Virtualidades reais
Resumo
Em nossa época hipertecnificada, presenciamos a diluição das antigas fronteiras cartesianas que demarcavam com clareza os domínios do natural e do artificial. Ao colocar todo o globo em contato instantâneo, ao fazer todos os lugares coalescerem em uma simultaneidade de alcance planetário, os meios cibernéticos de produção, manipulação e comunicação de informações estão transformando de modo profundo o significado de ‘estar no mundo’. Particularmente decisiva, neste processo, é a crescente homogeneidade dos fluxos de imagens que de todos os lados atravessam o corpo das sociedades atuais: como tanto a transmissão de ‘fatos’ quanto a elaboração de ‘cenas’ se dão pelos mesmos meios digitais, imagens ‘documentais’ (um míssil é disparado de um navio contra um alvo distante, na Guerra do Iraque) se tornam mais e mais semelhantes a imagens ‘ficcionais’ (um míssil é disparado de um navio contra um alvo distante, num videogame). Num caso, destruição concreta; no outro, destruição de mentirinha, ‘virtual’ – mas é cada vez mais difícil, senão mesmo impossível, destacar o referente, avaliar a verossimilhança, distinguir o que se passa numa tela e na outra. No limite, a ‘virtualização do real’ se mostra indissociável da correspondente ‘realização do virtual’.
Ora, até recentemente a expressão ‘Realidade Virtual’ (RV) esteva vinculada à noção de um ‘cenário’ imaterial e impalpável, puramente imagético, logo, ‘irreal’ – por oposição à indiscutível concretude da realidade ‘real’. Mantida essa acepção, permanecemos identificados à posição de espectadores perante o que se passa na tela do cinema ou da televisão: uma granada explode, mas ninguém na plateia é (nem poderia ser) atingido, afinal trata-se de um puro jogo de fluxos de luz que nos induz a ilusão de um acontecimento factual. Mas atenção: doravante, à medida que os sistemas de RV se difundam, o ‘mundo concreto’ ganhará novas dimensões, novos planos de ação, e portanto as realidades ‘natural’ e ‘artificial’ convergirão progressivamente, até se hibridizarem: agir nos espaços manufaturados de um ambiente RV cibernético não será diferente de por em movimento um corpo, ambos os feitos resultando em ocorrências físicas no mundo material – a exemplo das cirurgias à distância que hoje já começam a ser executadas, combinando elementos de RV e dispositivos robóticos telecomandados. Enquanto dispositivo técnico de grande poder, a Realidade Virtual é perfeitamente material. Recordando Maquiavel: a virtualização digital tem a virtú, o poder de produzir ‘realidade’, e este poder será cada vez mais plenamente exercido – como todo poder técnico sempre o foi. O CiberReal – a complexa rede de sínteses de átomos de matéria e átomos de luz – é já habitado, por criaturas híbridas, por centauros; esses centauros somos nós.
