1996

Uma fé, um rei, uma lei

por Sérgio Cardoso

Resumo

As guerras entre católicos e protestantes que se estenderam por cerca de 30 anos na França (do massacre de são Bartolomeu, em 1572, até a promulgação do edito de Nantes, em 1598) assinalam um período de deslocamentos significativos na representação do poder e das leis. Essa reorientação política se observa na obra de dois pensadores da época, Jean Bodin e Michel de Montaigne. O primeiro por seu projeto de um novo Sistema de Direito Universal que busca fortalecer a monarquia amparando-a nas leis naturais e nos costumes (mais tarde desenvolvido e modificado por Rousseau). Mas foram os Ensaios de Montaigne que tiveram uma influência mais imediata (e indireta) no sentido da conciliação e da tolerância. O ponto inovador não é uma concepção “liberal” (pois ele continua a pregar a necessidade de “uma fé, um rei, uma lei” para salvar a nação), mas a constatação de que a diversidade de costumes e crenças no mundo (como as recentes descobertas na América verificavam) faz que as leis se imponham não por serem justas, mas por serem leis. Montaigne compreende a razão política como acomodação de forças e assim, sem afrontar a fé, mas levando-a a um pequeno recuo em relação à verdade e à justiça, cria as condições para que se afrouxem os dogmas e se desarmem os despotismos. O mesmo recuo se aplica às crenças particulares: elas podem se exteriorizar no espaço público mas sem a pretensão de se impor universalmente. Foi esse reconhecimento que tornou possível o edito de Nantes e a pacificação do país.


Para M. Lefort

Muito humana, como a pequena fênix, a razão morre e renasce. Em meio à crise da razão, os homens apelam à razão e a buscam. Assim, nos tumultos, violências, desordens e corrupção das instituições que marcaram as Guerras de Religião na França, começam a desenhar-se suas novas figuras, como se observa no decisivo século XVI. Falece a razão política antiga, despertam os traços políticos da modernidade, como nos faz ver a fecunda obra de dois pensadores do tempo — tão intrépidos quanto originais nos respectivos caminhos —, Jean Bodin e Michel de Montaigne.

Comecemos, porém, com um pouco de história. Situemos o espaço de nossa investigação através de algumas balizas, nítidas e bem conhecidas — uma personagem e uma data. Lembremo-nos da florentina Catarina de Medici, filha de Lourenço II de Medici e rainha da França por núpcias com Henrique II. Com a morte prematura do rei e ascensão ao trono de seu filho Francisco, Catarina vê-se afastada do centro do poder, agora ocupado pela poderosa família dos Guise, duques da Lorena e tios de Mary Stuart, então rainha da França. Com grande determinação, audácia e sagacidade, apenas um ano depois, Catarina ascende à posição política mais proeminente, sobrepujando os Guise e os Bourbon na disputa pela regência do reino, por ocasião da morte de Francisco II e ascensão de Carlos IX, menino de dez anos de idade. Daí em diante ela manterá seu papel decisivo na política francesa pelos quase trinta anos seguintes, o período, talvez, da maior crise conhecida pela história da nação, aquele das Guerras de Religião, durante os reinados sucessivos de três de seus filhos.

A data é o 24 de agosto de 1572. No dia anterior, o rei fora comunicado sobre o envolvimento da rainha-mãe e de seu irmão e herdeiro, o duque de Anjou, no grave atentado — malsucedido, aliás — ao almirante de Coligny, então o mais importante líder político e militar dos reformados franceses. Catarina e os católicos radicais, tendo os Guise à frente, considerando as consequências graves que o fato produziria na delicadíssima situação de divisão civil do país, recomendam a solução final para a crise político-religiosa: o massacre dos chefes protestantes reunidos em Paris para as bodas de seu líder simbólico, o rei Henrique de Navarra, com a irmã do rei, Margueritte de Valois. Carlos IX, pressionado e contrariado, aceita o expediente como medida de urgente necessidade e salvação pública. Ele mesmo organiza a estratégia e distribui os papéis, como também se encarrega do comando das execuções no interior do Louvre. O massacre, que tem início na manhã seguinte, logo escapa ao controle de seus mentores em Paris e estende-se pelas províncias, dando vazão ao ódio da população contra os huguenotes, mortos aos milhares, até o início de outubro.

A ação é festejada ruidosamente pelos católicos. Catarina é proclamada “mãe do reino e conservadora do nome cristão” pelos parisienses. O papa faz cunhar medalha comemorativa. Filipe II repete loas à mãe e ao filho. Os espanhóis celebram. Mas não se dá, evidentemente, o fim dos tumultos — como sabemos. Ocorre, ao contrário, seu desencadeamento total. O massacre marca o colapso das esperanças protestantes, levando-os à guerra que vai durar mais de 25 anos. Só terminará em 1598 com o Edito de Nantes, depois de muitas vicissitudes e de quase destruir o país.

Até a Noite de São Bartolomeu, não obstante o emprego da violência, ocupação de igrejas, atentados e muitas empresas mais ousadas, como a conjuração de Amboise (o assalto ao castelo em que se hospedava o rei), os protestantes não se haviam disposto a um afrontamento revolucionário da monarquia. Pelo contrário, contavam com ela e buscavam, no plano político, submeter-se a uma estratégia mais defensiva e conciliadora. De um lado, é verdade, por serem franca minoria (nunca chegaram a ultrapassar a marca de um quinto da população do país); de outro, mais decisivo, por acreditarem que medidas de tolerância viriam necessariamente da urgência da pacificação do reino e do esforço da regente para firmar o próprio poder. E não eram infundadas tais esperanças. Pois, de fato, desde que assume o comando do Estado em 1560, Catarina enfrenta a questão da dissidência religiosa por meio de uma política inteiramente diversa daquela das medidas de força (perseguições, exílios e fogueiras) praticadas por Henrique II e, depois, por seu filho Francisco II — tutelado pelos Guise —, nos anos 40 e 50. Agora, todos estão de acordo em que tais procedimentos são ineficazes e mesmo contraproducentes. Ao invés de dobrarem o herege à religião oficial, acabam por encorajar sua tenacidade, e suscitam mais violência, inspiram complôs e sedições. Mas, sobretudo, aumentam as conversões e fazem crescer o número dos reformados que tomam as perseguições — e os martírios — como prova de sua fé. Assim, agora, após a tentativa de repressão e coerção, a política dos anos 60, sob o comando de Catarina, será de abertura. Era preciso buscar um outro caminho.

UMA FÉ (A POLÍTICA DE MICHEL DE L’HÔPITAL)

O grande inspirador e condutor dessa nova estratégia fiada pela rainha, o novo chanceler do reino, Michel de l’Hôpital (conselheiro do Parlamento de Paris, humanista culto e respeitado), nomeado em maio de 1560, traz para o gabinete a posição e as ideias de uma fração importante da elite liberal e moderada dos católicos, e fez dela a posição do governo. Empenha-se com ela na direção da tolerância do culto reformado, enfrentando a oposição ferrenha da maioria dos católicos (que o acusam de “neutro” e “ateísta”), do Parlamento de Paris (aquele que em anos anteriores se opusera à severidade das perseguições e execuções) e mesmo de homens íntegros, destacados e de convicções abertas, como Étienne Pasquier, Étienne de la Boétie e o jovem Michel de Montaigne.

