2015

Terror, violência e política

por Newton Bignotto

Resumo

O filósofo Yves Michaud estudou de perto o problema da violência e suas relações com o poder a partir de três manifestações básicas: a violência contra o poder, a violência do poder e o estado de guerra civil. Essa terceira forma de manifestação sempre foi a mais temida historicamente por representar a dissolução do poder e dos laços sociais, levando ao caos. Para Hobbes (no Leviatã), se ninguém for capaz de monopolizar o uso da força, estaremos em pleno “estado de natureza”, quando todos representam uma ameaça para todos. Trataremos aqui dos primeiros anos que se seguiram à simbólica queda da Bastilha em 1789, em especial dos anos de 1792 a 1794, período de grande violência e instabilidade política e social, quando a França conheceu o Terror. Historiadores encontram-se divididos até mesmo quando se trata de determinar se o Terror estaria fadado a acontecer. Evidentemente que a monarquia absoluta não poderia cair sem revolução e sem violência, mas as cadeias de eventos subsequentes à sua derrocada não estavam isentas de possibilidades de escolha. Era preciso estabilizar a república nascente e, para essa isso, os girondinos insistiam na necessidade da promulgação de uma Constituição, o que os jacobinos recusaram; para estes era preciso antes “eliminar os inimigos”. Mas quem eram de fato os inimigos da república? Saint-Just, porta-voz dos jacobinos, declarou que eram todos os que não se alinhavam com eles, incluindo não somente os contrarrevolucionários, mas as outras facções e todos aqueles que os jacobinos consideravam ser indiferentes à revolução. Essa era parte da “retórica revolucionária da fundação”, criada por Robespierre, diante da ameaça contrarrevolucionária e da presença de forças estrangeiras dispostas a tentar restaurar a monarquia. Diferentemente do medo, “o terror escolhe as suas vítimas independentemente de ações ou pensamentos individuais ”; ele se caracteriza, portanto, pelo o uso da violência do Estado para além da lei. Sob Robespierre, o Terror valeu-se da lei dos Suspeitos, agravada pela lei de 22 Prairial que suspendeu até mesmo as exíguas garantias de defesa daqueles que eram acusados de serem contrários à república. Não fosse pela mudança no curso dos acontecimentos, a política da eliminação não poderia ter fim, porque todos estariam sob suspeita e o regime continuaria a alimentar-se num turbilhão insaciável. A novidade histórica da violência do terror é que ela se dirige à população como um todo, e os alvos são categorias abstratas. Essa forma de violência seria tomada como modelo por revoluções contemporâneas. O terror encontra-se, afinal, fora da política, porque apenas as instituições garantidas pela lei podem fazer frente à violência. Eis o porquê de Hannah Ardendt considerar que “o oposto da violência não é a não violência, mas o poder”.


Hobbes descreve no Leviatã a condição natural do homem como um estado no qual a violência impera. Sem os instrumentos de controle e coesão do Estado, vivemos sem esperança e em contínua tensão.

Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta[1].

Podemos não concordar com as conclusões do pensador, que o levam a preferir uma determinada organização da vida pública a outras; podemos até mesmo dar de ombros e dizer que essa é apenas a descrição de um estado de natureza hipotético, visando fundar a filosofia política do autor. Mas é inegável que o retrato da vida do homem entregue às suas paixões naturais se aproxima de forma inquietante de nossas vidas, quando estamos imersos num mar de violência, como nas guerras do século XX ou nas guerras civis que até hoje atormentam países espalhados por todo o mundo. Se estamos longe de acreditar que vivemos num mundo próximo do estado natural descrito por Hobbes, pelo menos nos tempos de paz, também não podemos fugir do sentimento de insegurança que a presença da violência produz em nossas vidas. O homem contemporâneo vive num mundo mais seguro do que viveu em outras épocas, mas também sujeito a graus de violência e a um medo contínuo (que os meios de comunicação contribuem para exacerbar), desconhecido de outros momentos históricos[2]. A violência tem suas formas. Ela se exerce no privado e no público, ela concerne os indivíduos e os Estados, organizações amplas e pequenas comunidades, e, sobretudo, ela possui uma história. Está ligada a formas sociais concretas, a organizações políticas específicas e também a crenças quanto à natureza do homem e seus desígnios. Fenômeno universal, ela possui faces diversas, tantas quantas são as faces do humano.

Por isso, seria impossível, no espaço de um texto, abordar o fenômeno da violência em toda sua amplitude ou propor uma teoria geral sobre o problema. Na verdade, até mesmo a análise de um de seus aspectos – a relação entre política e violência – se mostra uma questão ampla demais para servir de objeto de uma investigação restrita. De alguma maneira, tratar dessa relação em sua totalidade corresponde a avançar uma teoria geral sobre a política, pois, independentemente das consequências que tira Hobbes de sua postulação da existência do estado de natureza, é inegável que a violência, desde a Antiguidade, faz parte dos problemas que um pensador político deve enfrentar para construir sua obra.

Para escapar do dilema provocado pela afirmação do caráter universal da violência, escolhemos tratar o problema em um momento específico da vida política, aquele da criação das leis, o momento que desde a Antiguidade intriga os pensadores, que se dão conta de que há um momento na vida de um corpo político em que a criação de novas regras e formas de contenção da violência se dá num universo desprovido de leis e de limites para o emprego da força. Na modernidade e na contemporaneidade, esse é o momento das revoluções. Elas servem de referência por expor não apenas o contraste entre o que é legal e o que está fora da lei mas, sobretudo, por não poder evitar inteiramente a questão da violência. É claro que podem existir revoluções sem que haja a irrupção de atos violentos, mas nelas o problema da passagem de uma ordem legal para outra sempre está presente. De maneira ainda mais aguda, os processos revolucionários sempre se confrontam com a questão da contenção da violência, mesmo quando a transição entre regimes se dá sem uma confrontação direta entre ordens sociais diferentes. Para falar a linguagem de Hobbes, uma revolução é um momento de questionamento da soberania e de sua afirmação, o que implica responder à questão de quem deve ter o controle dos meios de repressão e do uso da força. Para ele, se ninguém for capaz de monopolizar o uso da força, estamos em pleno estado de natureza, quando todos representam uma ameaça para todos. O caráter complexo e radical dos fenômenos revolucionários faz deles um objeto privilegiado para pensarmos os problemas referentes à violência e suas fontes passionais.

Mas, antes de mostrar qual será nosso caminho neste texto, vale a pena precisar aspectos do território de encontro entre política e violência. Inspirando-nos em indicações de Yves Michaud[3], podemos apontar pelo menos três caminhos para pensar a relação entre política e violência. O primeiro é aquele da violência contra o poder. Essa é a forma por exce- lência das revoluções. Ela pressupõe a existência de um Estado, detentor de mecanismos legais de exercício da violência, que se deseja transformar. Nesse caso, a violência aparece como o instrumento necessário para exacerbar um conflito, que para muitos atores não pode ser resolvido por outros meios. Nesse sentido, ela é exercida por agentes, que reivindicam uma nova legitimidade, num contexto em que as leis parecem em contradição com os anseios de parte importante dos cidadãos, ou contrárias a projetos de novas formas sociais. Ela é exercida inicialmente em contraposição às leis, na medida em que quer não apenas modificá-las mas, sobretudo, deixá-las de lado em proveito de uma nova ordem legal. Como veremos, o grande problema está em como traçar a fronteira entre os atos violentos gratuitos, que existem no interior de qualquer corpo político, e a violência exercida em nome de uma nova visão do que é a política ou para resistir aos abusos do soberano. Classicamente, essa interrogação contém o problema dos limites do soberano e aquele do direito de resistência, presente em muitos pensadores políticos desde a Antiguidade.

A segunda forma de violência presente na cena contemporânea é aquela exercida pelo poder. Nesse caso, trata-se de consolidar um poder recentemente conquistado, fruto por vezes justamente do uso da violência contra os antigos governantes, ou de manter funcionando um Estado, que precisa contar com os meios legais de repressão para se manter vivo. Essa é a forma que nos interessa aqui, pois vincula violência, poder e terror. Em seu interior, no entanto, esse caminho possui mais de uma face. A mais corriqueira é aquela do Estado que se serve de meios violentos para garantir sua própria existência. Trata-se de uma forma controlada de violência e que permeia a vida de qualquer cidadão dos Estados modernos. Michel Foucault foi um dos pensadores mais atentos no século XX a essa dimensão do poder estatal e às formas utilizadas para exercê-lo[4]. Ao longo de toda sua obra, encontramos um vasto repertório de análises das formas variadas de controle exercidas por meio de instituições como as prisões e os manicômios. Ele nos levou a compreender como funciona de fato um dos pilares do Estado de direito na modernidade: o monopólio do uso da força. De maneira direta, ele nos ajudou a compreender algo que afirmamos antes: a violência tem uma história e ela diz muito da natureza humana e seus desvãos.

Esse poder exercido em nome da lei por instituições do Estado é uma das figuras da violência presentes em nossa vida, mas está longe de ser a mais radical. A forma mais extrema ocorre quando o Estado recorre a formas de violência que escapam ao quadro legal, que deveria servir de referência para o uso da força, para garantir sua sobrevivência em face de ameaças que ele acredita pairarem sobre a sociedade. Surgido no interior das revoluções modernas, o terror define assim um caso-limite do uso da violência no interior das sociedades atuais. Nesse caso, a violência é extrema porque a ameaça à sobrevivência do poder parece ser extrema, mas ela se exerce fora dos quadros legais, que parecem aos governantes incapazes de conter os perigos que rondam o poder instituído. Embora o recurso ao terror como forma de governo seja um caso particular no interior do território mais amplo do recurso à violência para a manutenção do Estado, ele nos ajuda a pensar o problema da relação entre política e violência.

A terceira figura da relação entre política e violência é aquela da dissolução do poder e dos laços sociais: a guerra civil. Nesse caso, desaparecem as mediações, e a violência se torna o mecanismo por excelência de solução dos conflitos entre os indivíduos e os grupos. Temida desde a Antiguidade, como mostrou Nicole Loraux em um livro clássico[5], ela foi o pesadelo de pensadores como Hobbes, que viam nela a forma histórica do estado de natureza. A guerra civil marca uma espécie de vitória da violência, um colapso das mediações e, por isso, um limite intransponível para a própria política. Tudo se passa como se regredíssemos a uma época puramente passional de nossas relações. Nesse território, a violência é o produto direto das paixões; ela se mostra sem disfarces e proteções e, por isso, escapa ao esforço de teorização da filosofia política. As análises antropológicas e psicológicas continuam a valer, mas a guerra civil é a dissolução do objeto mesmo do filósofo político. Horizonte final das lutas entre os homens, ela acaba se situando fora do terreno no qual política e violência se relacionam dialeticamente.