A Oscar Niemeyer
Um conto extraordinário de Jorge Luis Borges, intrigantemente intitulado de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, nos servirá de motivação para abordarmos o campo de problemas que visamos a explorar.[1] O conto principia com Borges registrando uma conversação com Bioy Casares, na qual este recorda uma frase memorável: “Os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens”. De onde essa altissonante sentença havia sido recolhida? De uma reedição pirata da Encyclopaedia Britannica de 1902, e seu verbete sobre um remoto lugar na Ásia Menor denominado Uqbar. Em outros exemplares da enciclopédia, todavia, o artigo inexiste; quando examinam o volume pertencente a Bioy, encontram, após vagas referências geográficas, a menção de que a literatura de Uqbar era de caráter fantástico, e suas criações não se referiam nunca à realidade, mas às regiões imaginárias de Mlejnas e de Tlön…
Anos mais tarde, o mistério adensa-se quando Borges encontra, legado por um obscuro engenheiro inglês que travara taciturna amizade com seu pai, um livro intitulado A First Encyclopaedia of Tlön, vol. XI, em cuja primeira página havia a inscrição Orbis Tertius. O assombro de Borges não tem limites: se antes descobrira a descrição sumária de um falso país, agora tinha em mãos “um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido”. O volume descreve da zoologia à topografia de Tlön, tigres transparentes, torres de sangue; Borges admira-se mais de suas linguagens: nos idiomas do hemisfério austral não há substantivos, somente verbos (não há “lua”, mas “lunecer”); nos do hemisfério boreal, os substantivos são formados por acumulação de adjetivos (diz-se não “lua”, mas algo como “aéreo-claro-sobre-escuro-redondo”). Na cultura clássica de Tlön, vigora o mais rematado idealismo: a única disciplina é a psicologia, o pensamento é sinônimo perfeito do cosmo. Não admira, assim, que a metafísica seja encarada como um ramo da literatura fantástica… Tantos séculos de idealismo não poderiam deixar de influir na realidade: objetos perdidos podem ser encontrados duas vezes; embora recente, a elaboração metódica destes objetos secundários — chamados hrönir — tem prestado serviços inestimáveis aos arqueólogos, uma vez que o passado, agora, não é menos plástico que o futuro. Coisas podem ser produzidas por sugestão, ou deduzidas pela esperança; propendem também a apagar-se e perder os pormenores quando as pessoas as esquecem.
Um pós-escrito esclarece todo o enredo: uma sociedade secreta surge no século XVII para inventar um país. Uma geração de autores, porém, não basta para a tarefa, é necessário que discípulos sejam preparados para continuar a obra. Quando a sociedade alcança a América, seu objetivo amplia-se em proporções atlânticas: trata-se agora de construir todo um planeta fictício — e em segredo. Esse foi o empreendimento que originou a secreta edição dos quarenta volumes da Primeira enciclopédia, e sua revisão — redigida já numa das línguas de Tlön — chama-se provisoriamente Orbis Tertius. Eis que são encontrados uma bússola, com letras de um alfabeto desconhecido, e um pequeno cone, pesadíssimo, feito com um metal que não é deste mundo… Em 1944, enfim, a edição completa da Enciclopédia foi achada; logo, exemplares da Obra principal dos homens abarrotam a Terra. Já penetra nas escolas o “idioma primitivo” de Tlön, bem como o ensino de sua harmoniosa história; brevemente, chegará a vez da biologia e das matemáticas. Em cem anos, alguém “descobrirá” os cem tomos da Segunda enciclopédia, observa Borges, e então desaparecerão do planeta “o inglês e o francês e o puro espanhol”. O mundo será Tlön.
Se tomamos o sentido habitual do termo virtual — que designaria algo impalpável, de caráter essencialmente imagético e portanto imaterial —, podemos dizer que esse conto magnífico de Borges descreveria a substituição da realidade concreta — ou que estamos acostumados a chamar assim — por uma outra figura de realidade que denominaríamos ficcional ou, na acepção assinalada acima, virtual. Proponho que tomemos como ponto de partida para nossa discussão a hipótese de estar em curso, hoje, tal “virtualização da realidade”, ou seja, o mundo contemporâneo estaria sendo apoderado por uma constelação cada vez mais disseminada de simulacros: êmulos de Borges, estaríamos testemunhando a implantação de nossa própria Tlön. A realização mesma deste processo, porém, requer que emprestemos à noção de “virtualidade” um novo significado, francamente materialista.
Para abordar com sobriedade uma tese tão provocante, é necessário que previamente nos municiemos com alguns elementos. O primeiro componente de que precisamos lançar mão é um dos mitos fundadores do paradigma ou sistema de pensamento que chamamos de Ocidente. Distinguindo-se, como um novo broto que se ramifica numa antiga árvore, do campo anterior de civilizações que, por contraste, será denominado Oriente, este sistema terá sua essência constituída pela invenção de um operador extraordinário, sem paralelo até então: o erro.[2] Limite extremo do engano, ilusão elevada à última potência, o erro é um enunciado que não recobriria fragmento algum de ser, e por consequência teria autenticidade inteiramente nula. Estranhíssima figura, portanto, pela qual nossas vozes seriam capazes de pronunciar ou veicular o não-ser, a lacuna absoluta… Em contraposição, ou melhor, em contradição, em oposição maximalmente radicalizada, ao erro, irá se configurar seu antípoda, o enunciado redondamente pleno: a verdade.