Sobre a falência da política de repressão, excluído o grupo mais integrista e a população católica fanatizada, o acordo parece unânime. Também se tornara posição comum (inclusive para os porta-vozes das facções católicas mais ortodoxas, como Ronsard, ou para conservadores mais críticos, como Du Bellay) a exigência, de origem erasmiana, de descriminalizar as opiniões, a necessidade de distinguir entre heresia e sedição, entre opinião errônea e atentados à paz pública — a subversão da ordem civil ou os atos anti-sociais levados a efeito sob pretextos dogmáticos —, que deveriam ser punidos com severidade pelos tribunais do Estado. Também se distinguem agora os reformados comuns — preocupados com a salvação de suas almas, prontos a dar suas vidas e posses pelo triunfo do Bem e da Verdade — e os fauteurs des troubles — inchados de malícia, dispostos a instrumentalizar o povo e os dogmas para perturbar a Igreja e realizar suas ambições. São, dirá L’Hôpital, simplesmente ateus e criminosos, merecedores das punições mais rigorosas. Por isso a nova legislação permitirá o culto e reprimirá a propaganda da Reforma, bem como as disputas dogmáticas (até que um concílio as resolva). Ela proíbe ainda os epítetos injuriosos (papista, huguenote e tantos outros), cartazes ou panfletos difamatórios e toda perseguição privada, sobretudo por parte dos católicos, que já não poderão, agora, invadir casas para denunciar assembleias ilícitas.

Não se trata de admitir, seja no nível das consciências, seja no nível político, duas religiões. Não se trata de admitir a tolerância religiosa como um valor moral, fosse em função de um fundo comum de todas as religiões (como em Pico della Mirandola), fosse pela incerteza que pairaria no fundo de todas as crenças (como por exemplo em Sebastian Castellio e, depois, em Bodin). Trata-se, tão-somente, de buscar os meios adequados para combater a divisão e a heresia. Se, no nível religioso, a solução deve vir da oração e do diálogo, no nível civil só pode vir de uma solução “política” (remèdes politiques), acreditam eles. O chanceler L’Hôpital, ao abrir, em Saint-Germain-en-Laye, a reunião de representantes dos parlamentos e do Conselho Privado em 3 de janeiro de 1562, lembra aos participantes que o legislador não deve se perguntar se as leis são boas em si mesmas, mas se são adequadas ao povo e ao tempo em que são aplicadas: “Cícero censura Catão por apresentar um tipo de rigidez e inflexibilidade apenas adequado à República de Platão; mesmo vivendo em um tempo bastante corrompido. Precisamos sempre procurar acomodar a lei ao povo, como aos pés, os sapatos”. É preciso, portanto, tolerar o culto reformado, dada a impossibilidade, naquele instante, de reprimi-lo, sem grande e imediato perigo para a paz pública. Os protestantes haviam se tornado tão numerosos que se revelava impossível reprimi-los. Assim, “é preciso dobrar-se à necessidade, diante da qual nenhuma outra razão prevalece”. Outra política, senão a da tolerância provisória, tornara-se impraticável. Tolerância provisória, pois visa desarmar os espíritos, criar um clima favorável para a conciliação e a concórdia. A prática livre das duas religiões seria a via mais eficaz para a pacificação.

A implementação dessa política vai se fazendo gradualmente, mas de modo firme, pela astuta Catarina e seu determinado chanceler. O Edito de Amboise, de 2 de março de 1560, concede anistia aos perseguidos para que passassem a viver como católicos e conclama os reformados a fazerem petições coletivas nesse sentido, reconhecendo-lhes tacitamente, assim, o direito de reunião (que eles usarão, burlando a lei, para realizar serviços religiosos). São convocados, depois, os Estados Gerais do Reino, cuja assembleia, iniciada em 13 de dezembro de 1560, em Orléans, reafirma editos anteriores contra propagandistas e pregadores da Reforma e a cessação das perseguições aos reformados comuns, além de proibir disputas de matérias religiosas (contrariando os adversários da “tolerância”, mas partidários da “concórdia”, que pretendiam, como La Boétie, chegar a acordos teológicos e rituais) até que um futuro concílio resolvesse as diferenças. O edito de 19 de abril de 1561, que, mantendo a proibição de ocupação de igrejas, libera reuniões em casas particulares com a presença de vizinhos e amigos, abre, de fato, a convivência do Estado com a prática do culto dissidente. Trata-se de uma permissão tácita, que La Boétie denunciará como “política de dissimulação” da prática de duas religiões. O passo seguinte, preparado por intenso trabalho de articulação diplomática e propaganda, e precedido também de grande reunião de representantes dos parlamentos e do Conselho Privado, será o famoso Edito de Janeiro de 1562, que avança da tolerância tácita para a aberta e legal. Essa legalização do culto público da fé reformada (com a extensão para todo o país do que já ocorre, de fato, em muitas regiões) é, enfaticamente, afirmada provisória. Mais uma vez, até que um concílio universal da Igreja restaure a unidade. Pois não se trata da admissão de duas Igrejas e crenças contrárias ou do reconhecimento de um direito de liberdade religiosa. Trata-se de uma medida de compromisso — une ordonnance politique —, de um expediente de tolerância. Tal medida, diz o embaixador francês ao papa, “não é a que o rei desejaria, mas a que julgava factível”. De qualquer modo, registre-se que essa lei fez da França a primeira nação europeia moderna a admitir a confissão e o culto público de religiões diversas.

A oposição enfrentada por tais decretos, a dificuldade das deliberações, o custo de sua implantação mostram a importância da causa e a profundidade das controvérsias. Se os modernos Estados nacionais, leigos, fundam-se sobre princípios que tornam tais procedimentos corriqueiros, para as concepções políticas do século XVI eles são quase unanimemente tidos como inaceitáveis: representam uma calamidade, um mal maior, que só a pressão da necessidade permitira conceber como expediente, ou como “o menor dos males”. O próprio chanceler L’Hôpital, no seu discurso de abertura dos Estados Gerais de 1560, reconhece que “é loucura esperar por paz, repouso e amizade entre povos de religiões diversas”. É praticamente universal a convicção de que a constituição de uma nação exige “uma fé, uma lei, um rei”.

De fato! Se a lei vem de Deus e encontra seu fundamento na Sua divina Sabedoria e Justiça, como conceber o reconhecimento de uma mesma lei por homens de confissões religiosas diversas? Como esperar respeito e obediência a uma lei por parte daqueles que não crêem em seus sagrados fundamentos? A divisão da fé leva, portanto, à divisão social; leva ao surgimento de instituições rivais que separam os cidadãos, impedem a obediência ao monarca, inviabilizam a administração pública e a vida das instituições. A diversidade de religião divide a nação contra si mesma; e esfacela o Estado, tornando-o presa fácil de interesses estrangeiros. Leva, enfim, à destruição do corpo político. Por isso, o dever primordial do governante talvez seja zelar pela unidade religiosa e defender (como jura fazê-lo o soberano francês na cerimônia de sua coroação) a religião estabelecida da República — condição primeira de sua existência ou, como dirá Bodin, “o principal fundamento do poder e força do Estado”. O soberano não pode, portanto — como lembra La Boétie no seu Memorandum —, dar sustentação ao erro, dar aprovação legal a outra religião: “em primeiro lugar, porque não pode fazê-lo sem ir de encontro à sua consciência”, mas também “por seu dever, não só de manter seus súditos em paz e harmonia, mas ainda, e principalmente, de assegurar que andem no reto caminho e não se extraviem do caminho da salvação”. A religião é o alicerce do Direito e do bom governo, “sustenta e mantém os Estados e a República” (Bodin). Por isso, pensam muitos (e mesmo os protestantes que — contraditoriamente, como mostrará Montaigne — exigem essa política questionada e dela se beneficiam) que, quanto à unidade religiosa, não pode haver transigência no sentido da sua sustentação (veja-se, em Genebra, o comportamento de Calvino) e, também, que os expedientes políticos que levam a seu afrouxamento estão votados ao insucesso, além de agravarem a doença da nação.

