2015

Violência sem paixão

por Isabelle Delpla

Resumo

Apesar das aparências, a relação entre violência e paixão não é evidente. Se ela se torna novamente um objeto de pesquisa, é após um eclipse de décadas, o que é preciso esclarecer

De fato, a explicação da violência – ordinária ou extraordinária – pelas paixões revelou-se pouco convincente. Por isso, ela foi deixada de lado pelos pesquisadores de ciências sociais e pelos filósofos.

Desde os anos 1960, foi a figura de uma violência sem paixão que se impôs. Ela é simbolizada por Adolf Eichmann, que se tornou o representante do crime burocrático produzido por um sistema técnico e desumanizado.

Violência sem paixão, intenção ou homens.

A visão de uma violência fria é, no entanto, igualmente insuficiente e ilusória. Por isso, convém superar a dicotomia entre violência passional e fria, e com ela a ideia de crime universal ou universalizável. A partir daí, não se sustentam as instituições da premeditação e da passionalidade. Esta porque se fundamenta na dominação masculina e na romantização da paixão; aquela porque, em vez de caracterizar o crime burocrático ou moderno, constitui não somente uma espécie de defesa dos criminosos de Estado, como também a retomada de uma forma de processo metafísico cujo caráter divino nega o mal e, com isso, pressupõe a superioridade do pensamento filosófico.

Oculta-se assim o homem de carne e osso, com sua arrogância, sua crueldade e seu desprezo. Ele que humilha e tortura. Isso que é parte da história do século 20.


Apesar das aparências, a conexão entre violência e paixão não é evidente. Se ela[1] se torna[2] novamente um objeto de pesquisa de primeiro plano, é após um longo eclipse de várias décadas. É esse eclipse que eu gostaria de esclarecer e ajudar a ultrapassar. De fato, a explicação da violência pelas paixões revelou-se muito fraca e pouco pertinente para esclarecer as violências ordinárias ou extraordinárias. Por conseguinte, ela foi deixada de lado pelos pesquisadores de ciências sociais e pelos filósofos. Desde os anos 1960, foi a figura de uma violência sem paixão que se impôs. Ela é simbolizada por Adolf Eichmann como representante de um novo tipo de crime burocrático produzido por um sistema técnico e desumanizado. Seriam crimes sem paixão, sem intenção, sem homens.

No entanto, essa visão de uma violência sem paixão é igualmente insuficiente e ilusória. A bem dizer, convém desembaraçar-se da alternativa entre violência passional e violência sem paixão. Essa alternativa é uma construção enganadora e um obstáculo à compreensão dos fe­ nômenos. Esta contribuição propõe-se a analisar algumas fontes e suas consequências.

DIÁLOGO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

Para tanto me servirei de um diálogo entre filosofia e ciências sociais, particularmente necessário para abordar a violência política. Nesse domínio, mais que em outra parte, deve-se evitar o gesto platônico de unificação do múltiplo e a doença filosófica da generalização, tão justa­ mente criticada por Wittgenstein. Pois há múltiplas formas de violência e de violência política. Seria ilusório buscar um conceito único. Quais paixões estão ou não estão presentes nessas violências? Há crimes de ódio, de fanatismo, mas o medo paranoico do próprio desaparecimento suscita também os assassinatos de massa, como o genocídio dos tútsis pelos hutus em 1994. No entanto, não foi por medo ligado à sobrevivência que o general alemão von Trotta decidiu o massacre dos hereros na Namíbia, em 1904. Há assassinatos em massa praticados por terror, outros por vingança ou orgulho dominador. Alguns são cometidos na euforia da vitória, como em Srebrenica, na Bósnia, em 1995; outros, na amargura da derrota, como na aldeia francesa de Oradour, em 1944. Foram as paixões determinantes? E, se sim, quais foram elas?

Não é a filosofia enquanto tal que pode dizer. É aos estudos empíricos das ciências sociais que cabe estabelecer as dinâmicas dessas violências que podem variar segundo os lugares, as épocas e os contextos. Mas o que é uma paixão? Onde classificar o fanatismo, no excesso passional ou no excesso ideológico? Onde se encontra a diferença entre sentimentos e concepções do mundo? Conforme as escolhas teóricas, pode-se descrever um mesmo comportamento de maneiras diversas, pondo o acento nas paixões, nos interesses ou nas ideologias. E é isso que a filosofia pode discutir, isto é, escolhas teóricas de delimitação, de classificação ou mesmo de eliminação das paixões.

Para maior clareza, informo que há 15 anos desenvolvo pesquisas sobre as violências de guerra e a justiça internacional através desse diálogo entre filosofia e ciências sociais. Assim, realizei várias pesquisas de campo na Bósnia-Herzegovina sobre as vítimas da guerra, as testemunhas e os criminosos no Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia[3].

Também participei, com colegas historiadores, de um estudo sobre as violações em tempos de guerra[4]• Minhas reflexões vão se apoiar, portanto, em pesquisas empíricas e teóricas.

Após esse preâmbulo, voltemos à oposição entre violência essencialmente passional e violência sem paixão. Para ajudar a ultrapassá-la, mostrarei que ambas, assim como a alternativa entre elas, não são uma descrição dos fenômenos nem uma conceituação neutra. São antes de tudo construções judiciárias que pedem uma teorização da forma do processo.

O PARADIGMA DO CRIME PASSIONAL

Consideremos, em primeiro lugar, a ideia muito comum de que a paixão é a fonte da violência e a raiz do mal. Numa longa tradição que remonta à Antiguidade grega, o indivíduo se torna criminoso ou o homem político se torna um tirano, segundo Platão, quando se deixa dominar pelos desejos e as paixões que o conduzem ao excesso, à desmedida, ao roubo e ao homicídio. As mesmas temáticas aparecem, sob prismas religiosos ou artísticos, na tragédia e na literatura: Nero mata Britânico e sua própria mãe por uma sede devoradora de poder, Otelo mata Desdêmona por ciúme, Medeia mata seus filhos para se vingar do pai deles, o amor culpado de Pedra por seu enteado a conduz ao pior. A paixão é esse Amok descrito por Stefan Zweig na novela de mesmo nome, uma força obscura, delirante, incontrolável, que arrasta tudo em sua passagem e conduz à perdição os indivíduos e seus próximos.

Para simplificar: nessa concepção, um mundo sem paixão ou um mundo de paixões sabiamente controladas pela razão seria um mundo sem violência. Ao contrário, um mundo de paixão cairia necessariamente na violência mortífera. O crime passional é então a própria essência do crime, já que a violência criminal (em particular o homicídio) tem suas raízes nas paixões humanas.