Partindo do quadro que acabamos de apresentar, vamos concentrar nossa atenção na figura do terror, em particular em seu aparecimento no curso da Revolução Francesa. Mesmo que não defendamos a tese de que esse evento contém em germe toda a política contemporânea, ele nos interessa por permitir-nos ver em conjunto as três formas de manifestação da violência na vida política contemporânea. Uma análise mais detalhada permitir-nos-ia estudar o vínculo existente entre as diversas manifestações do fenômeno que nos interessa na cena pública, mas tornaria nosso objeto grande demais para um texto. Preferimos, assim, centrar nossa atenção em alguns aspectos do terror, sem pretender esgotar o assunto e nem mesmo propor uma hierarquia das formas de violência. Nossa escolha se justifica, no entanto, por considerarmos que o terror, tal como apareceu no curso da Revolução Francesa, foi um evento inaugural de um dos caminhos que seriam repetidamente seguidos na modernidade pelos diversos atores que, nos mais diversos contextos históricos, se propuseram a transformar a vida política. Ainda que devamos ser cuidadosos para não inferir dessa afirmação a ideia de que a Revolução Francesa contém o paradigma da relação entre política e violência de nosso tempo, é inegável que seu estudo é uma ferramenta importante para tentarmos compreender a sedução que o uso de meios violentos na cena pública exerce sobre numerosos atores contemporâneos. O terror estabeleceu o império dos fins ideais e mudou para sempre a ideia do que deve ser a política em tempos de revolução e de como ela se relaciona com a vida pública em seus momentos de estabilidade e paz.

OS LIMITES DA VIOLÊNCIA

Para nossos propósitos, os acontecimentos mais importantes se desenrolaram no curso do segundo semestre de 1792 em Paris. No dia 10 de agosto, uma multidão cercou e atacou o Palácio das Tulherias, onde se encontrava a família real. Esse episódio marcou o fim da possibilidade de que a revolução terminasse com a instituição de uma monarquia constitucional parecida com a inglesa. Ele significou também o fim do grupo dos feuillants, que haviam defendido essa ideia ao longo dos anos anteriores. Esse foi um período marcado pela guerra com as potências estrangeiras, pela invasão do território francês por tropas mais ou menos próximas dos exilados, por uma série de boatos sobre complôs e assassinatos, que faziam reagir os membros da comuna de Paris de forma cada vez mais radical[6]. No dia 2 de setembro, a radicalização atingiu seu auge, depois que, na Assembleia, Danton preveniu a nação de que ela corria grande perigo. Uma multidão variada, composta por populares, bandidos e fanáticos, atacou as prisões improvisando tribunais populares, que determinaram o massacre de muitas centenas de prisioneiros. No dia 21 de setembro de 1792, a monarquia foi oficialmente abolida, pondo fim à primeira fase da revolução, durante a qual parecia que o processo revolucionário poderia terminar com a conciliação entre elementos do antigo regime com o novo poder criado com a queda da Bastilha em 1789. A execução de Luís XVI em 21 de janeiro de 1793 encerrou não apenas uma etapa da revolução, mas também “a mística da realeza sagrada”[7].

Esse período ficou conhecido pelos historiadores como Primeiro Terror. Ele já foi estudado detalhadamente ao longo dos dois últimos séculos e não é nossa intenção retornar a ele, nem mesmo analisar o conflito de interpretações que opõe historiadores das mais variadas tendências. Ele importa por expor uma das figuras da violência à qual nos referimos: a violência contra o poder. Nesse sentido, mais do que tentar entender o sentido dos complexos acontecimentos que operaram uma guinada radical nos rumos da revolução, interessa-nos ver como alguns atores políticos do período compreenderam a irrupção da violência na cena pública e seu papel na definição dos rumos dos acontecimentos. É claro que todos sabiam que a violência tivera um papel importante no desenrolar dos eventos que se seguiram a 1789. Homens políticos de várias tendências viam que sem o uso de meios violentos talvez nada tivesse mudado na França. Mas o aprisionamento da família real e a execução do rei, a morte de prisioneiros sem julgamento regular, a guerra e suas infâmias haviam colocado a violência no centro da vida política e forçado todos a reagir a ela.

A irrupção da violência na cena pública e sua radicalização no curso da revolução podem ser analisadas por um recurso às suas fontes passionais, mas também pelo esforço de compreensão da natureza dos atos que acompanharam a série de eventos que culminou com a morte do rei. No tocante às paixões que estiveram na raiz dos acontecimentos, e que podem ser encontradas em vários momentos da história moderna e contemporânea, é muito difícil resumi-las a apenas uma, mas parece-nos que há um fator dominante que, se não unifica as paixões, dá-lhes uma direção e lhes serve de motor: o medo. Com efeito, no contexto de 1792 havia a raiva contra os que faziam os preços subirem e tornavam a vida miserável nas cidades, havia o desencanto com os que pareciam ter traído a pátria e, sobretudo, havia o medo, alimentado por fatos e boatos, de que todo o processo revolucionário pudesse ser tragado pelos que se opunham a ele e que terminariam por fazer voltar a vida ao que ela era antes de 1789, punindo os que haviam sonhado fazê-la diferente. Não surpreende, nesse sentido, que tenha sido o elemento popular, encarnado na comuna, que tenha estado à frente dos atos violentos que empurraram a revolução para o ponto de não retorno. Esfomeados, ameaçados pelas tropas estrangeiras que já ocupavam terras francesas, amedrontados pela série de boatos que multiplicavam os perigos, os sans-culottes compreenderam ao mesmo tempo o caráter radical de seus atos e o fato de que seriam os primeiros a perder sua liberdade de ação, caso a revolução fracassasse.

O medo é uma paixão que leva a agir, muitas vezes, de forma irrefletida e sem controle. Mas, ao colocar a violência como arma de combate, ele também gera novos sentimentos e clama por novas formas de compreensão do que se passou. No caso da Revolução Francesa, a violência contra o poder, que caracterizou o Primeiro Terror, fez surgir tanto um novo sentimento popular sobre o andamento do processo revolucionário quanto uma reflexão sobre o significado de praticar atos que não poderiam ser desfeitos, como foi a morte do rei.

Encontramos nos relatos de Restif de la Bretonne o testemunho mais valioso dos sentimentos despertados na população de Paris pelos atos violentos que haviam conduzido a revolução a um novo patamar. De origem camponesa, tipógrafo de profissão, esse escritor sui generis deixou um número impressionante de escritos contendo descrições da vida camponesa, relatos eróticos e projetos utópicos, que fazem dele o escritor popular mais prolífico do período. Para nós, interessam os relatos que ele fez ao longo dos anos revolucionários e que expõem o sentimento das ruas de um ponto de vista único. De fato, Restif circulava livremente pelas ruas de Paris nos anos tormentosos da revolução. Sem ter tido jamais um papel importante na marcha dos acontecimentos, ele testemunha o dia a dia da cidade, enxerga os movimentos das classes populares e procura compreendê-los à luz do que coleta com seus amigos e parceiros, bem como daquilo que ele mesmo pensa de seu tempo e do futuro.

Na véspera do dia 10 de agosto, Restif circula na região do jardim das Tulherias, sem realmente saber o que se passa nas ruas, mas intuindo que “uma crise violenta se preparava”[8]. Nas semanas anteriores, a interdição de circulação no jardim havia irritado o povo, mas o escritor estava longe de acreditar que esse fora o motivo da explosão de violência que iria levar a família real para a prisão. Misturando no meio de seu récito sobre os acontecimentos políticos a narrativa de uma série de incestos cometidos contra jovens belas e de baixa idade, Restif produz um relato inquietante de suas próprias paixões e mesmo de suas perversões, que tanto contribuíram para sua má fama como escritor. Mas é o fato de ele narrar os acontecimentos do ponto de vista de um habitante das ruas de Paris, misturando seu gosto pelo sexo com sua curiosidade e por vezes horror pela violência, que torna seu testemunho tão importante. Ele pretende ao longo de sua narrativa ocupar o lugar do historiador imparcial, mas é produzido ao mesmo tempo a descrição dos fatos e uma tentativa de compreendê-los que ele acabou por nos legar um retrato vivo da intrusão crescente da violência na vida política da França e dos impactos que ela produziu, não apenas nos corpos mutilados mas também nas mentalidades da época.

Refletindo sobre os eventos do dia 10 de agosto, Restif é levado a pensar que todas as infelicidades vividas naquele dia foram provocadas pela resistência de alguns a aceitar a marcha da revolução. “Ó meus concidadãos,” diz ele, “uma coisa que causa vossa infelicidade é a incerteza dos que temem os desdobramentos da revolução”[9]. A violência se justifica, assim, no interior de uma sociedade que não quer voltar a uma situação anterior, como uma ferramenta útil para o avanço da sociedade. Mas, além da constatação da necessidade de remover os obstáculos ao progresso da revolução, o escritor tipógrafo encontra uma justificativa de outra ordem: o enunciado de um princípio abstrato, que contém todos os outros e não apenas explica, mas exige que se atue na cena pública de forma determinada. Assim, afirma Restif: “Os refratários são todos dignos de morte, pois eles causam o maior dos males: a divisão”[10]. Poderíamos pensar que nosso autor reflete a posição dos homens políticos e pensadores que tentaram fazer e pensar a revolução ao mesmo tempo. Restif é um homem das ruas; ele procurava pensar seu tempo, mas queria antes de tudo vivê-lo, daí as contradições frequentes entre seus interesses pessoais, que são muitas vezes aqueles de um libertino, e suas formulações plenas de bom senso. Se a violência do dia 10 de agosto foi em parte fruto do medo e do rancor, ela também se originou da oposição que muitos atores faziam a uma outra paixão do período: a paixão pela unidade. Como veremos, com o progresso em direção ao terror, temia-se pelas vidas – e isso fica claro para Restif, que está longe de se lançar em combates de rua perigosos, apesar de sua imensa curiosidade –, mas temia-se também pelo fracasso das ideias que orientavam o processo de transformação radical pelo qual passava o país. Pensar a França como um corpo único era tão vital quanto pensar a sobrevivência no dia a dia.

A força dos relatos de Restif, no entanto, não está no fato de expor uma visão de mundo partilhada por muitos de seus contemporâneos. Ele aderia com força aos princípios revolucionários, mas o fazia de um ponto de vista externo ao poder. Por isso, pôde compreender os ataques à família real, que era um obstáculo à marcha da revolução, mas lamentou quando a violência tomou conta da cidade e levou à morte de prisioneiros sem defesa e sem julgamento. De forma lapidar, ele resumiu seu sentimento diante da catástrofe de setembro de 1792: “O dia 10 de agosto tinha renovado e terminado a revolução: os dias 2, 3, 4 e 5 de setembro jogaram sobre ela uma sombra de horror”[11]. Mais uma vez, Restif foi o espectador arguto de um cenário de devastação. No domingo, segundo ele, ainda era possível ver as pessoas dançando no Port au Blé em total alheamento do que se tramava em outros lugares da cidade. Mas esse clima de alegria rapidamente deu lugar ao temor, quando a notícia do massacre de prisioneiros se espalhou pelas ruas de Paris.