As medidas políticas concluídas com o Edito de Janeiro não vão trazer, como se sabe, os resultados esperados pelos “politiques”, e por L’Hôpital em particular, no seu empenho incansável — e trágico — para apaziguar os ânimos, moderar as paixões e alcançar a concórdia. A adesão relutante de alguns, a desconfiança sobre a eficácia tática e política de suas propostas por parte de outros ainda (como La Boétie), o apego aos princípios, travestido de política, por parte de outros (universidades, parlamentos — e, à frente, o de Paris, que só publica o edito sob fortes pressões do governo), os ódios partidários e sectários da maioria e, finalmente, a própria insatisfação dos protestantes com as restrições mantidas e as implementações do edito solapam definitivamente as chances da trégua e desmoralizam a estratégia das concessões. A guerra civil larvar está armada: aguarda apenas algum incidente para se desencadear.

É com o massacre de reformados em Wassy, pela guarda do duque de Guise, que a primeira guerra se inicia no próprio ano de 1562. Precariamente apaziguada, é retomada de 1567 a 1570, até o armistício e a Paz de Saint-Germain, para ser finalmente retomada por mais de 25 anos seguidos, após o massacre de São Bartolomeu. Só o Edito de Nantes, de 13 de abril de 1598, virá estancar definitivamente (ou ao menos por muitas décadas, até sua revogação em 1685) os conflitos. Michel de l’Hôpital, desacorçoado e derrotado, afasta-se da vida pública em 1568. Viverá tempo suficiente para assistir ao massacre de 1572, mas não os quase trinta anos que o separam do edito que promove, de forma duradoura, o universal respeito à liberdade de consciência e culto, que seu famoso Edito de Janeiro tornara lei pela primeira vez, mas cuja vigência não pudera assegurar. Os motivos do insucesso da legislação promovida por L’Hôpital e do sucesso daquela de 1598 devem ser, certamente, buscados na diferença dos tempos e na rede complexa dos acontecimentos históricos que os separa. Porém, a significativa mudança, no nível das ideias e convicções políticas, ocorrida no período que separa os dois decretos, foi decisiva. E podemos entrevê-la já, se notarmos duas diferenças importantes relativas às condições de sua imposição. Inicialmente, podemos notar que o segundo decreto não se pensa mais como concessão provisória. Não se quer um expediente político, ditado por iminente perigo e destinado a pacificar os ânimos até que a concórdia e a necessária unidade religiosa pudessem ser restauradas (por seu instrumento próprio: uma assembleia universal ou nacional da Igreja). Trata-se, aqui, do reconhecimento do princípio mesmo do pluralismo em matéria de fé e de culto, da ruptura do vínculo, anteriormente estabelecido, entre a uniformidade da fé e a conservação da unidade política do país.

Mas, podemos também observar — para além da firmeza e da determinação políticas de Henrique IV no que concerne à vigência das leis proclamadas (tão distantes das oscilações de Catarina, sempre motivadas por considerações de oportunidade) — o teor ou o caráter que o rei atribui à própria autoridade. Ao Parlamento de Paris, que mais uma vez se opõe a tais medidas, ele não responde mais com o velho jogo das pressões e das negociações; apenas lhe replica: “Sou o rei, falo como rei. Quero ser obedecido”. Entre o comportamento da regente de 62 e o do rei de 98 há, portanto, mais do que uma diferença de conjunturas políticas ou de vigor político-moral do governo. Há deslocamentos significativos na representação do poder e da natureza das leis civis; uma reorientação da razão política. O novo espírito que insufla a legislação da tolerância permite medir o trabalho realizado pela reflexão política, nos anos da guerra, por tantos humanistas moderados, distanciados das facções e empenhados na busca de um caminho para a superação das calamidades que se abatem sobre a República. Pois o apelo à razão que dirigem a seus compatriotas e a contrapartida de um outro apelo à razão, o do enorme esforço intelectual para compreender os impasses em que se encontram e as condições da ordem política.

Durante o período da guerra, sobretudo nos anos 70, foram constantes as conclamações no sentido da retomada da política do Edito de Janeiro. Entre católicos e protestantes moderados, estende-se ainda mais a adesão à solução “politique”. Dos protestantes, entre outros, podemos lembrar Innocent Gentillet e sua Remonstrance a Henrique III, Duplessis-Mornay e sua Exortação à paz, ambas de 1574. Entre os católicos, basta lembrar o eco das posições de Michel de l’Hôpital nas obras extraordinárias de Jean Bodin e Michel de Montaigne. É verdade que sua tomada de posição favorável à tolerância já se sustenta em outras bases. E a diferença é essencial. Pois a conciliação e a concórdia que a tolerância prepararia deslocam-se, neles, do campo religioso e dogmático, em que se mostravam insolúveis, para o espaço humano, demasiado humano, das construções políticas. Neles, a solução “politique” deixa de ser a medicina da contemporização — tentada, in extremis, por L’Hôpital — contra um mal que aos recursos humanos já lhe parecia incurável. Ela perde seu enquadramento “trágico”.

UM REI (A OBRA DE JEAN BODINS)

Enfim… com o fracasso do Edito de Janeiro, a decepção da concórdia e o sucesso das facções, os partidários da alternativa “política” e os espíritos mais destacados parecem se dar conta, então, de que os “males e ruínas” que se abatem sobre o Reino não se devem apenas às paixões, ódios e intransigência dos partidos, mas tiram sua força da própria fragilidade das instituições, da precariedade e insuficiência das fundações da ordem civil, de sua incapacidade para sustentar a autoridade das leis e absorver os impactos da Fortuna. Era preciso, pois, restabelecer a ordem sobre novas bases; era preciso, como já vimos, repensar as condições da vida política. A restauração da autoridade das leis — que é urgente — exige sua recondução ao caminho mais seguro da convicção geral sobre o Direito. Pois, se a monarquia não pode se impor às facções nas querelas religiosas, pode sobrepor-se a elas através da autoridade do Direito. Se não se podem resolver as diferenças religiosas que dilaceram a nação, podem-se ao menos investigar e debater as condições da própria ordem civil e da unidade.

É essa exigência que Bodin exprime nos seus livros sobre a República, como aquela de “exortar os súditos por ditos e escritos que possam levar ao bem comum de todos em geral e de cada um em particular” (prefácio). Seguramente, tal tarefa cabe aos governantes. Mas, dado o esgotamento do comandante e dos pilotos, diante da violência da tempestade, os passageiros devem ajudá-los — diz ele —, pois correm todos o mesmo perigo. É o que pretende fazer com seu trabalho: esclarecer os princípios universais do direi to público, “a regra das instituições políticas e religiosas, imperiosamente reclamada por nossa época”, diz ele na Juris distributio. É preciso evitar, de um lado, a anarquia licenciosa e, de outro, a tirania, promovidas por homens que, afirma, “não tanto por malícia quanto por ignorância das questões do Estado […] conspiram para a ruína da República”. Mas como realizar essa tarefa? Onde apoiar-se para levar adiante esse projeto ambicioso e necessário de esclarecimento do Direito?