Mas tais descrições ou a explicação da violência pelas paixões não explicam nem a violência extraordinária nem a violência ordinária. Dois fenômenos completamente diferentes o atestam: os crimes políticos de massa, que já evocamos, mas também os crimes passionais privados e individuais. Pois o que é, precisamente, um crime passional? Em sua representação comum, consiste em matar a pessoa amada por amor ou ciúme. E, sempre nas representações comuns, esses crimes seriam mais frequentemente cometidos por mulheres.

O crime passional é com frequência o objeto de legislação específica, pois se considera que, nos casos extremos, a paixão amorosa faz perder o controle de si mesmo. Ele costuma ser menos severamente punido que outros tipos de assassinato, seja em virtude da lei, seja como circunstância atenuante[5]

UMA LEGITIMAÇÃO DA DOMINAÇÃO MASCULINA

Todavia, desde mais de vinte anos para cá, pesquisas de inspiração feminista lançaram uma nova luz sobre esses crimes ditos passionais, que são antes uma construção judiciária e social na qual a paixão serve de pretexto. Podemos mencionar, por exemplo, uma série de trabalhos realizados na França pelas psicólogas Patricia Mercader e Annik Houel e pela socióloga Helga Sobota[6]

O exame das circunstâncias de 337 homicídios passionais mostra uma forte assimetria dos atores e das motivações. Em vez de serem praticados por mulheres dominadas pela paixão, em sua grande maioria foram cometidos por homens contra suas mulheres e mesmo contra seus filhos. Em 78% dos casos, o assassino é um homem. Para os 22% dos casos em que são as mulheres que matam, importa considerar as circunstâncias do ho­ micídio. Em sua maior parte, os homens atribuem seu gesto ao ciúme ou à recusa de perder a mulher, enquanto as mulheres invocam a necessidade de pôr fim à tirania do parceiro. Aliás, os homens frequentemente passam ao ato após a separação ou a partida mulheres agem antes no quadro de uma coabitação em curso da mulher, enquanto as. Para simplificar, os homens matam para manter as mulheres, e as mulheres matam para se desembaraçar dos homens e se proteger da violência deles. No encadeamento dos fatos, tudo começa com a violência masculina …

O crime passional derivaria então das tendências exageradamente patriarcais de alguns homens a quererem possuir e dominar inteiramente sua mulher e seus filhos. A violência feminina – quando se manifesta – seria apenas uma reação a esse abuso.

O crime passional pertence, na verdade, à categoria menos romântica das violências conjugais. “Ele faz parte de um conjunto de dispositivos legais que, como o crime de honra, legitima a violência dos homens e lhes dá o direito de matar suas esposas”[7]• A paixão não passa então, no melhor dos casos, de um epifenômeno, e falar de crime passional equivale a eufemizar e dissimular uma dominação masculina. Ele atribui uma causa apenas psicológica e excepcional a uma violência geralmente crônica e específica das relações de gênero. Aliás, somente a paixão e o ciúme amorosos aparecem como circunstâncias atenuantes ou móbiles aceitáveis de crimes passionais. Por mais violentos que sejam, o ciúme profissional e o amor voraz pelo poder jamais poderiam ser invocados para alegar um crime passional.

Insistir na paixão é descartar as dimensões sociais, institucionais e econômicas da violência. Nada de surpreendente nisso se considerarmos o modelo clássico dos desejos e da paixão, os de Nero, de Otelo, de Medeia ou do tirano de Platão. Existe aí uma visão monocausal e dessocializada

da violência passional. A paixão é vista como fora da norma e excepcional, como um fenômeno individual e não coletivo, no qual se age, na maioria das vezes, sozinho e em segredo.

Trata-se de uma concepção ainda mais redutora e superficial quando é a mesma pessoa que experimenta a paixão e que comete o crime. Aqui a paixão não é uma construção social, e a violência não aparece como um fator de socialização.

Então não é nada surpreendente que a paixão tenha se tornado uma construção judiciária. Com efeito, para que haja crime é preciso haver três elementos: uma definição legal (não há crime sem lei), um elemento material (não há homicídio sem cadáver) e um elemento intencional (não há crime sem intenção, quando não se trata de um simples acidente ou quando o autor não é responsável por seu ato). É preciso, pois, determinar um motivo, e os mais comuns são os interesses e as paixões: atrativos de ganho, ciúme, vingança.

A paixão pode então ter uma posição dupla num processo judicial: de um lado, como motivo do crime, permite imputar o crime a um indivíduo. Ora, a individualização da responsabilidade está no fundamento do direito penal: julgam-se indivíduos e não sistemas e estruturas. A paixão pode então ser um meio de acusação. Mas a ideia de que a paixão seria incontrolável pode, por outro lado, servir à defesa do acusado para atenuar sua responsabilidade.

Evidentemente, esse quadro redutor das paixões foi complexificado e enriquecido na história da filosofia ao se levarem em conta as paixões mais ordinárias e coletivas: o medo é a paixão dominante para Hobbes; para os jansenistas, o egoísmo e o amor-próprio são a raiz de todas as nossas paixões, mas também de nossas virtudes aparentes; Bayle, Locke e Hume mostraram os perigos políticos da intolerância e do fanatismo religioso.

OS CRIMES DE MASSA

Mesmo enriquecido, porém, esse quadro das paixões não explica a violência política organizada. As explicações pelo ódio, a intolerância e o antissemitismo não fizeram compreender a evolução das perseguições nazistas e a decisão de eliminar os judeus. O mesmo acontece com as abordagens psicológicas ou psicanalíticas em sentido amplo (como a ideia de personalidades autoritárias, de Adorno). Ao contrário, foi pela análise do sistema burocrático e das dinâmicas de poder que os historiadores avançaram no conhecimento e na explicaçãa[8].

O que é verdade para o nazismo o é também para outras situações menos extremas, como a purificação étnica na ex-Iugoslávia. Por ocasião da guerra, de 1991 a 1995, alguns diplomatas a explicaram por ódios ancestrais entre as diferentes nações, ódios que teriam sido abafados sob o po­ der de Tito e que teriam emergido com sua morte[9]. A violência da guerra era então apresentada como a consequência lógica de forças psicológicas clássicas (o ódio), acrescidas pela psicanálise (o retorno do recalcado). Especialistas em ciências sociais não cessaram de criticar essa visão simplista, mostrando que ela era duplamente enganadora: por um lado, o ódio não era o sentimento dominante entre as nações da ex-Iugoslávia; por outro, o esfacelamento desse país tinha causas políticas e econômicas mais profundas[10](crise econômica, desequilíbrios demográficos e econômicos entre as repúblicas, desigualdades de repartição dos poderes na liga comunista, continuação do comunismo pelo nacionalismo). Aliás, os promotores do Tribunal Penal Internacional buscam mais reconstituir um sistema de poder e elos de comando do que sondar a psicologia dos acusados.

