos em terras do mesmo quilombo com famílias, e roças”, crianças e mulheres. Além da casa principal, existente na maioria dos quilombos de que se têm mapas ou descrição, o do Tabua contava mais de duzentas casas, todas cobertas de telha e fortificada a metade delas. Por ordem do então governador, conde de Valadares, elas foram destruídas, “arrombando-se portas e janelas, e metendo os pedestres a saque tudo o que acharam”.[18] A expedição que, um ano antes, se dirigiu ao quilombo do rio Pomba, teria contado sessenta soldados armados de espingardas e facões, seis granadas de fogo, quarenta alqueires de farinha, oito capados, uma bruaca de sa1.[19] Todas as duas ostentavam, entretanto, modestas dimensões se comparadas ao corpo de quatrocentos homens mais munições de guerra e boca que, por ordem de maio de 1747, destinava-se a destruir quilombos.[20] Eram também quatrocentos os integrantes da lendária expedição de Bartolomeu Bueno do Prado, que, em 1759, percorreu sertões mineiros destruindo aldeamentos de negros fugidos e prendendo centenas deles.[21]

Contra os quilombos, voltava-se também a “civil sociedade”, os homens comuns, como um certo Gonçalo Pais que, em 1770, se oferecia para patrulhar o sertão a suas expensas, explorando-o e, ao mesmo tempo, atacando os aldeamentos de negros fugidos.[22] Tal procedimento remontava à década de 1730 e até, talvez, a períodos anteriores, quando, em petições, os moradores pediam permissão para ajuntar gente e assaltar quilombos como o existente próximo a Pitangui, na beira do rio Gomes, podendo, em troca, tomar para si os bens móveis que encontrassem e também as crias nascidas nos quilombos. Solicitavam ainda que não fossem consideradas criminosas as mortes que porventura viessem a provocar nos escravos, “mortes em natural defensa” que convinham ao serviço de Sua Majestade e ao bem comum.[23] Esses particulares que, por conta própria, caçavam escravos fugidos, procurariam, talvez, neutralizar a eterna falta de capitães-do-mato e de tropas adequadas, expressas nas queixas incessantes das câmaras municipais e das autoridades administrativas ou judiciárias. Introjetavam molecularmente as disposições oficiais contra quilombolas, respondendo, de forma individual e pulverizada, às investidas violentas dos “bárbaros etíopes” que, arrancados da África e atirados ao cativeiro, tinham mesmo, com frequência, atitudes tão inumanas quanto as dos senhores a quem eram sujeitos. Nas fazendas ou nas pequenas roças e sítios, em muitas ocasiões os colonos viveram aterrados, inseguros, “cada um em sua casa” esperando “por instantes o mesmo estrago que na de outros os fugitivos negros fizeram”.

A este respeito, vale a pena deixar falar um documento de 1768:

Quantas vezes aos nossos ouvidos chegaram os tristes clamores da donzela branca, cujas enternecidas lágrimas, e atendíveis rogos nenhuma piedade encontraram nos inexoráveis peitos daqueles negros, lobos vorazes da sua virgindade! Que queixas despede ao léu a casada, porque aqueles monstros da crueldade e lascívia, nunca clementes a tão justos gemidos, prostituída a puseram, deixando-a inculpável ofensora ao seu tálamo! Quantos os de menor fábrica, que não tendo família, com que resistem aos assaltos destes fugitivos, sem remédio, ou manietados, ou com mordaças nas bocas, ou por maltratados quase mortais, vêem roubar-se-lhe seus pobres pecúlios, que com tanto suor adquiriram, e as almas lhes levam nas mulheres e filhas, que os negros lhes conduzem![24]

O terror pânico da ação dos quilombolas levava ainda a que soldados agissem por conta própria, sem ordem de superiores. Em maio de 1770, no sítio do Brumadinho, freguesia do Sumidouro, dois soldados crioulos viram, às onze horas da noite, o vulto de dois negros que passavam pela beirada do arraial. “Querendo reconhecê-los e pegá-los na fé de que eram fugidos”, seguiram os negros e conseguiram alcançar um deles em uma praia logo adiante. Enquanto um dos soldados perseguia o negro que sumira, o outro amarrava o que se conseguira capturar, de repente, do meio da escuridão, o que ficara à margem do rio com o aprisionado ouviu o companheiro gritar que o matavam. Largou o escravo e foi acudir o soldado que gritava, mas chegou tarde demais: o agressor já escapara, e a ele se juntou o que permanecera na beira do rio. Não conseguiram saber quem seriam, nem prendê-los novamente. Deles, o que ficou foi, no local da prisão, um saco velho com umas espigas de milho, levando o comandante do distrito a cogitar que se tratava de negros “que iam mudando para alguma parte”, e que, nem de longe, planejariam qualquer ação contra os homens brancos.[25]