Marcel Détienne nos mostra com grande clareza a construção desse par fundamental de contrários contraditórios.[3] Originalmente, nas formas arcaicas de se enunciar o que é verossímil, verdade e engano não se opõem, complementam-se. Se recordarmos por um momento um dos textos fundadores do Ocidente, a Teogonia, de Hesíodo, encontraremos as Musas, aquelas que tudo sabem, pois a tudo presenciam — uma vez que habitam uma temporalidade na qual o presente é tão estendido que o passado e o futuro são expulsos para além de suas bordas, ou seja, o que chamamos de passado e futuro não cabe nas dimensões do tempo —, que declaram a Hesíodo a natureza ambígua de seu conhecimento:
Pastores agrestes, vis infâmias e ventre só,
sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações.[4]
Ou seja, as divinas porta-vozes sabem dizer tanto a verdade como o que apenas se assemelha à verdade, e reivindicam assertivamente o poder de enganar… Os deuses podem mentir: que essa noção para nós tão espantosa esteja na origem do jogo de exclusões que irá caracterizar a filosofia clássica não é talvez o menor dos paradoxos que presidiram a gênese do Ocidente. Esse sistema de pensamento, com efeito, irá se assinalar pela constituição de um dispositivo epistêmico — de seleção de enunciados para discriminar o verdadeiro do falso — que simultaneamente faz as vezes de um dispositivo político — de seleção de cidadãos para discriminar quem pode governar a polis.
Uma das etapas essenciais da construção dessa autêntica máquina de combate é o uso astucioso que Platão faz das tradições religiosas. Longe de tentar desvalorizá-las em favor de concepções puramente racionalistas, Platão apropria-se de narrativas míticas para instituí-las como axiomas, fundações primeiras de onde se poderá desenvolver o discurso filosófico — procedimento de conversão dos mitos em uma matéria-prima semântica que não seria talvez absurdo comparar ao apoderamento análogo que realizam os grandes tragediógrafos. Lembramo-nos de imediato do discurso de Sócrates no Banquete; contudo a arte de Platão de manejar alegorias que já prefiguram conceitos alcança sua expressão mais elevada no célebre Livro VII de “A República”, em que Platão compara a condição humana à de indivíduos aprisionados, sem poder se mover, diante da parede de uma caverna.[5] Por trás dos prisioneiros há um fogo, numa elevação, que projeta luz sobre marionetes manipuladas por atores, representando pessoas e seres, cujas silhuetas são projetadas sobre a parede. Às vezes os atores pronunciam palavras, e os ecos vindos do fundo da caverna sugerem que as sombras é que estão conversando entre si. Por meio dessa encenação cuidadosamente arranjada, Platão está descrevendo o estado de ser cotidiano dos que, como a maioria de nós, se acham mergulhados no mundo sensível. É isto, e nada mais, que nossa sensibilidade nos fornece: esta presença, esta ilusão.
Ora, argumenta Platão, se um destes prisioneiros pudesse livrar-se de súbito de seus grilhões e voltar-se para trás, distinguiria o cenário montado, as marionetes e os outros dispositivos, e relutaria em crer que este estranho conjunto de objetos fosse mais autêntico que as sombras que dantes desfilavam diante de seus olhos. Quando, todavia, obrigassem-no a sair da caverna, depois de superar o ofuscamento inicial e habituar-se à nova abundância de luz, lograria compreender que aquelas silhuetas e fantoches eram apenas cópias, imitações dos verdadeiros seres que existem fora da caverna, iluminados não por uma simples chama, mas pelo fulgor do Sol, governante de tudo o que é visível, e se compadeceria de seus antigos companheiros de obscuridade.
