2015

Violência do pai, violência dos irmãos

por Maria Rita Kehl

Resumo

O período da recente ditadura militar no Brasil (1964-1985) não foi encerrado com estrondo, mas como um suspiro de exaustão do regime. Nunca houve reparação em nosso país pelas torturas então legitimadas pelo Estado. Afinal, a Lei de Anistia também perdoou os militares e civis que presidiram as instituições de repressão do Estado, o que levou à impunidade daqueles que praticaram tortura e cometeram assassinatos. Parte da população do período e também de hoje considera a tortura e a morte de opositores ao regime um “mal necessário”. Essa lacuna, a da falta de reparação histórica, ajudou a criar condições para uma cultura da tortura no Brasil. Ela continua a ser praticada “não mais contra militantes políticos, mas contra pequenos ladrões, traficantes e suspeitos inocentes, nas favelas, nas periferias, no campo (índios e posseiros), com a conivência de parte do Estado brasileiro.” É o que herdamos por causa da omissão; por isso, não surpreende que o Brasil tenha sido o último dos países do Cone Sul que sofreram com regimes ditatoriais nos anos 1960-1970 a ter instituído uma comissão para apurar os crimes de Estado e a ter erigido monumentos em homenagem às vítimas do regime. Os trabalhos da Comissão da Verdade entraram necessariamente em contato com uma questão fundamental: o que move o torturador. Numa perspectiva freudiana, ele age respaldado pelo Estado e sob a figura de um líder e de um ideário e, enquanto membro da massa, abre mão de seu próprio julgamento, do seu superego. Torna-se, assim, propenso à violência. Contudo, que isso não seja usado de desculpa para os crimes perpetrados: diante da vítima, o torturador pode facilmente esquecer-se da causa a que aderiu para praticar seu ato, passando a ser movido pelo mais puro sadismo. A Comissão da Verdade revelou realidades profundas dos porões da ditadura militar brasileira: além das atrocidades vividas pelas vítimas, do sofrimento interminável das famílias, aquele que infligiu tais horrores também não pôde escapar de uma pena psíquica imposta por seus próprios crimes, pois “não é fácil efetivar a passagem do sou um homem para sou um assassino de outros homens.”


FREUD EM TOTEM E TABU: A VIOLÊNCIA COMO ATO DE LIBERTAÇÃO

Pode parecer paradoxal aos não psicanalistas que, de acordo com a hipótese freudiana, o assassinato de um pai tenha sido a condição para a criação da vida em sociedade tal como a conhecemos. A explicação do paradoxo é razoável: não se pode falar em ordem social em uma comunidade onde o mais forte seja capaz de impor a lei de seu desejo a todos os outros. A lei do mais forte reina na natureza; nas sociedades humanas, a força é substituída pela lei simbólica.

Em seu longo ensaio de 1914-15, “Totem e tabu”[1], Freud pesquisou a origem da única lei comum a todas as sociedades humanas: a lei que interdita o incesto do filho com a mãe. Para explicar a universalidade da interdição do incesto, Freud traçou uma hipótese teórica que, mesmo que não seja estritamente científica aos olhos da antropologia, tem para a psicanálise o lugar de um mito de fundação da cultura. De acordo com a hipótese freudiana, nos agrupamentos humanos primitivos, a ordem era imposta aos filhos a partir das conveniências da satisfação do pai. O pai da horda primitiva teria o privilégio de gozar de todas as mulheres e manter os filhos emasculados, submetidos a sua força.

A conquista da linguagem tem um papel importante na emancipação dos filhos. Assim como no século XVI Étienne de La Boétie, no Discurso da servidão voluntária[2], propõe que os súditos que podem comunicar-se entre si são capazes de unir-se contra o tirano, também os irmãos da horda freudiana deixam de temer a força bruta do pai no momento em que decidem juntar suas forças para eliminar o pai abusador. A violência intolerável estaria do lado do pai, não dos filhos que o mataram. Sem a ousadia de um ato destruidor da velha ordem, baseada no gozo selvagem do mais forte, não existiria a menor condição de liberdade individual entre os membros das coletividades primitivas. Ao eliminarem o pai, os filhos fazem cair também a lei do mais forte de que ele se servia.

