2003

A alma e o cérebro

por Renaud Barbaras

Resumo

O sucesso do modelo mecanicista de explicação levou os filósofos, desde a época clássica, a tentar dar conta de todas as dimensões da vida humana, principalmente a do pensamento e da vida psíquica em geral, a partir desse modelo. Assim, a questão fundamental das relações entre o cérebro e a alma tornou-se decisiva para a demonstração da tese do homem-máquina. Uma vez que não há causalidade fora da especialidade, ou seja, da matéria, os fenômenos psíquicos não devem ser concebidos como efeitos da ação do cérebro mas como epifenômenos, isto é, manifestações que acompanham os fenômenos cerebrais mas que não tem nenhuma consistência e autonomia em relação a eles; os fenômenos psíquicos seriam, segundo a imagem bergsoniana, como a fosforescência  que segue e desenha o movimento de um fósforo riscado numa parede da escuridão. Nessa perspectiva, há uma correspondência perfeita entre aquilo que acontece no cérebro e os conteúdos da alma: assim, alguém que pudesse ver perfeitamente tudo quanto acontece num cérebro e que, além disso, dominasse a tábua de correspondência entre as duas séries de fenômenos, poderia conhecer todos os conteúdos psíquicos do proprietário desse cérebro sem vivê-los As consequências dessa posição de princípio – subjacente a muitas pesquisas científicas, tanto na área da neurologia quanto da psicologia – são decisivas: do mesmo modo que o fósforo ilumina um movimento de que ele é o efeito, a consciência imagina que pode produzir ou modificar movimentos dos quais ela não é senão o resultado.

O fato de que os movimentos cerebrais sejam, sem dúvida alguma, a condição de qualquer atividade psíquica não significa que a natureza dessa atividade possa ser induzida a partir desses movimentos. Do mesmo modo que a vida não pode ser reduzida aquilo que lhe permite resistir à morte, a vida psíquica não pode ser confundida com suas condições de emergência e de funcionamento. Como diz Bergson, uma roupa é solidária do prego no qual ela está pendurada e ela cairá se o prego for arrancado ; mas não se conclui disso que cada pormenor do prego corresponda a um pormenor da roupa  e, muito menos, que o prego e a roupa sejam a mesma coisa. Assim, a consciência é incontestavelmente ligada a um cérebro, mas disso não resulta que o cérebro desenhe todos os detalhes da consciência. A questão a ser resolvida é, portanto, a seguinte: qual é a função e o papel do cérebro na atividade da consciência?


O projeto de dar conta da existência humana a partir de um modelo mecânico justifica-se pelo fato de que temos um corpo que, como a palavra o indica, é uma coisa corpórea submetida às leis da mecânica como qualquer outro corpo: se for empurrado, vai para a frente, se for puxado, recua, se for levantado e largado, cai no chão. No entanto, se nosso corpo é um corpo, não é um corpo qualquer: é o nosso corpo, um corpo próprio. Isso significa que nem todos os seus movimentos parecem ser regidos por leis meramente físicas. Há movimentos que não dependem de uma causa externa, mas parecem advir do próprio corpo: são movimentos voluntários e, por conseguinte, imprevisíveis a partir das leis da física. A causa desses movimentos que caracterizam o corpo humano é o que chamamos de eu ou de alma, por contraste com o corpo, e é por isso que dizemos que são os nossos movimentos. Temos a experiência de uma ação dessa “alma” sobre um certo corpo (pois não basta querer que essa cadeira se mexa para que ela se mexa efetivamente), de uma intimidade da alma com esse corpo e, por assim dizer, de uma presença dela no corpo; é por essa razão que o chamamos de corpo próprio: parece ser a nossa propriedade, temos um poder sobre ele. Assim, a experiência de nosso corpo, tal como ele vivido e usado, desvenda uma dimensão que a ele escapa. Como nota Bergson, num artigo intitulado “O homem e o corpo” — sobre o qual vamos nos apoiar —, essa nossa alma aparece como algo que ultrapassa nosso corpo em todas as dimensões.