Acompanhado por um amigo, nosso escritor, apesar do medo, percorreu várias ruas e se dirigiu às prisões nas quais os massacres ocorriam. Na instituição que se chamava L’Abbaye, ele pôde testemunhar o funcionamento do mecanismo de extermínio que se implantou naqueles dias. Os prisioneiros eram julgados na própria cela, sem nenhum recurso de defesa. Restif relata o caso de um homem que fora acusado de ser um aristocrata. Em sua defesa ele disse: “Nada fiz, simplesmente suspeitaram de meus sentimentos e, depois de três meses que estou preso, não encontraram nada que pudesse me incriminar”. Os juízes tendiam para a absolvição, até que alguém do grupo de assassinos gritou: “Um aristocrata, para a Force, para a Force!”[12]. A Force era uma outra prisão parisiense, mas, naquele contexto, o brado significava a morte, pura e simplesmente. Restif ouviu no mesmo dia ecoar um grito terrível, que ouviríamos mais tarde em pleno século XX nas ruas da Europa: “Viva a morte!”[13].

O escritor, que atravessava as ruas sorvendo a realidade alterada da cidade que aprendera a amar, acreditava na revolução. Como muitos de seu tempo, queria que os padres refratários fossem punidos. Como defensor das conquistas recentes do povo afirmava: “Deus só ama uma coisa: a ordem; a ordem que é a perfeição nela mesma, e a ordem se encontra sempre de acordo com a maioria; a minoria é sempre culpada, repito, mesmo quando tem razão moralmente”[14]. Alguns meses depois, julgou necessário dizer que em seus escritos procurava expor “mais o sentimento público de então do que o seu”[15]. Diante da luta provocada pela posição cada vez mais dominante dos jacobinos no cenário político, ele não hesitou em dizer: “Acredito que a verdadeira representação nacional está na Montanha: que os jacobinos e os clubes patriotas vão na mesma direção e que os que pensam como eles são os verdadeiros patriotas”[16]. Esse escritor de origem camponesa, que fizera das ruas de Paris sua morada, soube ver, no entanto, que o uso puro e simples da violência não era revolucionário e que, em seus excessos, poderia corroer a revolução, como de fato mais tarde ocorrerá.

Nas noites terríveis de setembro de 1792, Restif enxergou a doença que poderia arruinar a força do elemento popular. Mesmo prisioneiro de sua crença no papel inelutável da maioria na condução do processo revolucionário, ele afirmou, referindo-se aos que sofreram a violência dos grupos que agiram naqueles dias: “Eles foram ilegalmente punidos. Isso não desculpa seus assassinos que, ao massacrá-los, subverteram todas as leis da sociabilidade”. A violência empregada sem controle, em nome do povo, acaba subvertendo os princípios da soberania popular. “Era o povo que reinava naquela noite e que, por um horrível sacrilégio dos agitadores, se transformou em déspota e tirano”[17]. Praticada sem amparo legal, entregue aos agentes sem controle da rua, a violência poderia se tornar o instrumento de destruição da revolução. Observador das ruas, Restif soube compreender os mecanismos internos dessa violência praticada em nome do povo, mas que se alimentava de paixões comuns, que se encontram em todos os grupamentos humanos. Antecipando o que viria a ser em nosso tempo a ação dos agitadores e dos homens vazios de princípios e sentimentos, ele enxergou naqueles dias tumultuosos o resultado do casamento entre a violência sem sentido dos assassinos dos prisioneiros e o habitante assustado e perdido das ruas. Observando a tentativa de fuga de alguém que queria evitar a fúria dos assassinos, ele narra: “Um homem, que não fazia parte dos assassinos, mas era uma dessas máquinas sem reflexão como existem tantas, o deteve com sua lança”[18]. A violência se beneficia tanto do aguçamento dos conflitos, provocado pelo medo, quanto do vazio. As “máquinas sem reflexão” introduzem outra fonte na produção da violência: a paixão fria e vazia da ação sem sentido e integrada no simples fluxo da cidade enlouquecida por seus fantasmas. Certamente seria ir longe demais associar essas máquinas de Restif de la Bretonne com o vazio de pensamento de Hannah Arendt, mas é inegável que o escritor das ruas, à luz do terror que tomou conta de Paris, soube ver que havia um novo ator na cena, que atuava sem medidas e sem refe- rências, respondendo ao simples grito da multidão enfurecida. Surgia ali o homem solitário das massas, num contexto ainda restrito e localizado. Para além da perplexidade que isso causou ao escritor camponês, podemos intuir que o homem de massas, a máquina vazia, que não se opõe nem compreende a violência que a circunda, mas que mesmo assim age e por vezes ajuda a propagar os atos mais terríveis, foi o momento inaugural de uma nova forma de violência política que, em nome de uma ideia supostamente associada aos progressos da razão, reduz o inimigo a uma coisa, que pode e deve ser esmagada.

O que chamou a atenção de Restif, lidando com os referenciais da época, foi o fato de que o povo podia se converter em tirano. Ora, isso era contrário à expectativa de que a revolução fosse o momento de retorno do homem à sua natureza boa, tal como fora descrita por Rousseau, e não sua perdição. Além do mais, o tirano era por excelência aquele que se servia da violência para fins próprios de simples manutenção de seu poder e não para servir ao interesse público. Como podia o povo agir como um tirano, o único governante que mesmo para os pensadores cristãos medievais podia ser morto legitimamente? Quem poderia agir contra esse novo tirano no qual se convertera a parte do povo que se dirigiu às prisões, como testemunhou Restif ? Ele não tinha resposta para essas questões e acompanhou entre perplexo e assustado o desenrolar do processo revolucionário, mas soube ver que havia uma questão que não podia ficar sem resposta: quando é lícito recorrer à violência? Quando o povo pode afirmar que agiu segundo os bons princípios e quando, ao agir, os perverte?

Colin Lucas, em um estudo dedicado ao problema da violência revolucionária, lembrou que as revoluções modernas parecem comportar dois traços dominantes: “a subversão da ordem social preexistente e a violência”[19]. Partindo desse pressuposto, ele mostra que os historiadores costumam se dividir entre os que veem a violência como consubstancial à Revolução Francesa – e que, por isso, dizem que o Terror[20] é uma etapa necessária das transformações ocorridas na França – e os que a enxergam como resultado de uma dinâmica que não pode ser compreendida sem uma análise dos acontecimentos sucessivos que, sem uma ordem prévia, conduziram os atores a radicalizar seus comportamentos, recorrendo aos atos violentos. Voltaremos mais tarde a essa polêmica. Por enquanto interessa-nos seguir com Lucas a disputa que se seguiu em torno dos acontecimentos de 1792. Como ele mostra, foi uma interpretação corrente a de que os acontecimentos radicais do segundo semestre representavam uma mudança em direção ao sonho revolucionário de uma sociedade nova. “A verdadeira sociedade, a verdadeira ordem era a sociedade da liberdade e da igualdade fundada pela revolução. O antigo regime era qualificado como uma antissociedade. Mais do que isso, a velha sociedade tirânica e opressiva era a sociedade da violência sistematizada.”[21] A violência popular era definida por alguns como legítima por ser a única capaz de romper o círculo vicioso da antiga dominação pelos tiranos e déspotas. Marat foi um dos que mais estimulou o uso da violência popular, pois acreditava que ela era uma obrigação e um direito do povo soberano. Como resume muito bem Lucas, na esteira das considerações de Marat: “A violência revolucionária era a violência usada para atingir e preservar a liberdade contra a tirania”[22]. Esse foi um dos caminhos escolhidos para justificar os massacres de setembro, mesmo que atores como Robespierre tenham sido muito cautelosos ao comentá-los, preferindo mudar o rumo da conversa no lugar de afrontar diretamente o problema que eles continham e que tinha a ver com a compreensão do lugar da violência espontânea na vida de uma cidade[23].

De maneira muito feliz, Lucas resume o problema da violência popular da seguinte maneira: “No coração do problema da violência na revolução reside o problema da dualidade da violência, seu duplo caráter de ser ao mesmo tempo algo que purifica e consolida e algo que contamina e dissolve”[24]. Os principais atores da Revolução Francesa tinham em grau variado a percepção da novidade do evento revolucionário. Já na Constituinte em 1789 imperava o sentimento entre seus membros de que estavam diante de um fato político novo e radical[25]. Ainda que num primeiro momento a ideia da maioria dos deputados fosse a de criar algo como a monarquia inglesa, não havia como desconhecer o fato de que eles estavam ocupando o lugar que pensadores como Rousseau designavam como sendo próprio dos legisladores. Ora, um legislador era para o pensador de Genebra alguém que tinha uma missão especial, que só podia ser exercida fora do tempo normal da política, por um ser extraordinário:

Para descobrir as melhores regras de sociedade que convêm às nações, seria necessária uma inteligência superior, que visse todas as paixões do homem sem sentir nenhuma, que não tivesse nenhuma relação com nossa natureza e que a conhecesse a fundo; cuja felicidade fosse independente de nós e que no entanto se dispusesse a cuidar da nossa; enfim, que, preparando para si uma glória distante no desenrolar dos tempos, pudesse trabalhar num século e colher os frutos desse trabalho no outro. Seriam necessários deuses para dar leis aos homens[26].

A consciência do caráter excepcional dos tempos revolucionários se aguçou com o processo do rei. Antes de sua morte, subsistia algo da antiga monarquia, que servia de referência para a transição entre as duas épocas. O uso de meios violentos era tido como natural se servisse para evitar a opressão. Aos olhos de muitos, “a insurreição era o ponto de encontro de dois princípios sagrados e mutuamente exclusivos: a monarquia e a soberania do povo”[27]. O problema estava em separar a violência popular endêmica nas cidades daquela exercida pelo povo, que fazia dele o legislador incumbido de criar novas leis e de evitar as paixões. Como bem vira Rousseau, essa era uma equação tremendamente difícil de ser resolvida, pois nem sempre era possível evitar que as decisões tomadas pelo povo, ou em nome do povo, estivessem de fato livres das paixões e orientadas para o bem comum. Em outra linguagem, a grande dificuldade diante da violência exercida contra o poder estava em saber quando ela era legítima e quando era a pura expressão de paixões como o medo ou a raiva.