Mas e depois? O simples assassinato do pai não resolveria o problema do convívio entre os membros da horda primitiva. Destituída a ordem imposta pelo pai tirano, os irmãos estariam à mercê da luta permanente de todos contra todos até que algum deles, pela força, dominasse os outros e reinstaurasse a lei baseada no direito ao gozo do mais forte. Para impedir o retorno da tirania do mais forte, no lugar do pai real assassinado, foi preciso erigir uma nova ordem. Esta seria sustentada a partir de: (1) uma figura totêmica do pai que preservasse a dimensão imaginária do poder e da ordem – qualquer ordem; (2) uma lei simbólica que organizasse as trocas e a economia do gozo entre os irmãos.

Em uma conferência sobre a Alegria em psicanálise, proferida em São Paulo em 2005, a psicanalista Radmila Zigouris localizou apenas três episódios alegres na teoria psicanalítica: (1) o júbilo da criança que inventa o jogo do fort-da para simbolizar a dinâmica da presença/ausência maternas, em “Além do princípio do prazer”[3] (1920); (2) a alegre surpresa do bebê, por volta dos 18 meses, ao reconhecer sua imagem no espelho[4]; (3) a euforia dos irmãos recém-libertos da tirania, ao devorar o corpo do pai morto no banquete totêmico após o assassinato do tirano. Pode-se também pensar nesse assassinato libertador como paradigma da violência revolucionária.

Essa teria sido, para Freud, a origem da lei universal da interdição do incesto. Se o pai interditava o gozo dos filhos ao reservar todas as mulheres para si, após seu assassinato instaurou-se a lei que preservou seu lugar simbólico na forma de podes ter acesso a todas as mulheres, menos a mulher do pai. Para Freud, essa teria sido a origem do tabu que interditou, em todas as sociedades humanas, o acesso dos filhos ao corpo sexuado da mãe.

É importante observar que o gozo absoluto do retorno à unidade com o corpo materno é, na prática, impossível. Nem mesmo uma eventual relação sexual com a mãe restituiria esse gozo. O tabu do incesto, na prática, funciona para transformar o impossível em proibido. O que ele impede não é a conjunção carnal com aquela senhora que nos carregou no ventre, nos amamentou e aconchegou, proporcionando as experiências mais intensas e mais perdidas (porque anteriores à linguagem) de prazer. O que a lei barra é o acesso ao gozo sem limites – condição da loucura e de algumas psicopatias graves. Um gozo, aliás, muito mais associado à violência do que ao princípio do prazer.

O que a lei institui, na inauguração da nossa vida subjetiva, é a impossibilidade de retorno do infans (que ainda não é um sujeito) à totalidade (simbolizada pelo corpo materno) da qual o nascimento já o separou. A lei, em psicanálise, é o princípio que institui a separação entre o infans e a experiência de totalidade (uterina), a que chamamos gozo. Essa separação é condição da emergência do sujeito, que para a psicanálise é sempre um ser de falta. A falta é que move o desejo. Seu apagamento é condição da angústia, disparada pela falta da falta. Há uma relação estrutural entre gozo e angústia.

Todas as tentativas de fazer exceção à lei – alguns transportes de paixão, de poesia, de embriaguez religiosa, amorosa ou estética, de desmesura erótica, de alcoolismo, de drogadição, de delírio – apontam para a nostalgia da não separação, que é o modo como Lacan compreendeu a tendência da pulsão de morte.

FREUD EM “PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU”: A VIOLÊNCIA COMO ATO DE SUBMISSÃO

Em 1921 Freud escreveu seu segundo grande ensaio dedicado ao que podemos chamar de psicanálise de grupo, em que aplica seu modelo do funcionamento psíquico a fenômenos da vida em sociedade. Em “Psico-logia das massas e análise do eu”[5], o criador da psicanálise busca entender o comportamento dos indivíduos que participam de formações de massa, animados pelo sentimento oceânico de pertencimento a uma totalidade. Este seria o mesmo sentimento que se perdeu quando da instauração da lei que separa os membros de uma sociedade da possibilidade do gozo absoluto, conforme o próprio Freud propôs no texto de 1914 (“Totem e tabu”). O retorno do sentimento oceânico que o indivíduo busca ao se dissolver na massa – tanto faz se comício ou carnaval – anula temporariamente nossa condição faltante e nossa solidão fundamental. Em um texto anterior (1920), esse sentimento de diluição das tensões do eu seria uma das formas de satisfação da pulsão de morte. O que a pulsão de morte busca não é necessariamente a autodestruição, e sim a eliminação das tensões vitais – um estado a que chamamos de gozo (mais uma vez). O conceito de gozo é lacaniano, mas a fonte é puro Freud.