Sendo enganadora a explicação pelas paixões, há então a tentação de rejeitar inteiramente o paradigma do crime passional. Mas até que ponto se deve ir na ideia de um crime sem paixão nem emoção? Colocar entre parênteses as paixões em proveito de análises sistêmicas pode ser um método excelente. Mas algo bem distinto é fazer disso um ponto de vista ontológico ou psicológico sobre um novo tipo de criminoso. Pois a ideia de um crime de massa sem paixão nem emoção é tão ilusória quanto a ficção inversa do crime passional.

Foi o que mostrei num livro sobre o processo de Eichmann: Le Mal en proces: Eichmann et les théodicées modernes (O mal em julgamento: Eich­ mann e as teodiceias modernas), publicado em 2orr. Adolf Eichmann, oficial da ss, era um dos principais organizadores da solução final, a destruição dos judeus pelos nazistas. Ele se ocupava, em particular, da prisão e da deportação de judeus para os campos de extermínio. Encarregado por Heydrich da organização da conferência de Wannsee, em janeiro de 1942, torna-se a seguir o principal organizador da solução final em escala europeia. Na Hungria, em 1944, para poder prosseguir sua tarefa, ele se opôs inclusive a Himmler, que lhe deu a ordem de deter as deportações. Após sua captura na Argentina, foi julgado em Jerusalém em 1961.

EICHMANN VISTO POR ARENDT

A herança filosófica de seu processo é inseparável da visão dele dada por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém. Ela viu Eichmann não como um monstro, mas como um ser medíocre, opaco e insignificante, que obedece cegamente às ordens, não tendo nada de especial a não ser seu zelo e seu carreirismo. Ele encarna para Arendt a banalidade do mal, um tipo novo de crime e de criminoso, não mais matadores, mas burocratas. Segundo Arendt, não sendo nem diabólico nem monstruoso, Eichmann não tinha sequer motivações nem intenções perversas ou monstruosas. Ele não pensava, isto é, não refletia, não julgava, não discernia o bem e o mal. Estava, segundo ela, encerrado em clichês que lhe ocultavam a realidade e o separavam dos outros. A raiz do mal, sua banalidade, consistiria precisamente nessa ausência de pensamento.

Arendt observa assim que “não se consegue descobrir em Eichmann a menor profundidade diabólica ou demoníaca”[11]. E ela explica: “Só falei da banalidade do mal no nível dos fatos, pondo em evidência um fenômeno que chamou a atenção durante o processo. Eichmann não era nem um lago nem um Macbeth […]”[12],nem um Ricardo m, e não lhe teria passado pela cabeça fazer o mal pelo mal. Segundo ela, Eichmann não é nem um perverso, nem um fanático, nem um iluminado, tendo mais o aspecto de um clown que de um demônio. Por essa banalidade, ela indica, ao mesmo tempo, uma normalidade humana, psicológica e jurídica: não se tratava de um monstro e os psiquiatras o julgaram normal. Eichmann não era nem louco nem irresponsável.

Mas Arendt não se contenta em sublinhar essa normalidade e essa aparência opaca de burocrata obtuso, tema que, aliás, não tinha nada de iconoclasta, por ser um lugar-comum jornalístico da época. Ela vai mais longe e apresenta Eichmann como uma coleção de defeitos e de defi­ ciências. Eichmann é essencialmente qualificado por suas faltas. É descrito como um fracassado, socialmente desclassificado, sem educação e sem cultura, incapaz de tomar iniciativas, incapaz de pensar.

Segundo Arendt, Eichmann não seria animado nem por paixões intrinsecamente más e nocivas a outrem (como o sadismo) nem por disposições imorais comuns (como o egoísmo). Não seria tampouco animado por paixões políticas como o fanatismo ou a embriaguez da impunidade. Em suma, não é animado nem por motivos repreensíveis nem por “motivos quaisquer, pelo menor movimento de interesse ou de vontade”[13]• Essa visão rasa e inofensiva, estranhamente desmotivada e apolítica de Eichmann, permite a Arendt apresentar a banalidade do mal como em ruptura com a tradição ocidental, para a qual a raiz do mal está nos vícios, especialmente no egoísmo.

A ideia de um Eichmann banal e insignificante favoreceu a de que um genocida potencial estaria latente nos burocratas e executivos zelosos, talvez até em cada um de nós. Tornou-se uma visão do mal dos tempos modernos: esse Eichmann, movido por uma racionalidade puramente instrumental, virou assim o símbolo de uma desumanização técnica da morte, de crimes sem homens, os crimes de massa não sendo mais que uma questão administrativa, logística e técnica.

Essa representação dos crimes de massa com a ideia da banalidade do mal tornou-se um lugar-comum na filosofia e nas ciências sociais, até ser tomada como uma evidência.

No entanto, ela é falsa e enganadora. O Eichmann de Arendt não é o Eichmann histórico, como o mostraram os trabalhos dos historiadores do nazismo[14]• Eichmann não tinha nada de um clown ou de um executor insignificante, sem imaginação, sem iniciativa e intelectualmente limitado.

A ideia de um Eichmann pequeno burocrata, desprovido de convicções ideológicas, que aplica as ordens sem refletir, é um mito. O Eichmann histórico era um homem de recursos, de iniciativa, um notável organizador, negociador e dirigente. Longe de ser um burocrata encerrado num escritório, era um homem de ação e um organizador que percorria a Europa para levar a cabo as expulsões e as deportações.

O retrato moral de Eichmann segundo Arendt não é, portanto, o do Eichmann histórico, mas uma construção judiciária. Os cronistas judiciários, que se amontoavam às centenas no processo, sublinharam, todos, sua aparência ordinária, nem diabólica nem monstruosa. Toda­ via, eles também viram um ou outros Eichmann revelarem-se durante o processo. Arendt deixou Jerusalém no começo da defesa de Eichmann[15]; mas somente Arendt viu nele um ser caracterizado por suas faltas. Viu apenas sua aparência insignificante que, aliás, era fruto do trabalho com seu advogado. Não percebeu que esse papel era um arranjo da defesa e deixou-se levar pelas aparências judiciárias.

E isso principalmente porque ela não assistiu ao longo contrainterrogatório no qual Eichmann surpreendeu a audiência por sua resistência, sua vivacidade e presença de espírito. Comparado ao Eichmann dos historiadores contemporâneos ou àquele dos cronistas da época, o Eichmann de Arendt é um personagem descontextualizado, privado da espessura do homem de ação, da dinâmica da história do nazismo e mesmo da dinâmica do processo judicial.

Quem é esse Eichmann desprovido de pensamento e de paixão? É, primeiro, o avesso do retrato do promotor e a reprodução da defesa de Eichmann; é também uma construção filosófica e a retomada da forma metafísica do processo judiciário.