Bem mais tenebroso foi o fim de episódio semelhante ocorrido no mesmo ano, no distrito das Catas Altas, onde alguns negros cometiam furtos. No seu encalço destacaram-se espontaneamente soldados do mato, dando com eles a três léguas do arraial. Ainda estavam atordoados com o encontro quando um dos negros saltou sobre um soldado cabra e, tomando-lhe a faca, o matou, despojando-o em seguida das outras armas que trazia. Os companheiros do morto, por sua vez, alvejaram o negro e o mataram, cortando-lhe a cabeça e levando-a publicamente para o arraial.[26] O hábito de cortar as cabeças dos negros procurava justificativa na violência que estes exerceriam contra os brancos. Na prática, as coisas se passaram de forma diferente, havendo reclamações contra as arbitrariedades cometidas pelos capitães-do-mato que, a qualquer pretexto, decepavam cabeças. É chocante a naturalidade com que, na década de 1740, um homem como Gomes Freire de Andrade se referia ao assunto:

Recebo a conta que Vossa Mercê me dá que teve do dito coronel Luís José Ferreira de Gouveia dos negros que os capitães-do-mato mataram sem resistirem, estarem armados ou em quilombo: os ditos capitães-do-mato vieram à minha presença com as cabeças dos negros mortos, e atestam o contrário do que o dito coronel diz […] [27]

Para nossas sensibilidades de homens do século XX, que talvez se mostrem embotadas ante outras barbaridades, a ideia de homens que carregavam cabeças de outros homens em bolsas ou sacos para exibi-las ao governante é, sem dúvida, insuportável.

Outra forma de castigo exemplar empregada sobre quilombolas era o corte de orelhas, e os senhores solicitavam ao governador o direito de exercê-lo sobre os seus escravos fujões. Uma ordem de 7 de março de 1741 determinava que os negros achados em quilombos, estando neles voluntariamente, teriam uma das espáduas marcadas com a letra F e, sendo encontrados pela segunda vez com esta marca, teriam uma orelha cortada, “sem mais processo que a notoriedade do fato”.[28] Como de resto em todas as sociedades de Antigo Regime, o corpo do infrator — aqui, escravo — expunha pública e espetacularmente os sinais da infâmia, para que todos ficassem cientes dos horrores que cometera e bem instruídos sobre o que acontecia a quem trilhasse igual caminho. Quando as normas começavam ainda a se estabelecer nas Minas, Assumar determinava ao mestre-de-campo Pascoal da Silva Guimarães — o mesmo a se envolver, no ano seguinte, na sedição — que, no ataque a quilombos, os capitães-do-mato deveriam ter o cuidado de trazerem alguns negros vivos “em que se faça exemplo”.[29] Se todos fossem massacrados nas lonjuras do sertão, o povo de nada saberia, ou, sabendo, não teria visto a mortandade. O exemplo tinha, pois, este objetivo de tornar visível a infração, inscrevendo-a no corpo do criminoso.

VADIOS

Os vadios eram um grupo infrator caracterizado, antes de mais nada, por sua forma de vida. Era o fato de não fazerem nada, ou de nada fazerem de forma sistemática, que os tornava suspeitos ante a parte bem organizada da sociedade. Por não terem laços — família, domicílio certo, vínculo empregatício — constituíam um grupo fluido e indistinto, difícil de controlar e até mesmo de enquadrar. Passados os primeiros tempos dos descobertos auríferos, quando, como disse o jesuíta Antonil, os arraiais foram “móveis como os filhos de Israel no deserto”,[30] a itinerância passou a ser cada vez menos tolerada. Em 1766 surge contra os vadios das Minas a primeira investida oficial de que se tem notícia: uma carta régia dirigida em 22 de julho ao governador Luís Diogo Lobo da Silva, e incisiva na condenação da itinerância dos vadios e da forma peculiar de vida que escolhiam. Tais homens, dizia o documento, vivem separados do convívio da sociedade civil, enfiados nos sertões, em domicílios volantes, ou seja, sem residência fixa. Isto não podia ser tolerado, e deveriam passar a viver em povoações que tivessem mais de cinquenta casas e o aparelho administrativo de praxe nas vilas coloniais: Juiz ordinário, vereadores etc. Uma vez estabelecidos, ser-lhes-iam distribuídas terras adjacentes ao povoado para que as cultivassem, e os que assim não procedessem seriam presos e tratados como salteadores de caminhos e inimigos comuns.[31]