Ela ultrapassa o corpo no espaço: nosso corpo existe dentro de seus contornos, ao passo que, por meio de nossa percepção e, particularmente, de nossa visão, “vamos até as estrelas”. Em segundo lugar, a alma ultrapassa o corpo no tempo. O corpo é matéria, e a matéria existe só no presente; para a matéria, não há tempo, já que ela não é capaz de se relacionar com aquilo que já não existe ou ainda não existe. É verdade que o tempo deixa marcas no corpo e que, portanto, há no corpo rastros do passado, mas são apenas rastros do passado para uma consciência capaz de se lembrar e de situar no passado a causa desses rastros: em si, esses rastros são contemporâneos do corpo; como ele, existem num presente eterno. Assim, é nossa consciência, ou nossa alma, que se refere ao passado e, pela memória, é capaz de ultrapassar a dimensão do presente. Enfim, enquanto regidos pelas leis da mecânica, os movimentos de um corpo qualquer são previsíveis. Em compensação, o que caracteriza os movimentos voluntários é que eles são uma verdadeira criação, irredutível às leis da mecânica e, portanto, imprevisíveis: como vontade, a alma ultrapassa o corpo uma vez que ela suscita movimentos novos em relação ao que poderia acontecer pelas leis físicas. Vê-se aqui que, na questão da relação entre o corpo e a alma, o que está em jogo é o problema da liberdade: o excesso da alma em relação ao corpo e, portanto, sua irredutibilidade são experimentados por meio dos atos voluntários, ou seja, da criação de uma novidade. Nesse sentido, a experiência da liberdade seria ao mesmo tempo a prova e a experiência originária da alma.

No entanto, qual é o valor dessa experiência? Podemos confiar nela e concluir que o homem, na medida em que tem uma alma, é irredutível ao modelo da máquina? Ou devemos, pelo contrário, considerar ilusória essa experiência — de modo que tudo o que acontece ao homem, até aquilo que parece resultar de sua vontade, dependeria inteiramente das leis causais e seria completamente determinado? Em todo caso, é incontestável que, numa perspectiva mecanicista ou reducionista, a dificuldade principal reside na existência de uma consciência, capaz de perceber, de lembrar-se e de agir livremente — existência dada como evidência numa experiência. Com efeito, a característica própria da consciência é que ela não é nada além do que lhe aparece, ela é a identidade absoluta do ser e do aparecer, de modo que sua experiência — o fato de estar consciente — é a garantia de sua existência. Segue daí que o problema da redutibilidade de toda a existência humana ao modelo mecânico remete a um problema prévio: o do valor e alcance da experiência de nossa alma, que primeiro toma a forma de uma experiência de nossa liberdade.

Devemos reparar que a filosofia mecanicista não resulta necessariamente em uma negação da liberdade do homem. Descartes, em particular, estabeleceu a dependência de todos os acontecimentos da realidade para com as leis da física e, portanto, o determinismo da natureza.

Mas, segundo ele, isso só diz respeito à matéria, ou seja, à extensão; além do nosso corpo, regido pelo mecanismo, temos uma alma, experimentada na consciência e como consciência, alma que é absolutamente independente das leis da matéria e é capaz de influir nos movimentos do corpo. Assim, os animais são máquinas, pois não têm alma (a alma sendo apenas pensamento), mas os homens são a união de um corpo-máquina e de uma alma inteiramente espiritual. No caso de Descartes, o mecanismo desemboca em um dualismo metafísico: a única maneira de preservar a experiência da consciência e da liberdade em uma filosofia mecanicista é reconhecer que há uma substância que não é material e, portanto, não está submetida às leis da matéria. Assim, a possibilidade da ciência física é conciliada com a experiência do pensamento e da liberdade: para essa filosofia, temos um corpo-máquina, mas o homem não é uma máquina. Contudo, por mais que essa abordagem seja satisfatória, ela levanta o problema da união entre as duas substâncias: a contrapartida e, por assim dizer, o preço do dualismo — satisfatório dentro de cada área, a da alma ou a do corpo — é que o modo de ação da alma sobre o corpo e do corpo sobre a alma torna-se incompreensível.