O caminho tradicional, o dos princípios religiosos que buscam compreender e orientar a ordem social e política, estava certamente vedado. E não só pelas disputas entre católicos e reformados. O contencioso em matéria dogmática se avolumara ao longo dos séculos (desde a questão da origem, divina ou humana, das sociedades políticas, àquela da submissão irrestrita aos poderes estabelecidos ou da possibilidade de resistência às leis injustas, e tantas outras), multiplicando querelas de toda ordem, só contidas pelo dique de pedra da função centralizadora, magisterial e ministerial do pontífice romano — agora, no entanto, solapada pela desconfiança, as acusações de abuso e corrupção, a divisão das seitas e da autoridade. Também o caminho da tradição jurídica, vinculada aos ditames, glosas e comentários do Direito Romano — alma do Sacro Império medieval, razão do Império, também considerado muitas vezes “Razão escrita” e império da Razão —, tornara-se impraticável. A crença na universalidade de seus princípios fora minada não só pela velha rivalidade da Coroa francesa com as pretensões políticas do imperador, mas também pelo trabalho realizado pelos partidários do Mos Gallicus — a escola jurídica dos humanistas franceses —, cuja empresa de exegese filológica do Corpus juris assenta a convicção de sua incontornável particularidade histórica (sua aderência às instituições particulares da Roma antiga), e cujas tentativas reiteradas de ordenação sistemática dos textos (frustradas em função do caráter heterogêneo de suas matérias, não só provenientes de épocas diversas mas de uma legislação mais fortemente atada à tradição que à preocupação com a coerência) terminam por fazer ruir a crença em sua perfeita racionalidade.

É da obstrução desses dois caminhos — mas da manutenção de seus alvos e pretensões, das aspirações das exposições escolásticas e do humanismo jurídico associadas, que Bodin parece tirar seu projeto de constituição de um novo Sistema de Direito Universal que fosse capaz de sustentar firmemente, no presente, as imposições das leis e das autoridades políticas desalentadas. De partida — ao que parece —, procura supor apenas as formulações mínimas da fé, aquelas que se confundem mesmo com as fronteiras da razão, para além das quais se defrontaria o absurdo do caos e da anarquia, os eternos parceiros do inaceitável — por inconcebível e, assim, sempre malicioso — ateísmo. Assim, é preciso admitir uma Lei Eterna, a lei segundo a qual a sabedoria divina governa o universo e que funda todas as outras leis, como sua fonte única. Dessa lei, todos os seres, de modos diversos, participam; e é dela que lhes vêm suas inclinações para os seus fins próprios. A criatura humana, dotada de razão, conhece as tendências legítimas de sua natureza — a lei natural — e, dotada de vontade, livremente as acolhe e a elas obedece. Do mesmo modo as sociedades humanas, as Repúblicas. Também elas supõem uma ordem e um reto governo de seus elementos segundo as leis da natureza (que traduzem as imposições da justiça). Supõem também um princípio mediador e motor dessa ordem designada pela justiça, instrumento do reto governo da sociedade, que Bodin chamará “potência soberana”, suprema e absoluta da República, visto ser a causa formal de sua existência enquanto verdadeira comunidade moral e política (diversa das associações de bandoleiros e corsários unidos por interesses e desinteressados da justiça). “Como o navio”, diz Bodin, “não é mais que madeira sem a forma de navio, quando a quilha que sustenta os costados, a proa, a popa e a prancha do fundo são retiradas, assim uma República sem potência soberana que una seus membros e partes, famílias e colégios em um corpo não é mais uma República.” Essa potência soberana, sendo absoluta, está acima de qualquer outro poder e qualquer outra lei, mas não das determinações naturais e divinas; de modo que os conteúdos de seus comandos devem permanecer sempre atados à lei natural. Assim, reconhece aos súditos o direito de desobedecer aos decretos do soberano que contrariam tal lei. Visto, no entanto, que as leis naturais e divinas expressam-se no registro dos princípios e só se conformam às situações particulares — mantendo sua unidade formal — pela interpretação que lhes dá, para além das controvérsias, o soberano, formalmente, a Justiça e a vontade soberana coincidem.

Com tal doutrina, Bodin acredita ser possível fortalecer a autoridade da monarquia, garantir a obediência às leis e remediar a divisão civil. E, de fato, ela lhe permite rebater as principais postulações político-institucionais dos reformados: a pretensão de elevar a autoridade dos “Estados” acima do monarca, ou aquela (apoiada pela longa tradição da apologia da forma mista de governo) da exigência da limitação ou partilha da soberania. No entanto, resta um ponto sensível e vulnerável nessa construção de Bodin. Um ponto essencial. Tanto mais que não se refere apenas ao problema das formas ou regimes de governo, mas àquele mesmo da realização dos fins naturais da sociedade política: aquele do vínculo necessário, não apenas formal mas também de conteúdo, da vontade do soberano à Justiça. A doutrina bodinia na mantém — como vimos — tal exigência, mas não parece, até aqui, dispor de instrumentos para assegurá-la; justamente quando se vêem ruir as antigas convicções e multiplicarem-se as disputas sobre as verdadeiras regras e o teor da Justiça. Como restaurar um consenso doutrinário sobre seus fundamentos? Como determinar seus princípios e preceitos? Enfim: como reconhecer essa Justiça, sem a qual os decretos dos soberanos não passam de arbitrariedade e tirania?

Ora, essa questão crucial do estabelecimento dos preceitos de um direito universalmente válido para as sociedades políticas é, justamente, aquela que articula o projeto maior da investigação de Bodin. E a resposta que sua obra lhe proporciona é inédita, ambiciosa e de grande astúcia especulativa. Seu caminho parece ser, aproximadamente, o seguinte: se, como vimos, para além do desentendimento das seitas sobre os princípios da Justiça, todos os homens de boa-fé parecem estar de acordo sobre a disposição natural da razão humana para a Verdade (em função da “impressão da luz divina em nós”) e de sua vontade para o Bem (em função da “lei natural impressa em nós”); se, como quer santo Tomás, o cálculo racional de um grande número de homens, repetido muitas vezes, indica com mais segurança que o juízo de um só, ou de poucos, o objeto de nossas aspirações mais legítimas, de tal modo que, coletivamente, por suas instituições e costumes, os homens estariam inclinados para o Direito, para o progressivo aperfeiçoamento das leis e a realização da Justiça — por que não buscar na história suas disposições mais constantes e extrair desses estabelecimentos da ação humana a direção normativa para a qual apontam e investigar, assim, mediante a orientação de um método seguro, os princípios do Direito? É certo que todas as ações e instituições humanas, em função da corrupção do pecado e do peso de sua inscrição espaço-temporal, realizam sempre imperfeitamente sua aspiração à Justiça. Porém, as inclinações identificadas nos costumes, não obstante suas oscilações e inconstância — advindas das resistências mundanas aos comandos naturais que as determinam —, poderiam ser depuradas de suas imperfeições e particularidades e retificadas ou “regularizadas” pela operação da razão, que, através da comparação de um grande número de casos históricos, reconstituiria sua direção mais natural, levando-as, assim, à sua formulação legal universal (sistematicamente ordenadas pelo método adequado ao “mais fácil conhecimento das histórias”). Desse modo seria possível chegar ao verdadeiro teor dos comandos das leis naturais através dos costumes que os veiculam tácita e imperfeitamente. “Na realidade”, afirma Bodin na Methodus de 1566,

o melhor do Direito universal esconde-se na história, se se pensar que aí se encontra esse elemento tão importante para a apreciação das leis que são os costumes dos povos, sem contar [as informações sobre] a origem, crescimento, funcionamento, transformações e o fim de todos os assuntos públicos […]