O real objetivo da alegoria, porém, é contrapor as experiências habituais do mundo sensível à apreensão do mundo inteligível. Uma vez que também vivemos aprisionados a uma presentação que nos afeta por via da sensibilidade, diz Sócrates, é necessário que nos afastemos de tal ilusionismo e o superemos pelo entendimento, para que possamos enfim contemplar a verdadeira realidade, os autênticos princípios. A analogia culminante é que, assim como o mundo-cópia, o mundo-modelo também tem um centro: o Sol do mundo inteligível é o Bem, essência que organiza todas as essências, Ideia que harmoniza todas as Ideias.
Com isto, Platão está realizando um duplo movimento e uma dupla crítica. O primeiro gesto é a apresentação da alegoria: descrever a ilusão de concretude engendrada pelo espetáculo encenado na caverna e a relutância do prisioneiro em desvencilhar-se dele, até que a autenticidade incomparável da relva, dos regatos, das estrelas torne-se evidente e imperiosa, persuadindo-o enfim da inferioridade de sua condição anterior. Mas o gênio do dramaturgo excepcional que é Platão só transparece num segundo momento, quando o próprio mundo natural, cuja patente verossimilhança havia sido tão convincentemente contraposta ao tosco artificialismo da encenação montada na caverna, será doravante desqualificado como algo que não passa, ele mesmo, de um palco de simulacros, de um cenário de ilusões. Assim como o mundo simulado é falso, é tão-somente uma imitação em relação ao mundo natural, também o mundo natural é falso, é tão-somente uma imitação em relação ao mundo inteligível. O Sol, centro da existência sensível, não faz senão arremedar o Bem, centro da existência eterna.
A descoberta do prisioneiro, portanto, antecipa e induz a nossa própria libertação. É necessário que nos afastemos do mundo sensível — ou seja, das ilusões sensíveis, que outra coisa os sentidos não nos oferecem — e nos alcemos ao plano inteligível para de fato encontrar o que é verdadeiro e autêntico. Platão re-entona Pitágoras: a verdade acha-se oculta, mas não adentro, e sim acima, d’Isto que se apresenta a nós, é preciso que a desvelemos, que rompamos os véus que a envolvem para que possamos contemplar a gema preciosa do Ser. A aposta é altíssima, a jogada é decisiva: para além da ilusão há o verídico, para aquém do iludido há o sabedor. Esse projeto duplamente dual de fundação do reto pensar — há objetos ilusórios e sujeitos embevecidos por tais ilusões, mas há um objeto de conhecimento verídico e um sujeito da verdade, capaz de desvelá-lo — será um dos marcos que irá distinguir Ocidente e Oriente. O caminho das tradições orientais, com efeito, será o de tomar Isto-que-se-apresenta como ilusão e Este-que-testemunha também como ilusão. Não há objeto verídico nem sujeito da verossimilhança, nesse sentido, não se pode falar de “filosofia oriental”…[6]
Para o que nos importa aqui, é suficiente destacar dois elementos estratégicos de que Platão lança mão na Alegoria da Caverna. Podemos denominar o primeiro elemento univocidade da referência: a encenação montada para iludir o prisioneiro visa a ser uma simulação da realidade, ou seja, tem por objetivo reproduzir a aparência do que de fato existe. Os dispositivos reunidos na caverna são capazes de produzir cenas com qualidade suficiente para ludibriar por completo o espectador-prisioneiro — até que este entre em contato com as entidades indiscutivelmente mais reais que se encontram fora da caverna. Todo o cenário destina-se a projetar sombras, cópias empobrecidas que replicam as formas dos seres autênticos, e assim o prisioneiro que se liberta compreende que há uma única realidade, percebida em graus de distinção diversos, ora esmaecida, através de véus obscuros, ora em plena radiosidade. Caso contrário, ele se veria submetido à experiência despedaçadora de defrontar-se com duas realidades (ou mais!), díspares, mas equivalentes, heterogêneas, mas legítimas, em suma, igualmente genuínas, e seu espírito vergaria sob tal excesso de fundamentos.