Três anos depois, a 25 de abril, o governador conde de Valadares enviava a todos os capitães-mores e comandantes dos distritos da capitania uma série de onze instruções que determinavam a forma pela qual se deveria proceder com relação aos vadios, visivelmente cada vez mais incômodos. Logo no início, há uma curiosa distinção, reveladora da preocupação com a errância:

Assim que chegar a notícia a cada um dos comandantes que nos seus distritos vivem ou assistem alguns vadios ou facinorosos, se estes forem vagabundos que transitam, e não existentes nesse mesmo distrito, os prenderão e farão recolher a ordem de S. Exa. na cadeia pública mais vizinha […].[32]

 

O preso deveria ser inquirido sobre uma série de tópicos: se vivia com senhor ou patrão, se tinha “ofício [atividade artesanal] ou outro mister em que trabalhe, ou ganhe a sua vida”, e, no caso de ser estranho ao arraial, se estava nele residindo por andar “negociando algum negócio seu, ou alheio”. Perguntava-se ainda se tinha moléstia que o impedisse de trabalhar, se era “ladrão, matador, revoltoso, escandaloso”, se vivia em lugar despovoado, sem cultivar a terra ou torná-la útil de alguma forma, o que seria, por exemplo, “rancho para a hospitalidade dos viandantes”. O curioso destas instruções é que revelam a fluidez da sociedade mineira setecentista: há um cuidado extremo em alertar os comandantes no sentido de prenderem vadios verdadeiros, não se fiando em acusações falsas de inimigos, averiguando se, de fato, as pessoas tidas por vadias não desempenhavam algum tipo de atividade útil. Comportamentos desviantes em pessoas com ofício definido eram considerados irrelevantes. O objetivo da instrução, diz o texto, não é regular procedimentos particulares “enquanto estes não ofendem ao público”. Também os crimes deveriam ser julgados com cuidado: desocupados que roubassem, fizessem tocaia, desafiassem terceiros, provocassem ferimentos graves — ou mesmo leves, desde que feitos de noite — seriam presos. Mas homens “bem morigerados, que vivem com sossego” e que “por caso acidental delinquiram” — mesmo se provocando mortes —, não seriam punidos pelas disposições da instrução, pois seu objetivo maior era mesmo a extirpação dos vadios e facinorosos. A última instrução, a décima primeira, é incisiva no sentido de distinguir o bom e o mau súdito, e merece ser transcrita na integra:

Devem os comandantes fazer que de noite não andem vadios fazendo distúrbios pelos arraiais dos seus distritos, porém não devem impedir que andem de noite aquelas pessoas que vão a negócios precisos, nem os criados ou escravos, que vão a alguma parte, por ordem de seus amos e senhores, nem aquelas pessoas que andam viajando, porque da prisão ou retenção destas se pode seguir gravíssimo prejuízo na demora das contas, e da entrega, e encomendas, que levarem, ou recados que forem mandados. [33]

Tais cautelas sugerem que muitas vezes era difícil, numa sociedade de sedimentação recente e de alto grau de mestiçagem, separar o infrator do bom súdito: como diferenciar os criados e escravos dos bandidos e facinorosos? Sugerem ainda que, de noite, tudo podia acontecer: era o momento propício ao crime, na forma real ou imaginária. Todas as sociedades de Antigo Regime temeram que, de noite, coisas terríveis acontecessem.[34] Quem andava de noite, portanto, era suspeito em potencial, e podia ser confundido com vadios e facinorosos.