Essa dificuldade contribuiu para o desenvolvimento de uma perspectiva mais radical, oriunda do cartesianismo, mas antidualista. Para essa filosofia, a experiência da irredutibilidade da alma é uma ilusão, e, portanto, tudo o que pertence à alma deve ser reduzido às leis mecânicas, que não são apenas leis da matéria, e sim leis de toda a realidade. Mais precisamente: já que toda realidade é material, já que o próprio sentido da realidade é a materialidade, nossa experiência da alma deve ser reduzida às leis da natureza física em um setor particular, a saber, o do cérebro. Em outras palavras, não há na alma nada além do que há no cérebro. É essa filosofia, monista, materialista e reducionista, que conduz à definição do próprio homem, em todas as suas dimensões, como uma máquina. É essa filosofia que queríamos discutir, à luz da perspectiva bergsoniana. Mas, primeiro, é preciso explicar quais são os argumentos dessa filosofia e como ela prescinde da consciência, incontestável como experiência.

É inegável que o desenvolvimento das investigações sobre o cérebro no século XX constituiu um apoio para essa filosofia materialista. A dependência da consciência em relação ao corpo é difícil de contestar, de modo que a experiência da autonomia do nosso eu aparece cada vez mais como uma ilusão. Sabemos que a alma nunca atua sem o corpo: desmaio caso tome clorofórmio e, caso eu me drogue, o conteúdo de minha consciência vai se alterar e fugir do meu controle. Ora, a neurologia dá conta dessas experiências ao descobrir no cérebro uma localização muito precisa para a maior parte de nossos comportamentos. Se esse grupo de células cerebrais for estimulado, o paciente fará tal movimento do braço, e até pronunciará tal palavra; se as células forem destruídas, a pessoa perderá o uso das funções correspondentes. Assim, por exemplo, a memória e os vários tipos de memória (palavras, imagens…) foram localizados. Isso significa que a experiência da alma que ultrapassa o corpo é uma ilusão: minha percepção de algo distante se reduz à ação de um estímulo sobre o cérebro, que gera uma representação; minha memória, como relação com o passado, não é senão a presença de marcas das impressões passadas no cérebro, que se transformarão novamente em impressões, ou seja, em recordações, se essa parte do cérebro for estimulada. Quanto à experiência da ação voluntária, a ela corresponde, no cérebro, um acontecimento físico que se insere numa cadeia causal de processos. Em outras palavras, a cada comportamento humano (ação, sentimento, pensamento) corresponde um acontecimento objetivo no cérebro, e o homem torna-se uma máquina muito sofisticada, já que as leis de sua vida se reduzem às leis mecânicas que regem as relações entre os acontecimentos cerebrais: idealmente, seria possível controlar completamente a vida de um homem ao agir sobre as partes do cérebro que correspondem àquilo que quero que ele faça, do mesmo modo como controlo o comportamento da máquina ao apertar os botões adequados. Assim, a alma, como a definimos, não existe ou, antes, é apenas um certo corpo quando regido por certas leis.