O AUTÔMATO OBEDIENTE COMO CONSTRUÇÃO JUDICIÁRIA

Ele é, primeiro, o avesso do retrato do promotor: A acusação havia pintado Eichmann como criminoso de um novo gênero que exerce seu ofício atrás de uma mesa, mas também como o arquiteto-chefe da solução final, animado por um antissemitismo profundo e consubstancial que simbolizaria aquele inerente à Alemanha, um ser sanguinário, satânico, mentiroso, perverso, imbuído de uma sede intrínseca do mal, do prazer de destruir. O promotor ampliou indevidamente as acusações contra Eichmann para reconstruir uma narração global da destruição dos judeus pelos nazistas. Arendt se opunha fortemente ao governo de Israel, ao promotor e ao uso político do processo. Seu retrato de Eichmann como homem banal é o avesso do retrato do promotor e mostrou-se tão caricatural por carência quanto o da acusação o era por excesso. Para melhor se opor à visão do promotor, ela finalmente reproduziu a defesa de Eichmann sem perceber que esta também era uma construção judiciária.

A imagem de um Eichmann que não pensa é, de fato, uma criação da defesa de Eichmann. É a Eichmann que devemos creditar as temáticas principais da banalidade do mal que criaram, para sua defesa, esse autômato obe­ diente, sem emoção nem pensamento.

Como todos os acusados, Eichmann tentou negar tudo: negar o crime, ou sua participação, ou sua intenção criminosa. Mas, diante da massa de documentos assinados por seu próprio punho, ele podia negar apenas o elemento intencional do crime. Retomando a estratégia de defesa dos nazistas acusados em Nuremberg, ele alegou, portanto, obediência cega às ordens, transferindo toda decisão criminal a seus chefes. No processo, Eichmann nega assim o motivo do crime e se defende de todo antissemitismo e de qualquer intenção de destruição dos judeus. Reconhece apenas ser cúmplice e instrumento nas mãos de outrem, para evitar ser reconhecido como autor do crime. Toda a sua estratégia consiste em se apequenar, em minimizar sua responsabilidade e em apresentar-se como simples peça de engrenagem na máquina, que nunca tomava iniciativa e aplicava as ordens de outrem. Forçado a reconhecer que assinou um documento, disse que sua assinatura equivalia a um carimbo automático num procedimento burocrático. Como poderia, medíocre burocrata que era, ser autor desse crime que o ultrapassa? Ele se apresenta assim como encerrado num escritório, cercado de documentos, distante dos acontecimentos e das vítimas.

Compreende-se o interesse de sua defesa em apequená-lo e distanciá-lo de seus crimes e de suas vítimas, mas por que negar qualquer emoção? A chave desse pretenso crime sem paixão se encontra nas acusações que pesavam contra ele. Acusado de crime contra o povo judeu, Eichmann devia primeiro negar todo ódio antissemita e toda disposição maléfica que teriam mostrado sua intenção criminosa. Assim, ele se refugiou por trás da obediência, como o fizeram também os acusados de Nuremberg ou da ditadura na Argentina. Ora, uma estratégia clássica de defesa pela obediência às ordens supõe que nunca se tenha demonstrado entusiasmo ou iniciativa.

Podia ele ir mais longe e alegar que, ao contrário de ser entusiasta, tinha repugnância por sua tarefa e detestava o assassinato de massa? Foi precisamente o que ele tentou fazer apresentando-se como um homem essencialmente virtuoso, sensível, horrorizado à visão do sangue e dos massacres. Eichmann alegou então que havia uma cisão entre seu eu físico, público, que obedecia maquinalmente às ordens, e seu ser íntimo, subjetivo, privado, que tinha sentimentos opostos à sua função.

Essa estratégia de defesa podia lhe dar a simpatia dos juízes (pelo menos era o que ele esperava), mas logo se revelou uma armadilha. De fato, desde os processos de Nuremberg e na jurisprudência israelense, a obediência às ordens não era mais considerada como uma circunstância atenuante se o acusado soubesse que as ordens eram manifestamente ilegais. E o critério da ilegalidade não era político ou jurídico, já que esses crimes podiam ser ordenados ou caucionados pelo Estado. O critério era moral: a obediência às ordens não podia mais servir de defesa se estas aparecessem como claramente imorais a uma consciência humana. Por conseguinte, quanto mais Eichmann se apresentava como um ser moral e sensível que tinha horror dos crimes, mais ele enfraquecia sua defesa pela obediência às ordens.

Eichmann mudou então seu ângulo de defesa e recusou-se a falar de sua consciência moral. O promotor o interrogou insistentemente para saber o que ele pensava da posição de Rudolph Hess, o comandante de Auschwitz, e o que teria feito em seu lugar. Eichmann recusou-se a responder e refugiou-se atrás da interioridade de suas emoções e de seus pensamentos. “Eu me examinei e me julguei”, ele disse. “E o que concluiu?”, perguntou-lhe o promotor. “Meus sentimentos privados são incomunicáveis e minha consciência privada só é acessível a mim”, respondeu Eichmann. Ele retomava assim argumentos bastante clássicos na representação filosófica da consciência desde Descartes.

Exasperados por esse acusado que tergiversava e não se deixava pegar, os juízes tentaram outra tática em seu interrogatório final. “Se você não pode nos dizer o que lhe diz sua consciência”, disse-lhe o juiz Raveh, “é porque há um Eichmann privado que podia ter alguma reserva mental em relação aos crimes”. De maneira ainda mais direta, o juiz Landau o colo­ cou diante da seguinte escolha, estritamente limitada a três possibilidades: “No momento em que se encarregou da solução final”, perguntou-lhe o juiz, “você aprovava os crimes, você os desaprovava ou era indiferente?”. Eichmann ficou encurralado. O que quer que respondesse condenaria a si próprio: se dissesse que os aprovava, compartilharia o elemento intencional dos crimes e então era culpado de crime contra o povo judeu; se os desaprovasse, minaria então a defesa pela obediência às ordens; se dissesse ser indiferente, condenar-se-ia humana e moralmente, pois que ser humano poderia ser indiferente à morte de milhões de pessoas, mulheres e crianças? E Eichmann queria também ganhar a batalha da história e oferecer de si mesmo uma imagem honrosa para sua família e para a posteridade. Acuado, Eichmann encontra uma nova escapatória e responde ao juiz: “Eu não pensava”. Puro autômato, apresenta-se como desprovido de opinião, de consciência, de julgamento, de emoções. Portanto, esse Eichmann que não pensa é uma criação judiciária. Eichmann pensava em sua defesa havia 15 anos, escreveu centenas de páginas após a guerra e travou em Jerusalém a última batalha para defender-se sem contradizer­se. E sabemos, através de seus escritos e entrevistas, que antes de ser capturado ele já tinha considerado vários tipos de defesa, inclusive a das olheiras e do espírito obtuso.