Ora, o jogo de sombras — seres de segunda instância, por assim dizer — só pode ser desvelado como mera cópia dos verdadeiros seres porque o mesmo olhar apreende a ambas as cenas — a artificial e a natural. A percepção visual do prisioneiro desloca-se com ele, inafetada, invariável, para o novo ambiente e a liberdade; a inovadora experiência cognitiva de compreender a relação de imitação entre as sombras na caverna e os modelos fora dela decorre, de fato, desta constância do sentido da visão. A permanência do olhar vincula-se, portanto, à unicidade do real; e é precisamente aqui que o acesso ao mundo inteligível, no segundo momento da argumentação, exigirá uma descontinuidade, um salto descomunal — a desqualificação radical do olhar sensível em favor do olhar do entendimento. O sentido da visão torna-se somente metáfora da contemplação racional das Ideias, a teoria que revela a oculta subordinação dos próprios seres sensíveis a seus modelos eternos.
Já se vê então em que pontos, e por quais meios, a contemporaneidade tende a eludir a maquinação platônica. Pois hoje os dispositivos de processamento digital, ao viabilizarem as operações de telepresença, imersão e interatividade, estão principiando a abolir a distância entre representação e referente e a fazer convergir o olhar e a cena, multiplicando os modos de espacialização e transformando o espectador em participador. Muito além da mera (re)produção de réplicas, os recursos de digitalização, interfaceamento e ambiência que integram os cenários de Realidade Virtual (RV) permitem que a manipulação de imagens derive dos modelos para as modelagens (de todo tipo de seres, sejam existentes ou imaginários), enriquecendo as experiências de realidade: doravante, as imagens-artefato — os simulacros detestados por Platão — podem engendrar mais real! Paralela e inseparavelmente, o olhar libera-se da circunscrição ao referente imediato, presencial: hibridizada, artificializada, encorpada, a cognição visual estende-se agora para além das bordas do atual e do local, e vincula-se até mesmo à capacidade de agir. Duplo paradoxo que por aí advém: uma simulação verossimilhante, uma virtualização realizadora. Borges toma-nos nas mãos, e somos areia.
Essa perturbadora possibilidade de ampliação e substituição da realidade “tradicional” teve como raiz o desenvolvimento, ao longo do século XX, do campo de inovações conceituais associadas à noção de objeto complexo — as chamadas “ciências da complexidade”.[7] Poderíamos talvez tentar resumir os aspectos principais desta revolução tecnocientífica observando que o surgimento de três novas figuras de unidade constitutiva elementar — os “átomos” de matéria (as partículas elementares), de atividade (o quantum de ação) e de organização (os bits) — impôs a deposição do venerando par Substância-Indivíduo em favor da díade Informação-Processo como o substrato básico a partir do qual se poderia fundar o conhecimento sobre a Natureza. À medida que os corpos físicos e seus modos de interação e de ordenação passaram a ser descritos por meio destes “átomos”, verificou-se a insuficiência da concepção clássica, de sabor reducionista, segundo a qual as propriedades de um Todo abrangente se resolveriam de modo linear, monótono e unívoco nas propriedades de suas Partes simples; progressivamente, foi sendo descortinado, em vez disso, um panorama em que Todo, Parte e Meio se complicam, isto é, rebatem-se uns sobre os outros, afetam-se de modo recíproco, contextualizam-se mutuamente. O estabelecimento desta hierarquia complexa de intermediações sucessivas e complementares entre o sistema, seus componentes e seu ambiente, ao cabo das quais novas ordenações podem emergir, fez-se corresponder pela diluição das antigas fronteiras que demarcavam com nitidez os domínios próprios da existência física, da vida e do pensamento.[8]
Em particular, o estudo dos sistemas complexos — especialmente, de fenômenos não-lineares em situações longe do equilíbrio resultou na convergência e assimilação dos conceitos de estrutura, diferença e informação. Com efeito, as variações do teor de organização que caracterizam uma transformação de um dado sistema podem ser apreendidas em termos de arranjos de diferenciações entre seus elementos; uma estrutura, assim, é um diagrama de diferenças que o sistema encarna.