Ao escrever “Psicologia das massas”, Freud inspirou-se em Psicologia das multidões de Gustave Le Bon[6], autor de diversos outros livros de psicologia e divulgação científica. A ideia mais importante do autor francês diz respeito à diluição das diferenças individuais que se produzem entre os membros do que ele chama de multidão psicológica. O grande achado, na primeira parte do livro de Le Bon (“A alma das multidões”), refere-se ao caráter inconsciente das motivações das massas, que pensam por imagens e agem guiadas pelo poder hipnótico de certos líderes. Daí a relação entre a psicologia das massas e a alienação – a ação cega do indivíduo que obedece ao desejo do líder e não se responsabiliza por suas escolhas.

Como se produz esse tipo de poder do líder de massas? Foi Freud, e não Le Bon, o grande teórico da psicologia de massas do século XX, ao propor que os membros da massa se apropriam do líder através de mecanismos de identificação com os ideais (paternos) que ele representa. Mas, ao se identificarem com o (pai) ideal, os membros das formações de massa sentem-se dispensados do julgamento de seu próprio superego – daí a disponibilidade das massas para a violência, para atos de caráter delinquente que nenhum de seus membros, isoladamente, teria coragem de praticar. O gozo do sujeito que participa da massa e segue seu líder consiste em ser dispensado da responsabilidade de escolher. A violência da multidão é movida pela paixão da submissão.

O importante aqui, no que toca ao nosso tema, é que o “Psicologia das massas” foi escrito cerca de dez anos antes do advento do fascismo na Alemanha. Não sabemos se foi um texto premonitório, mas com segurança podemos afirmar que ele nos fornece um importante instrumento teórico para compreender o maior fenômeno de psicopatia coletiva que o mundo moderno já conheceu. As massas, fascinadas pelo líder delirante, autorizaram-se a participar da sinistra e criminosa caçada aos judeus, sem se indagar ou se responsabilizar pelo destino deles.

OUTRO EXEMPLO DE SERVIDÃO VOLUNTÁRIA A SERVIÇO DO MAL: A TORTURA DURANTE AS DITADURAS MILITARES DA AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XX

O relatório da Comissão Nacional da Verdade[7], sobre os crimes praticados por responsabilidade do Estado brasileiro entre 1947 e 1988, assume que a tortura no Brasil foi uma política estatal. O Estado assumiu a prática do mal radical em nome de um bem que, como sempre ocorre quando se fala no bem absoluto, era o interesse de alguns. Vale lembrar a advertência feita por Lacan em seu famoso seminário sobre a ética em psicanálise[8]: quando alguém diz que age em nome do bem, é sempre bom perguntar: o bem de quem?

As investigações da CNV provaram que a tortura – muitas vezes seguida de morte – praticada em dependências das Forças Armadas (ou em muitos outros lugares improvisados), durante a ditadura militar, correspondeu a uma política de Estado, intensificada a partir de 1968, depois da promulgação do ai-5. Em nome de uma suposta guerra, se praticou, cumprindo ordens, uma violência covarde contra prisioneiros imobilizados e indefesos. O que nos escandaliza, hoje, é perceber que os torturadores daquela época, com raras exceções, continuam a se orgulhar do que fizeram. Os relatos de sobreviventes nos fazem saber que a sanha do torturador logo perde o foco que supostamente a justificava (a obtenção de informações) para dar lugar ao gozo sádico que consiste em causar dor e humilhar quem se encontra submetido a seu poder.

O caso mais grave de covardia e crueldade praticado por agentes do Exército brasileiro foi a repressão ao projeto de guerrilha do Araguaia, assim como aos camponeses que mantinham relações de cooperação com os guerrilheiros: todos os combatentes capturados foram assassinados e seus corpos nunca foram entregues aos familiares. Nove deles foram executados na selva e dos quais só o corpo de Maria Lúcia Petit foi encontrado. Trinta e dois foram executados depois de passarem por prisão e tortura. Vinte e seis foram assassinados em combate, dos quais só o corpo de Bergson Gurjão Farias foi localizado. Apenas um militar, o Cabo Rosa, foi morto durante o confronto. Outros quatro foram mortos por fogo amigo.