A DEFESA DOS ACUSADOS DO TPIY

Darei outro argumento, mais indireto, em apoio à ideia de que a peça de engrenagem na máquina, a ideia de um sistema totalitário mecânico, é claramente uma construção judiciária. Um fenômeno me intrigou por muito tempo em minhas pesquisas de campo. A ideia da peça de engrena­ gem na máquina, do crime burocrático e logístico, tornou-se tão comum que me espantei de não encontrá-la nos criminosos de guerra condenados no Tribunal Penal Internacional. No momento do julgamento ou em conversas comigo, nenhum deles alegou para sua defesa que era apenas uma peça de engrenagem na máquina, que era o sistema e não ele o responsável. Mais espantoso ainda, não acusavam uns aos outros.

Inversamente, o argumento do crime logístico, em que os transportes se tornam decisivos, não era mais invocado pela defesa, à maneira de Eichmann que alegava ocupar-se apenas dos trens e não dos judeus. Ao contrário, esse argumento foi usado pela acusação. Em Srebrenica, os promotores serviram-se dos registros de ônibus para mostrar a organização e o planejamento do crime.

Como explicar então a diferença? A resposta é muito simples: é preciso levar em conta as acusações que pesam contra os acusados e as provas disponíveis. Em Haia, todos eram acusados de iniciativa criminosa comum e, com frequência, vários estavam no banco dos acusados. Além disso, diferentemente do tribunal de Jerusalém, que dispunha dos arquivos do tribunal de Nuremberg, o tribunal de Haia não tinha base de prova alguma. Tudo estava para ser estabelecido. Os acusados de Haia, portanto, estavam numa situação muito diferente da de Eichmann (sem considerar aqui a diferença manifesta de amplitude e de gravidade dos crimes). Eichmann estava sozinho no banco dos acusados e tinha interesse em se esconder atrás de um sistema já provado, para atenuar sua responsabilidade. Já os acusados de Haia não tinham interesse nenhum em alegar o sistema ou a peça de engrenagem nem em acusar os outros, pois teriam então provado o sistema, a máquina, a implicação dos outros. Teriam assim contribuído para acusar a si mesmos.

Portanto, em vez de ser uma essência do crime moderno e burocrático, a ideia de peça de engrenagem na máquina e de crime burocrático é antes uma construção judiciária relativa a acusações e provas.

A FORMA METAFÍSICA DO PROCESSO

A ideia do crime sem paixão nem intenção é o produto da forma judiciária do processo. Vamos mais longe: é também o produto de uma forma metafísica do processo, isto é, uma moderna teodiceia. O que é uma teodiceia? Essa palavra inventada pelo filósofo Leibniz designa o processo em que Deus é acusado de ser o autor do mal. Os filósofos geralmente se colocaram na posição de advogado de defesa ou de juiz para mostrar que Deus não era culpado do mal no mundo. Num brilhante opúsculo, o filósofo Immanuel Kant ridicularizou essas tentativas de teodiceias, sempre frustradas e renovadas[16]• Ele mostrou que os filósofos, acreditando fazer metafísica, apenas replicavam as estratégias de defesa dos criminosos nos processos.

Como os advogados, os filósofos jogam com três possibilidades de defesa. A primeira consiste em dizer que o mal não existe, que não há homicídio ou, em termos filosóficos, que há realmente crimes, mas que o mal é um não ser, isto é, não tem a realidade de um ser, que Satã ou

o diabo não existe. A segunda possibilidade de defesa consiste em dizer que o mal é inevitável e que, portanto, não é imputável a uma vontade humana. A terceira estratégia sustenta que o acusado é inocente e que outro é o culpado.

Eichmann também se serviu das três estratégias e tentou, é claro, acusar os outros. O mecanismo burocrático é a versão moderna da segunda estratégia de defesa, ou seja, o caráter inevitável do mal. E, como ele não podia negar os crimes, restava-lhe negar o mal em si: assim, a banalidade do mal, segundo meu parecer, não é senão a retomada da ideia do mal como não ser, isto é, a primeira estratégia de defesa. Em outros termos, é a retomada da velha ideia platônica ou socrática de que ninguém é mau voluntariamente, mas apenas por falta de conhecimento ou de pensamento. É a retomada da defesa de Deus pela ideia do mal como não ser. Esse Eichmann que não pensa, esse retrato em negativo, como uma coleção de carências ou de faltas, se esclarece se vemos Eichmann como a pró­ pria encarnação do não ser do mal. Ou seja, não como um personagem histórico, mas como um personagem metafísico.

De fato, se Eichmann não pensa, o pensamento é salvo e a filosofia pode nos proteger do mal. E, ao ler os textos de Arendt, fica claro que ela buscava salvar a filosofia, o pensamento e a cultura alemães e recusava qualquer tentativa de encontrar nessa filosofia e nessa cultura as raízes do nazismo[17]• Se Eichmann não pensa, pode-se então traçar uma linha clara entre os alemães e até mesmo entre os nazistas. Os que pensam, como Heidegger, nada têm a ver com o mal, já que esse mal está na ausência de pensamento. E nós, os filósofos que pensamos, estamos protegidos do mal. Não surpreende que esse tipo de raciocínio tenha obtido grande sucesso entre os intelectuais, pelo menos na França.

Aliás, essa necessidade de salvação do mal é comum. Como todos os espectadores do processo Eichmann, Arendt reagiu: frente a um acusado insignificante e tergiversador, todos buscaram saber o que lhe faltava: alguns pensaram que era o caráter, outros, a coragem cívica, Arendt, o pensamento… Em todos os casos, as respostas nos informam sobre os valores mais altos aos olhos de cada um, mas certamente não sobre o próprio Eichmann. Portanto, que Arendt tenha sentido a necessidade de crer na superioridade do pensamento para seu próprio consolo e sua salvação é compreensível, mas nos guardemos de acreditar que ela falava de Eichmann ou do nazismo quando falava apenas de si mesma.

SAIR DA ALTERNATIVA DO DIABÓLICO E DO BANAL

Guardemo-nos também de projetar sobre os problemas da violência política categorias metafísicas que são antes um obstáculo à compreensão. Mas como sair dessa alternativa redutora entre o diabólico e o banal que continua sendo a herança de uma concepção metafísica ou teológica do mal como ser ou não ser?

Em primeiro lugar, desembaraçando-se de uma concepção grandiosa ou romântica da paixão e do mal. Os genocidas são homens comuns, mas, para compreender como esses homens podem cometer crimes extraordinários, não se deveria comparar Eichmann com lago ou Satã. Certamente, o retrato de Eichmann rompe com a representação de Nero, ou do tirano segundo Platão, como um ser ávido, voraz, arrebatado pelos desejos mais incontroláveis e violentos, mas essas são construções literárias e não homens políticos reais. A reflexão filosófica sobre o mal político não se limita a figuras teológicas ou literárias do mal. Arendt permaneceu prisioneira de referências literárias ou religiosas, deixando de lado, aliás, toda uma tradição de filosofia política que, de Tucídides a Maquiavel, também analisou a frieza da violência política e paixões bem mais complexas que a simples exaltação.