Por outro lado, informação pode ser definida como uma medida da distinção entre sinal e ruído num dado suporte, e, por conseguinte, como os modos de transformação — e, portanto, também de formação — do sistema concebidos como intercâmbios de unidades diferenciais procedendo rumo a estados que apresentem maior heterogeneidade ou, ao contrário, maior uniformidade. Ou seja, migramos dos contornos e limites da forma-espaço para os ritmos e andamentos da forma-tempo: de uma coleção de substâncias individualizadas, o mundo natural será doravante compreendido como uma constelação continuamente envolvente de fluxos de informação.[9]
Ora, é característico da noção de informação prescindir de qualquer suporte específico: quer se trate de um cristal em crescimento numa solução, de uma molécula de DNA que se desdobra ou de microcorrentes nos circuitos de um chip, são sempre fluxos de diferenças em contínua reordenação.[10] Mas, se agora os seres do mundo, sejam eles naturais, sejam artificiais, podem ser concebidos em termos de fluxos de bits, torna-se inevitável que o poder técnico de intervir nas operações de constituição dos sistemas materiais, por meio da manipulação, até mesmo em escalas microscópicas, de unidades elementares de forma, acabe por implicar a paulatina mas fatal dissolução das distinções tradicionais que demarcavam os domínios da Natureza e da Cultura.[11] Do buraco na camada de ozônio a Dolly, há numerosos exemplos da progressiva convergência entre artefatos e naturatos em nossa época hipertecnificada, nosso interesse recai, particularmente, sobre as capacidades de imersão, interatividade e telepresença das tecnologias de Realidade Virtual atualmente em desenvolvimento.[12]
Com base no uso generalizado de suportes digitais, na proliferação de interfaces gráficas e na geração circundante de imagens, os ambientes imersivos permitem, em grau cada vez mais sofisticado, a experiência de embebimento em uma ambiência artificial completa, (pré) programada, mas continuamente reconfigurável pelo próprio usuário, multiplicando assim os modos de espacialização que o sujeito pode praticar. De outro lado, os dispositivos de telepresença transformam as faculdades sensório-motoras do próprio sujeito, estendendo não apenas sua percepção, mas também seus meios de ação, para além do confinamento a um dado local, a exemplo das cirurgias a distância que hoje já começam a ser executadas, combinando elementos de RV e dispositivos robóticos telecomandados. Espaços digitais que se sobrepõem a espaços físicos, simulacros equiparados a referentes, deslocalização do presencial: à medida que os avanços na miniaturização, portabilidade e capacidade generalizarem — e, portanto, individualizarem — o emprego de dispositivos RV, os meios cibernéticos de produção, manipulação e comunicação de info-imagens transformarão de modo cada vez mais profundo o significado de “estar no mundo”. Esse estado de coisas (e não-coisas) pode ser resumido pelo enunciado paradoxal: doravante, Imagem é Realidade.[13]
Pois o prisioneiro não está mais restrito à imobilidade e à contemplação passiva; enriquecido de próteses que lhe proporcionam habitar um espaço multifacetado e um presente de alcance planetário, torna-se ele mesmo um interagente, tomando parte eficaz na produção da encenação que testemunha; reciprocamente, o fundo da caverna e a paisagem ao ar livre se equivalem, coexistem, coalescem. O divino Artesão é, de fato, um divino Cenógrafo; Borges escreveu o Timeu, Platão fundou a Orbis Tèrtius… Um exemplo particularmente decisivo desse processo é a crescente homogeneidade dos fluxos de imagens que de todos os lados atravessam o corpo das sociedades atuais: como tanto a transmissão de “fatos” quanto a elaboração de “cenas” dão-se pelos mesmos meios digitais, imagens “documentais” (um míssil é disparado de um navio contra um alvo distante, na Guerra do Iraque) tornam-se mais e mais semelhantes a imagens “ficcionais” (um míssil é disparado de um navio contra um alvo distante, num videogame). Num caso, destruição concreta; no outro, destruição de mentirinha, “virtual” — mas é cada vez mais difícil, senão mesmo impossível, destacar o referente, avaliar a verossimilhança, distinguir o que se passa numa tela e na outra. No limite, a “virtualização do real” mostra-se indissociável da correspondente “realização do virtual”.
