2006

Uma versão mesoamericana da América Latina

por Ana Esther Ceceña

Resumo

A visão da América Latina se modificou ao longo da história em correspondência com a própria concepção que o México teve de si mesmo em cada etapa.

Ao longo dos últimos 500 anos, tanto as rebeliões indígenas como as lutas de independência invocaram uma história compartilhada, unificada pelas raízes culturais encravadas em solo latino-americano e pelo reconhecimento do mesmo opressor. Apesar das rebeliões indígenas, em primeiro lugar, e as posteriores lutas de independência no México não estarem explicitamente articuladas com seus equivalentes no resto da América Latina – em razão da separação geográfica entre norte e sul do continente –, as evocações de Tupac Amaru, Bolívar ou San Martín fazia pensar em uma consciência regional ampla. O século 19, momento de construção das primeiras repúblicas do continente, já permite vislumbrar os indícios desta história comum que tem o nome de América Latina.

Desde então até nosso século 21, a visão latino-americana que se tem a partir do México veio se modificando. Em alguns períodos aparece com força e em outros se desvanece, atendendo à dinâmica social interna e à das relações internacionais. A cada um destes momentos corresponde uma visão de América Latina em forma de mito, expressando claramente algumas das utopias libertárias de maior permanência: a união dos povos latino-americanos como fundamento de sua emancipação.


As armas da resistência indígena são poucas; mas entre as mais valiosas está o legado cultural que, forjado ao longo de treze séculos, durante todo o Pré-clássico Antigo, constituiu a essência da Mesoamérica. Como antigamente, os rebeldes recorrem ao símbolo de união inspirador do homem-deus. Não é o Quetzalcóatl pré-hispânico nem o Canek colonial. Hoje a imagem de Emiliano Zapata adquire força em todo o país.

Alfredo López Austin e Leonardo López Luján,

El pasado indígena.

Quando ainda não era América Latina, a região era habitada por vários povos com língua, vestuário e costumes diversos que haviam desenvolvido eficazes sistemas de comunicação e troca de pensamentos e produtos. Há muitas evidências de que a vida fluía no continente, das altas terras do Norte à Patagônia, certamente com alguns sobressaltos protagonizados pelos povos guerreiros, mas sem alterar substancialmente a dinâmica social. “Em termos muito genéricos, a história da tradição mesoamericana se caracterizou por sua longa duração; foi um processo ininterrupto que durou quatro milênios”,[1] e o mesmo ocorreu com os outros povos do continente.

A concepção do espaço e a construção de territorialidades[2] da época pré-colombiana se erigiram sobre a base de uma relação intersubjetiva[3] dos homens e mulheres com a natureza e com o cosmo. Os humanos concebiam a si mesmos apenas como um dos tantos sujeitos que compunham a unidade da vida. Plantas e animais, rios e montanhas, o vento, a chuva, o Sol e até os tremores de terra têm uma existência de sujeito no conjunto harmônico que constitui o universo maia, o que parece não ser diferente de muitas outras culturas do continente.

Todos os mitos mesoamericanos falam da necessária conjunção dos diferentes elementos. Nem muito fogo nem muita água, mas uma combinação de ambos. Nenhum elemento deve prevalecer sobre os demais, mas é preciso a interação de todos. A zanga dos deuses[4] muitas vezes se relaciona com a presença excessiva de algum desses elementos e com as catástrofes que ela provoca no complexo macrocósmico e microcósmico.

[Alguns] mitos se referem ao estabelecimento da grande máquina cósmica que poria os deuses a circular como forças transformadoras […] o tempo surgia, ordenadamente, por cada uma das quatro árvores de cores que estavam nos extremos do mundo. O tempo era a união dos elementos divinos contrários. Dentro de cada tronco cósmico se dava a união do fogo celeste com a água do inframundo. Um dos principais assuntos narrados nos mitos é a conjunção das duas substâncias opostas e complementares. Essa união formava o tempo.[5]

O sentido de complementaridade, que num pensamento intersubjetivo tem um caráter que retoma mas transcende o binário, mantém o mesmo critério circular harmônico no qual a unidade pode se romper por qualquer um de seus lados, provocando catástrofes de consequências imprevisíveis. Essa complementaridade, expressa com a amplitude de visão dos maias, levou a um modo de uso dos territórios no qual conviviam, evoluindo, todos os sujeitos e todos os ecossistemas:

[…] antigamente […] os zoques e cada uma das nações maias dispunham de um território compacto e contínuo. Em cada um se coordenavam os habitantes de diversos assentamentos, sem que se dependesse de um centro diretor territorial ou político […] cada nação maia ocupava uma faixa de terras altas e baixas que atravessava de modo perpendicular a planície do rio Grande (Grijalva) e as serras, e assim contava com uma diversidade ecológica […] Dessa forma, cada país representava um complexo juyub tak’aj, montanhas e vales, símbolo e realidade da díade fundamental entre os maias.[6]

A circulação pelos diversos ecossistemas permitia que se enfrentassem as mudanças de clima e se obtivessem frutos de vários tipos em diferentes épocas. A combinação dava à alimentação uma ampla variedade e oferecia abrigo diante de temperaturas extremas, diminuindo a necessidade de lã e gorduras e possibilitando uma grande mobilidade à população, que assim ampliava seus conhecimentos sobre as plantas curativas e alimentícias, sobre os animais úteis ou perigosos. A adaptação ao meio não era estática, mas apresentava um amplo espectro, imprimindo maior cosmopolitismo a esses povos, que em conjunto constituíam um grande cenário territorial conhecido como Mesoamérica.

De acordo com López Austin e López Luján, a dimensão das histórias particulares estava sempre entrelaçada com a das histórias “globalizadoras”, que “produziram formas de coesão em amplos cenários supra-étnicos”.[7] A visão cósmica do devir punha o universo como primeiro horizonte de inteligibilidade. Era o sentido cósmico que orientava os sentidos mundanos e permitia a conexão entre mundo e inframundo, entre o lugar dos vivos e o dos mortos, assim como entre as diferentes formas de vida ou expresssões do sujeito.

Numa sociedade aberta ao cosmo, é compreensível que a concepção do espaço não tivesse propriamente fronteiras. No México pré-hispânico foi possível identificar três superáreas culturais que abarcam amplos territórios e que se comunicavam por terra e pela água para troca de conhecimentos, ideias e produtos, já que se tratava de áreas com condições geoecológicas diferentes. Contudo, não se estabeleceu comunicação apenas com os povos do norte do continente. Os estudiosos do passado pré-hispânico nos oferecem alguns dados que testemunham o contato entre povos do Norte e do Sul: segundo Anthony P. Andrews, “quando os espanhóis chegaram, no século XVI, reportaram a existência de um ativo comércio de longa distância que chegava a todos os rincões do mundo maia […]”;[8] e, ademais, “A maioria dos objetos de ouro que foram recuperados da Fonte Sagrada de Chichén Itzá veio da Costa Rica e/ou do Panamá”;[9] Carlos Navarrete acrescenta que “algumas formas e desenhos da cerâmica mais antiga do sul da Mesoamérica, por volta de 1600 a. C., resultaram de contatos com as costas da Colômbia e do Equador”;[10] frei Francisco Ximénez registra a troca de ouro por esmeraldas,[11] e Tomás Gallareta relata o uso de tumbaga[12] na região maia,[13] o que indica contato com os povos que habitavam o atual território da Colômbia.

Os pesquisadores encontraram inclusive indícios fortes de que a amplitude das trocas se estendia muito além do continente. Entre outros, sabemos que foi encontrada uma figura romana manufaturada entre os séculos II  e III no centro do México, em uma oferenda funerária anterior a 1492. Também foram descobertas figuras de tipos negroides, com lábios e nariz grossos e penteado de trancinhas que permitem supor um contato entre os povos de um e outro lado do oceano, anterior à chegada dos espanhóis. Nesse sentido, a busca de confirmação desses encontros levou a que se fizessem travessias com embarcações da época, mostrando que era possível atravessar o oceano nelas e que a hipótese de viagens transatlânticas antes de 1492, embora seguramente infrequentes, é perfeitamente sustentável.[14]