É importante lembrar que, no final da década de 1970, o Brasil foi o único país da América Latina que perdoou os militares sem exigir de parte deles nem reconhecimento dos crimes cometidos nem pedido de perdão. Não me proponho aqui a discutir as condições da anistia ampla, geral e irrestrita articulada pelos militares antes de deixar o poder. Mas é escandaloso constatar que, muito recentemente, em 2005, quando o ministro Tarso Genro e o secretário de Direitos Humanos Paulo Vannuchi propuseram a reabertura do debate sobre a tortura no período militar, o engajamento da sociedade no debate tenha sido tíbio – sobretudo em comparação com a violenta reação de alguns setores militares. Reação que aliás se repetiu quando a Comissão da Verdade revelou os crimes cometidos por membros das Forças Armadas em suas dependências, afirmando, em seu relatório final, que a tortura durante a ditadura não foi cometida por agentes isolados em momentos de descontrole, mas constituiu uma política de Estado exercida com a finalidade de aniquilar todas as iniciativas de resistência aos governos militares.

O esquecimento da tortura produz, a meu ver, a naturalização da violência como grave sintoma social no Brasil. O texto do professor Paulo Arantes no livro O que resta da ditadura?[9] menciona pesquisa da norte–americana Kathryn Sikkink[10], segundo a qual a polícia brasileira é a única na América Latina que comete mais assassinatos e crimes de tortura na atualidade do que durante todo o período da ditadura militar. Por coincidência, o Brasil foi o único país da al que não puniu os torturadores (e mandantes) ao final da ditadura militar de 1964-85. A impunidade não produz apenas a repetição da barbárie: tende a provocar uma sinistra escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos que deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz.

Para a psicanálise, a autorização da violência e de outras práticas perversas, em nome de um suposto bem comum, transforma-se em imperativo de uso da violência em obediência à lei que rege o funcionamento do superego e que pode ser expressa nos termos que Slavoj Žižek[11] resumiu assim: se você pode, você deve.

Não é difícil entender a passagem do consentimento à compulsão. Que o sadismo seja uma forma de gozo, isso já aprendemos com o famoso marquês libertino. Ocorre que o trabalho do superego (isso é puro Freud) não se resume a representar a lei e interditar certas formas antissociais de gozo. O superego, como herdeiro do complexo de Édipo, representa também os restos do gozo que o sujeito perdeu ao se desprender do estado de completude em que vivia antes de se separar do Outro materno. O imperativo “não goza!” é, paradoxalmente, indissociável da interdição “não goza!”.

Assim, se alguém que ocupe um lugar de autoridade (sucedâneo do lugar paterno, na infância) autoriza um sujeito a gozar de forma sádica do corpo de seu semelhante submetido a seu poder, esse convite à maldade é interpretado pelo superego como uma ordem. “Goza!”, diz o superego do torturador. “Você pode! Se você pode… você deve!”

Isso não significa que qualquer um de nós, diante do mesmo imperativo e das mesmas condições facilitadoras, seja capaz de torturar nosso semelhante. Muitos não são capazes de torturar nem um camundongo. Para a maior parte dos membros de uma sociedade, a interdição do abuso sobre o corpo do outro tem um caráter sagrado. Isso vale para religiosos e ateus – da mesma forma, infelizmente, que o prazer em torturar. Mas essa interdição pode ser suspensa em condições excepcionais. E o sujeito normal se transforma em assassino ou em torturador – cumprindo ordens. Essa é a natureza da banalidade do mal, ideia pela qual Hannah Arendt[12] foi tão criticada e incompreendida ao analisar o caráter comum do assassino Eichmann, julgado em Jerusalém pelos crimes cometidos durante o Holocausto.

A relação estabelecida por Sikkink entre anistia aos torturadores e aumento da violência de agentes de Estado contra civis, no Brasil, tem relação com o fato de que nossa anistia ampla, geral e irrestrita funcionou como um convite ao rápido esquecimento dos crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura. O esquecimento que produz sintoma não é da mesma ordem de uma perda circunstancial da memória pré-consciente: é da ordem do recalque. É possível, sim, considerar a existência de um inconsciente social cujas representações recalcadas produzem manifestações sintomáticas não só nos indivíduos, mas na sociedade.

A ideia de sintoma social é controversa na psicanálise. A sociedade não pode ser analisada do mesmo modo que um sujeito; por outro lado, o sintoma social não tem outra expressão senão aquela dos sujeitos que sofrem e manifestam, singularmente ou em grupo, os efeitos do desconhecimento da causa de seu sofrimento. O sintoma social se manifesta através de práticas e discursos que se automatizam, independentemente das estruturas psíquicas singulares de cada um de seus agentes. Assim como o sintoma individual tende a se cronificar se o sujeito não se trata, também o sintoma social tende a se agravar com o passar do tempo.