Mas observe-se também que, ao fazer-se “philosophistoricus” — “juntando a narrativa das coisas acontecidas com a sabedoria dos preceitos” — para “colher as flores da história” (o saber jurídico-político disponível no universo das informações relativas ao passado e ao presente de todas as sociedades conhecidas), o investigador beneficia-se de uma vantagem suplementar. Pois ao buscar as normas que as ações históricas dos homens assinalam, ao procurar o texto do Direito impresso nos acontecimentos, comportamentos e instituições políticas, ele já não o encontraria também sempre adaptado às vicissitudes das sociedades humanas, conformado às suas determinações históricas específicas? Não construiria, assim, um direito ideal, genérico e abstrato, mas vivo, particularizado, filtrado nas especificidades espaço-temporais das ações e instituições, sensível ao cruzamento complexo das instâncias diversas que as determina, conformado, enfim, à configuração própria da nossa humana condição. A história, magistra vitae, ao testemunhar as ações dos homens, suas decisões racionalmente deliberadas — virtuosas ou viciosas, bem ou mal-sucedidas — ensina-nos não só a reconhecer os melhores preceitos, as melhores formas de governo, as leis de suas mudanças e revoluções, mas ainda a maneira de conformá-los a tempos e lugares bem como ao natural dos povos a que são destinados.

Essa constituição de um sistema racional do Direito público — mesmo que apenas esboçado — poderia, então, respaldar a autoridade absoluta do monarca e fornecer-lhe orientação segura para o exercício de sua soberania legislativa, municiando-o ainda contra a acusação dos que alegam a arbitrariedade de seus atos e mesmo a ilegitimidade liminar do poder sempre que — para alguns — se desapega do vínculo com o sagrado ao se distanciar dos preceitos de suas seitas, sempre que — para outros — se emancipa da tutela necessária da assembleia dos Estados, sendo a comunidade natural do povo o titular supremo da autoridade política. Ora, numa nação em que a religião está cindida em Igrejas diversas e em que os cidadãos, em guerra civil, afrontam-se uns aos outros, a salvação da república parece ao autor suspensa ao reconhecimento público dessa ciência jurídico-política, que apoiaria as prerrogativas absolutas e invioláveis da monarquia com uma inovadora argumentação racional e histórica sobre os princípios do Direito.

Sabemos que a doutrina da soberania de Bodin, mais que qualquer outro elemento de suas construções políticas, anunciou o novo mundo que viria a ser explorado pela modernidade. Na Inglaterra — onde seus livros fazem sucesso de imediato — ela colaborou na formação da teoria do Direito Divino dos reis e, com ela, em seguida, veio sustentar na França a empresa absolutista do grand siècle. Ela estará presente na concepção do Leviatã hobbesiano e alcançará, através de Rousseau — feita soberania popular —, o pensamento contemporâneo — que se tornou incapaz de dissociar a figura do poder de seus traços. A doutrina da soberania absoluta e indivisível tornou-se, enfim, o selo mesmo da razão política moderna.

E, no entanto, não obstante a grandeza da obra e de sua fortuna, é preciso lembrar que as teses de Bodin não obtiveram de imediato, em seu próprio país, uma acolhida promissora e não parecem ter desempenhado um papel significativo na construção da concórdia, ainda que viessem a cintilar, como já sugerimos, no comportamento político de Henrique IV. É em outra obra — tão empenhada quanto ela na busca do entendimento e igualmente audaciosa nos seus caminhos — que devemos buscar a reflexão que deu mais alento à distensão dos ânimos e que trouxe um apoio mais sólido para as disposições de moderação dos “politiques”. Referimo-nos aos Ensaios de Montaigne. Seus dois primeiros livros, trabalhados por quase dez anos, foram publicados em 1580, com uma recepção surpreendente. E há indícios seguros da influência do autor na empresa da pacificação: o sucesso de seu livro, a confiança que inspira na condução de inúmeras missões diplomáticas, bastante delicadas, a consideração que lhe dispensam os reis, sua convocação, numa conjuntura particularmente difícil, para o posto de prefeito de Bordeaux, tudo isso assinala o prestígio e o respeito alcançados pelo pensador e suas posições políticas. Mas há, sobretudo, a testemunhar nesse sentido, a própria forma tomada pelo desenlace da guerra.

UMA LEI (AS REFLEXÕES DE MONTAIGNE)

Quando mapeamos os traçados principais dessa reflexão política de Montaigne, não nos deparamos, no entanto — como se poderia esperar —, com uma convicção “liberal” na acepção mais ampla da expressão ou com uma defesa calorosa da tolerância. Encontramos, ao contrário, posições particularmente intransigentes no que diz respeito à estrita submissão exigida pelas leis civis bem como às observâncias religiosas e costumes estabelecidos. O autor mostra-se ainda extremamente rigoroso na avaliação da atitude dos reformados. Se não pensa, evidentemente, em reprimi-los e puni-los por suas crenças, censura, entretanto, com indignação, a ação violenta e ambiciosa desses homens que fariam da fé pretexto para a sedição (“Parece-lhes permitido tudo o que pode fazer avançar seus desígnios e não têm outra lei ou ordem além de buscar sua vantagem”), que alimentam os ódios e mostram-se insensíveis à visão da ruína do Estado. E, por fim, continua a corroborar, como todos, a necessidade de “uma fé, um rei, uma lei” para a salvação presente da nação e a constituição e conservação de toda comunidade política.

Se se ultrapassa, no entanto, essa perspectiva generalizante (confortada por uma crítica persuadida de seu conservadorismo), descobre-se um pensamento profundamente inovador. Pois — se verá — ele não reconhece a autoridade suprema, nem os dogmas da religião estabelecida e seus preceitos, como requer a visão tradicional da ordem política, nem, como pretende Bodin, à vontade do soberano e seus decretos — mesmo que, neste caso, se viesse a postular a identificação da soberania com a vontade dos Estados, do povo ou da nação, como talvez exigisse a retomada da tradição doutrinária sedimentada por conciliaristas (Jean de Paris, Marcílio de Pádua), sorbonnistas (John Meir e discípulos) e pelos autores das conclamações e panfletos huguenotes (Hotman, Duplessis-Mornay e outros). O Direito, aqui, não adere ao corpo do rei nem ao corpo do povo. Ele provém dos costumes — que não objetos de decisões, pactos, contratos ou consensos racionais, que não derivam de nenhuma “deliberação” do povo, pois são tão-somente fenômenos de crença: “créances communes et légitimes” (III, 2). Assim, as leis não tiram sua autoridade nem dos decretos de um monarca divino (o que as afasta das dissensões dogmáticas e do entrevero das seitas), nem daqueles de nenhum governante humano (o que lhes garante uma cintilação de transcendência). Não são leis por designarem a Justiça ou em função de comandos soberanos legítimos, mas em função de si mesmas, de sua força própria, enquanto cristalizações de opiniões comuns (“créances communes”), enquanto traduzem a adesão a valores (“créances légitimes”), a padrões de medida que enquadram e articulam as ações dos membros de uma dada comunidade. “As leis mantêm seu crédito [se autorizam ou se fazem valer] não porque são justas, mas porque são leis. É este o fundamento místico de sua autoridade; elas não têm nenhum outro”, dirá com singeleza Montaigne nas páginas finais de seu livro. Em outras palavras: as leis obrigam, banalmente, porque são tomadas por tais; porque, banal mas profundamente, são vistas ou acreditadas como leis Justas e Verdadeiras — o que lhes reconhece, simultaneamente, suas necessárias humanidade e transcendência.