No entanto, resta a resolver o problema da experiência da consciência, que é incontestável. A solução consiste em não negar essa experiência, mas em dizer que a consciência é como um efeito superficial que acompanha todos os acontecimentos cerebrais mas que não exerce nenhuma influência, nenhum papel no desenrolar desses acontecimentos. Se ela não existisse, nada mudaria, mas os processos cerebrais produzem um efeito suplementar que é a consciência: ela é um epifenômeno, e por isso essa teoria chama-se epifenomenismo. Assim, segundo a imagem bergsoniana, os fenômenos psíquicos seriam como a fosforescência que segue o movimento de um fósforo riscado em uma parede na escuridão. Essa comparação é muito relevante, pois dá conta da ilusão de liberdade e de uma consistência da alma. Com efeito, como o movimento do fósforo que deflagra a chama só aparece com a chama, se a chama pensasse, ela acharia, necessariamente, que ele é a causa do movimento (vontade) e a condição da aparição da parede (percepção). Da mesma maneira, como a consciência desconhece a causa cerebral de seus movimentos, ela acha que é a causa desses movimentos, dos quais, na realidade, ela é apenas o efeito ou, antes, o epifenômeno: a liberdade é uma ilusão que resulta da falta de conhecimento das causas de nossas ações. A consciência é, portanto, um efeito peculiar, que é fonte de ilusão, pois é conhecido de forma evidente e desconhece os processos cerebrais sem os quais não haveria sentimentos, percepções ou decisões. Na verdade, se pudéssemos ver tudo o que acontece em um cérebro enquanto ele trabalha, e se tivéssemos a tabela de correspondência entre o plano cerebral e o plano mental, ou seja, o dicionário que permitisse traduzir cada movimento cerebral a seu equivalente psíquico, saberíamos tudo o que a alma pensa, sente e quer, tudo o que ela acredita fazer livremente, quando ela o faz mecanicamente: em outras palavras, partindo do cérebro é possível conhecer exaustivamente o que acontece na alma, o que equivale a dizer que não há nada na alma que não esteja no cérebro, além do epifenômeno da consciência.

Antes de discutir essa posição, é necessário sublinhar que essa teoria é filosoficamente muito consequente, como mostra Hans Jonas em The phenomenon of life. Com efeito, o epifenomenismo reconhece plenamente o fato de que o princípio de causalidade só faz sentido no espaço: apenas no espaço é possível distinguir entes numericamente diferentes uns dos outros e, portanto, insolúveis como causas e efeitos. Também é apenas no espaço que é possível medir uma quantidade e estabelecer uma relação quantitativa e, portanto, mensurável, entre a causa e o efeito. O princípio de causalidade tem validade apenas no reino da matéria. Isso significa que uma causalidade psíquica não tem sentido, e, como Bergson demonstrou, falar em causalidade em relação aos estados de consciência equivale a projetar o espaço, homogêneo e descontínuo, dentro da vida psíquica, que é caracterizada pela continuidade e pela heterogeneidade. Além disso, com mais razão, a ideia de uma ação causal entre o mundo material e a vida psíquica, ação pela qual Descartes explicava tanto as paixões como as ações, é totalmente desprovida de sentido. É por isso que o epifenomenismo não define o estado de consciência nem como efeito de outro estado de consciência, nem como efeito dos processos cerebrais, e sim como um fenômeno marginal que acompanha esses processos, uma fosforescência. Em outras palavras, a teoria determinista, que considera qualquer evento como suscetível de ter uma causa determinante, é levada, desde que seja consequente, a definir todo ente e todo evento possível como dependente da matéria, uma vez que o determinismo só faz sentido em relação à matéria. É por isso que a consciência não possui nenhuma realidade fora da matéria da qual ela é um fenômeno.

Por mais que seja mais consequente do que um dualismo metafísico, essa teoria não deixa de levantar problemas graves, de várias ordens. Ora, já que é a teoria mais coerente no que concerne à relação entre o cérebro e a alma, se conseguirmos mostrar a dificuldade de sustentá-la, teremos mostrado que a tese de uma independência da alma em relação ao cérebro pelo menos não é desprovida de sentido, e é até verossímil. Primeiro, essa tese epifenomenista suscita objeções de princípio que tomo emprestadas de Hans Jonas. Com efeito, por menor que seja, a consciência que acompanha os processos cerebrais é alguma coisa, é uma realidade. Ora, sendo paralela aos processos cerebrais, sua aparição em nada muda o curso desses acontecimentos, o que equivale a dizer que é um efeito sem gasto de energia no que diz respeito à causa, um efeito que não consome energia de sua causa, e por isso é um efeito desprovido de potência, que não pode ser causa de outro processo. Como diz Jonas de maneira sugestiva, o epifenômeno é “um impasse na estrada da causalidade”. Ora, essa descrição contradiz a regra constitutiva do princípio de causalidade, segundo a qual, em qualquer acontecimento físico, há sempre conservação, e nunca criação de energia: um efeito, por menor que seja, exige da causa um gasto de energia. No caso do epifenômeno, temos um acontecimento que, diferente dos processos cerebrais, é um efeito e, no entanto, não implica na causa um gasto de energia: é, portanto, uma incompreensível criação de energia — consequência que contradiz os princípios da teoria da qual ela faz parte. A segunda objeção de princípio é ainda mais grave. Essa teoria é incapaz de dar conta de si mesma como teoria e, até, torna incompreensível sua própria possibilidade. Com efeito, segundo a teoria epifenomenista, um argumento ou uma teoria são fosforescências que acompanham os processos cerebrais e, como tais, são desprovidas de sentido ou de verdade. Como o epifenomenismo pode, então, constituir-se como teoria e visar à verdade, sendo ele próprio um epifenômeno? Em outras palavras, como um epifenômeno pode adquirir um sentido, referir-se a sua própria causa e explicar-se a si mesmo? Seria preciso uma neurologia que desvelasse e descrevesse os processos cerebrais capazes de produzir sua própria teoria como epifenômeno!