Depois de ter escutado, ao lado de meus companheiros da CNV, depoimentos de torturadores e assassinos de militantes políticos, cheguei à conclusão de que a licença para abusar, torturar e matar acaba por traumatizar também os agentes da barbárie. Não se ultrapassam certos limites impostos ao gozo impunemente. Assim como algumas experiências extremas com a droga e o álcool traumatizam o psiquismo pelo encontro que promovem com o gozo da pulsão de morte, o convívio normal com a crueldade traumatiza o sujeito que se autorizou a ser cruel e imagina beneficiar-se disso. O sentimento de realidade – que para o homem é sempre uma construção social – se desorganiza, assim como o sentimento de identidade do sujeito.

Não é fácil efetivar a passagem do sou um homem para sou um assassino de outros homens – ela tem um preço alto. O efeito, para o próprio sujeito, é tão aterrorizante que ele se vê impelido a repetir seu ato mortífero até assimilar de vez sua nova hedionda identidade.

Não por acaso, somente algumas adesões fanáticas a crenças e rituais religiosos são capazes de redimir alguns assassinos cruéis, sejam eles policiais ou bandidos comuns: só a fé em uma instância onipotente é capaz de ressignificar a lei, quando esta foi desqualificada em sua função de barrar o gozo. Talvez sim o torturador arrependido precise se submeter a uma rigorosa disciplina – como a que algumas religiões propõem a seus adeptos – de modo a barrar o excesso de gozo experimentado ao praticar atos bárbaros em nome do bem.

Um exemplo que confirma essa hipótese é o do delegado aposentado Cláudio Guerra, autor do livro Memórias de uma guerra suja[13], no qual relata com minúcias os assassinatos que praticou ou dos quais participou, em nome da lei e da ordem, durante a ditadura militar, assim como a prática corrente de fazer queimar os corpos das vítimas no forno usado para fabricar cerâmica em uma fazenda na região de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Cláudio Guerra relatou com detalhes, à Comissão da Verdade, os crimes descritos em seu livro de memórias. Hoje o ex-delegado é membro da Igreja Evangélica. Usa uma cruz no peito. Um irmão pastor o acompanhou durante o depoimento dado à CNV.

CRUELDADE E CONSENTIMENTO SOCIAL

Se a possibilidade de gozar com a dor do outro está aberta para todo humano, por outro lado a tortura só existe – e, em certos casos, prolifera – porque a sociedade, explícita ou implicitamente, a admite. Por isso mesmo, porque se inscreve no laço social, não se pode considerar a tortura desumana. Ela é humana: não conhecemos nenhuma espécie animal capaz de instrumentalizar o corpo de um indivíduo da mesma espécie e, além do mais, gozar com isso, a pretexto de certo amor à verdade. Sabemos que combater o terrorismo com práticas de tortura já é adotar o terrorismo; nesse caso, trata-se de terrorismo de Estado, que suspende aqueles direitos e liberdades que garantem a condição livre e responsável de todos os cidadãos. Que verdade se pode obter através de uma prática que destrói as condições de existência social da verdade? Que ordem pode ser defendida quando o Estado se torna detentor das mais graves formas de anomia?

Quando não é meio de gozo, a dor infligida ao outro deveria nos provocar repulsa. Um dos traços que distingue o humano de outros animais é a capacidade de identificação com a dor do outro. Por que, então, parece que o corpo torturado não diz respeito à maioria de nós? Talvez porque um corpo torturado seja um corpo momentaneamente dissociado de um sujeito, transformado em objeto nas mãos poderosas do outro – seja um agente do Estado ou um criminoso comum. A tortura refaz o dualismo corpo/mente, ou corpo/espírito, porque a condição do corpo entregue ao arbítrio e à crueldade do outro separa o corpo e o sujeito. Sob tortura, o corpo fica tão assujeitado ao gozo do outro que é como se a alma – isso que, no corpo, pensa, simboliza, ultrapassa os limites da carne pela via das representações – ficasse à deriva. A fala que representa o sujeito deixa de lhe pertencer, uma vez que o torturador pode arrancar de sua vítima a palavra que ele quer ouvir, e não a que o sujeito queria dizer e, menos ainda, aquela que ele se autorizaria a dizer. É justamente esta a palavra que o sujeito está determinado a não dizer (e muitos perderam a vida por sustentar essa recusa) a que interessa ao torturador. Resta ao sujeito, preso ao corpo que sofre nas mãos do outro, o silêncio, como última forma do domínio de si, até o limite da morte. Resta o grito involuntário, o urro de dor que o senso comum chama de animalesco – talvez para evitar o risco de identificação com o sujeito que urra de impotência e dor. E resta a mentira, para os poucos capazes de manter a frieza de mentir no momento do terror. Nesse caso, a mentira adquire o estatuto de ato político consciente e corajoso.