Isso faz pensar no desenvolvimento de amplos conhecimentos na arte da navegação e em uma visão territorial extensa, cujos horizontes abarcam um complexo cultural muito variado, no qual se inscrevem primeiramente as diferentes áreas supra-étnicas da América, mas do qual não fica excluído o resto do mundo. Efetivamente, as investigações realizadas na região maia indicam o desenvolvimento de um sistema de sinalizações para navegação que incluía edificações, fogos e fumaça e o uso de bandeiras de penas para indicar as rotas que permitiram, entre outras coisas, passar pelos recifes[15] sem encalhar. As crônicas dos conquistadores se referem a uma navegação de altura, com tecnologia e conhecimentos correspondentes às condições particulares do território, lagos, rios e mares de seu entorno, que muitas vezes as naves dos europeus não podiam singrar.[16] No entanto, isso não era privativo dos povos da América. Há um caso similar na região central da África em que os rios impetuosos que vão do Congo aos grandes lagos detinham a incursão dos conquistadores.[17] Em ambos os continentes, as populações contavam com um sistema de comunicações por água que obviamente não usava embarcações à vela — salvo em casos muito especiais —,[18] porque as características do lugar condicionaram a criação de embarcações de outro tipo, mas que permitia longos percursos. Segundo Andrews:

As canoas maias, cavadas em um só tronco de cedro, caoba ou outros tipos de madeira dura, variavam de tamanho: havia desde pequenas pirogas para um só indivíduo até grandes embarcações capazes de acomodar entre quarenta ou cinquenta pessoas.[19]

Em territórios montanhosos mas abundantes em rios e lagos, num continente com características insulares, cercado de ilhas, era natural que se constituíssem sociedades muito ligadas à água. “Na diversidade geográfica e cultural do mundo maia pré-hispânico, a água marítima ou fluvial fazia o papel de elemento integrador de vital importância”,[20]  afirma Sonia Lombardo, ao fazer uma leitura iconográfica dessa cultura. E Hernán Cortés, ao se queixar de que não souberam lhe indicar caminhos por terra,[21] reafirmava a importância da navegação como meio principal de deslocamento para terras distantes. De acordo com Andrews, “qualquer porto litorâneo pode ter servido como ponto de passagem, mas há evidências a sugerir que alguns deles serviram como portos estratégicos na movimentação de produtos entre regiões distantes”.[22] Para María Eugenia Romero,

[…] em termos de navegação comercial marítima de longa distância, a conquista mais importante foi o estabelecimento de um sistema de sinalizações de ajuda à navegação muito bem organizado, entendido como tudo aquilo que tem por objeto torná-la segura, e que no caso dos maias correspondeu principalmente a estruturas permanentes, localizadas ao longo dos litorais em posições estratégicas, as quais, além de sua função intrínseca como santuários, tinham uma utilidade prática para os navegantes, seja porque indicavam áreas de alto risco para as embarcações — como baixios, penhascos, bancos de coral superficiais ou recifes — ou porque serviam como pontos de orientação e indicavam canais navegáveis ou a rota a seguir.[23]

A marcação de rotas traça caminhos de intercomunicação cultural em toda a região norte e entre o norte e o sul do continente. As viagens eram uma prática corrente e serviam para o abastecimento de produtos, mas, sobretudo, para a troca de conhecimentos e histórias, mitos e experiências. Eram um meio de enriquecimento cultural que, evidentemente, foi suspenso no momento da Conquista, ao se proibir o indígena de navegar.[24] Seguramente, as viagens e trocas continuaram sendo feitas de modo clandestino, porque parece que as histórias, da Conquista contadas em um lado eram conhecidas, pelo menos em parte, pelo outro. Não obstante, navegar sob proibição era sumamente perigoso, e viajar por terra supunha, além dos riscos, aumentar em muito o tempo de traslado.

A Conquista parece, assim, ter gerado enclosures ou cercos regionais que buscavam reduzir ao máximo os horizontes territoriais, como mecanismo ao mesmo tempo de contrainsurgência e de organização das atividades geradoras de riqueza.

O processo de colonização durou três séculos e finalmente foi destroçado por uma resistência popular que, já nesse momento, confluiu com as diferenças entre os setores dominantes da metrópole e das colônias. Quase todo o continente entrou em um ciclo de rebeliões anticoloniais que, iniciado no Haiti em 1804, se estendeu pouco a pouco até a ponta da Terra do Fogo. Nesse processo foi sendo remodelada a identidade comum dos povos do continente, que os vinculava a uma mesma história de despojamento e ultraje na qual, no entanto, foi se configurando uma mestiçagem conflitiva e contraditória em que os povos nativos reaparecem transformados por esse longo período de negação, proibições e trocas, enquanto os europeus, por sua vez, se americanizam.