Mas, além das objeções de princípio, que versam sobre o sentido dessa teoria, sobre o porquê (por que a natureza produziu um efeito que é um impasse, que não serve para nada?), cabe abordar a questão do “como”, ou seja, da validade da tese central de uma equivalência entre o cérebro e a alma. Como vimos, essa tese pode ser expressa da seguinte forma: em condições ideais, seria possível deduzir todo o conteúdo da vida espiritual dos movimentos cerebrais, o que invalidaria nossa experiência da liberdade. Mas, na realidade, essa afirmação não é científica. Se chamarmos de científico aquilo que pode ser observado ou demonstrado, essa proposição não é nada científica, já que nem sequer vislumbramos uma maneira de verificá-la. Como diz Bergson, ao definir um método filosófico autêntico, tudo o que é objeto de experiência, quer interna, quer externa, deve ser tido como válido enquanto não for demonstrado que é mera aparência. Ora, não há dúvida de que nos sentimos livres: portanto, cabe aos que sustentam que esse sentimento é ilusório demonstrar que se trata de uma ilusão. Devemos reconhecer que isso ainda não foi demonstrado: como acabamos de mostrar, a ideia de uma dedução do conteúdo da alma a partir dos processos cerebrais é uma conjetura, não é uma tese cientificamente estabelecida. Com efeito, o que demonstram exatamente os fatos provenientes da neurologia, com os quais começamos? Demonstram algo quase óbvio, a saber, que a vida da consciência depende do corpo, que há uma solidariedade entre eles, de modo que, se não houvesse um cérebro, não haveria consciência — o que é confirmado pelo fato de que a destruição de um centro cerebral acarreta o desaparecimento da função correspondente. Mas o fato de que, sem cérebro, não haveria consciência ou alma não significa que a alma se reduza ao cérebro. As condições necessárias nem sempre são condições suficientes; as condições sem as quais não haveria alma não são equivalentes às condições pelas quais existe uma alma, de modo que, ao menos no plano lógico, nada impede que haja na alma algo mais do que no cérebro. Como mostra Bergson, existe uma solidariedade entre uma roupa e o prego no qual ela está pendurada; ela cairá se o prego for arrancado, escorregará se o prego se mexer e se rasgará se a cabeça do prego for muito pontiaguda. Mas não se segue daí que cada detalhe do prego corresponda a um detalhe da roupa e, muito menos, que o prego e a roupa sejam a mesma coisa. Assim, é incontestável que a consciência esteja “pendurada” em um cérebro, mas disso não resulta que cada detalhe da consciência seja desenhado pelo cérebro, nem que a consciência seja uma função (um epifenômeno) do cérebro.