Ora, até recentemente o sentido do termo “virtual” na expressão “Realidade Virtual” estava vinculado à noção de um construto imaterial e impalpável, puramente imagético, logo, “irreal” — por oposição à indiscutível concretude da realidade “real”. Mantida essa acepção, permanecemos identificados à posição do antigo prisioneiro, meros espectadores perante o que se passa na tela da caverna, ou do cinema, da televisão, do computador: uma granada explode, mas ninguém na plateia é (nem poderia ser) atingido, afinal trata-se de um puro jogo de fluxos de luz que nos induz a ilusão de um acontecimento factual. Mas, à medida que os sistemas de RV se difundem, tendem a ser abolidas as distâncias entre presença e experiência, entre representação e referente, entre produtor e espectador. O “mundo concreto” ganha novas dimensões, novos planos de ação, e, portanto, as realidades “natural” e “artificial” convergem mais e mais, até eventualmente se hibridizarem por completo: agir nos espaços manufaturados de um ambiente RV cibernético não será diferente de pôr em movimento um corpo, ambos os feitos resultando em ocorrências físicas no mundo material. Enquanto dispositivo técnico de grande poder, a Realidade Virtual é perfeitamente material.
Devemos assim seguir Maquiavel e vincular “virtual” à virtú, a potência autônoma de gerar acontecimento, capacidade não do que é meramente possível, mas sim do que tem em si o gérmen de poder vir a suceder. Se aceitamos esta concepção, compreendemos que a virtualização digital tem a potência, o efetivo poder, de produzir “realidade”, e este poder será cada vez mais plenamente explorado — como sempre foi todo poder técnico. A novidade — que as cibertécnicas compartilham com outros novíssimos domínios, como as bio e as nanotecnologias — é que a operação transformadora pode agora englobar seu próprio executor: se os dispositivos de RV nos fazem deixar de ser entidades exclusivamente locais e simplesmente presenciais para multilocalizar-nos e telepresentificar-nos, se não apenas estendem a interioridade para fora, distribuindo meios de simultânea percepção e ação para além de nossa vizinhança imediata, mas também contraem a exterioridade para dentro, imiscuindo e mesclando próteses sensório-motoras ao corpo biológico, então é como se a própria natureza do espaço, do tempo e do movimento que podemos experienciar estivesse em transmutação.[14] Justamente por ser virtual, por ser mais real do que o “real” cotidiano, a Realidade Virtual potencializa nosso estar no mundo. Recordando a amplidão do sentido original de techné, “arte”, podemos reconhecer a vigorosa atualidade da penetrante observação de Nietzsche: “A Arte é a suprema potência do Falso”.
Ao mesmo tempo, diversas questões perturbadoras vêm se apresentar. Susan Greenfield, por exemplo, argumenta que, ao se apresentar Lewis Carroll ou Monteiro Lobato a uma criança, estimula-se o que se pode chamar de função fabuladora, a habilidade de conceber e dinamizar um mundo imaginário, “virtual”, cuja vigência se alterna corn o mundo “concreto”.[15] Em toda cultura humana, exercer essa ação criativa tem sido um instrumento para experimentações, realizações, perplexidades e encantamentos fundamentais para o crescimento. O novo problema é: se agora qualquer fábula — qualquer País das Maravilhas, Sítio do Picapau Amarelo ou Reino das Amazonas Marcianas que se quiser — estiver disponível para ser visualizada, a imaginação pode ser dispensada, basta substituí-la pela percepção direta. Se não se precisa mais imaginar, é previsível que venha a ocorrer uma atrofia dessa função fabuladora; as crianças do futuro não mais careceriam da faculdade de magicar — o maravilhoso termo que em Portugal se costuma empregar para dar conta da atividade infantil de fazer com que outros mundos coabitem com este aqui. Não correríamos um sério risco ao delegar a nossas próteses cognitivas essa função, até agora tão indissociável de nossa criatividade, de suplementar a dimensão presencial?