Um dos primeiros sinais percebidos na luta de independência é o representado por Simón Bolívar propondo a unidade dos povos da América, que é acompanhada, de maneira não muito visível, de uma reafirmação das territorialidades e culturas pré-colombianas. Os povos maias, nauas, tarahumaras, purépechas, encontram na luta de independência um momento de reconhecimento próprio e a reconstituição que não se expressava na luta pela apropriação das instâncias de governo da Nova Espanha, mas sim no rompimento de alguns dos cercos impostos pelos conquistadores e na recuperação ou recriação de suas histórias coletivas, que são, também, as histórias dos territórios.

As independências, apesar de suas contradições, significaram um momento de recriação da visão continental, supra-étnica, de uma territorialidade que já compartilhava não só um passado pré-colombiano de interações e histórias paralelas ou cruzadas, mas também a história comum de uma colonização selvagem que, a essa altura, ofendia inclusive seus herdeiros crioulos.

O México nesse momento abarcava um território de mais do dobro de seu tamanho atual. A Nova Espanha se situou acima das três áreas supra-étnicas do norte do continente, mas a luta de independência teve ritmos e estilos sub-regionais distintos, e, como é de supor, o projeto de constituir uma nação, ou melhor, um Estado nacional ali onde os povos nativos queriam de preferência reconstituir suas autonomias comunitárias, enfrentou diversos obstáculos. As visões territoriais dos povos autóctones, massacrados, submetidos ou deslocados pela Conquista, eram muito diferentes das que tinham os crioulos, que se erigiam como classe dominante local. A concepção e a organização tanto do espaço como da sociedade apontavam para sentidos díspares. Apesar disso, ambos apelavam para uma história de dimensão continental que emergia dos cercos coloniais com ares de esperança. Novamente a visão territorial aberta augurava um futuro de promessas e possibilidades.

A América independente, a América Latina, traz no íntimo a América pré-colombiana, que desponta por todos os seus poros, resistindo ao novo cerco, agora em forma de Estados nacionais que se estabeleceram violentando as linhas históricas de demarcação das diferentes culturas. Em muitos casos, os povos foram fragmentados pelas fronteiras nacionais, e seus fluxos, interrompidos ou entorpecidos. É o que aconteceu aos povos maia, quíchua e guarani, entre outros. Ou seja, a Conquista submeteu fisicamente os povos, mas não arrancou de seu imaginário a ideia de um território vasto e livre através do qual circulavam as pessoas e as ideias. A resistência dos povos se manteve viva em toda a América durante três séculos, até que as revoltas chegaram a uma intensidade que, combinada com a ascensão do capitalismo inglês, a decadência das sociedades ibéricas e a consolidação de uma cultura crioula que reclamava sua autonomia em relação aos peninsulares, as estruturas coloniais desmoronaram.

Não obstante, o processo de eliminação do cerco ou descolonização no qual se superpunham propostas e experiências de sociedades distintas deparou com novos obstáculos criados pelas nascentes estruturas de poder montadas pelas classes dominantes crioulas. Os fluxos continentais novamente ficaram presos numa pele pequena demais, que os povos dificilmente reconheciam como sua. A tensão que decorre dessas diferentes concepções do espaço, do território e da organização social mantém uma situação de precariedade orgânica que é aproveitada rapidamente pela potência emergente do norte do continente, exterminando tudo o que encontrava à sua passagem. Povos inteiros desapareceram da face do planeta, para não repetir a experiência das colonizações espanhola e portuguesa de conviver com uma resistência que acaba encontrando sempre uma válvula de escape (ou muitas).

A moderna sociedade se erigia sobre o extermínio dos povos nativos americanos, e a escravização dos africanos estendeu-se territorialmente sobre toda a área do Norte, aproveitando o momento, até o ponto em que as rebeliões populares conseguiram detê-la. Assim, novamente, esse grande complexo cultural formado pelas três áreas supra-étnicas pré-colombianas foi violentamente fragmentado, sendo-lhes impostas novas fronteiras sobre as do vice-reinado.