Uma das estratégias para operar essa distinção (mas não a única) era mostrar que a violência praticada nas ruas, ou por atores isolados, dirigia-se na verdade contra um tirano ou contra quem aspirava a sê-lo. Ora, essa maneira de pensar a questão tem sua origem na condenação medieval da tirania e na autorização para matar o tirano, quando suas ações colocassem em risco a vida dos habitantes de uma cidade. A discussão sobre o tiranicídio era complexa e comportava muitas nuanças, como podemos ver em pensadores como Egídio Romano e Alberto Magno[28]. O importante, no entanto, estava no fato de que se buscava não apenas uma explicação para ações que pareciam exageradas e violentas na cena pública, mas, sobretudo, uma legitimação de atos que escapavam à normalidade das relações sociais. Um dos que lançou mão dessa estratégia retórica e política mesmo antes da revolução foi Marat. É preciso lembrar que, nos anos revolucionários, ele foi um dos que mais incentivaram a violência das classes populares, atribuindo-lhe um caráter purificador. Em seu célebre livro Les Chaînes de l’esclavage (Os grilhões da escravidão), escrito antes de 1789, ele afirma: “Se não ter uma ideia verdadeira da liberdade é uma das causas da servidão, não ter uma ideia verdadeira da tirania é outra”[29]. Para combater o despotismo da monarquia francesa era essencial, nessa lógica, descrevê-la como uma tirania. Essa caracterização permitia compreender as ações revolucionárias violentas contra o poder como justas, mesmo que não ficasse claro de que maneira elas podiam ser exercidas e por quem.

Essa questão apareceu com grande intensidade durante o processo do rei. Tratava-se em primeiro lugar de encontrar um assento jurídico para julgá-lo. Como não havia uma Constituição em vigor na qual a questão estivesse contemplada, o problema se mostrava de difícil solução, mesmo para os que desejavam a morte do rei[30]. Da parte dos girondinos, havia o desejo de que o rei fosse condenado, mas sem que se operasse uma ruptura total com o ordenamento jurídico anterior[31]. Já do lado dos jacobinos, Saint-Just foi o que levou mais longe a defesa de um processo extraordinário, sustentando que, de fato, o rei era estranho ao corpo político e devia ser julgado e condenado de forma extraordinária[32]. Pensando a revolução como a fundação de um corpo político inteiramente novo, o jovem jacobino acreditava que a monarquia devia ser posta abaixo por uma guerra revolucionária. “O espírito com o qual o rei será julgado será o mesmo com o qual a república será fundada”[33], dizia ele. A violência exercida contra a monarquia era, portanto, não só saudável, mas necessária no contexto revolucionário. Como mostra Walzer: “O que os revolucionários inventaram não foi o crime, mas a criminalidade do rei”[34].

Mesmo tendo suas teses derrotadas no processo do rei, os jacobinos contribuíram para a formulação de uma linguagem política que estará no centro da revolução em sua fase mais radical. Robespierre resumiu essa posição num discurso no dia 3 de dezembro de 1792. Ele lembrou, logo no início de sua fala, que era essencial não confundir “a situação de um povo em revolução com aquela de um povo cujo governo está estabelecido”[35]. Na “erupção vulcânica” que é uma revolução, a nação “entra em estado de natureza com relação ao tirano”[36]. À luz do que fora vivido nos meses anteriores, durante os quais o povo recorreu à violência de forma por vezes incontrolada, Robespierre lembrou o que lhe parecia um princípio revolucionário sagrado: “Os povos não julgam como as cortes judiciais, não dão sentenças, eles lançam o raio; não condenam os reis, eles os lançam no nada, e essa justiça é tão boa quanto a dos tribunais”[37]. Ao caracterizar o rei como um tirano, apesar de não apresentar elementos para justificar sua posição, baseando-se apenas na constatação de que muitos assim o consideravam, Robespierre cria não só uma retórica revolucionária da fundação – que já vinha sendo estabelecida desde 1789 –, mas inventa uma linguagem na qual a antiga condenação da tirania e a possibilidade do tiranicídio se incorpora ao discurso revolucionário. Ora, a argumentação dos autores medievais só parava de pé porque o fundamento do poder era transcendente. O soberano último sendo Deus, aqueles que infringiam suas leis podiam ser punidos. Do ponto de vista medieval, Luís XIV não seria considerado um tirano, pois não usurpara o poder, embora pudesse ser acusado por seus contemporâneos de exercê-lo de forma violenta. Ao chamá-lo de tirano e ao justificar sua condenação à morte, Robespierre introduz uma antiga tópica do pensamento político no seio de uma transformação radical de todos os parâmetros políticos. Pouco interessa, nesse contexto, que sua argumentação seja falha do ponto de vista da teoria à qual recorre para defender a revolução. O que importa é que ele oferece uma linguagem dentro da qual a violência das ruas podia ser compreendida e mesmo justificada. Alguns meses mais tarde, caberá a ele radicalizar essa tópica ao incorporar a violência nos atos de defesa do Estado e da revolução.

A VIOLÊNCIA SEM LIMITES: O TERROR

Dois acontecimentos servem de marco para nossas análises sobre o período de aparecimento da segunda forma de terror, que define uma nova maneira de fazer política no contexto revolucionário. O primeiro acontecimento foi a eclosão da guerra civil na Vendeia. Esse tipo de guerra é a terceira forma de relação entre política e violência citada anteriormente. Não vamos nos ocupar desse evento maior da Revolução Francesa, mas é fundamental termos em mente que ele influenciou diretamente o comportamento dos atores revolucionários. Em 1793 a França se via ameaçada pelas forças externas que haviam penetrado seu território. No plano interno, o medo do chamado inimigo interno servia para aguçar o temor de que os antigos senhores retornassem ao país com toda a sede de vingança que haviam acumulado em seus anos de exílio[38].

O segundo acontecimento tem relação direta com o primeiro e será decisivo não apenas para os rumos da revolução, mas para o modo como a violência e a política vão se relacionar na cena contemporânea. Trata-se da Lei dos Suspeitos, promulgada no dia 17 de setembro de 1793. Segundo essa lei, podiam ser presos os que não possuíam um certificado de civismo, ou os que defendiam posições sediciosas. Um mandato de prisão expedido por sete membros de um dos comitês de vigilância era suficiente para levar um cidadão à prisão. Na verdade, essa lei fazia parte de um movimento mais amplo ocorrido a partir do início de 1793 e que fez a violência migrar daqueles que atacavam o poder para o próprio poder. Ameaçados, os órgãos governativos e legislativos procuravam criar mecanismos de defesa que os fizessem sobreviver às sucessivas crises pelas quais passava a França, que não conseguia estabilizar a revolução iniciada anos antes. Para alguns grupos políticos, como os girondinos, a promulgação de uma Constituição era o passo necessário para terminar a revolução, dando à nação quadros legais dentro dos quais a vida política passaria a ser regida depois da morte do rei. Para os jacobinos e seus aliados mais próximos, a revolução só deveria terminar quando todos os seus inimigos tivessem sido eliminados. Foi dentro dessa lógica de enfrentamento de visões diferentes da revolução que o terror se apresentou como forma de solucionar os conflitos que atravessavam o país.

No começo de 1793, a violência popular era o meio de pressão mais eficaz da população pobre das cidades, em especial da parisiense, para lidar com suas frustrações e necessidades. Continuamente as sessões parisienses, e de outras cidades, além da comuna abordavam, e por vezes ameaçavam, os membros da Convenção, que nem sempre tinham como atender às diversas reivindicações. Seria impossível listar todos os eventos que ajudaram a criar o clima tenso que reinava na França no começo daquele ano. É possível mostrar, no entanto, que mesmo entre os jaco- binos, que se beneficiavam com frequência da agitação das ruas, crescia o sentimento de que acontecimentos como os de setembro de 1792 em nada contribuíam para assentar seu poder sobre a nação[39]. O Terror foi a resposta encontrada pelos jacobinos e seus aliados para lidar ao mesmo tempo com a guerra civil na Vendeia, com as invasões estrangeiras e com seus próprios fantasmas.

O debate sobre a natureza do Terror e do significado de suas diversas fases data do começo do século XIX. Com frequência os historiadores se dividiram entre girondinos e jacobinos, o que levou a uma polêmica sem fim sobre o significado dos acontecimentos que dominaram a França nos anos sombrios de 1793 e 1794. Mais recentemente, eles divergiram quanto ao início do Terror e seu vínculo com o processo revolucionário. De um lado, estudiosos como Patrice Gueniffey e, de maneira mais nuançada, François Furet tenderam a ver os eventos de 1793-1794 como uma continuação de 1789[40]. O Terror seria, nessa lógica, uma consequência da própria revolução, um desdobramento inscrito no começo do processo revolucionário. Já historiadores como Walzer e Baczko preferem ver o Terror como uma consequência desnecessária da revolução, embora explicável pelos rumos que tomaram os acontecimentos enquanto a revolução não se estabilizava[41].

Esses debates não nos interessam diretamente neste texto, embora tenhamos inclinação pelas teses de Walzer, pois, ao fazer do Terror uma consequência natural da revolução, como quer Gueniffey, corremos o risco de condenar o processo revolucionário como forma moderna de criação de novas instituições políticas em sua totalidade. Para nós, o mais importante é o fato de que o recurso ao terror marcou o nascimento de uma nova forma de relação entre política e violência. A Lei dos Suspeitos foi radicalizada pela lei de 22 Prairial (10 de junho de 1794)[42], que suspendeu até mesmo as garantias reduzidas de defesa que os acusados tinham nos processos do Tribunal Revolucionário. Essa fase é conhecida como Grande Terror e custou a vida, em 47 dias, de 1.376 pessoas[43]. Ao convergir nosso olhar para o período entre a promulgação da Lei dos Suspeitos e a lei de 22 Prairial, não temos a intenção de sustentar uma tese de natureza historiográfica, mas apenas chamar a atenção para um período que é paradigmático da invasão da violência no terreno da política de Estado. O comportamento dos jacobinos já foi largamente criticado, mas também defendido. Ele nos interessa porque inaugura uma nova forma de violência estatal, que marca uma guinada na construção da modernidade política.

Antes, no entanto, de aprofundar o debate sobre a tese que acabamos de enunciar, gostaríamos de nos debruçar sobre o olhar daqueles que instituíram e defenderam o terror como forma de ação política. O grande nome desse período é indiscutivelmente Robespierre. Advogado de profissão, de temperamento recolhido, ele teve um início de carreira modesto e discreto no período revolucionário, quando comparado a figuras como Mirabeau e Danton. Foi o surgimento das grandes dificuldades no curso dos anos revolucionários que o propulsaram para a frente da cena política e fizeram dele uma das figuras maiores da revolução[44]. No começo de março de 1793, ele dizia para seus companheiros: “Eu tremo quando vejo a decadência do espírito público e quando, no lugar dessa união fraterna que deveria reunir todos os corações, só vejo intriga e má-fé”[45]. É difícil saber quais eram as paixões privadas desse homem fechado e austero, que procurou ao máximo esconder seus sentimentos, ao mesmo tempo em que recorria à retórica rousseauniana do coração puro e da unidade do povo. Foi no momento de crise e perigo que sua personalidade enigmática se impôs no seio dos jacobinos e ele se transformou, ao lado de Saint-Just e uns poucos, no ator principal de uma revolução que radicalizava seus caminhos.