Em resumo, se nos mantivermos nos limites da experiência, podemos dizer o seguinte: nossa experiência revela uma vida psíquica da qual faz parte uma vontade livre, que, como tal, é irredutível aos movimentos mecânicos do cérebro. Ora, pensando bem, é muito difícil entender como um processo cerebral, isto é, um processo material, pode dar origem a uma realidade psíquica, imaterial: essa transformação seria mágica. Talvez seja a objeção mais forte ao epifenomenismo. Com todo o rigor, um evento cerebral só pode causar outro evento material, de acordo com a lei da conservação da energia: tudo o que um ente material pode fazer é produzir um movimento, e a produção de uma consciência parece um absurdo. Em outras palavras, há no dualismo uma verdade ao menos negativa, no sentido em que a tese da produção da realidade psíquica por processos materiais e, portanto, da dedução da alma a partir do cérebro parece incompreensível, para não dizer absurda. São realidades totalmente diferentes uma da outra e, portanto, irredutíveis uma à outra. Essa conclusão é estabelecida ao mesmo tempo pela experiência e pelo raciocínio: nossa experiência da liberdade revela uma dimensão que escapa ao reino das leis causais, o que é confirmado pela reflexão, na medida em que não entendemos como um processo material poderia dar origem a um conteúdo espiritual. Mas, por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que a experiência científica demonstra uma dependência entre a vida da consciência e a realidade material e suas leis: certas substâncias podem prejudicar a vida da consciência ou modificá-la, e, sobretudo, uma transformação do substrato cerebral pode provocar uma modificação ou uma destruição das funções da “alma”. Essa conclusão impede que nos limitemos a um dualismo ingênuo, segundo o qual haveria duas substâncias independentes uma da outra, cuja definição não incluiria um modo de relação com a outra. De fato, a alma depende do cérebro, o que significa que cada uma das duas realidades em relação é constituída de uma maneira tal que pode, de fato, se articular com a outra e constituir com ela uma só realidade, que se chama realidade humana. Se é verdade que há um dualismo intransponível, o fato é que, por outro lado, corpo e alma aparecem como duas dimensões de uma única realidade e, por conseguinte, funcionam como um só ente. Assim, trata-se de entender como essas duas realidades, a alma e o cérebro, podem ser definidas para dar conta de sua unidade no funcionamento do homem como ser unitário; trata-se, portanto, de definir o corpo e a alma de modo que sua articulação seja compreensível, isto é, respeitando ao mesmo tempo sua diferença e sua dependência. Em outras palavras, o problema é: qual é o ponto de contato entre a realidade mental e o cérebro, como essa realidade mental pode inserir-se na realidade material dos processos cerebrais, sendo que uma ação sobre o cérebro é, de fato, ação sobre a alma? Estamos vendo que, aqui, o dualismo não é definitivo: é, de certa forma, uma etapa em direção a uma forma de monismo, pois é preciso definir e, portanto, distinguir duas realidades de modo a dar conta de sua unidade. Aqui, é necessário dividir a fim de reunir, sendo os dois lados da dualidade momentos de uma unidade que também está presente em nossa experiência. Poderíamos dizer que a questão da essência do homem, abordada pela questão da relação entre a alma e o corpo (o cérebro), leva para além da própria distinção entre monismo e dualismo, uma vez que se trata de dar conta, ao mesmo tempo, da irredutibilidade da alma ao cérebro e da dependência da alma em relação ao funcionamento deste.