O México perde durante o século XIX muitos de seus povos, estigmatizados como “bárbaros do Norte” — que por isso são exterminados —, e a metade de seu território. Com invasões e pressões de todo tipo, conseguem-se impor alguns tratados, que entregam a metade norte do recém-estabelecido país, mas o imaginário popular nunca deixou de considerar seu esse território, embora usurpado. Ou seja, conserva-se de certo modo a unidade cultural subjacente à imposição do american way of life, que além disso tenta estender-se por todo o continente.

O México, por sua localização geográfica, tem uma percepção particular. Com o perigo permanente de ser engolido pela vigorosa sociedade do Norte, deslumbrado com seu “progresso”, vê a América Latina como um mecanismo de defesa em alguns momentos, mas em muitos outros a ignora.

A América Latina, na realidade, surge como representação moderna do sentido territorial compartilhado, herdado de tempos remotos e reforçado pelo novo processo colonizador que se impõe aos Estados Unidos. Surge como categoria de luta, de resistência à dominação, inclusive quando possa ter sentidos variados de acordo com os setores sociais que a sustentam. Mas a visão da América Latina se modificou ao longo da história, em correspondência com a própria concepção que o México tem de si mesmo em cada etapa, com a dinâmica social interna e a dinâmica das relações internacionais. A cada um desses momentos corresponde uma visão da América Latina em forma de mito, expressando claramente algumas das utopias libertárias de maior permanência, como a que propõe a união dos povos latino-americanos como base de sua emancipação.

Ao longo dos últimos quinhentos anos, tanto as rebeliões indígenas como as lutas de independência invocavam uma história compartilhada, unificada pelas raízes culturais encravadas no solo latino-americano e pelo reconhecimento de um opressor comum, como dizíamos antes. E, embora num primeiro momento as rebeliões indígenas e posteriormente as lutas de independência no México não estivessem tão explicitamente articuladas com suas equivalentes no resto da América Latina, devido à separação geográfica do norte e do sul do continente, as evocações de Tupac Amaru, Bolívar ou San Martín faziam pensar numa consciência regional ampla. O século XIX, momento de construção das primeiras repúblicas do continente, já permite vislumbrar os primeiros sinais dessa história comum com o nome de “América Latina”, mas muito claramente o século XX é o século da América Latina.

Certamente um dos momentos de maior intensidade do latino-americanismo no México é o período que se abre com a revolução cubana, prossegue com as lutas revolucionárias em muitos dos países da região e termina em geral com as ditaduras militares e os exílios maciços. O México se transforma nesse momento num crisol da América Latina, no qual o pensamento latino-americano pretensamente não-colonizado, revolucionário e/ou imperialista tem um auge criativo de grande relevância. A América Latina é pensada em si mesma e a partir de si mesma. As intelecções latino-americanas do sistema mundial se diferenciam das que chegam dos países dominantes. Desde as interpretações da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), que começam a reclamar uma leitura a partir de sua especificidade, até a teoria da dependência em suas várias versões — inclusive a marxista —[25] a América Latina cobra uma personalidade construída no cruzamento de experiências e histórias de todos os seus rincões, e uma boa parte delas é gestada e escrita em solo mexicano.[26]

No México, as lutas latino-americanas eram vividas como próprias e se incorporavam nas utopias libertárias de uma cultura continental que até hoje continua se empenhando em romper os cercos de opressão que foram se sobrepondo a elas: os cercos culturais — que criaram um sentido comum de inferiorização cultural do latino-americanismo, e principalmente do indígena — e os cercos sociais, impostos por um regime de organização antagônica e competitiva que tenta negar a natureza de sujeito e de ser político dos povos latino-americanos, reduzindo-os à categoria de força de trabalho.

Certamente o neoliberalismo conseguiu fragmentar esse imaginário latino-americanista no México, ao lhe propor um possível — mas fictício — salto para a modernidade, que lhe permitiria, no futuro, fazer parte do chamado “Primeiro Mundo”. A integração com o Norte desenvolvido se converteu no objeto do desejo, e a América Latina desapareceu do imaginário durante o período de namoro do Tratado de Livre-comércio da América do Norte (Nafta). Ninguém pensava mais no passado indígena ou latino-americano, nas próprias culturas, tudo se encaminhava rapidamente para a troca. A publicidade começou a ser escrita em inglês, todos aprendiam a pensar por meio dos ícones ou termos dos “comandos” dos programas de computação. Novas palavras eram ouvidas em toda a mídia: “inicializar”, em vez de “iniciar”; “acessar”, em vez de “ter acesso” ou “aceder”. O significado de conceitos como “soberania nacional”, “pátria”, “cultura” e “democracia” se transformou, e com eles a geografia que tornava o México uma parte satisfeita da América do Norte.