Apesar de todo o terrorismo de Estado praticado no Brasil por membros das polícias e das Forças Armadas, ainda é como se a ditadura por aqui tivesse terminado não com um estrondo, mas com um suspiro – já que os estrondos foram inaudíveis para os ouvidos dos que nada queriam escutar. Como se pudéssemos conviver tranquilamente com o esquecimento dos desaparecidos políticos. Como se nosso conceito de humanidade pudesse incluir tranquilamente o corpo torturado do outro, tornado – a partir de uma radical desidentificação – nosso dessemelhante absoluto. Aquele com quem não temos nada a ver.

Mas se vítimas dos torturadores, apesar da resistência geral, não se recusaram a elaborar publicamente sua experiência, de que lado está o apagamento da memória que produz a repetição sintomática da violência institucional brasileira?

A resposta é imediata: do lado dos remanescentes do próprio regime militar, seja qual for a posição de poder que ainda ocupam. São estes os que se recusam a enfrentar o debate público – com a espantosa conivência da maioria silenciosa, a mesma que escolheu permanecer alheia aos abusos cometidos no país, sobretudo no período pós-ai-5. Muita gente ainda insiste em pensar que a prática da tortura teria sido (ou ainda é) uma espécie de mal necessário imposto pelas condições excepcionais de regimes autocráticos e que, sob um regime democrático, não precisamos mais nos ocupar daqueles deslizes do passado.

Não, a tortura não foi praticada em segredo por indivíduos descontrolados, escondidos em compartimentos secretos das delegacias e dependências militares. A tortura foi uma política de Estado. E, enquanto o Estado não reconhecer isso, continuará a ser praticada – não mais contra militantes políticos, mas contra pequenos ladrões, traficantes e suspeitos inocentes, nas favelas, nas periferias, no campo (índios e posseiros), com a conivência de parte do Estado brasileiro.

A respeito do caráter supostamente excepcional da tortura, o cientista político Renato Lessa esclarece, em artigo publicado na revista Ciência Hoje:

Quando pensamos no modo concreto e material de operação de um regime autocrático, é necessário ultrapassar uma percepção difusa que diz que nele as liberdades públicas são suprimidas. É certo que o são: é esta, mesmo, uma condição necessária para sua afirmação como forma política. No entanto, para que as liberdades sejam suprimidas deve operar uma exigência material precisa: é necessário que o regime au-tocrático tenha a capacidade efetiva de causar sofrimentos físicos aos que a ele se opõem[14].

A tortura não seria uma prática excepcional tolerada em condições extremas, mas o próprio fundamento do regime autocrático. Este, de forma não declarada, assenta-se exatamente na relação entre o torturado e o torturador: lugar de uma crueldade e de um sofrimento que ultrapassam propósitos pragmáticos de extração de informação. Nesse caso, todo cidadão está potencialmente sujeito à tortura, sendo tal dessimetria aterrorizante entre dominadores e dominados a própria base dos regimes de exceção. Daí decorre, ainda segundo Lessa em outro artigo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo,

a vulnerabilidade de imensos contingentes da população brasileira à violência policial. Se somarmos a isto a desproteção desses mesmos segmentos diante do domínio de grupos paramilitares, nos quais a presença de “agentes da ordem” não é infrequente, temos um cenário de baixa concretização de direitos fundamentais. A cultura policial no país […] abrange […] a prática de chacinas e assassinatos justificados por “autos de resistência”. […] É o tema da tortura que segue vigente. A presença renitente da tortura e da crueldade física como prática das forças da ordem, apesar da constituição que temos, resulta de seu caráter “anistiável”[15].

Lessa conclui: “a pseudoanistia a torturadores revela uma dificuldade básica em lidar com os efeitos da crueldade produzidos pelo sistema de poder, em qualquer tempo”[16].