Robespierre via a si mesmo, nesses anos, como alguém que tinha uma missão em um mundo convulsionado, que arriscava jogar fora as poucas conquistas alcançadas até então pela revolução. Ele queria combater a corrupção sob todas suas formas, inclusive aquela do ateísmo. Lutava para barrar a formação de facções no interior do Estado[46], em nome do princípio da unidade do corpo político. Achava essencial evitar a calúnia[47], que segundo ele destrói a confiança dos cidadãos nas instituições e os leva à intriga e ao medo. “Pois”, como resume Walter, “caluniadores, intrigantes, corrompidos, conspiradores – tal era o mundo das forças hostis que gravitavam em torno de Robespierre”[48]. Nesse universo turvo, ele via na virtude o eixo da vida política republicana e na corrupção, a força destrutiva, que devia ser combatida a todo custo. A linguagem na qual ele se exprimia – assim como muitos homens políticos de seu tempo – devia muito a Rousseau. Mas seus discursos portavam a marca dramática de um ator que acreditava que a revolução corria grande perigo[49].

Olhando as aspirações de Robespierre, seu diagnóstico das doenças de seu tempo e suas paixões públicas, é tentador identificá-lo com figuras religiosas de outras épocas, elas mesmas fanatizadas por seus ideais e visões de mundo. Seus partidários o chamavam de incorruptível e viam ares de santidade na maneira como ele levava a cabo o que acreditava ser sua missão. Seus detratores e os que sobreviveram ao Terror passaram a chamá-lo de tirano tão logo ele foi executado[50]. Tanto o elogio do ator revolucionário clarividente quanto as críticas ao monstro[51] que gerara um sistema monstruoso de governo pecam por deixar na sombra o caráter ao mesmo tempo radical e inovador do Terror – e como ele fez nascer uma nova forma de relação entre política e violência. É claro que num determinado momento histórico sempre nos servimos de uma linguagem já consolidada para tentar entender o que se passa. No caso da acusação de tirania que se sucedeu à morte do convencional, isso é tanto mais compreensível por ser esse um termo de uso comum que servira para os próprios revolucionários condenarem o rei e a monarquia. No que diz respeito à associação do Terror com uma missão sagrada, as coisas são um pouco mais complicadas, pois uma das consequências da revolução havia sido justamente o abandono das antigas crenças cristãs em nome de um modelo de vida ao mesmo tempo baseado na razão e na preservação da ideia de um ser transcendente, que Robespierre celebrou na estranha festa do ser supremo, que fez realizar em 1794[52].

Tanto no uso de referências à tirania como na santificação da missão de preservação da revolução, deixa-se de lado a reflexão sobre o significado da relação entre política e violência que estava sendo criada naqueles anos terríveis. Até hoje é comum chamar Robespierre de tirano, como se com isso se desvelasse o enigma de sua vida. Da mesma forma, historiadores contemporâneos procuram mostrar que em várias épocas se conviveu com formas extremas de violência na vida pública e que o Terror foi apenas mais uma delas. De fato, não há como esquecer, para ficar com eventos bem conhecidos, os massacres das guerras religiosas na Europa e como as ações do Tribunal Revolucionário lembravam a Inquisição em seus dias mais violentos[53]. Essas aproximações não são necessariamente falsas. Elas nos lembram que a política não pode ser dissociada da violência e que importa conhecer os mecanismos de uso da força para se desvendar o funcionamento dos regimes políticos. Por isso, o conceito de tirania tem uma história tão longa. Ele serve tanto para descrever quanto para denunciar um governante. Ele oferece uma ferramenta para a crítica moral e política e parece conter em si toda a explicação de que necessitamos para compreender os atos dos governantes que oprimem seus governados pelo uso da violência. Pouco importa, nesse caso, se o conceito de tirania sofreu muitas mudanças ao longo dos tempos e que nem sempre a questão da violência é a mais importante para se compreender o comportamento do tirano[54]. O recurso à imagem do tirano como governante violento e arbitrário tem uma eficácia simbólica que não se desmentiu até hoje. Nosso propósito não é, no entanto, fazer a crítica dos que recorrem a tópicas do passado para pensar a relação entre política e violência surgida com o Terror. Nossa preocupação central está em que esse recurso muitas vezes obscurece o fato de que o Terror é ao mesmo tempo uma continuidade da relação entre política e violência e a invenção de um novo território, que se nutre de condições sociais e políticas que só conhecemos na modernidade e na contemporaneidade.

Deixemos, no entanto, que Robespierre fale de sua paixão e do recurso à violência para voltar a interpretá-la. São muitos os textos nos quais ele expõe sua visão de mundo e faz a defesa das ações levadas a cabo pela Convenção ou pelos jacobinos na cena pública, no período que se seguiu à morte do rei. Em agosto de 1793, ele afirma: “Que a espada da lei, planando com uma rapidez terrível sobre a cabeça dos conspiradores, encha de terror seus cúmplices […]. Que esses grandes exemplos aniquilem as sedições pelo terror que inspirarão a todos os inimigos da pátria”[55]. Como afirma Walter, aos poucos o terror ocupa o centro de suas reflexões e passa a constituir o eixo do sistema de governo que ele julgava adequado para a França. Até o fim de sua vida, ele se guiará pela ideia de que a França e a revolução corriam grande perigo, e só o emprego do terror seria capaz de deter o processo de corrupção que se instalara na nação e se infiltrara até mesmo nos órgão de governo que deveriam defendê-la.

Em dezembro de 1793, a situação militar havia melhorado, mas Robespierre continuava a ver inimigos por toda a parte e a conclamar os poucos puros de coração a combatê-los. Em 25 de dezembro (5 Nivoso), mais uma vez ele reagiu de maneira enfática ao pedido de clemência e indulgência feito por Camille Desmoulins para dissidentes da Convenção: “O governo revolucionário deve aos bons cidadãos toda a proteção nacional; aos inimigos do povo, ele deve a morte”[56]. Para Robespierre, não se podia confundir um Estado democrático já fundado e vivendo em paz com um Estado em processo revolucionário e em plena fundação. A incapacidade de compreender a diferença entre essas duas formas de governo conduzia à covardia e à inação. O momento vivido então pela França é visto como aquele da fundação do corpo político; por isso, possui uma temporalidade própria e está preso à mais inelutável das condições: a necessidade[57]. Não tendo ainda garantido sua existência plena no reino das nações, um governo revolucionário deve levar em conta todas as ameaças que pairam sobre sua cabeça. Se não o fizer, conduzirá inevitavelmente o país à ruína. “Ao indicar os deveres do governo revolucionário”, afirma ele, “marcamos suas etapas. Quanto maior é seu poder, mais sua ação é livre e rápida, mais ele deve ser dirigido pela boa-fé”[58].

Algumas semanas mais tarde, em 5 de fevereiro de 1794, mais uma vez ele se dirigiu à Convenção para defender seus princípios políticos e deixar claro qual caminho deveria ser seguido para garantir o sucesso da revolução. Robespierre parecia mais animado naquele momento, chegando a acreditar que talvez se pudesse finalmente pensar no tão desejado fim da revolução[59]. Logo no início de sua fala, ele se permite um momento quase lírico no qual expõe seu sonho em cores rousseaunianas: “Nós queremos, em uma palavra, preencher os votos da natureza, cumprir os destinos da humanidade, manter as promessas da filosofia, absolver a providência do longo reino do crime e da tirania”[60]. Para caminhar nessa direção o convencional lembra a seus auditores que o princípio fundamental da república é a virtude: “essa virtude que não é nada além do amor à pátria e a suas leis”[61]. Aqui é Montesquieu quem fala e inspira o discurso que visa afirmar os princípios da liberdade e da igualdade como o coração da república que está sendo fundada.

Essa primeira parte do discurso pode dar a impressão de que Robespierre se conciliou com seu tempo e finalmente aceitou o fato de que era preciso sair do torvelinho da fundação da república, no qual a única lei é a da necessidade da natureza, e passar para o tempo da política democrática, em que as leis regem as relações pacificadas entre os homens pela longa luta para o estabelecimento do corpo político livre da tirania e do despotismo. Mas ele ainda estava longe de acreditar que a guerra contra o inimigo interno estava ganha. Incapaz de se livrar da espiral que levara a luta política interna ao paroxismo, Robespierre não consegue sair da lógica da fundação e, por isso, não tem como desmontar a máquina do terror que ele ajudara a criar. Assim, ele chega a uma de suas formulações lapidares: “Se o fundamento do governo popular na paz é a virtude, o fundamento do governo popular na revolução é ao mesmo tempo a virtude e o terror. A virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente”[62].

Ao relacionar a virtude e o terror, ele traz para o interior da vida política e une dois princípios que deviam estar separados. De fato, pensadores como Maquiavel falam do terror que preside a fundação de um corpo político e de como ele é importante para convencer os homens a aceitarem as leis que estão sendo propostas pelo legislador. Mas, assim como Rousseau, ele não concebe um tempo histórico no qual virtude e terror convivem, pelo simples motivo de que a virtude é um conceito da política, enquanto o terror existe fora da história[63]. Da mesma forma, Hobbes fala do medo primordial que preside nossas vidas no estado de natureza, mas a passagem para a política é pensada como uma forma de liberação desse medo e não como sua conservação. Robespierre opera uma inversão. A virtude é um princípio absoluto. Dela devem derivar todos os princípios que regem a vida em uma república. Por essa razão ele afirma: “O terror não é outra coisa senão a justiça pronta, severa, inflexível; ele é, pois, uma emanação da virtude; é menos um princípio particular do que uma consequência do princípio geral da democracia aplicado às necessidades urgentes da pátria”[64]. Visto desse ponto de vista, o terror passa a ser uma ferramenta do ator político, que reivindica para si o papel do legislador: “Domem pelo terror os inimigos da liberdade”, diz ele, “e terão razão enquanto fundadores da República”[65]. O legislador não é para Robespierre aquele que propõe a lei para tirar os homens do reino da violência, mas o que se serve dela para separar os que desejam seguir sua vontade e os que a ela supostamente se opõem. Para ele: “Os únicos cidadãos em uma república são os republicanos”[66].