A América Latina desapareceu como referência até o dia 1o de janeiro de 1994, quando finalmente entra em vigor o Nafta: a cortina cai, deixando ao relento a realidade. Efetivamente, em vez de entrar para o Primeiro Mundo, a preparação de condições para a integração duplicou, no México, o número de pobres, transformou-o em um centro de ensamble — maquilagem* — industrial e cancelou definitivamente as esperanças de superação do povo mexicano, ao negar a propriedade coletiva da terra e mercantilizar toda e qualquer relação com o território.

O levante zapatista nessa mesma data, protagonizado por indígenas de Chiapas, pertencentes ao povo maia, fez emergir o “México profundo”[27] que os véus do neoliberalismo haviam ocultado. Um país no qual as necessidades básicas não são resolvidas não pode se considerar desenvolvido, apesar do reconhecimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).[28] E os zapatistas se levantam em armas por “trabalho, terra, teto, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz”, mas reivindicando também seu direito a fazer parte de uma nação que se erigiu sobre seus territórios e culturas mantendo suas diferenças, tradições e direito à autodeterminação.

Diante de um redesenho do território entendido como construção histórico-social que condensa práticas e pensamentos, cosmo, mundo e inframundo, histórias e resistências, símbolos e materialidades, os indígenas de Chiapas, descendentes dos bravos maias que lutaram contra os conquistadores, voltam a pôr no centro a identidade dos povos da América que, depois de mais de quinhentos anos de colonizações sucessivas e justapostas, continuam em pé de resistência para reclamar, junto com todos os povos do continente, a utopia de um mundo sem discriminações nem opressões.

A América Latina voltou a se transmutar em Mesoamérica para levantar-se contra os velhos e novos opressores. As selvas e o que resta dos territórios indígenas são atualmente o maior “butim de guerra” do mundo. O petróleo, a biodiversidade, oxigênio e as águas que os povos indígenas continuaram preservando até nossos dias são cobiçados pelos grandes poderes econômicos do planeta. Uma vez mais os Estados Unidos se estendem sobre os solos latino-americanos, ameaçando os últimos bastiões de resistência do ser humano, do ser comunitário não objetivado. Por isso, hoje, os povos se levantam em toda a América. Pouco a pouco, as culturas das profundezas da história, dos sótãos da sociedade, emergem grandiosas em sua generosidade e dignidade, defendendo seus territórios e territorialidades próprias, defendendo o direito à vida e o ser, lutando pela humanidade. natureza não é nossa, nós é que somos da natureza”, dizem hoje os zapatistas, e como natureza em luta se rebelam contra a depredação, a individualização e a objetivação do mercado.

Os povos da América — maias, mexicas, nauas, guaranis, ianomâmis, calimas, quíchuas, ashuares, miscigenados ou não, mas junto com os mestiços que alimentaram a cultura nativa, fazem parte de um mesmo grande universo cultural-civilizatório que, como cobra que muda de pele, às vezes é Mesoamérica, às vezes América Latina, mas sempre liberdade.

Tradução: Olga Cafalcchio.

 

* Refere-se ao processo de implantação maciça de maquilas, ou maquiladoras, empresas que operam no norte do México montando produtos de exportação a partir de componentes importados e utilizando mão-de-obra precária. Também se usa a forma maquia. (Nota da tradutora.)

Notas

[1] Alfredo López Austin & Leonardo López Luján, El pasado indígena (Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1996), P. 274.

[2] Retomando Carlos Walter Porto Gonçalves, admito que as territorialidades são as formas específicas de relacionamento com a natureza e de criação histórico-cultural que constituem o modo de vida e a cosmovisão dos diferentes povos.

[3] Gudrun Lenkersdorf, Repúblicas de índios (Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001).Toda a obra de Lenkersdorf é uma busca de entendimento das diferentes dimensões dessa intersubjetividade e suas implicações nos vários aspectos da vida em sociedade. Particularmente, ela desenvolveu a noção de relações “nosótricas” [“entre nós”] para designar o comportamento coletivo dos tojol abales, um dos povos maias de Chiapas.