Assim, para esclarecer o caso Eichmann, é preciso restituir mediações e compará-lo com seus potenciais homólogos: os acusados de Nuremberg, responsáveis militares, chefes de serviço secreto ou da polícia responsáveis por vastos pogroms ou repressão política. Ora, a experiência da violência por militares e policiais pode ser inteiramente prosaica: o mal pode ser visto como um trabalho sujo, pesado, um encargo opressivo ou uma dura necessidade, e não como uma transgressão romântica na qual eles se lançariam com a voracidade de um Nero ou do tirano de Platão. Que Eichmann, diferentemente do tirano segundo Platão ou de Nero, não tenha sido movido pelo atrativo de ganho ou pelo ódio parricida não implica que fosse desprovido de paixões. Aliás, é o que mostra a notável biografia de Eichmann escrita pelo historiador David Cesarani[18]

Cesarani não busca analisar como alguém se torna Eichmann. Eichmann não estava essencialmente, nem mesmo culturalmente, predestinado a tornar-se um ator determinante, intransigente e entusiasta do genocídio dos judeus, mas acabou se tornando. Cesarani restitui a parte de contingência do percurso de Eichmann, feito de uma série de escolhas pessoais e profissionais que o levaram finalmente a defender as posições mais radicais. Ele descreve a evolução de um homem no contexto da evolução de um sistema.

Seu livro busca desmitificar as interpretações que acabaram por mascarar a complexidade do Eichmann histórico. Em sua juventude, este não era nem um desclassificado social nem um fracassado, ao contrário das teorias de Adorno, de Reich ou de Arendt, nem um nazista que se filiou ao partido por acidente, nem um burocrata sem brilho que obedece sem tomar iniciativa. Foi no serviço de informação da ss dirigido por Himmler e Heydrich que ele desenvolveu um estilo racional, frio, calculador, objetivo, tecnocrático. Não era nem um ideólogo nem um antissemita histérico, mas isso não o impediu de ser um nazista convicto, que adere totalmente, bem antes da guerra, à visão dos judeus como inimigos da Alemanha, traiçoeiros e perigosos. Seu antissemitismo genérico e frio se baseava numa visão que se queria objetiva e racial do judeu como inimigo por excelência da Alemanha, que devia ser eliminado por necessidade médica e não por inclinação ou ódio pessoais.

Não foi por obediência cega às ordens que ele cumpriu essa tarefa. Poderia ter sido dispensado desse encargo em proveito de outros serviços do Reich. Sua contribuição à solução final deve ser vista dentro da tentativa do seu serviço de conservar essa tarefa na competição entre as agências nazistas. Cesarani sublinha igualmente a importância da própria guerra para explicar a radicalização de Eichmann no quadro de uma radicalização mais geral do nazismo.

Assim, com uma energia obsessiva de não deixar escapar nenhum judeu, com uma intransigência crescente, Eichmann tornou-se um especialista das deportações para os campos de extermínio. Mas, mesmo na Hungria, as escolhas de Eichmann não se deviam apenas a um ódio irracional mas a uma tentativa de explorar os judeus, seus bens e sua força de trabalho.

Sem atribuir a Eichmann traços diabólicos, Cesarani restitui a parte de convicções, paixões ou disposições bem mais inquietantes que o simples zelo: o egocentrismo, a ambição e a intransigência podiam fazer dele um instrumento perigoso no sistema nazista. Ele era movido também por paixões propriamente políticas, um nacionalismo profundo, uma devoção a um ideal de Estado. Revelou-se cada vez mais arrogante, ávido de poder, comprazendo-se em humilhar e dominar os judeus. O poder ilimitado sobre outrem o exalta e o metamorfoseia. Na Hungria, em 1944, manifesta todos os sinais de fanatismo, de corrupção pelo poder e de desagregação moral. Ao restituir essa dimensão política do percurso de Eichmann, Cesarani nos permite sair das discussões estéreis a seu respeito, da alternativa entre o banal e o diabólico ou o monstruoso.

Eichmann, portanto, não era nem um louco nem um robô que obe­ dece às ordens sem refletir, mas conscientemente colocou seus talentos de organizador e de dirigente a serviço do genocídio. Assim, Cesarani pode então concluir que Eichmann escolheu tornar-se genocida, mas que a chave de sua compreensão não se encontra no homem, mas em suas ideias, na sociedade que lhes deu livre curso, no sistema político que as produziu e nas circunstâncias que as fizeram aceitáveis.

Vê-se que as paixões de Eichmann não explicam o nazismo ou sua evolução,já que são igualmente um produto do nazismo, de sua forma­ ção na ss e de sua evolução. Seria o caso então de abster-se delas para explicar a evolução do nazismo? Tudo depende do que se quer explicar e da escala que se adota para fazê-lo. Podemos, obviamente, decidir descartar uma abordagem psicológica para descrever um sistema econômico ou fazer uma sociologia quantitativa dos percursos de carreira dos oficiais da ss ou dos militares e policiais encarregados da repressão nas ditaturas da América Latina. Tudo isso é legítimo, caso se trate de uma questão de método. Mas é preciso ter consciência de que também existem outros métodos e outras abordagens em que importa levar em conta emoções e paixões para esclarecer a evolução dos agentes.

O OUE ESCONDE O CRIME SEM PAIXÃO?

Já insisti sobre o que uma abordagem puramente passional da violência poderia ocultar. Precisamos agora, após esse longo desvio pelo processo Eichmann, ver o que uma abordagem pela violência sem paixão também oculta. A imagem do crime sem paixão, desumanizado, é em grande parte uma construção judiciária da defesa: falar do crime como produto de um sistema, de uma ordem superior, de uma logística fria e desumanizada, era um meio, para os acusados nos processos, de rejeitar sua própria par­ ticipação, sua iniciativa, sua implicação voluntária e pessoal nos crimes. Portanto, ela oculta a parte de exaltação ideológica, nacionalista e racista suscitada pelo nazismo que também inflamou os intelectuais e os filósofos. Ela também oculta a parcela de contingência, de interpretação e de escolha pessoal que existe em toda obediência às ordens: como apontava Wittgenstein, sempre existem várias maneiras de seguir uma regra, mesmo a mais rígida. Também existem várias maneiras de obedecer a uma ordem, pois sempre existem várias maneiras de recebê-la, de interpretá-la ou de pô-la em prática. Sempre há os rádios que não funcionam, uma nova apreciação das circunstâncias. Assim, em Srebrenica, o general Gobilliard ordenou aos capacetes azuis neerlandeses que defendessem acidade, e eles não o fizeram. Então, para defender Zepa, um outro enclave sob sua responsabilidade, ele partiu com alguns homens apenas para opor-se ao general Mladic e defender a população[19]• No caminho, ele recebeu a ordem de dar meia-volta. Ele desligou o rádio e continuou. Ainda que não tenha sido este o único motivo, a maior parte da população de Zepa foi salva. Quando eu lhe perguntei se ele tinha desobedecido às ordens, ele respondeu: “Claro que não, eu somente considerei que estava numa posição melhor para interpretá-las de outra forma”.