Qual é, portanto, o ponto de contato ou de articulação? Como já dissemos, conforme Bergson estabeleceu em Matéria e memória, uma realidade material (que ele chama de “imagem”) só pode receber e transmitir movimentos: o cérebro pode dar origem a movimentos, mas em hipótese alguma a um conteúdo psíquico qualquer. Agora, se nos debruçarmos sobre nossa experiência da vida psíquica, para vermos como a consciência pode passar à exterioridade, inserir-se na matéria, o que descobriremos? Precisamente o fato de que a vida psíquica comporta uma dimensão motriz, um “acompanhamento motor”, diz Bergson, que, na realidade, deve ser entendido como um forma de expressão, e isso vale para todas as dimensões da vida psíquica. Assim, a percepção envolve necessariamente um movimento possível, uma vez que, como mostrou Bergson, a percepção recorta, dentro do mundo, as realidades com as quais o sujeito (animal ou homem) tem uma relação vital, isto é, às quais ele vai reagir: uma percepção não é senão um movimento contido e retardado. Da mesma maneira, a vontade esboça, graças ao cérebro, todos os movimentos possíveis em que ela pode se tornar real e entre os quais ela escolhe: a vontade não seria compreensível sem essa multidão de movimentos em estado nascente, esboçados, na medida em que uma vontade verdadeira sempre resulta em uma ação (senão é apenas uma veleidade). Enfim, quando estou pensando, falo comigo mesmo, isto é, esboço os movimentos pelos quais meu pensamento se expressaria se de fato eu falasse. Segundo Bergson, o pensamento deve ser caracterizado como um movimento interior contínuo, movimento que as palavras não podem restituir, do mesmo modo como as posições no espaço não restituem o movimento de um corpo. Esse movimento do pensamento, que é um movimento articulado e que varia sem parar, sempre tende a se traduzir em movimentos externos que expressariam o vaivém de seu ritmo, de suas variações. É precisamente esse movimento, ou antes,  as variações nesse movimento, que tentamos restituir pela sonoridade, pela pontuação e pelo ritmo das palavras, pela “coreografia do discurso”, quando tentamos escrever exatamente o que estamos pensando (ou sentindo). Em outras palavras, o pensamento, realidade psíquica ou mental, tende a sua própria expressão, que toma a forma de um movimento ao menos esboçado.

Assim, o movimento, realidade física, mas também dimensão da vida psíquica — à qual ao menos ela tende e por meio da qual ela se exterioriza —, é o ponto de articulação entre a alma e o cérebro. A função do cérebro é preparar ou esboçar os movimentos pelos quais nossa vida psíquica se exteriorizaria sob forma de ação: a substância cerebral desenha essas ações, que são como a projeção simplificada de nossos pensamentos, seu esquema motor. Nesse sentido, o cérebro é o órgão de um mímico: seu trabalho são as mímicas da vida do espírito, ou seja, ele extrai dela tudo o que pode se tornar real sob a forma de um movimento e, portanto, tudo o que pode ser inserido na exterioridade. Como escreve Bergson, em relação à atividade mental, a atividade cerebral é como os movimentos da batuta do regente, em relação à sinfonia. Pensando bem, poderíamos ter chegado à mesma conclusão se tivéssemos perguntado: qual é o ponto de contato entre aquilo que é temporal (característica da realidade espiritual) e aquilo que é espacial (o cérebro)? É óbvio que a resposta é o movimento, ao mesmo tempo temporal e espacial: há uma continuidade entre o movimento da alma — movimento no sentido figurado de uma evolução, de um desenvolvimento — e o movimento espacial no qual ele pode se tornar real: essa continuidade é claramente atestada pela experiência da expressão. Seja como for, o cérebro surge como “o órgão da atenção à vida”, ou seja, o ponto de inserção da vida espiritual na realidade material, por intermédio dos movimentos em que essa vida se degradaria. Agora temos condições de explicitar um pouco melhor a relação entre a alma e o cérebro. Vimos com clareza que há muito (infinitamente) mais na consciência humana do que no cérebro que a ela corresponde. Em consequência, alguém que pudesse ver perfeitamente o que acontece em um cérebro veria algo do que está acontecendo no espírito, mas muito pouco. Veria o que é traduzível em gestos, atitudes, movimentos do corpo, ou seja, a ação em estado nascente: o resto lhe escaparia. Ele estaria, em relação aos pensamentos que se desenvolvem dentro da consciência, na situação do espectador que vê nitidamente tudo o que os atores fazem no palco mas não entende uma palavra do que estão dizendo. É verdade que os movimentos dos atores dependem do texto, de modo que, quando conhecemos o texto, podemos prever mais ou menos os movimentos dos atores… Mas a recíproca não é verdadeira: os movimentos dos atores dão muito poucas informações sobre a peça. Assim, se nossa psicologia e nossa ciência do mecanismo cerebral fossem perfeitas, poderíamos adivinhar o que acontece no cérebro a partir de um estado psíquico determinado, mas a dedução inversa não seria possível, pois, para um estado do cérebro, poderíamos escolher entre muitos estados psíquicos, igualmente adequados, precisamente todos os estados que se degradariam no movimento desencadeado por esse estado cerebral. Em outras palavras, o cérebro desenha pouca coisa de um estado psíquico, a saber, o tipo de movimento pelo qual este se expressaria ou se manifestaria, movimento em que a singularidade irredutível desse estado se perderia: essa singularidade só é acessível a quem vive esse estado, toma consciência, e, portanto, a passagem para a exterioridade é uma perda dessa tonalidade singular. Nesse sentido, há um excesso infinito da alma em relação ao corpo.