[4] Foi assim que a tradição ocidental recolheu o pensamento desses povos; no entanto, seria possível formular uma interpretação não teológica de suas cosmovisões, a qual muito provavelmente contribuiria para a descoberta de outros elementos explicativos de sua visão do mundo.

[5] Alfredo Lopéz Austin & Leonardo López Luján, El passado indígena, cit., p. 224.

[6] Gudrun Lenkersdorf, Repúblicas de indios, cit., p. 259.

[7] Alfredo López Austin & Leonardo López Luján, El pasado indígena, cit., p. 274.

[8] Anthony P. Andrews, “El comercio marítimo de los mayas del Posclásico”, em Arqueología mexicana, VI (33), Cidade do México, Raíces, set.-out. de 1998, P. 17.

[9] Ibid., p. 22.

[10] Carlos Navarrete, “La navegación en la costa de Chiapas”, em Arqueologia mexicana, VI (33), cit., p. 34.

[11] Francisco Ximénez, apud Anthony P. Andrews, “El comercio marítimo de los mayas del Posclásico”, cit., p. 22.

[12] Tumbaga é uma liga de ouro (30 %) e cobre (70 %) desenvolvida pelos povos do atual território colombiano.

[13] Tomás Gallareta, “Isla Cerritos, Yucatán”, em Arqueología mexicana, VI (33), cit., p. 25.

[14] Romeo Hristov & Santiago Genovés, “Viajes transatlánticos antes de Colón”, em Arqueología mexicana, VI (33), cit.

[15] Um dos maiores e mais importantes recifes do mundo se localiza à margem da península de Yucatán, descendo o golfo do México na direção da América Central.

[16] Ver María Eugenia Romero, “La navegación maya”, em Arqueología mexicana, VI (33), cit.

[17] Peter Forbath, El río Congo: descubrimiento, exploración y explotación del río más dramático de la tierra (Cidade do México:Turner/Fondo de Cultura Económica, 2002.

[18] María Eugenia Romero, “La navegación maya”, cit.

[19] Anthony P. Andrews, “El comercio marítimo de los mayas del Posclásico”, cit., p. 19.

[20] Sonia Lombardo de Ruiz, “La navegación en la iconografía maya”, em Arqueologia mexicana, VI (33), cit., p. 47.

[21] “[…] e como eles não são servidos a não ser por água, não sabiam o caminho que eu devia seguir por terra”. Hernán Cortés, Cartas de relación, apud María Eugenia Romero, “La navegación maya”, cit., p. 14.

[22] Anthony P. Andrews, “El comercio marítimo de los mayas del Posclásico”, cit., p. 22.

[23] María Eugenia Romero, “La navegación maya”, cit., p. 13.

[24] Ibid., p. 16.

[25] Dentro da teoria da dependência se localiza um amplo leque de posições que vão de Fernando Henrique Cardoso (versão convencional, muito imbuída no pensamento cepalino) a Ruy Mauro Marini (versão marxista), passando por uma variedade de pensadores que deram importantes contribuições ao conhecimento da América Latina e da construção de um pensamento especificamente latino-americano, entre os quais se encontram Vania Bambirra, Sergio Bagú, Theotonio dos Santos, Aníbal Quijano, José Nun, Maria da Conceição Tavares e outros.

[26] Talvez a obra mais importante nesse sentido seja Dialéctica de la dependencia, de Ruy Mauro Marini, por se tratar de uma proposta de interpretação da totalidade capitalista — e não só da realidade latino-americana — na qual a América Latina cobra existência de sujeito, aparecendo como uma das partes que explicam a dinâmica geral, mas que ao mesmo tempo tem a sua própria dinâmica dentro desse contexto mais amplo. Essa obra é um dos clássicos do pensamento latino-americano.

[27] Termo cunhado por Guillermo Bonfil, antropólogo que mudou a perspectiva dos estudos das culturas nativas.

[28] Esse reconhecimento é obtido em 1992 como parte das condições simbólicas que legitimam a integração no Nafta, tentando se contrapor às críticas que insistiam na profunda desigualdade das economias dos três países envolvidos e na desvantagem que isso representava para o México. Esse reconhecimento, no devido tempo, contribuiu para criar a ficção do México como país “emergente” que, por sua ortodoxia neoliberal, era capaz de transitar do Terceiro para o Primeiro Mundo.

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