Convém enfatizar, porém, que se Montaigne confina o domínio do Direito no campo dos costumes (e chancela, portanto, a primazia do Direito consuetudinário sobre o Direito legal positivo) não o faz, à maneira escolástica, por entender que as leis costumeiras derivem mais seguramente de um Direito natural procedente dos decretos eternos da vontade divina. O costume não é para ele — como o é para Tomás de Aquino — um “tacitus consensus populi”, que procederia de um juízo racionalmente deliberado, repetido por um grande número de homens durante um grande lapso de tempo, e que se cristalizaria em um “hábito” (uma “disposição” para um certo tipo de ações) que, portanto, manifestaria — de modo mais certo que as determinações das leis positivas (produzidas pelo juízo momentâneo de um só ou de poucos) — a inclinação natural da vontade humana para o Bem. Os costumes não podem pretender tal dignidade. Que se os examine bem!, sugere o autor em seu ensaio “Do costume ou do não mudar facilmente uma lei estabelecida” (i, 23). Ao considerá-los com aplicação e destacamento, e ainda a abrangência que a recente abertura do mundo garante, se constatará que um grande número de costumes amplamente aceitos, seguidos com naturalidade e mesmo reverência por muitas sociedades, contraria e afronta acintosamente o que consideramos preceitos evidentes das leis da natureza e da boa razão. Não se produzem segundo a natureza (“inclinatio naturalis”), não são sua explicitação no tempo (“natureza segunda”). Eles, ao contrário, freqüentemente parecem forçar a “natureza”, violentá-la; a ela se impõem ou sobrepõem.

Montaigne, no texto mencionado, inicia suas considerações com aquela velha história — encontrada em Quintiliano e, depois, em Agostinho, Estobeu, Erasmo e tantos outros — da camponesa que começou por acariciar e levar ao colo um bezerro e que ainda podia carregá-lo quando ele se tornou boi. De fato, “o costume não é pouca coisa!”, admitimos com ele e, segundo acredita, também com Platão. Os hábitos vão se estabelecendo pouco a pouco e, imperceptivelmente, impõem o tacão “furioso e tirânico” de sua autoridade — como um mestre-escola bilioso e colérico, que nem sequer permite aos escolares levantar os olhos. Trata-se, também aqui, de um velho tema da sabedoria grega que Aristóteles retoma, para mostrar em sua Ética que a criação das boas disposições morais realiza-se, fundamentalmente, pela repetição de atos bons, estabelecem-se pela sedimentação de uma prática costumeira que, imperceptivelmente — como uma doença, diz ele —, ganha corpo e torna-se estável como “hábito” (como uma predisposição adquirida para certo tipo de ato ou, se se quiser, uma “maneira de ser” do agente no que se refere às suas afecções e ações). Porém, Montaigne acena para essas teses aristotélicas não tanto para indicar, como elas, o interesse ético e pedagógico da aquisição de bons hábitos (questão — é preciso dizer — que no decorrer dessas páginas ele não esquece), mas apenas para enquadrar e apoiar a própria reflexão sobre o poder dos costumes, que, espantosamente, parecem revelar-se capazes — como mostra — mesmo de vencer as regras naturais (“Nós os vemos forçar sem cessar as regras da natureza”).

São infindáveis, no registro individual ou coletivo, os exemplos que confirmam essa intrigante constatação. Montaigne os arrola por páginas e páginas (mais de metade das quinze do ensaio); pois, aqui, cabe ao número e ao caráter circunstanciado dos relatos a tarefa da persuasão. Veremos, então, no que diz respeito aos indivíduos, alguns acostumarem-se a pernoitar na neve, outros a suportar queimaduras, ferreiros que se habituam a um barulho insuportável. Há a moça que come aranhas, o anãozinho que usa os pés como se fossem mãos, o menino que, privado de mãos, maneja a espada com o pescoço, o homem que devora morcegos, os que comem vidros e aqueles que engolem sapos. Mitridates, por exemplo, alimenta-se de venenos, enquanto as carnes sadias, que normalmente comemos, revelam-se para certos homens venenosas e mortais. No nível coletivo, moral e político, os exemplos se multiplicam ainda mais. Em quatro páginas corridas, nosso autor arrola os costumes mais extravagantes, extraordinários e “antinaturais”. E todas as perversões do mundo que aqui desfilam mostram-se acolhidas com absoluta naturalidade por povos os mais diversos: abortos, adultérios, prostituição, sexo coletivo, homossexualismo, divórcios, comunidade de mulheres, impiedade filial, incesto, pedofilia, infanticídio, mutilações voluntárias, eutanásia, canibalismo, os mais insólitos regimes de herança e propriedade, de sucessão ou deposição de soberanos, idolatrias e heresias as mais inconcebíveis, como a crença — “rara e incivil” — de que a alma é mortal. “Haveria opinião por mais bizarra e estranha que não tenha sido implantada e estabelecida por leis nas regiões que bem entendesse?”, pergunta-se Montaigne. Nada escapa de ser admitido como natural, recomendável e honroso por uma sociedade ou outra em alguma parte desse vasto mundo que se acabava de descobrir em toda sua diversidade e extensão.

Depois dessa inspeção miúda das histórias e da florescente literatura de viagens (atestado da enorme curiosidade e extensão das leituras do autor), a investigação chega ao seu ponto mais interessante e de maior ousadia. Pois passa do testemunho da poderosa excentricidade e da variedade dos costumes para a interrogação das suas condições; vai em busca do segredo de sua espantosa força e da fecundidade de suas variações. Trata-se do segmento em que seu texto nos convida a apreciar o poder do costume no domínio das crenças e instituições, a avaliar o alcance de sua ascendência sobre os espíritos (“Que ne peut-elle [la coustume] en nos jugemens et en nos créances!”). Veremos que ele intervém na operação do juízo e se imiscui no próprio exercício da razão. “Não acredito que surja na imaginação humana nenhuma fantasia tão tresloucada que não encontre exemplo de algum uso público e, por conseguinte, que nosso discurso não sustente e fundamente.” Trata-se de observar, em primeiro lugar, que todas essas bizarrias e extravagâncias com que nos deparamos no universo das crenças e opiniões acompanham-se sempre de alegações e razões e, em suas formas coletivas, surgem articuladas em instituições bem sustentadas e costuradas por bons e devidos discursos. Isso o faz conjecturar que “a razão humana é uma tintura infusa, mais ou menos na mesma proporção, em todas as nossas opiniões e usos, quaisquer que eles sejam; infinita em matéria, infinita em diversidade”.

Porém, logo somos levados a observar que esses costumes articulados e travejados por razões e discursos, paradoxalmente, paralisam a atividade do juízo e o exercício da razão. Da mesma maneira que adormece os sentidos (“l’accoustumance hebète nos sens”: depois de algum tempo seu olfato já não percebe o odor de seu colarinho perfumado; nem sequer o desperta mais o sino que todos os dias, de manhã e à tarde, estremece sua torre às ave-marias), o hábito amortece também a visão de nossa razão que, em função dele, já não se deixa impressionar pelas coisas mais estranhas e surpreendentes. Montaigne pondera, então, que “o principal efeito de seu poder é o de nos agarrar e prender de tal modo que se torna impossível soltar-nos [nous r’avoir] de suas presas e voltar a nós mesmos [r’entrer en nous] para pensar [discourir] e raciocinar [raisonner] sobre seus comandos”. O costume impede-nos de pensar. Não avaliamos nem ponderamos mais nossas opiniões, crenças e ações; pois nem mesmo pensamos mais nelas; justamente por costumeiras.