Até a década de 1770, as autoridades se preocuparam mais com o modo de vida marginal dos vadios e com as formas possíveis de controlá-los do que com as alternativas para a sua utilização. Com o aprofundamento da crise aurífera, porém, surgiu a necessidade de transformar o “peso inútil da terra” em elemento útil à ordem pública. Neste contexto, cresceu a ideia de que os vadios poderiam ser úteis. Seu principal defensor foi o governador dom Antônio de Noronha, que em carta ao vice-rei marquês do Lavradio desaprovou o recrutamento destes desocupados para as guerras contra os castelhanos, ao sul, e defendeu o seu emprego numa série de atividades inadequadas à mão-de-obra escrava ou ao branco de maior qualidade.[35] As ideias de dom Antônio foram celebrizadas pelo desembargador Teixeira Coelho, que foi ouvidor em Vila Rica, trabalhou em estreita colaboração com o governante e escreveu a excelente “Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais”, que se costuma datar de 1780. Citemos o desembargador:

Os vadios são o ódio de todas as nações civilizadas, e contra eles se tem muitas vezes legislado, porém as regras comuns relativas a este ponto não podem ser aplicáveis em toda a sua extensão ao território de Minas, porque estes vadios, que em outra parte seriam prejudiciais, seriam ali úteis.[36]

Ganhava corpo, assim, a ideia de que o peso morto dos vadios poderia se metamorfosear em utilidade.

Já entrando pela década de 1780 — a década que veria a Inconfidência —, Rodrigo José de Menezes continuou defendendo a política de utilização dos desocupados com vistas a neutralizar o ônus potencial que representavam. Mandou prender os vadios que se encontrassem por toda a capitania e os remeteu para Cuieté, a fim de trabalharem nas construções de um presídio, “fazendo deste modo com pouca despesa aquela importante obra, e purgando também a sociedade civil dos perturbadores dela”.[37] Seu sucessor, Luís da Cunha Menezes, o Fanfarrão Minésio, recrutou vadios à força e determinou que trabalhassem na construção da Casa da Câmara e Cadeia, metamorfoseando, mais uma vez, o ônus dos vadios em utilidade, mesmo se circunstancial.[38]

5

Enquanto caçavam índios bravos, quilombolas ou vadios fujões, os homens bem morigerados das Minas iam construindo a ideia de inconfidência como insubordinação. No início da década de 1770, as autoridades se queixavam dos índios aldeados que, em conluio com o capitão Antônio Cardoso de Souza — sertanista a serviço da Coroa —, ocultaram descobertos de ouro. Para a averiguação dos fatos, procedeu-se a sumário extra-oficial, que o capitão regente do Cuieté — onde se passara o acontecimento — enviou ao conde de Valadares. Numa carta anexa, acusava Cardoso de Souza de inconfidência, pois, devendo, “por qualidade de sua obrigação”, servir o bem público, Deus, a Pátria, Sua Majestade Fidelíssima, acabara agindo contra eles.[39]

Em agosto de 1776 estourou um episódio curiosíssimo, ocorrido cerca de quinze anos antes no Curvelo, ou Santo Antônio do Curvelo, vila situada no centro de Minas, entre o rio São Francisco e o rio das Velhas. Denúncias apontavam que, pouco depois da expulsão dos jesuítas, várias pessoas comentaram, revoltadas, que dom José I e seu ministro Pombal agiam de forma autoritária e inconcebível ao expulsarem os jesuítas, referindo-se ainda às execuções contra Távoras e demais membros da nobreza lusitana. Vale a pena citar trechos das denúncias:

Que o dito soberano monarca era qual outro, ou pior que Nero. Que por estar demente, ou pateta, sujeitava o despotismo do seu governo ao homem mais cruel do mundo, qual era o Ilustríssimo, e Excelentíssimo marquês de Pombal. Que fora tirania grande o extermínio dos jesuítas, por serem uns homens inocentes, que não tinham delinquido em coisa alguma, os mais doutos, e as luzes do Mundo; as quais, com o dito extermínio, se haviam acabado, juntamente com as ciências, virtudes, e riquezas dele […]

Havia um tom jocoso e debochado no episódio, pois consta que, na época, várias cartas falsas circularam pela capitania, algumas delas em nome do papa. Este, muito bravo, dirigia “repreensão escandalosa e desaforada” a dom José I, dizendo:

Extático e admirado da crueldade com que Vossa Majestade castigou a esses pobres fidalgos, cuja barbaridade só se viu nesta cidade de Roma no tempo de Nero, e Deo-cleciano, e em rei católico tal se não viu, porém se Vossa Majestade teve ou não razão, no Tribunal Divino se averiguará […][40]