Tomando para si a tarefa de falar em nome do povo e de guiar as ações que fundam o novo corpo político, o convencional instala o terror no coração da vida republicana. “Punir os opressores da humanidade é clemência; perdoar-lhes é uma barbárie”[67]. O discurso, que começara parecendo indicar que a revolução estava por alcançar seus objetivos, termina no mesmo tom de outras falas, com a denúncia dos moderados, dos falsos revolucionários, dos conspiradores e dos ateus. Tudo se passa como se, uma vez instalado o terror, não houvesse como sair dele. Instrumento de fora do tempo da política, ele arrasta a vida comum para o abismo sem sentido da busca de uma nova forma de absoluto. Como resume Dupuy: “De fato, os patriotas de 1793 são prisioneiros de uma contradição profunda: o regime que eles contribuíram para impor e que pretende ser uma emanação do povo desconfia dele e se define contra ele”[68]. O que pretendia ser o instrumento de criação de uma república popular acaba por ser o que a impede de tornar-se real.

Baczko procurou mostrar, na esteira de Edgar Quinet[69], que o Terror se instituiu como um verdadeiro sistema de governo. Para tanto, ele se apoiou em quatro eixos[70]. O primeiro, ao qual já fizemos referência, foi a Lei dos Suspeitos, que se radicalizou com a lei do 22 Prairial. Ela permitiu a identificação dos inimigos objetivos da revolução tomando como referência critérios tão abstratos que tornavam todos os cidadãos passíveis de serem acusados e punidos. O caráter cada vez mais abstrato dos que deviam ser eliminados contribuiu para o estabelecimento do segundo eixo do terror: o medo. Pode parecer banal associar medo e terror, mas o que se deve ressaltar é o fato de que o medo, que foi instituído a partir de 1793, não era o fruto da insegurança do homem diante das forças que ameaçam sua vida, mas sim o fruto de uma história vivida, que não podia ser inteiramente compreendida pelos que dela participavam. Não havia balizas para a ação na cena pública e, por isso, tudo podia ser perigoso, tudo podia ter outro significado. O Terror não foi construído pela simples presença do medo na cena pública, mas pela infiltração dele em todos os poros da sociedade. Foi seu caráter ao mesmo tempo difuso e onipresente que fez dele uma ferramenta eficaz de governo. Os dois outros eixos são de natureza insti- tucional. De um lado, está a institucionalização de um governo revolucionário que prescinde de leis escritas e aceitas para agir; de outro lado, há a institucionalização da violência, que deixa de ser o resultado de uma ação irracional e passa a ser o caminho de realização de uma razão superior.

Embora não tenha sido a pretensão de Baczko, acreditamos que os traços que ele reconhece como constitutivos do Terror na França podem ser encontrados em várias experiências contemporâneas, que fizeram do recurso à violência de Estado uma forma de política e conduziram às práticas mais radicais de extermínio de parcelas significativas da população em algumas nações. Nesse sentido, tem razão Gueniffey quando diz que “o terror não é redutível à violência” e tem por “particularidade o fato de ser a aplicação deliberada da violência a uma vítima escolhida para se atingir um fim”[71]. Isso vale tanto para os conspiradores, que Robespierre enxergava em todos os lugares, quanto para os judeus, que os nazistas acusavam de ter levado a Alemanha ao desastre. Concordamos com o historiador quando afirma que “o terror é o reino universal e indefinido do arbitrário”[72], mas o abandonamos quando associa revolução e terror de maneira estrita e quando pretende que o terror seja “tão antigo quanto a política e a guerra, e não entretém nenhum laço particular com a modernidade”[73]. Se não há como negar que o uso da violência sempre fez parte da política, seria reduzir sua importância para nosso tempo, e sua novidade, compreendê-lo como parte inerente das estratégias de conservação do poder de todos os tempos. Ao dirigir a violência para o inimigo objetivo do Estado, o Terror imita em parte a estratégia da Inquisição, que fazia do herege o alvo de sua perseguição, mas se distancia dela na medida em que escolhe seu alvo no conjunto de uma população dividida em categorias abstratas como os virtuosos e os viciosos, os bons e os maus, os puros e os impuros. O terror não é apenas o instrumento de conservação de um grupo ou um homem no poder. Ele se serve da violência para fazer triunfar algo que transcende a compreensão dos homens comuns. Ele age não como um deus, que se situa além da condição humana, mas sim como algo que se esconde em suas dobras. Daí a necessidade de descobrir onde se encontram os inimigos da nação, de extirpá-los de seu interior, de cortar na carne de um corpo político poluído e corrompido.

O terror não é o triunfo de uma forma política, de um governante tirânico, ou mesmo de um grupo dominante. Ele é o triunfo de uma ideia. Daí sua característica essencialmente moderna, pois depende do enfraquecimento da experiência religiosa e da perda das formas tradicionais de legitimação do poder, para se apresentar como uma figura da necessidade, seja natural, seja histórica. Forma radical da desrazão, o terror se constrói sobre ideologias que falsificam e ao mesmo tempo imitam a razão. Como opera no vazio, o terror não tem um fim em si mesmo. Ele é sempre circular. Por isso Robespierre não conseguia tirar as conclusões políticas de seu otimismo parcial do começo de 1793. Reconhecer que a revolução podia terminar seria o mesmo que dizer que se havia chegado ao tempo ideal da humanidade em paz, tal como as Luzes pareciam indicar. Tomando emprestada dos pensadores milenaristas a esperança de uma purgação no tempo presente dos males que afligem os homens, o que levaria ao reino perfeito, o terror sem Deus tem no movimento perpétuo sua forma de existência. O terror pode findar, como findou o poder jacobino, mas nunca decreta seu próprio fim. Os nazistas sonhavam com um reino de mil anos, mas só o vislumbravam depois de massacres sem fim, que teriam reduzido o mundo a senhores e escravos. Como isso não parecia possível, nunca imaginaram que o fim da guerra significaria também o fim do terror, mesmo na hipótese de saírem vencedores.

Animal simbólico, o homem é o único ser que mata por suas ideias. É claro que não foi o terror que inventou esse caminho. As guerras de religião eram a prova viva da força das crenças na vida das comunidades e abriam o caminho da violência sempre que o domínio simbólico de um grupo social era ameaçado. Com a revolução, no entanto, as paixões deixam de se ligar apenas aos sentimentos religiosos, à tradição, ou mesmo ao medo primário de se perder a vida, e passam a se originar na razão, em seus sonhos e em seus cálculos. É porque a Revolução Francesa era pensada como um passo à frente na história da humanidade que os meios violentos podiam ser empregados, quase sem limites. O terror marca o aparecimento de uma forma radical de desrazão na cena pública, mas ele inova porque pretende ser a ação necessária para o que alguns grupos políticos acreditam ser a expressão mesma da razão. Robespierre e seus companheiros não criaram o Tribunal Revolucionário para se vingar de seus inimigos, mas para eliminar da cena pública os inimigos da razão e de seus desdobramentos na revolução. O inimigo não é mais apenas os que ameaçam a vida dos revolucionários, como eram os soldados das forças que atacavam a França, mas os que de dentro sabotam o progresso das forças de renovação. O inimigo imaginário suplanta o inimigo real e faz da violência sem limites a forma do Estado de lidar com suas fraquezas, seus medos e seu desejo ilimitado de preservação.

OS HERDEIROS DE ROBESPIERRE

A figura de Robespierre até hoje fascina e horroriza os que se interessam por sua herança e pelos rumos que tomaram a política contemporânea e a presença da violência na cena pública. O jacobinismo é uma das figuras centrais do pensamento político posterior à Revolução Francesa, tendo gestado tantos adeptos quanto detratores. Não é nosso propósito mergulhar nesse tema, que já foi objeto de tantas investigações. Michel Vovelle, em particular, procurou esclarecer não apenas as raízes históricas do jacobinismo mas também acompanhar o percurso de uma herança que se mostrou extremamente fecunda ao influenciar tanto os que, como Lênin, se julgavam herdeiros críticos dessa corrente revolucionária, quanto os que viram nela o começo de uma história trágica, que colocaria no centro da vida contemporânea o recurso ao terror e à violência como parte integrante da cena pública[74]. Para nós, interessa o fato de que, depois da experiência do Terror jacobino, tornou-se quase obrigatório para o pensamento político refletir sobre a relação entre violência e política do ponto de vista do Estado. Como já observamos, não é a presença da violência e seu uso por diversos atores que constitui a novidade do terror, mas o fato de que à violência passou a ser associada a ideia da criação de novos mundos e de novas formas políticas. Criticada no passado como o apanágio dos tiranos ou aceita como parte necessária do ato de governar, a violência ganhou um novo estatuto, que modificou para sempre a maneira de considerá-la e analisá-la. Com o Terror surgiu o fascínio pela violência como força criativa e necessária da política. Essa fascinação persiste até hoje.

Se, como mostrou Chesnais[75], as práticas violentas têm uma história, é preciso reconhecer que o elogio da violência, enquanto força criadora da política, também o tem. Ela é complexa e multifacetada. Aparece no seio das reflexões de anarquistas no século XIX[76] e em grupos políticos radicais da atualidade, mas também fascina sociólogos como Georges Sorel[77] e pensadores como Sartre. Nosso desafio, nesta parte final do texto, é encontrar um referencial teórico que nos ajude a lidar com o fascínio e as paixões despertadas na cena pública por essa força demiúrgica, que parece brotar da ruptura com os padrões estabelecidos e as normas legais de uma dada sociedade, para indicar o caminho para um novo mundo. Nosso ponto de partida será a afirmação ao mesmo tempo lapidar e difícil de ser compreendida feita por Hannah Arendt em seu Diário filosófico: “O oposto da violência não é a não violência, mas o poder”[78].

Arendt teve ao longo de sua vida uma experiência variada e trágica com a violência política. Ao final de seu livro Origens do totalitarismo, ela demonstra como a combinação de uma ideologia com os instrumentos do terror esteve no coração da maior barbárie produzida pelo homem: a exterminação em massa de populações que eram simplesmente classificadas como inimigos objetivos por sua origem étnica, religiosa ou social.

Arendt aborda a questão do terror depois de ter esmiuçado o funcionamento dos regimes totalitários que haviam mergulhado o mundo no horror. Sua questão central não era, no entanto, de caráter historiográfico. Interessava-lhe saber se se podia falar de uma natureza do regime totalitário, assim como Montesquieu, autor que ela admirava, havia feito com todos os outros regimes[79]. Sua tese principal era a de que os regimes totalitários eram uma novidade na história e não podiam ser tratados com as mesmas ferramentas teóricas usadas até então para estudar as formas políticas conhecidas. É claro que com isso ela não descartava a tradição da filosofia política como manancial ao qual devemos recorrer para pensar as questões de nosso tempo. Mas, à luz das experiências vividas na primeira metade do século XX, ela acreditava que seriam necessárias novas categorias teóricas para dar conta do acontecido. Um de seus pontos de partida foi o fato de que “na interpretação do totalitarismo, todas as leis se tornam leis de movimento”[80]. O terror é a forma de dar realidade a esse princípio. De maneira resumida, ela afirma: “O terror é a realização da lei do movimento”[81].