Tais observações, porém, não vão ainda ao fundo da questão e, bem consideradas, não deixam de ser um tanto triviais. O que Montaigne, no entanto, prontamente faz seu leitor perceber é que a paralisação do pensamento, por ele assinalada, não é apenas, como se pensa, um efeito dos costumes; ela assinala, mais profundamente, sua própria causa. A despeito da aparência (que lhe advém de sua matéria racional, visto que incorpora alegações e juízos e se articula por uma certa lógica discursiva — ou “simbólica”), o costume, enquanto tal, não procede do exercício do juízo; é, ao contrário, produzido por seu entorpecimento. Não atesta, assim, a voz da razão, como pretendiam os escolásticos; faz ouvir seu silêncio. Seus efeitos, antes designados, decorrem de sua origem, de sua mesma constituição. Do mesmo modo — e ainda contrariamente às aparências —, é possível perceber que ele não se conforma e se estabelece, como se pensa, com o passar do tempo — ainda que o tempo o assegure e conforte —, mas, ao contrário, com seu estacamento, confinando-se no registro da mera duração.

Como compreender essa imobilização do juízo e o estacionamento do tempo que assistimos nos costumes? Que força tão poderosa seria capaz de anular essa atividade e deter esse movimento? Enfim: a que motor atribuir a paralisia e a insensibilidade dessas nativas aptidões dos homens? Montaigne, aqui, através de um conjunto de fragmentos de expressão ou de imagens, remete o leitor ao famoso Discurso de seu amigo La Boétie. Retoma, por sua conta, o núcleo mesmo de sua investigação sobre a origem da servidão, 
cujo caráter voluntário fora decifrado justamente por sua associação ao costume. Mas, enfim, por que deixam de nos inquietar, intrigar, estranhar, espantar, maravilhar ou chocar ou ainda escandalizar, repugnar ou horrorizar, as opiniões, crenças, ações e instituições comumente aceitas à nossa volta, quando “as achamos tão aversivas [bizarras, espantosas, intrigantes, monstruosas ou miraculosas, cruéis ou brutais, repugnantes e insensatas], contadas de um outro país”? E por que pensamos (“E Deus sabe o quão desarrazoadamente, na maioria das vezes!”) que o que não faz parte dos nossos costumes está fora da razão? (A resposta — inteiramente fiel à audácia do argumento de La Boétie — surge com a singeleza das autênticas revelações.) Simplesmente porque “as opiniões comuns [communes imaginations] que vemos acreditadas à nossa volta […] nos parecem que são universais e naturais [generalles e naturelles]”. A reivindicação do argumento intrépido de La Boétie explicita-se, com clareza, no comentário: “[…] porque sugamos [os comandos do costume] com o leite do nosso nascimento e porque a face do mundo se apresenta num certo estado à nossa primeira visão, parece-nos que nascemos submetidos à necessidade [condition] de seguir essa trilha”. É apenas este o segredo da existência, permanência e poder espantoso do costume: que, nele, o que quer que seja — qualquer opinião, crença, preceito, imaginação ou fantasia — aparece como “necessidade”; traveste-se de natureza e impõe-se como razão. Não há, assim, o que ele não torne “natural” e “razoável” e não faça acompanhar de reverência, discursos e boas alegações. “Em suma”, diz Montaigne, “segundo penso, não há nada que ele não faça ou não possa. E com razão, segundo soube, Píndaro o chama Rei e Imperador do Mundo.”

Todas as leis, sejam as da consciência, sejam as leis civis, deitam suas raízes na terra espessa dos costumes, como, então, se concluirá. As primeiras, que acreditamos provir da “lei natural em nós impressa”, na verdade, vêm das opiniões e crenças acatadas à nossa volta — as quais, contrariadas, nos fazem ter remorsos e, respeitadas, o aplauso da consciência. As leis civis, que sempre se apresentam como fundadas na razão e no Direito, quando buscamos seus princípios primeiros, quase sempre nos persuadimos — como muitas vezes o autor diz ter comprovado ele próprio — de que seu único fundamento está nos costumes, “nas barbas brancas e rugas dos usos que as acompanham”. Os costumes, enfim, no universo dos homens, tudo governam e comandam, por deterem o segredo do poder sobre os próprios homens — que simultaneamente os criam e a eles obedecem, na ilusão apaziguadora de tudo submeter aos ditames da boa razão e às prescrições da natureza.

A ousadia dessas reflexões não podia ser assimilada facilmente. Foi, seguramente, considerada afrontosa pelos cidadãos armados em defesa dos verdadeiros princípios da religião e da boa ordem política. Foi também repudiada, como sabemos, no século que se seguiu ao seu, o grande século do absolutismo e do racionalismo. No entanto, é preciso lembrar que o autor encontrou ouvidos muito atentos por parte de uma camada significativa de homens (os mesmos, seguramente, que se haviam empenhado na solução “politique”), destacados das facções e preocupados com o destino coletivo, tão desolados quanto ele com os acontecimentos a que se referiu mais tarde como “ce notable spectacle de nostre mort publique”. E, como já lembramos, suas ponderações não passam também despercebidas pelos príncipes.

Não é difícil constatar que as posições assumidas por Montaigne — tão contundentemente expostas nesse ensaio sobre os costumes —, mesmo do ponto de vista político-prático, apresentam muitos interesses. Não obstante recusarem um fundamento natural e racional para as leis, não obstante esvaziarem as pretensões da autoridade civil de representar e estabelecer 
“a Justiça”, prescrevem, inequivocamente, a necessidade de sua obediência e dão a elas um solo de legitimidade bastante firme. Pois ele não tem a intenção de proporcionar às leis apenas o respaldo de uma legitimidade formal (diferentemente do que pensam muitos comentadores sérios), derivada do puro imperativo da promoção da ordem e da paz públicas, ou ainda da garantia da sobrevivência da comunidade. Tal alicerce seria demasiado frágil naquele momento de entrevero intenso das paixões da guerra — ou, talvez, em qualquer outro tempo —, enquanto mantém a obediência às leis hipotecada à possibilidade da persuasão racional dos homens envolvidos no conflito. Montaigne, ao contrário, compreende a sociedade política como uma comunidade de crenças positivas, originadas da acomodação de forças, interesses e partidos historicamente constituídos, e sustentados e travejados pelo costume, que mantém a crença — fundante — na sua naturalidade. Assim, toda autoridade legítima está umbilicalmente atada a essas crenças comuns, das quais as leis estabelecidas são a expressão jurídica, e o soberano, o instrumento político.