Tal visão do crime sem paixão e desumanizado serve igualmente de anteparo à dimensão de crueldade, de tortura, de humilhação pessoal infligida às vítimas. Portanto, ela oculta a implicação humana dos agentes, a dimensão da passagem ao ato e do confronto com as vítimas. Por muito tempo essa visão fria e desapaixonada criou um fosso entre uma história dos carrascos e uma história das vítimas. De fato, as vítimas não se defrontaram com máquinas, mas com homens de carne e osso, com sua arrogância, seu desprezo, sua crueldade e às vezes sua fraqueza.

Essa visão fria e asséptica da violência contribuiu também para ocultar a dimensão dos crimes sexuais, igualmente presente no nazismo. No livro que organizei com colegas historiadores, analisamos os obstáculos que se apresentam à consideração dos estupros em tempos de guerra. De fato, durante muito tempo, a violência sexual e as violações não retiveram a atenção dos historiadores ou dos filósofos; eram um objeto indigno da grande história ou da grande filosofia. Quando muito, isso era considerado como um inevitável problema acessório da guerra, um repouso do guerreiro, um ato de irrupção de desejo entre soldados tomados pela violência do combate. É a versão em tempos de guerra do crime passional em tempos de paz, com a diferença de que essa visão do estupro de guerra considera normal a violência contra as mulheres dos outros, mas não contra sua própria mulher.

A essa visão da violação como expressão das paixões guerreiras se opôs, precisamente, uma visão do crime sem violação nem paixão. A visão do nazismo frio e desumanizado eliminou da guerra a violência extrema, a crueldade, a dimensão do corpo a corpo, não apenas a do combate, mas também a da violência sexual. E isso sobretudo porque a barreira racial supostamente proibia aos alemães tais relações com judias. No entanto, trabalhos de historiadores mais recentes mostraram que não era bem assim e que as perseguições nazistas comportavam igualmente violações e violências sexuais[20].

É preciso, pois, desembaraçar-se da alternativa entre crime passional e violência ou, no que se refere à violação, da alternativa entre pulsões do guerreiro e sistema de perseguições assexuado. As violações e as violências sexuais podem fazer parte de estratégias políticas e militares de intimidação ou de perseguição. E somente quando for abandonada essa alternativa é que pode começar um verdadeiro trabalho de abordagem das ligações entre paixões e violência, capaz de articular os afetos e as estruturas e de considerar que as paixões são também construções sociais sempre suscetíveis de se transformarem, para o pior mas também para o melhor. E isso é especialmente verdadeiro para as paixões mais comuns, pretensamente masculinas ou femininas, não havendo fatalidade na violência masculina como tampouco, eventualmente, na violência feminina.

Nesta contribuição, tentei mostrar de que maneira categorias que a filosofia contemporânea seguidamente considera como universais ou universalizáveis são na verdade duplamente enganadoras. Trata-se de uma visão da paixão como fonte do crime passional ou, ao contrário, de uma visão do crime sem paixão nem intenção. Por um lado, elas são mal formadas em si mesmas. Por outro, ambas se revelam como construções judiciárias – e, mais particularmente, da defesa. A primeira é uma legitimação da dominação masculina que se esconde e se legaliza por trás de uma imagem dessocializada ou romântica da paixão. A segunda, o crime sem paixão, é na verdade uma construção judiciária de defesa dos criminosos de Estado e não uma conceituação dos crimes burocráticos ou um símbolo da modernidade. É também a retomada de uma forma do processo metafísico das teodiceias que tenta negar a realidade do mal e encontrar uma consolação na suposta superioridade do pensamento filosófico. E é preciso ter consciência da nossa necessidade de consolação para abordar a violência política; com frequência somos tentados a tomar como descrições objetivas ou como explicações dos fenômenos os valores que recusamos ou que queremos defender.

Para concluir, gostaria de expor a vocês minha própria perplexida­ de. Eu me livrei há muito tempo dos falsos universalismos, aqueles que identificam os traços particulares de uma língua e de uma cultura com os princípios do pensamento em geral. Minhas pesquisas em filosofia por muito tempo se ocuparam da filosofia da linguagem e da tradução. Essa abordagem da filosofia é essencialmente crítica e, em particular, crítica do etnocentrismo de nossas categorias filosóficas. Wittgenstein, Quine e Vincent Descombes, filósofos que muito me influenciaram, colocam a filosofia numa relação essencial de tradução e de diálogo entre as culturas e, portanto, também entre filosofia e ciências sociais. Essa preocupação está sempre no centro das atitudes deles, justamente para evitar esse etnocentrismo. É preciso colocar-se no ponto de vista de outra cultura afastada da nossa para verificar que nossas categorias aparentemente universais são, na verdade, particulares e para buscar os meios de tradução de uma língua à outra.

Durante os longos passeios que pude fazer no Rio deJaneiro e em São Paulo, interroguei-me, mais ainda que de costume, sobre meu próprio etnocentrismo. Não seriam as categorias filosóficas, cujo retrato tracei para vocês, irremediavelmente marcadas por um eurocentrismo que as torna dificilmente generalizáveis?

Na Europa, as reflexões sobre a violência política ou os crimes de massa são, na filosofia e mesmo nas ciências sociais, em grande parte estruturadas por uma história que marcou a Europa, a América do Norte, uma parte da Ásia e da África. Mas essa história – as guerras de religiões, a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais e genocídios do século XX – permanece secundária no Brasil. Quanto à prevalência dos processos judiciais na escrita da história, ela é determinante na Alemanha, na França, na Bósnia ou na Argentina, onde as violências políticas e os crimes de massa foram julgados, mas não é o caso do Brasil.

Pode-se ainda considerar que essa violência política foi também a forma extrema de fenômenos mais gerais do nacionalismo, do racismo e da construção estatal que elimina as minorias. E, já que o Estado se impôs como a forma política por excelência sobre o conjunto do planeta, as limpezas étnicas e os crimes de massa que acompanharam as construções estatais se tornaram uma verdade quase geral, com graus de violência diversos. Assim, os leitores devem recordar que a história brasileira também é marcada pela escravidão, pelas perseguições diversas contra os povos da Amazônia, pelas brutalidades da ditatura militar. Elas não foram objeto de processo e produziram outros modos de denegação ou legitimação.