Essa hipótese teórica é adequada à experiência, espontânea e científica. Mas ela pode ser confirmada por uma nova experiência para cujo esclarecimento, por outro lado, ela contribui. As doenças da memória, particularmente a afasia, constituem aparentemente um argumento muito forte em favor da tese de uma redução da alma ao cérebro. As lembranças estariam acumuladas dentro do cérebro sob forma de modificações de certos elementos anatômicos: a perda da memória resultaria da alteração ou da destruição desses elementos. Ora, Bergson realça aspectos da afasia que não se enquadram nessa explicação. De fato, mesmo quando a lesão é muito grave e a memória das palavras profundamente prejudicada, às vezes uma emoção muito forte pode trazer de volta a lembrança que parecia definitivamente perdida. Isso seria impossível se a lembrança estivesse “depositada” no cérebro. Tudo se passa como se o cérebro servisse para recordar, e não para conservar a lembrança: o afásico não perdeu o conteúdo do passado, mas a aptidão de dele se lembrar, ou seja, de torná-lo consciente ao esboçar antecipadamente os movimentos pelos quais a lembrança se prolongaria se ela fosse consciente. Assim, quando procuramos um nome que esquecemos, pronunciamos interiormente várias palavras, passando por todas as letras do alfabeto, até achar a palavra certa. Em outros termos, esboçamos vários movimentos até achar a mímica motriz que corresponda à palavra que procuramos: então a palavra se enquadra imediatamente em seu movimento e vem à consciência. É esse mecanismo cerebral que seria prejudicado na afasia. Ora, essa hipótese é confirmada por uma constatação estranha: seja qual for a lesão, as palavras sempre desaparecem na mesma ordem — nomes próprios, nomes comuns, adjetivos, verbos. Isso não pode ser explicado pela localização da lesão, pois mesmo que ela progrida de várias maneiras, atingindo os supostos centros seguindo ordens diferentes, a ordem em que se perdem as palavras é em geral a mesma, como se a doença conhecesse a gramática. A nova hipótese enseja dar conta dessa observação: com efeito, a lesão não atinge os conteúdos, mas a função de recordação, e, à medida que a lesão progride, essa função se torna cada vez mais impotente. Como consequência, as palavras mais difíceis de recordar somem primeiro, e as mais fáceis é que ficam. Os verbos permanecem até o final, pois exprimem ações, e uma ação pode ser expressa por mímica. Assim, por estar mais próximo do movimento, significando um movimento, o verbo pode ser mais facilmente transformado em movimento e, por conseguinte, pode ser lembrado com mais facilidade do que, por exemplo, um nome próprio, cuja dimensão motriz não é óbvia.

Entendemos melhor agora como há, ao mesmo tempo, diferença, e até irredutibilidade, entre o cérebro e a alma, e, por outro lado, articulação ou união, de fato, na existência, ou seja, inserção da alma em um cérebro, que desenha os movimentos pelos quais essa alma se exteriorizaria e entraria assim na realidade material. Assim, Bergson conseguiu dar conta do fato de que nos sentimos ao mesmo tempo livres e somos dependentes do corpo; ele conseguiu dar conta da experiência da divisão e da união: a vida do homem, até a vida espiritual, depende de uma “máquina” muito complexa — o organismo e, sobretudo, o cérebro —, mas, como homem, ele não é uma máquina, pois essa vida espiritual excede infinitamente o cérebro.

Tradução de Paulo Neves

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