Dom Antônio de Noronha mandou se proceder à devassa, e saíram incriminadas dezesseis pessoas, das quais quinze foram presas e remetidas para o Rio de Janeiro, onde, após uma estadia na ilha das Cobras, seguiram para Portugal. Na Metrópole, parece que as culpas foram consideradas irrelevantes: em janeiro de 1778, dom Antônio recebia ordens para devolver os bens seqüestrados dos presos do Curvelo e soltar os que se encontravam detidos na cadeia local.[41]

Os principais acusados da Inconfidência do Curvelo foram um clérigo, o vigário Carlos José de Lima, e um antigo ouvidor da comarca do Sabará, o doutor José de Goes de Ribeira Lara de Moraes. Muitos outros padres estiveram incriminados, e esta combinação de religiosos esclarecidos e magistrados descontentes faz pensar na composição social dos revoltosos de 1789. Apesar de não dispor de biblioteca que se comparasse à do cônego Luís Vieira da Silva, futuro inconfidente, o vigário do Curvelo tinha, como então se dizia, livraria considerável, se bem que versada sobretudo em assuntos religiosos.

Nos vinte anos subsequentes, os ilustrados das Minas “guiados pelas luzes da razão e pelos conhecimentos que ministram as histórias”, sabendo, como letrados — são palavras de Tomás Antônio Gonzaga —, que “a ocasião mais oportuna para um levante é aquela em que se alteram os ânimos dos vassalos”, desenvolveram o hábito das reuniões domésticas e das conversas diárias.[42] Nestas, entraram, certamente, cogitações sobre a situação tensa, que nas Minas extrapolava a questão meramente fiscal e dizia respeito, sobretudo, às forças dissolventes, aos agentes da desordem, aos adeptos de uma contra-sociedade que desprezava o domicílio fixo, a família nuclear, o trabalho sistemático, a propriedade privada, enfim, os valores que a parte melhor constituída do corpo social reverenciava como essenciais. A situação explosiva da capitania tornara-se evidente não apenas para os governantes, para quem a continuidade da dominação colonial exigia urgência em encontrar soluções. Os escravos negros são protagonistas do Canto genetlíaco de Alvarenga Peixoto, e na quarta das Cartas chilenas há simpatia e solidariedade para com o sofrimento dos vadios obrigados a construírem a Casa da Câmara e Cadeia. Se os negros se sublevassem ou se os vadios tivessem consciência de seu peso, voaria em estilhaços o mundo restrito dos homens brancos, entre os quais se achavam os inconfidentes.

6

Membros da elite mineira, os inconfidentes não foram apenas, como quiseram tantos historiadores — entre eles mais recentente, o brilhante Kenneth Maxwell —, alguns intelectuais idealistas que sonharam com a emancipação política, nem colonos corruptos e endividados que procuraram, na sedição, uma saída imediata para dificuldades pessoais. Desde 1717, pelo menos, falava-se de revolta em Minas, seja do lado do poder estabelecido, seja do lado dos colonos descontentes. No tempo de Assumar, a revolta era vista como natural, ou seja, análoga aos fenômenos da natureza, irrefreável uma vez que desencadeada. Comparada à borrasca, era também excepcional, pois intempéries não ocorriam com frequência. No decorrer do século, passou a ser vista como cotidiana, pulsando nos quilombos, nas andanças desordenadas de vadios, na desobediência de índios semidomesticados. Antes de 1736, circunscrevera-se no âmbito dos potentados, que as autoridades metropolitanas se esforçavam por domar e alquebrar, o emblema deste momento talvez seja a figura altiva de dona Maria da Cruz tal como se fixou na tradição, singrando os rios desde o Norte das Minas para ser encarcerada no coração delas, na Vila Rica onde ficava sediada a autoridade. A partir da década de 1740, a revolta se infiltrou nos interstícios do tecido social, fazendo com que os capitães-generais das Minas se vissem às voltas com uma guerra surda que fustigava simultaneamente vários flancos.