Essa nova forma de organizar a vida em comum é na verdade sua negação e, por isso, marca o aparecimento de um regime que, embora não se confunda com os até então conhecidos, tem ele também um princípio estruturador: “O terror torna-se total quando independe de toda oposição; reina supremo quando ninguém mais lhe barra o caminho. Se a legalidade é a essência do governo não tirânico, e a ilegalidade é a essência da tirania, então o terror é a essência do domínio totalitário”[82]. Ela estava pensando a partir do que o mundo acabara de viver, dos intermináveis massacres perpetrados em nome de ideologias que pretendiam explicar aos homens como poderiam ser seguidos os desígnios da natureza e da história. Mas ela intuiu também que se tratava de uma novidade na política o fato de o terror significar sua destruição e não sua afirmação sob nova roupagem, ainda que extrema. Tudo se passa como se de repente fosse possível viver normalmente, falando com outras pessoas, cumprindo obrigações burocráticas, comerciando objetos, num mundo que era mais parecido com o estado de natureza de Hobbes do que com qualquer outro que conhecemos no curso da história. Mas nesse reino, diz Arendt, “nem mesmo o medo pode aconselhar a conduta do cidadão, porque o terror escolhe as suas vítimas independentemente de ações ou pensamentos individuais, unicamente segundo a necessidade objetiva do processo natural ou histórico”[83]. O terror trouxe para a experiência contemporânea uma vida sem laços e sem limites, um turbilhão contínuo, que torna a vida terrena ainda mais miserável, mais sórdida, mais solitária, mais pobre do que imaginara Hobbes quando descreveu o estado natural, que devia ser abandonado para se criarem as sociedades políticas.

Mesmo sem pretender estabelecer um nexo causal direto entre o Terror, fase fundamental da Revolução Francesa, e o terror dos regimes totalitários, é mister reconhecer que a primeira experiência de afirmação de um regime que não pôde sair do turbilhão de seu próprio movimento para existir marcou o momento de aparecimento de uma espécie de brecha na modernidade. Por ela vão se infiltrar os atores, partidos e grupos que desde então pretendem revolucionar o mundo à luz de uma ideia e em perpétuo movimento. Para que o Terror seja considerado um paradigma inicial de uma nova forma de recurso da violência pelo Estado, é preciso relacioná-lo com as ideologias que o sustentaram. É a crença numa nova forma de absoluto, e no fato de que nem todos podem dele se aproximar, que torna o emprego da violência extrema contra os adversários algo tão natural e tão sem medidas.

Tendo vivido o reino do terror nazista e meditado sobre ele, Arendt sentiu ao longo de sua vida a necessidade de pensar a relação entre violência e política nas condições de nosso tempo. Em um belo texto dedicado ao problema, ela manifestou sua surpresa e certa indignação com o fato de que intelectuais como Sartre, Fanon e Sorel tenham se deixado encantar com o que consideravam a dimensão criativa da violência sem levar em conta a dimensão trágica, que se manifestou na história quando se acreditou que a violência podia ser a força principal das transformações sociais radicais e das revoluções[84]. Voltando à sua afirmação no Diário filosófico, podemos agora tentar esclarecer seu sentido.

Em primeiro lugar, cabe lembrar que Arendt define o poder da seguinte maneira: “O poder corresponde à capacidade humana não somente de agir mas de agir de comum acordo”[85]. Com isso, ela pretende afastar a ideia de que possa existir um regime inteiramente baseado na violência: “Mesmo o mandante totalitário, cujo maior instrumento de domínio é a tortura, precisa de uma base de poder – a polícia secreta e sua rede de informantes”[86]. Ao mesmo tempo, ela sabe que “poder e violência, ainda que fenômenos distintos, quase sempre aparecem juntos”[87]. Ora, o ponto essencial na argumentação de Arendt é a afirmação de que o poder, tal como ela o concebe, é o fato fundamental no estabelecimento das relações humanas. Se a violência, ou sua possibilidade, está sempre inscrita no horizonte das sociedades, ela é incapaz de fundar o que quer que seja, muito menos uma forma de governo estável e duradoura. O poder, ao contrário, só pode existir uma vez fundado o corpo político. Por essa razão, uma revolução precisa passar de sua fase inicial de questionamento do que era instituído para um novo arranjo de leis e instituições. Caso contrário, corre o risco de perpetuar a violência ao abdicar de realizar a passagem para o poder[88].

É comum encontrarmos em pensadores utópicos dos últimos séculos o desejo de construir uma sociedade na qual as relações entre os homens seriam reguladas pelos sentimentos, ou pela natureza, na medida em que ela poderia fornecer balizas para o convívio saudável entre as pessoas. Esse foi, por exemplo, um projeto comum entre pensadores anarquistas, que pretendiam criar formas de vida em comum que dispensassem o Estado em todas suas formas[89]. Objetivando resumir para seus leitores as crenças anarquistas, Malatesta afirmava: “Os anarquistas são contra a violência. Todos sabem. A ideia central da anarquia é a eliminação da violência da vida social, é a organização das relações sociais fundadas na vontade livre dos indivíduos sem a intervenção da polícia”[90]. Na lógica arendtiana, esse pode ser um belo sonho, mas dificilmente se tornará realidade. O ponto frágil desse mundo sonhado por pensadores anarquistas é o fato de que nele não há lugar para a violência e para seu uso no interior das sociedades humanas. Ora, Arendt era uma crítica do uso dos meios violentos de coerção; ela não cessa de dizer que a violência pode destruir o poder e que jamais, sozinha, pode construí-lo[91]. Ela é um limite da política. Mas, ao mesmo tempo, é preciso levar em conta que ela está inscrita na natureza dos homens de tal maneira que sempre pode se tornar presente, mesmo em sociedades que conseguiram se fundar por meio de um contrato, de uma Constituição, diríamos hoje, que limite ao máximo o uso da força. Nesse sentido, Arendt está mais próxima de Hobbes, ainda que para ela o estado de natureza seja apenas uma ficção teórica usada pelo filósofo inglês para guiar sua argumentação para seus fins.

O outro lado do sonho dos pensadores utópicos é o reino do terror, que foi implantado pelos regimes totalitários. Se o sonho de uma sociedade da não violência parece irrealizável para Arendt – e, por isso, ela afirma que o contrário da violência é o poder, ou seja, a organização das ações conjuntas dos homens em instituições capazes de gerir a vida em comum dos cidadãos –, a construção de uma sociedade da pura violência foi o fruto das ações dos governantes totalitários que, ao recorrer ao uso sem limites da força, acreditavam colocar em prática um domínio que nunca teria fim.

Se seria infundado afirmar que Robespierre desejava prolongar indefinidamente a revolução, ainda que ele pouco tenha contribuído para estabilizá-la, é certo que a ideia de que a revolução deve ser um movimento permanente tem suas raízes em pensadores como Saint-Just, que não viam como parar um processo que, a seus olhos, estava incompleto e precisaria primeiro exterminar todos os inimigos para então pensar em novas etapas. Em outubro de 1793, quando o Terror já se instalara na França e fazia suas vítimas em todo o território da nação, o jovem e audaz amigo de Robespierre radicalizava a ideia de que era preciso exterminar os inimigos da nação para passar para uma nova fase da revolução. Em um comunicado feito em nome do Comitê de Salvação Pública à Convenção, ele afirmava: “Vocês devem punir não apenas os traidores mas também os indiferentes; vocês devem punir quem é passivo na república e nada faz por ela”[92]. Ao defender a ideia de que os suspeitos podem estar em toda parte, ele praticamente destruiu a possibilidade de que a França tivesse naquele momento uma vida política normal, baseada num corpo de leis. Ao contrário, Saint-Just, que ao lado dos jacobinos fizera de tudo para recusar o projeto de Constituição redigido pelos girondinos, concluiu: “Nessas circunstâncias nas quais se encontra a república, a Constituição não pode ser estabelecida, ela seria destruída por ela mesma. Ela se transformaria na garantia dos atentados contra a liberdade, porque a ela faltaria a violência necessária para reprimi-los”[93]. A seu ver, restava aos revolucionários prolongar o uso da violência contra seus adversários, que ameaçavam a unidade da nação e impediam a revolução de chegar ao fim. O Terror se transformou na revolução.

Com a extensão da categoria de inimigos da nação a praticamente todos os cidadãos que não comungassem o mesmo credo dos jacobinos, ou melhor, de seu núcleo reduzido de dirigentes, a república enquanto regime de leis se transformou num sonho distante, que só seria alcançado num tempo que Saint-Just nem imaginava quando viria. Em 1794, o recurso à violência se radicalizou e o jovem revolucionário passou a conceber a polícia como o instrumento revolucionário imprescindível. Considerando as facções como o grande mal da vida pública, ele acreditava que a república só poderia se estabelecer depois que elas tivessem sido totalmente extirpadas da vida pública. Ao sair do terreno corriqueiro das disputas políticas entre grupos diversos para um mundo abstrato de inimigos absolutos, Saint-Just decretava praticamente o fim de toda esperança de que a França encontrasse um lugar para novas instituições. O Terror encontrou sua linguagem e instaurou um círculo do qual não podia sair, uma vez que a realidade banal dos conflitos desapareceu em nome de uma utopia irrealizável e do culto a um heroísmo nutrido pela moral do extermínio e da superação do passado. Falando dos que poderiam eventualmente contestar a violência contra os inimigos da nação, ele lançou um desafio em abril de 1794:

Que eles se apresentem, os que ameaçam vingar os traidores que a lei atingiu. Nós os enfrentaremos. Eu os devolvo ao fundo de suas consciências: eles empalidecerão, se eles me escutam. Nós não temos a covardia dos culpados; veremos nossa pátria livre, seremos felizes e as facções morrerão![94]

Olhando para o que aconteceu nos governos totalitários, Arendt compreendeu que o que fora iniciado na Revolução Francesa se tornou uma forma radical de ação, cujo resultado final foi a destruição da política nos países nos quais a ideia da prolongação indefinida das práticas violentas se transformou na mola de ação dos atores políticos. “Terror”, diz ela, “não é o mesmo que a violência; é, antes, a forma de governo que passa a existir quando a violência, tendo destruído todo o poder, não abdica mas, ao contrário, permanece com o controle total”[95]. Os homens que em 1793 colocaram em marcha a máquina de punição e de medo que foi o Tribunal Revolucionário não tinham em seu horizonte a destruição total do poder. Acreditando estar no meio de um processo inédito, mas que podia conduzir a França a uma nova era de paz e prosperidade, viam no horizonte a possibilidade de viver num país profundamente renovado e distante de seu passado. Talvez não pudessem intuir que, em meio aos sonhos de um novo tempo e de um novo homem, haviam aberto o caminho para uma nova forma de relação entre a violência e a vida na cidade. Mais precisamente, abriram o caminho para a destruição total da política. Nos nossos dias, atormentados por problemas de todas as ordens, podemos ser tentados novamente pela ideia de que é preciso um processo de purgação violenta das sociedades para que elas se renovem. Se uma sociedade totalmente destituída de violência pode ser apenas o sonho bem-intencionado de grupos que desejam viver num mundo melhor, o elogio da violência, bem como o encantamento com seus efeitos imediatos na cena pública, pode esconder o desconhecimento das raízes das experiências terríveis de nossa época e da possibilidade de que elas venham a se repetir. Mesmo em condições de dificuldades no plano social e político, só nos resta desejar um poder capaz de lidar com nossas misérias e de conter a violência sempre latente dos seres humanos. Do contrário, corremos o risco de abrir as portas para os horrores do terror, na esperança de estarmos contribuindo para a renovação de nossas socie- dades e de nós mesmos, como de certa forma aconteceu com os jacobinos na Revolução Francesa. Entre a violência e o poder, no sentido dado a esses termos por Arendt, resta-nos escolher o poder, com todas as suas limitações, se quisermos fugir da realidade mortífera gerada pela crença no caráter radical e transformador da pura violência.