Portanto, evitemos as generalizações apressadas: para apreender as dinâmicas da violência, compreender as diferenças pode ser mais importante que procurar um conceito único. Não existe universal além daquele que podemos alcançar pela crítica de nosso próprio etnocentrismo. E essa crítica passa por um trabalho contínuo e sempre renovado de diálogo e tradução. Para concluir, agradeço novamente aos organizadores destas conferências, aos tradutores e tradutoras desta intervenção e a meus diversos interlocutores brasileiros por terem contribuído para esta obra tão importante de troca e tradução que constitui o próprio fundamento da filosofia.

  1. A tradução do presente texto, incluindo as citações de obras feitas pela autora, é de Paulo Neves.
  2. Agradeço a Adauto Novaes pelo convite para o ciclo de conferências sobre “Violência e paixão”, por sua organização exemplar e sua acolhida calorosa, e também a Hermano Taruma pelos longos passeios no Rio, que ele me fez descobrir, assim como aos ouvintes das conferências do Rio e de São Paulo pela qualidade de suas objeções, perguntas e comentários.
  3. Isabelle Delpla, La justice des gens: Enquêtes dans la Bosnie-Herzégovine des nouvelles apres-guerres (Ajustiça dos povos: pesquisas na Bósnia-Herzegovina de relatos pós-guerras), Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2014.
  4. Em colaboração com Raphaelle Branche, Fabrice Virgili, John Horne, Pieter Lagrou, Daniel Palmieri (dir.), Viols en temps de guerre: Une histoire à écrire (Violações em tempos de guerra: uma história a ser escrita), Paris: Payot, 2011. Tradução inglesa: Rape in Wartime. A History to Be Written, London: Palgrave-McMillan, 2012.
  5. No direito penal dos EUA, o fato de ter agido “no calor da paixão” (heat of passion) pode, em certas circunstâncias, ser reconhecido como uma atenuante que justifica a requalificação do ato de murder para manslaughter. O “homicídio passional” ainda existe no Código Penal suíço: “Se o delinquente tiver matado enquanto estava dominado por uma emoção violenta que as circunstâncias tornavam desculpável, ou se estava naquele momento do ato num estado de profunda aflição, será punido com uma pena privativa de liberdade de um a dez anos” (art.113, disponível em: <http://www.ieb-eib.org/ fr/pdf/ code-penal-suisse.pdf>, acesso em: 23 jun. 2015). Na França, a categoria de “crime passional” desapareceu com a reforma penal de 1791, mas, até 1975, os crimes considerados como cometidos “no calor da paixão” podiam ser “desculpados”. O Código Penal, art. 324, § 2, enunciava: “No caso de adultério, previsto no artigo 336, o homicídio cometido pelo marido contra a esposa, bem como contra o cúmplice, no instante em que os surpreende em flagrante delito no domicílio conjugal, é desculpável”. Cf. a tese de direito de Habiba Touré, Le crime passionnel: Étude du processus de passage à l’acte et desa répression (O crime passional: estudo do processo de passagem ao ato e de sua repressão), Paris vm, 2007, disponível em: <http://r.static.e-corpus.org/ download/ notice_file/ 849457 /ToureThese.pdf>.
  6. Patrícia Mercader, Annik Houel e Helga Sobota, ”Asymétrie des comportements dans le crime dit pas­ sionnel: Violence et passions dans les crimes dits passionnels” (Assimetria de comportamentos do crime dito passional: violência e paixões nos crimes ditos passionais), Sociétés contemporaines, n. 55, 2004, pp. 91-113. Das mesmas autoras, ver Crime passionnel, crime ordinaire (Crime passional, crime ordinário), Paris: PUF, 2003, e Psychosociologie du crime passionnel (Psicossociologia do crime passional), Paris: PUF, 2008.
  7. Cf. Ghislaine Guérard e Anne Lavender, “Le Fémicide conjugal, un phénomene ignoré: Une Analyse de la couverture journalistique de 1993 de trais quotidiens montréalais” (O temicídio conjugal, um fenômeno ignorado: uma análise da cobertura jornalística de 1993 de três diários montrealenses), Recherches féministes, v. 12, n. 2, 1999, p. 159-77.
  8. Ver especialmente a obra de referência de Raul Hilberg, La Destruction des juif.s d’Europe (A destruição dos judeus da Europa), Paris: Gallimard, 2006, 3 tomos.
  9. Para esse ponto de vista, ver Robert D. Kaplan, Balkan Ghosts: A Journey Through History (Fantasmas balcânicos: uma jornada através da história), New York: Macmillan, 1993.
  10. Ver especialmente Xavier Bougarel, Bosnie: anatomie d’un conflit (Bósnia: anatomia de um conflito), Paris: La Découverte, 1996, e Philipp Gagnon, The Myth of Ethnic War: Serbia and Croatia in the 1990’s (O mito da guerra étinca: Sérvia e Croácia nos anos 1990), Ithaca: Cornell University Press, 2006.
  11. Hannah Arendt, Eichmann à Jérusalem, Paris: Gallimard, 1997, p. 460. Edição brasileira: Eichmann em Jerusalém, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  12. Ibidem, p. 459.
  13. Hannah Arendt, La Vie de l’esprit, Paris: PUF, 1983, p. 21. Edição brasileira: A vida do espírito, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
  14. Ver especialmente David Cesarani, Adolf Eichmann, Paris: Tallandier, 2010.
  15. Como atesta seu passaporte, ela permaneceu lá de 9 de abril a 7 de maio, depois de 17 a 23 de junho, três dias após o início da defesa de Eichmann, sem que se saiba se assistiu a ela.
  16. Immanuel Kant, “Sur l’insucces de toutes les tentatives philosophiques en matiere de théodicée” (Sobre o insucesso de todas as tentativas filosóficas a respeito de teodiceia), em: CEuvres philosophiques, t. 11, Paris: Gallimard, 1985.
  17. Carta a Jaspers de 4 de março de 1951; “Le ‘cas Eichmann’ et les allemands” (O “caso Eichmann” e os alemães), em: Politique et pensée. Colloque Hannah Arendt (Política e pensamento: Colóquio Hannah Arendt), Paris: Payot, 1989.
  18. David Cesarani, Becoming Eichmann: Rethinking the Life, Crimes, and Trial of a “Desk Murderer” (Tornando-se Eichmann: repensando a vida, os crimes e o julgamento de um “assassino de escritório”), Cambridge: Da Capo Press, 2006.
  19. Isabelle Delpla, Xavier Bougarel e Jean-Louis Fournel (dir.), Investigating Srebrenica: Institutions, Facts, Responsibilities (Investigando Srebrenica: instituições, fatos, responsabilidades), New York, Berghahn, 2012, p. 155 e nota 73, pp. 174-5.
  20. Ver especialmente, Regina Mühlhauser, Eroberungen: Sexuelle Gewalttaten und intime Beziehungen deutscher Soldaten in der Sowjetunion 1941-1945 (Conquistadas: a violência sexual e relacionamentos íntimos de soldados alemães na União Soviética 1941-1945), Hamburg: Hamburger Edition HIS, 2012.

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