A incômoda investigação conduzida durante os dois anos e meio de vigência da Comissão da Verdade e a produção do relatório, que esperamos que seja lido por muitos brasileiros, buscam restabelecer alguma identificação das novas gerações, estas que nasceram e cresceram durante o período democrático, com os mortos e desaparecidos de algumas décadas atrás. Buscam também trazer de volta ao espaço público e democrático a memória dos mortos e dos desaparecidos durante a ditadura militar e mais uma vez homenagear sua coragem. Como na canção de Milton Nascimento: “Morte bela, sentinela sou do corpo desse meu irmão, que já se foi / esqueço nesta hora tudo o que passou / memórias não vão voltar…”[17].

Mas a sociedade brasileira não só nunca se esqueceu da tortura praticada durante as duas ditaduras que sofreu – a de Vargas, entre 1935 e 1947, e a que sucedeu ao golpe militar de 31 de março de 1964 e durou até 1985 como é obrigada a recordá-la com frequência, a cada vez que membros do Exército e da Polícia Militar assassinam um cidadão ou fazem desaparecer o corpo de alguém morto em decorrência de torturas praticadas por eles. Nós não recalcamos a memória da tortura nem nos separamos dela, como fatos de um passado que não deveria repetir-se. Ao contrário: assistimos, consternados e passivos, sua permanência. Assistimos a repetição da barbárie, dessa vez não contra militantes políticos, mas contra os negros pobres das periferias das cidades brasileiras. A imprensa livre – pelo menos nesse ponto a ditadura já passou – não nos deixa esquecer nossa violência social, passada e presente. Convivemos com ela o tempo todo, preocupamo-nos com ela e a tememos. O que ficou recalcado na sociedade brasileira, desde a tal pseudoanistia, é que somos nós os agentes sociais a quem cabe exterminar a tortura. Esquecemos que é possível viver sem ela. Só que essa mudança não se dará sem enfrentamento, sem conflito. Hoje a tortura resiste como sintoma social de nossa displicência histórica.

A criação da Comissão da Verdade deveu-se, antes de tudo, à insistência de vítimas e familiares de mortos e desaparecidos da ditadura militar e foi necessário que uma ex-torturada chegasse à presidência da República para o esforço se concretizar. O torturado não é capaz de carregar sozinho, em seu corpo e sua memória, as marcas do horror que viveu. Precisa, para superar essa dor continuada, fazer circular sua experiência entre outros grupos sociais que a ignoravam e nomear publicamente os criminosos que o torturaram. Se a ditadura brasileira terminou com um suspiro de exaustão, e não com um confronto que levasse à justiça, as vítimas e os familiares dos desaparecidos lutaram, pelo menos, para que os crimes praticados contra eles fossem investigados e assumidos pelo Estado. Pois o relatório da Comissão da Verdade, embora produzido pelos seis membros e uma equipe de assessores, representa uma posição do Estado brasileiro. O Estado assume seus crimes. Essa talvez seja a única grande novidade que se produziu, dadas as dificuldades de se obterem informações novas em uma investigação feita quase trinta anos depois do final da ditadura.

INDIFERENÇA E CRUELDADE: O CASO DOS DESAPARECIDOS POLÍTICOS

Paradoxalmente, a maior maldade cometida pelos militares para tentar apagar certas pessoas e certas histórias da memória coletiva tornou-se a única realmente impossível de esquecer: o desaparecimento de corpos. A maior crueldade que se pode infligir a alguém – no caso, os familiares de militantes políticos – é essa recusa, que se estende até o período democrático, em revelar as condições da morte e a localização dos corpos das vítimas do aparato repressivo ditatorial.

Ao escutar depoimentos de familiares que até hoje procuram sinais do paradeiro de seus filhos, irmãos, pais e companheiros(as) desaparecidos(as), entendemos que essas pessoas estão, há trinta ou quarenta anos, submetidas a uma forma continuada de tortura emocional. Impedidas de realizar o rito de sepultamento, que distingue o homem de todos os outros animais, os familiares dos desaparecidos políticos vivem entre a esperança obstinada de encontrar seus parentes e o luto continuado dessas pessoas queridas cujo corpo nunca foi encontrado. Ao recusar informações sobre o paradeiro dos quase 150 desaparecidos políticos do período 1964-85, as autoridades brasileiras delegaram e ainda delegam a seus familiares a responsabilidade pela mais dolorosa das decisões: quando parar a busca? Quando desistir de encontrar a pessoa desaparecida ou seus restos mortais? O desaparecimento é uma forma fria de crueldade. Uma política de Estado sádica, que obriga os familiares a decidir por sua conta que uma pessoa querida está morta. Em 2013, em Recife, faleceu dona Elzita Santa Cruz, mãe de Fernando Santa Cruz, desaparecido junto com Eduardo Collier em 1974. Talvez a esperança e a obstinação em obter notícias do filho tenham contribuído para que dona Elzita suportasse viver até os 100 anos.