No Curvelo, em 1776, inaugura-se uma terceira possibilidade de revolta nas Minas. Enquanto governadores matavam índios e quilombolas ou prendiam vadios para, com eles, empurrar a fronteira interna para leste ou para oeste, homens letrados discutiam ideias, apoiavam os jesuítas, criticavam a Monarquia — como aconteceu no Curvelo. Seria o temor do peso social aliado ao poder de fogo das ideias ilustradas que aterraria as autoridades. Tendo alçada, desde 1775, para sentenciar nas Minas os réus de inconfidência, o governador dom Antônio de Noronha, que era também presidente da Junta de Justiça, resolveu mandar para Lisboa os sediciosos do Curvelo. Escrevia ele a Pombal a 16 de dezembro de 1776:

Me horrorizam tanto as sacrílegas, blasfemas e sediciosas palavras que temerariamente proferiu o primeiro clérigo, as quais se provam dos autos, que me não animo a convocar os ministros desta capitania para uma junta, onde as mesmas sediciosas palavras se hão de fazer públicas nos termos do processo e da defesa que se deve dar aos réus.

E terminava:

Queira V. Excia. persuadir-se de que eu procuro e me empenho em servir a S. Mgde. com aquela honra e zelo que devo, e se acaso errei nesta matéria, foi porque a gravidade dela excede a minha capacidade.[43]

Em 1789, Tiradentes pregava pelos caminhos que o povo das Minas ficava pobre, sem nada de seu, enquanto Portugal sugava todo o seu ouro e enriquecia. Todos ouviram, todos souberam que se conspirava, e muitos depuseram na devassa, comprovando a publicidade das palavras sediciosas. Também a devassa foi pública, como público e exemplar foi o suplício, e publicamente ainda se celebrou o fracasso da conspiração, pendurando-se no teto da igreja matriz do Rio de Janeiro um emblema que transformava o índio bravo da fronteira do rio Doce, ou o índio já brasileiro da bandeira idealizada pelos inconfidentes, no índio dócil que, de joelhos, reverenciava dona Maria I, a Monarquia portuguesa, o Império colonial.

A pregação de Tiradentes e o exemplo do suplício calaram fundo no imaginário dos mineiros. Em 1798, no arraial do Calhambau ou Calhambão, freguesia de Guarapiranga — próximo, portanto, a Mariana —, o sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira viu-se atacado por pasquins afixados nas ruas do lugarejo. Indignado com as injúrias neles proferidas, moveu processo contra os pretensos agressores, o alferes Domingos de Oliveira Alves e seu caixeiro, Raimundo de Penafort, que acabaram absolvidos por falta de provas. Nos pasquins, Manuel Caetano era acusado de ter sido inconfidente dez anos antes. Em versos rústicos próprios da cultura popular, o sargento-mor reconhecia o crime:

Ó Céus, que espanto!


Eu confesso o meu delito


De ser falso à soberana


E a meu Deus infinito.

Fortes engúrias [agruras?] eu passei

E todos os meus parentes

E todos nós padecemos

Enforcado o Tiradentes.

Estas disordens [sic] fica

Como a boroca [buraco?] do rato

Cheguei no Rio de Janeiro

A ser enforcado em estátua.

Tudo isso foi preciso

Para o exemplo do mundo


Abateu-se a soberba

Castigar-nos todos juntos.

Para que, no futuro, não se repetissem as insolências dos colonos, o autor do pasquim pregava a repressão e a denúncia:

No jardim só compete

Que nasça a melhor flor


O senhor Manuel Caetano


Ficou homem sem valor.

Quem esta nas esquinas achar


espalhe nas Minas Gerais


que morra Manuel Caetano


viva a rainha de Portugal.[44]

A existência deste pasquim sugere a de muitos outros que, como ele, ameaçariam os revoltosos potenciais com a forca, pregariam a punição do desacato ao monarca nos moldes do suplício de Tiradentes. Dez anos após a prisão dos presumidos conspiradores, quando alguns deles já haviam morrido e os demais amargavam o exílio ou engordavam, distantes da tensão social das Minas, denúncias de inconfidências ainda amedrontavam os habitantes da capitania do ouro. Os pasquins detratores indicam que, para a Metrópole, o suplício não fora vão. Em outras paragens, as revoltas podiam estar deixando o segredo das reuniões domésticas e ganhando as ruas, como o levante que, naquele mesmo ano de 1798, os baianos promoveram em Salvador; mas a coerção, a violência, a representação emblemática do poder ainda calava fundo nos ânimos dos mineiros, sendo capazes de disseminar o medo e trazer, no seu rastro funesto, a desagregação do tecido social. A delação era a medida miúda deste estado de coisas, a contrapartida dolorosa das sedições informais que sacudiram Minas durante quase um século, o indício revelador do enraizamento cotidiano da revolta e da sua negação. Na Inconfidência — revolta formal — a declaração se fizera secreta; no dia-a-dia tenso das revoltas informais, nos pasquins pregados nos muros das vilas, ela se fazia pública.