Notas

  1. Thomas Hobbes, Leviatã, São Paulo: Abril, 1979, p. 76.
  2. Cf. Jean-Claude Chesnais, Histoire de la violence (História da violência), Paris: Robert Lafont, 1981.
  3. Yves Michaud, Violence et politique (Violência e política), Paris: Gallimard, 1978.
  4. Foucault se ocupou dessa questão ao longo de toda sua carreira. Apenas como exemplo vale a pena lembrar um de seus livros seminais sobre o problema: Vigiar e punir.
  5. Nicole Loraux, La Cité divisée (A cidade dividida), Paris: Payot, 1997.
  6. Cf. François Furet e Denis Richet, La Révolution française, Paris: Hachette, 1973; e Albert Soboul, La Révolution française, Paris: Gallimard, 1982. Edição brasileira do segundo livro: A Revolução Francesa, São Paulo: Difel, 2003.
  7. François Furet e Denis Richet, op. cit., p. 182.
  8. Restif de la Bretonne, Les Nuits révolutionnaires (As noites revolucionárias), Paris: Le Livre de poche, 1978, p. 243.
  9. Ibidem.
  10. Ibidem, p. 251.
  11. Ibidem, p. 259.
  12. Ibidem, p. 261.
  13. Ibidem, p. 262.
  14. Ibidem, p. 263.
  15. Ibidem, p. 380.
  16. Ibidem.
  17. Ibidem, p. 264.
  18. Ibidem, p. 265.
  19. Colin Lucas, “Revolutionary Violence, the People and the Terror” (Violência revolucionária, o povo e o terror), em: Keith Baker, The French Revolution and the Creation of Modern Political Culture. Volume 4: The Terror, Oxford/Nova York: Pergamon, 1994, p. 57.
  20. Usamos a palavra em maiúscula sempre que nos referimos aos acontecimentos de 1793 até a morte de Robespierre, em 1794. Quando em minúscula, a palavra se refere ao uso da violência na política de forma mais geral.
  21. Ibidem, p. 65.
  22. Ibidem, p. 67.
  23. Ibidem, p. 64.
  24. Ibidem, p. 60.
  25. Cf. Timothy Tackett, Par La Volonté du peuple (Pela vontade do povo), Paris: Albin Michel, 1997.
  26. Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social, São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2011, p. 91.
  27. Colin Lucas, op. cit., p. 67.
  28. Cf. Claudio Fiocchi, Mala postestas. La tirania nel pensiero politico medioevale, Bérgamo: Lubrina Editore, 2004.
  29. Jean-Paul Marat, Les Chaînes de l’esclavage (Os grilhões da escravidão), Paris: Complexe, 1988, p. 180.
  30. Cf. Michael Walzer, Régicide et révolution. Le procès de Louis XVI (Regicídio e revolução. O processo de Luís XVI), Paris: Payot, 1989, p. 101.
  31. Ibidem.
  32. Ibidem, p. 113.
  33. Saint-Just apud Michael Walzer, op. cit., p. 117.
  34. Saint-Just apud Michael Walzer, op. cit., p. 117.
  35. Robespierre apud Michael Walzer, op. cit., p. 220.
  36. Ibidem, p. 221.
  37. Ibidem, p. 222.
  38. Albert Soboul, op. cit., pp. 286-9.
  39. A bibliografia sobre essa fase da Revolução Francesa é imensa e não para de crescer. Apenas a título de orientação, citamos o trabalho de Roger Dupuy, La République jacobine (A república jacobina) (Paris: Éditions du Seuil, 2005), que nos ajudou na compreensão da dinâmica dos acontecimentos do período.
  40. Cf. Patrice Gueniffey, La Politique de la terreur (A política do terror), Paris: Gallimard, 2000; e François Furet, Penser la révolution (Pensar a revolução), Paris: Gallimard, 1978.
  41. Cf. Michael Walzer, op. cit.; e Bronislaw Baczko, Politiques de la Révolution Française (Políticas da Revolução Francesa), Paris: Gallimard, 2008.
  42. Cf. Roger Dupuy, op. cit., p. 261.
  43. Ibidem, p. 264.
  44. Sobre a vida de Robespierre, cf. Gérard Walter, Maximilien de Robespierre, Paris: Gallimard, 1989.
  45. Robespierre apud Gérard Walter, op. cit., p. 548.
  46. Gérard Walter, op. cit., pp. 550-1.
  47. Ibidem, p. 552.
  48. Ibidem, p. 555.
  49. Abordamos a questão do lugar da virtude no pensamento de Robespierre mais longamente em: Newton Bignotto, As aventuras da virtude, São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  50. Bronislaw Baczko, op. cit. No capítulo iv, chamado justamente “Comment est fait un tyran?” (Como se faz um tirano?), o autor mostra como a imagem de Robespierre, depois de sua morte, foi associada às figuras mais terríveis da história europeia.
  51. Ibidem, p. 149.
  52. Roger Dupuy, op. cit., pp. 261-2.
  53. Gérard Walter (Org.), Actes du tribunal révolutionnaire (Atos do tribunal revolucionário), Paris: Mercure de France, 1986.
  54. Discutimos essa questão em: Newton Bignotto, O tirano e a cidade, São Paulo: Discurso Editorial, 1998.
  55. Robespierre, “Discours du 12 août 1793” (Discurso de 12 de agosto de 1793), apud Gérard Walter, Maximilien de Robespierre, op. cit., p. 557.
  56. Robespierre, “Discours du 5 nivôse an ii/25 décembre 1793, à la Convention” (Discurso de 5 Nivoso do ano ii/25 de dezembro de 1793, à Convenção), Pour Le Bonheur et pour la liberté (Pela felicidade e pela liberdade), Paris: La Fabrique, 2000, p. 274.
  57. Ibidem, p. 275.
  58. Ibidem, p. 277.
  59. Robespierre, “Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention nationale dans l’administration intérieure de la République. 18 pluviôse an ii/5 février 1794” (Sobre os princípios de moral política que devem guiar a Convenção nacional na administração interna da República. 18 Pluvioso do ano II/5 de fevereiro de 1794), op. cit., pp. 287-8.
  60. Ibidem, p. 290.
  61. Ibidem, p. 291.
  62. Ibidem, p. 296.
  63. Maquiavel, “Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio” [1518], Opere, vol. 1, iii, Torino: Einaudi-Gallimard, 1997, p. 1. Edição brasileira: Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio, São Paulo: Martins Editora, 2007.
  64. Robespierre, “Sur les principes de morale politique… ”, op. cit., pp. 296-7.
  65. Ibidem, p. 297.
  66. Ibidem.
  67. Ibidem, p. 300.
  68. Roger Dupuy, op. cit., p. 307.
  69. Edgar Quinet, La Révolution, Paris: Bellin, 1987.
  70. Bronislaw Baczko, “The Terror before the Terror? Conditions of Possibility, Logic of Realization”, em: Keith Baker, op. cit., pp. 25-32.
  71. Patrice Gueniffey, op. cit., p. 24.
  72. Ibidem, p. 32.
  73. Ibidem, p. 28.
  74. Michel Vovelle, Jacobinos e jacobinismo, Bauru: Edusc, 2000.
  75. Referimo-nos aqui ao já citado estudo Histoire de la violence.
  76. Cf. Paul Avrich, Los anarquistas rusos (Os anarquistas russos), Madrid: Alianza Editorial, 1974.
  77. Cf. Georges Sorel, Réflexions sur la violence, Paris: Librairie Marcel Rivière, 1946. Edição brasileira: Reflexões sobre a violência, Petrópolis: Vozes, 1993.
  78. Hannah Arendt, Diário filosófico, 1950-1973 (Diário filosófico, 1950-1973), Barcelona: Herder Editorial, 2006, p. 671.
  79. Idem, Origens do totalitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 513.
  80. Ibidem, p. 515.
  81. Ibidem, p. 517.
  82. Ibidem.
  83. Ibidem, p. 519.
  84. Idem, “Da violência”, Crises da república, São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 101.
  85. Ibidem, p. 123.
  86. Ibidem, p. 128.
  87. Ibidem, p. 129.
  88. Idem, Essai sur la Révolution (Ensaio sobre a Revolução), Paris: Gallimard, 1967, pp. 25-ss.
  89. Para uma visão de conjunto do pensamento anarquista, ver Irving Horowitz, Los anarquistas (Os anarquistas), Madrid: Alianza Editorial, 1975, 2 vols.
  90. Errico Malatesta apud Vernon Richards, Malatesta, vida e ideas (Malatesta, vida e ideias), Barcelona: Tusquets Editor, 1977, p. 73.
  91. Hannah Arendt, “Da violência”, op. cit., p. 130.
  92. Saint-Just, “Rapport au nom du Comité de Salut Public sur le gouvernement – 10 octobre 1793” (Relatório em nome do Comitê de Salvação Pública ao governo – 10 de outubro de 1793), Œuvres complètes (Obras completas), Paris: Gallimard, 2004, p. 629.
  93. Ibidem, p. 637.
  94. Idem, “Rapport au nom du Comité de Salut Public et du Comité de Sûreté Générale –15 avril 1794” (Relatório em nome do Comitê de Salvação Pública e do Comitê de Segurança Geral – 15 de abril de 1794), op. cit., p. 760.
  95. Hannah Arendt, “Da violência”, op. cit., p. 131.

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