Ou pior: as novíssimas tecnologias baseadas no manejo dos três tipos de átomo assinalados acima não estariam em via de fomentar uma ampliação das formas de exclusão vigentes hoje? Sabemos que a noção tradicional de raça não passa de uma falácia ideológica e que não tem sentido de um ponto de vista biológico, mas o que dizer da produção de formas de repartição da humanidade em castas — não mais (ou apenas!) pela linhagem étnica ou pela morfologia, mas castas técnicas, demarcadas pela habilidade de operar dispositivos cada vez mais sofisticados, produzidos a partir dessas novíssimas tecnologias? Tudo se passa como se, a cada prodigioso avanço técnico, uma grande parcela da humanidade fosse convertida numa legião de despossuídos, de “primitivos”, tal como os colonizadores concebiam o termo: gentes técnica e conceitualmente desprovidas dos meios para lidar — e mesmo para aprender a lidar — com os dispositivos técnicos cada vez mais numerosos e complexos de que o mundo a cada dia fica mais rico. Pois nem sequer participam do mercado, nem sequer consomem… Haverá uma ocasião em que essa distinção de castas se torne de tal modo extrema que esses regimes de inclusão e exclusão possam não mais coexistir — pacificamente?[16]
É difícil avaliar com clareza a presente instalação da Era Antropogênica — em que a atividade humana passou a ser determinante para o desenrolar da vida no planeta, e a própria arquitetura dos corpos materiais, dos seres vivos e das entidades pensantes tornou-se suscetível à intervenção técnica. O que parece fora de dúvida é a constatação de que estamos nos encaminhando para habitar um real ampliado, amplificado, um CiberReal. Seu signo é uma hibridização crescente: integramo-nos cada vez mais a dispositivos técnicos sofisticados, suplantamos cada vez mais nossa herança biocorporal, deixamos cada vez mais de ser o que fomos. O rei-filósofo de Platão alcançava a maturidade para tomar o timão — kyber — da governança somente aos 50 anos. Teremos, neste momento de auto-afecção em que estamos principiando a viver, quem sabe, a adolescência de nossa espécie, a sabedoria e a potência para positivar a nova Tlön que estamos criando — tão prodigiosamente avançada, tão desesperadamente injusta? O CiberReal — a complexa rede de sínteses de átomos de matéria, e de atividade, e de ordem, e de luz — é já habitado, por desconhecidos, por criaturas híbridas, por centauros; esses centauros somos nós.
Notas
[1] Jorge Luis Borges, “Ficciones”, em Obras completas, vol. 1 (Barcelona: Emecé, 1989).
[2] Victor Brochard, Do erro (Coimbra: Atlântida, 1971).
[3] Marcel Détienne, Os mestres da verdade da Grécia arcaica (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988).
[4] Hesíodo, Teogonía: a origem dos deuses, trad. Jaa Torrano (São Paulo: Iluminuras, 1995), p. 107.
[5] Platão, ‘A República”, em Obras completas (Madri: Aguilar, 1988).
[6] F. M. Cornford, Principium sapientiae (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1981).
[7] L. A. Oliveira, “Caos, acaso e tempo”, em Adauto Novaes (org.), A crise da razão (São Paulo: Companhia das Letras, 1996).
[8] L. A. Oliveira, “Biontes, bióides e borgues”, em Adauto Novaes (org.), O homem-máquina (São Paulo: Companhia das Letras, 2003).
[9] Ilya Prigoginc & Isabelle Stengers, A nova aliança (Brasília: UnB, 1984).
[10] John Holland, A ordem oculta (Lisboa: Gradiva, 1997).
[11] Steven Johnson, Emergência (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003).
[12] Michio Kaku, Visões do futuro (Rio de Janeiro: Rocco, 2001).
[13] Luciana F. Almeida, Comunicação mediada por computador, tese de doutorado (Rio de Janeiro: ECO/UFRJ, 2004).
[14] Margaret Wertheim, Uma história do espaço de Dante à internet (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002).
[15] Susan Greenfield, Tomorrow’s People (Londres: Allen Lane, 2003).
[16] Susan George, The Lugano Report (Londres: Pluto, 2000).