Notas

[1] “Mandado para execução da pena imposta a Joaquim José da Silva Xavier”, in Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. VII, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura-Biblioteca Nacional, 1938, p. 241.”

[2] “Cerimônias religiosas em regozijo de se ter descoberto a conjuração”, in Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. VI, pp. 407-8.

[3] Apud Laura de Mello e Souza, Desclassificados do ouro, 2 ed., Rio de Janeiro, Graal, 1986, p 91.

[4] Carta a Martinho de Mello e Castro, in “A justiça na capitania de Minas Gerais”, Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPm), IV, 1899, pp. 4-5.

[5] Arquivo Público Mineiro (APM), Seção Colonial (Sc), cód. 11, fls. 47 ss. Discurso histórico político, ed. J. P. Xavier da Veiga, Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1898, p. 8. Nuno Marques Pereira, Compêndio narrativo do peregrino da América, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1930. Para as relações entre demonologia e política, ver Stuart Clark, “Inversion, misrule and the meaning of witchcraft”, Past and Present, 87, 1980, pp. 88-127.

[6] Sobre a sedição, muito pouco estudada, ver Carla Maria Junho Anastasia, “A sedição de 1736: estudo comparativo entre a zona dinâmica da mineração e a zona marginal do sertão agropastoril do São Vrancisco”, tese de mestrado, UFMG,1983.

[7] A discussão acerca dos levantes do Antigo Regime é vastíssima. Penso, aqui, em questões levantadas, de forma diversa, pelos seguintes autores: Roland Mousnier, Fureurs paysannes, Paris, Calmann-Lévy, 1967; Boris Porchnev, Les soulèvements populaires en France au XVII’ siècle, trad. francesa, Paris, Flammarion, 1972; J. H. Elliott et alii, Revoluciones y rebeliones de la Europa Moderna, trad. espanhola, Alianza, 1970; Robert Mandrou, Classes et luttes de classes en France au début du XVIle siècle, Florença, Casa Editrice G. d’Anna, 1965; George Rudé, Revuelta popular y conscien-cia de classe, trad. espanhola, Barcelona, Crítica, 1971; Rosario Villari, Rebeldes y reformadores del siglo XVI al XVIII, trad. espanhola, Barcelona, Serbal, 1981; Yves-Marie Bercé, Révoltes et révolutions dans l’Europe Moderne — XVIe-XVIlle siècles, Paris, Presses Universitaires de France, 1980; Perez Za-gorin, Revueltas y revoluciones en la Edad Moderna, trad. espanhola, Madri, Cátedra, 1985, 2 vols.

[8] “Prenúncios de uma sedição — carta de Martinho de Mendonça de Pina e Proença a Gomes Freire de Andrade”. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Seção de Manuscritos, lata 10, doc. 16

[9] Notável descrição do episódio de dona Maria da Cruz se encontra em Diogo de Vasconcelos, História média de Minas Gerais, Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, pp. 122-29.

[10] Kenneth Maxwell, A devassa da devassa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

[11] Representação do capitão Paulo Mendes Ferreira Campelo ao governador, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), Seção de Manuscritos (SM), cód. 18, 2, 6, fls. 1075, 927 e 953-59.

[12] Relatório de Cardoso de Souza a Valadares, Vitória, 15/9/1769, BNRJ, SM, cód. 18, 2, 6, fls. 1399-1400.

[13] “Memória do que se deve observar na derrota que tem de seguir o capitão Antônio Cardoso de Souza para a conquista do gentio, a que vai destinado, e do que há de praticar nesta importante diligência”, BNRJ, SM, cód. 18, 2, 6, fls. 1418.

[14] Carta do padre Manuel Vieira Nunes, vigário do Cuieté, ao governador conde de Valadares, BNRJ, SM, cód. 18, 2, 6, fls. 1489-95.