Outro familiar de desaparecidos políticos, o escritor Bernardo Kucinski, em uma audiência pública da Comissão Estadual da Verdade, em São Paulo, afirmou publicamente que desistiu de tentar obter informa-ções sobre o paradeiro dos corpos de sua irmã e seu cunhado desaparecidos desde 1974. Para conseguir encerrar a busca inútil iniciada pelo pai, teve que registrar no belíssimo livro K toda a história de coragem, persistência e desilusão do velho que primeiro busca notícias da filha e do genro, depois tenta saber como foi que morreram e termina por participar da melancólica inauguração de duas ruas que levam os nomes de Ana Rosa Kuscinski e Wilson Silva, num conjunto habitacional da periferia do Rio de Janeiro.

Na volta de ônibus para São Paulo, o velho se espanta ao passar por um viaduto cujo nome homenageia um reconhecido torturador: Milton Tavares. O Brasil preserva essas homenagens – nem isso conseguimos mudar. Elevado Costa e Silva, rodovia Castelo Branco, entre outros. Enquanto isso, os Amarildos continuam a ser mortos e torturados nas favelas e a polícia continua a recusar aos familiares a localização de seus corpos a fim de que pelo menos possam lhes dar um enterro digno.

Da mesma forma, os/as companheiros/as e filhos/as de desaparecidos/as políticos, na ausência de um corpo diante do qual prestar as homenagens fúnebres, só puderam enterrar simbolicamente seus mortos ao velar em um espaço público a memória deles e tornar pública a indignação pelos atos bárbaros que causaram seu desaparecimento. Desde a década de 1990, a insistência de vítimas e familiares em divulgar as experiências e as lutas que a história esqueceu, ou recalcou, foi fundamental para a elaboração do trauma social causado pelo regime militar. No ano de 2014, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo inaugurou um belo monumento em homenagem à memória dos desaparecidos políticos, no parque Ibirapuera. De todos os países que sofreram ditaduras no Cone Sul, nas décadas de 1960 e 1970, o Brasil foi o último a criar uma Comissão da Verdade e o último a erguer um monumento em homenagem às vítimas.

Notas

  1. Sigmund Freud, “Totem e tabu”, em: Totem e tabu: contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914), São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Obras completas de Sigmund Freud, vol. 11).
  2. Étienne de La Boétie, Discurso da servidão voluntária, São Paulo: Brasiliense, 1999.
  3. Sigmund Freud, “Além do princípio do prazer”, em: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920), São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 161-239. (Obras completas de Sigmund Freud, vol. 14).
  4. Cf. Jacques Lacan, “O estádio do espelho como formador da função do eu”, em: Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, pp. 96-103.
  5. Sigmund Freud, “Psicologia das massas e análise do eu”, em: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923), São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 13-113. (Obras completas de Sigmund Freud, vol. 15).
  6. Gustave Le Bon, Psicologia das multidões, São Paulo: wmf Martins Fontes, 2008.
  7. Disponível para download em: <www.cnv.gov.br>.
  8. Jacques Lacan, “A ética em psicanálise”, em: O seminário, livro 7, Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
  9. Paulo Arantes, “1964, o ano que não terminou”, em: Edson Telles e Vladimir Safatle (org.), O que resta da ditadura?, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 10.
  10. Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling, “The Impact of Human Rights in Latin America” (O impacto dos Direitos Humanos na América Latina), Journal of Peace Research, Los Angeles: Sage Publications, v. 44, 2007, pp. 427-45.
  11. Slavoj Žižek, Bem vindo ao deserto do Real!, São Paulo: Boitempo, 2005.
  12. Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  13. Cláudio Guerra, Memórias de uma guerra suja, Rio de Janeiro: Topbooks, 2010.
  14. Renato Lessa, “Sobre a tortura”, Ciência Hoje, São Paulo: 2008, n. 250.
  15. Idem, “Quanto vale a vida dos outros”, O Estado de S. Paulo, Caderno Aliás, São Paulo: 2008, 7 set.
  16. Ibidem.
  17. Milton Nascimento, “Sentinela”, Sentinela, São Paulo: Ariola Discos, 1980.

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