Sabemos que muitos leitores modernos dos Ensaios estranharam o conservadorismo que parece derivar dessas concepções e do alento que proporcionam ao Direito costumeiro, assinalando a dificuldade de associá-las a uma política de efetiva tolerância e de compreender sua contribuição para a assimilação histórica das “nouvelletés” — geradoras de guerra — e a pacificação dos conflitos. É verdade — já o observamos — que Montaigne apega-se à tradição católica, mostra-se intransigente no compromisso com as leis estabelecidas (“Je suis degousté des nouvelletés”) e crítico sempre áspero dos reformados, por tentarem transformar as ordenações do país sem se perguntarem pelas consequências de sua empresa (“É muito duvidosa a possibilidade de tirar proveito da mudança de uma lei estabelecida”). No entanto, devemos reconhecer que a leitura que acusa o conservadorismo de sua política mostra-se bastante sumária nas suas considerações. Pois é aos termos de sua defesa da ordem, aos aparentemente pequenos deslocamentos de sua linguagem, que aqui é necessário dar atenção. Que se atente bem, por exemplo, para a expressão mesma pela qual Montaigne designa o fundamento da autoridade política. Não é mais à “fé universal” (ou católica) que seu pensamento nos remete; ocupam agora seu lugar, como vimos, as “communes imaginations”, as “créances communes et légitimes”. Ora, é todo um universo que se abala e resvala nesse pequeno deslizamento de suas fundações do campo dogmático para a esfera dos costumes (ainda que esses costumes, no essencial, continuem materialmente os mesmos que sustentavam as instituições sociais do passado). A transformação consignada nessa passagem da fé para as crenças é gigantesca. Sem afrontar a fé, sem denunciar ou ofender sua pretensão à verdade, levando-a apenas a um pequeno recuo, a um leve deslocamento reflexivo de reconhecimento — ou consciência — de seu estatuto de postulação da verdade, ele a faz descer para a terra dos homens, a faz perder sua rigidez e imobilidade divinas, inaugurando como que uma religião leiga, “tratável”, afinal, em sua enigmática realidade. Não se recusam os dogmas da fé; trata-se justamente de acreditá-los, tomando-os, porém, reflexivamente pelo que são, crenças, e não como a imediatez a si da Verdade. Do mesmo modo, mantém-se o respeito às leis ( “Estas considerações”, enfatiza o autor, “não afastam o homem de bom entendimento do estilo comum […] e da inteira obediência às normas estabelecidas”), que se impõem enquanto tais. Porém, elas já não são obedecidas agora porque são justas (segundo a Justiça universal e natural — como diz o ensaio III, 1) mas — diferença essencial — porque se acredita que o sejam. É nesse leve recuo, nesse distanciamento mínimo, que se distendem as paixões, que se afrouxam os dogmas, se desarma o despotismo… que se abre, enfim, um hiato de moderação propiciador da abertura e da trégua políticas.

Tomando as crenças pelo que são e, pelo que são também, as leis que delas derivam, o agente político, mormente o governante, aprenderá não só a suavizar o rigor de sua aplicação mas saberá ainda, se necessário, transigir com os padrões legais. Em casos de urgente necessidade, saberá “negociar” com eles, e mesmo ignorá-los, mas — como podemos ler em um ensaio posterior (III, 1) — respeitando-os ainda, nessas situações extremas, no seu pesar de transgredi-los. Pois, agora, conhecendo a lógica de sua produção, podemos usar, em relação às leis, sua própria astúcia: se elas submetem, com a pretensão de sua necessidade, aqueles mesmos que as inventam e 
criam, podemos — como vêm sugerir as últimas linhas do texto — imitar Philopemen, elogiado por Plutarco por saber “não somente comandar segundo as leis, mas comandar as próprias leis quando a necessidade pública o requeira”. Por que não fazer da necessidade o motor da sua mudança, como elas mesmas a fazem o instrumento de sua conservação? Como se vê, é nesse ponto que a reflexão de Montaigne encontra-se novamente com o argumento “politique” — destituído aqui, no entanto, de seu caráter de expediente trágico e cego, pois iluminado, agora, por uma compreensão da ordem política sustentada por alicerces sólidos e boas razões.

Há, entretanto, ainda um corolário fundamental destas reflexões — desenvolvido por Montaigne de maneira ampla, nítida e insistente. O deslizamento das fundações do Direito dos artigos da fé para o terreno costumeiro das crenças, ao fazer descolar da razão e da natureza o espaço jurídico-político, libera seus objetos, a verdade e a Justiça, às investidas e reivindicações também dos particulares. Assim, simultaneamente, submete ao poder político a esfera das ações dos indivíduos e grupos e os libera, no registro das opiniões, para suas próprias incursões no terreno da verdade. Surge, assim, delimitado com clareza, diante do espaço das “crenças comuns”, e como sua contrapartida necessária, um domínio de opiniões e crenças privadas, reconhecido e sancionado no próprio movimento de afirmação do espaço público. De tal modo que as crenças particulares, tomadas anteriormente como imediata negação da fé universal e condenadas, então, à pura interioridade (como já se observara no estoicismo), podem agora exteriorizar-se, emergir — de direito, à vista de todos — no espaço público, reconhecidas e sancionadas por suas leis. É o que afirma Montaigne no texto que seguimos:

[…] o sábio deve quanto ao interior retirar sua alma da multidão, e mantê-la em liberdade e no poder de julgar livremente as coisas; mas, quanto ao externo, deve seguir inteiramente os moldes e formas estabelecidas. A sociedade pública nada tem a dizer quanto aos nossos pensamentos, mas o restante, como nossas ações, nosso trabalho, nossas fortunas e nossa própria vida, é necessário emprestar e ceder a seu serviço e às opiniões comuns.

A esfera privada, em que fervilham opiniões e crenças, alcança o espaço público e com ele se comunica, como o comprova o próprio sucesso dos Ensaios — “imaginations”, “fantaisies”, “revêries” — de Montaigne, que, expostos ao juízo do público, às crenças comuns que sustentam a legislação e os costumes políticos, mostram-se capazes de influenciá-los. Mas, seus respectivos territórios e direitos encontram-se bem delimitados e protegidos. “[…] O interesse público”, dirá ele mais tarde (III, 1), “não deve tudo requerer de todos contra o interesse privado.” Afirmará também que, diante do próprio rei, aceita fletir seus joelhos, mas não sua consciência. Em contrapartida, ainda no ensaio sobre os costumes I, 23), assevera julgar muito 
iníquo “querer submeter as constituições e observâncias públicas e imóveis à instabilidade de uma fantasia privada” (“A razão privada”, continua, “tem apenas uma jurisdição privada”).

Ora, teria sido exatamente a incapacidade para compreender essa necessária separação das esferas pública e privada — das crenças dos particulares e das crenças comuns e legítimas — por parte do pensamento e costumes políticos do tempo que teria levado a minoria reformada à tentativa, “presunçosa e temerária”, de impor à nação, com o reconhecimento de sua fé, a transformação de suas instituições religiosas e políticas — levando-a, para grande dano de todos, à guerra e à beira da ruína. Assim, quando, anos mais tarde, Henrique III — o admirador, hóspede e correspondente de Montaigne — faz o caminho contrário, abjurando a fé protestante e convertendo-se ao catolicismo, ele nos permite medir o enorme caminho percorrido pela reflexão política nos anos da guerra. Pois, certamente, o fez pressionado pela necessidade (à qual é preciso sempre curvar-se); mas só pôde fazê-lo por admitir distinguir — como, seguramente, terá ocorrido — sua fé pessoal daquela comum da nação, a que, como monarca, se submete. Seu gesto, que vem selar as condições da pacificação final do país, talvez concentre e simbolize a grande fratura observada no terreno das representações políticas. E podemos contemplar nele, mais uma vez, o renascer da razão; pois aqui já se pisa, 
inequivocamente, o novo mundo da razão política moderna.

Notas

* Este texto, como se verá, guarda de forma marcada o arranjo e o tom oral de sua origem. Não pudemos, por motivos inteiramente de circunstância, fazê-lo alcançar a forma mais articulada e mais sustentada que exigia. Ainda assim — não sem algum acanhamento — o dedicamos ao professor Claude Lefort, por tantos e tantos motivos; e ainda por aquele de continuar nossa conversa sobre Montaigne.

 

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