[15] Ordens reais de 1745, APM, SC, cód. 86, maços 25 e 27. Para tempos anteriores, ver carta de dom Brás Baltazar da Silveira ao rei, APM, SC, cód. 4, fls. 374. Ver também carta de Assumar ao mestre-de-campo Pascoal da Silva Guimarães, APM, SC, cód. 11, fls. 163-163v.

[16] Todas as citações foram extraídas de “Representa um vassalo amante da pátria e desejoso que se propague a conquista portuguesa…”, APM, SC, cód. 218, fls. 191-93.

[17] “Quilombos em Minas Gerais”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vi, 1959, pp. 434-47, passim.

[18] Carta de Liberato José Cordeiro ao conde de Valadares, BNRJ, SM, cód. 18, 2, 5, doc. 216.

[19] “Petições que o capitão-regente das entradas do mato João Duarte de Faria fez ao Ilmo. e Exmo. sr. conde a respeito ao de que careciam para a extinção do quilombo do rio da Pomba…”, APM, SC, cód. 103, fls. 122-122v.

[20] “Coleção sumária das próprias leis cartas régias, avisos e ordens…”, RAPM, XVI, pp. 331-472, título 15, no 11.

[21] “Batedura de quilombos”, RAPM, VIII, 1903, pp. 383-84.

[22] Carta de Inácio Correia Pamplona ao conde de Valadares, BNRJ, SM, cód. 18, 2, 3, doc. 5.

[23] Petições sobre calhambolas, APM, SC, cód. 59, fls. 32v-33.

[24] Esta citação e a anterior encontram-se ern carta de Francisco Pinto Roiz, Joseph Ferreira de Souza, Bernardo Alz da Neyva, André Bento e José de Almeida ao conde de Valadares, BNRJ, SM, cód. 18, 3, 6, doc. 82.

[25] Carta de José da Silva Pontes ao conde de Valadares, 1/5/1770, BNRJ, SM, cód. 18, 2, 5, s. n.

[26] Idem, 28/4/1770, doc. 4.

[27] APM, SC, cód. 67, fl. 55v.

[28] Carta de Valadares, APM, SC, cód. 199, fls. 8-8v. “Coleção sumária das próprias leis…”, título 15, n? 11.

[29] “Carta de Assumar ao mestre-de-campo Pascoal da Silva Guimarães”, APM, SC, cód. 11, fls. 163-163v.

[30] João André Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, introd. Alice Piffer Canabrava, 21 ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, p. 264.

[31] “Coleção sumária das próprias leis, cartas régias, avisos e ordens…”, pp. 451-52, RAPM,

[32] “Instruções pelas quais se devem regular os capitães-mores e comandantes dos distritos desta capitania das Minas Gerais nas prisões e procedimentos contra os vadios, e facinorosos remetidos pelo Ilmo. e Exmo. sr. conde de Valadares governador e capitão-general desta capitania em observância da ordem de 24 de novembro de 1734 e da ordem régia de 22 de julho de 1766”, APM, SC, cód. 163, fl. 48v.

[33] Idem, fl. 51.

[34] Ver, entre outros, Bronislaw Geremek, “Criminalité, vagabondage, paupérisme: la margi-nalité à l’aube des temps modernes”, Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, XXI, jul.-set. 1974, p. 344.

[35] BNRJ, SM, cód. 2, 2, 24, fls. 52-3, carta de 19/11/1776.

[36] J. J. Teixeira Coelho, “Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais”, RAPM, p. 479.

[37] “Exposição do governador dom Rodrigo José de Menezes sobre o estado de decadência da capitania de Minas Gerais e meios de remediá-lo”, RAPM, II, pp. 314-15.

[38] Tomás Antônio Gonzaga, Cartas chilenas, ed. Tarquínio José de Oliveira, São Paulo, Referência, 1972.

[39] Carta de Paulo Mendes a Valadares, BNRJ, SM, cód. 18, 2, 6, fl. 1104.

[40] Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 110, n° 26, “Devassa de Inconfidência”.

[41] BNRJ, SM, cód. 2, 2, 24, fls. 148-49.

[42] Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. VII, pp. 292-93.

[43] BNRJ, SM, cód. 2, 2, 24, fl. 67.

[44] Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, FNPM, auto 5102, cód. 204, 2? ofício, 1798; cód. 224, auto 5565, 2° ofício. O pasquim acha-se anexo a este último.

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