1988

A atividade do espectador

por Luiz Renato Martins

Resumo

A divergência de olhares é o tema de Roma de Fellini (1971), filme que mistura imagens contraditórias e satiriza as dualidades (a Roma antiga e mitológica que convive com a moderna e anárquica). O provérbio de que todos os caminhos levam a Roma faz rir o espectador de Roma. Numa cena em que o cineasta e sua equipe se perguntam acerca do que filmar, surge um ônibus de turismo e ouve-se uma passageira dizer: “Depressa! Me deem uma máquina, quero tirar uma fotografia!” Imagens vulgarizadas. Diante das opiniões díspares sobre a cidade (dos habitantes ou dos espectadores de um teatro de variedades recriado dos anos 1940), dos afrescos que desaparecem ao serem expostos à luz numa escavação de metrô, dos hippies despidos na Piazza di Spagna, o que Fellini vê lhe escapa. Épocas demarcam olhares, remetem a visibilidades diversas. Até certo momento a investigação do filme é arqueológica. Mas há uma mudança de fase a partir da cena de um ringue de boxe armado na rua. O olhar pautado pela interioridade e a busca de sentido (modelo da Divina Comédia de Dante) é agora arrastado pelo público. Demarca-se um campo de provocação (como no encontro de Fellini com a atriz Anna Magnani). Nada conduz à essência ou ao consenso. Há apenas combate e devir. Impossível determinar qualquer olhar sem considerar a força oposta. Na cena final, motos desfilam medindo forças contra uma arquitetura majestática. Depois do filme, Fellini disse que Roma continuava inapreensível para ele, mas que isso a tornava “sempre mais simpática e fascinante”.


Forjar: domar o ferro à força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga.[1]

Roma,[2] de Fellini, institui uma polêmica em matéria visual. Tentarei indicar, seguindo o filme, etapa a etapa, os diferentes modos de olhar que se põem em confronto. A divergência de olhares dá a nota, durante a apresentação do título e outros créditos, introduzindo até as imagens, quando o cineasta pela própria voz previne:

Senhoras e senhores, o filme que irão ver não tem uma história no sentido tradicional, com uma trama simples e personagens que podem ser acompanhados do princípio ao fim. Este filme conta um outro tipo de história, história de uma cidade. Aqui, tentei retratar Roma.[3]

Colocando de início um problema e implicando práticas diversas de olhar, o aviso denota, antes de tudo, que a obra prioriza tematicamente a própria linguagem. Simultaneamente, de outro lado, os espectadores preparam-se para notar contrastes de imagens, oposições no curso do espetáculo.

Com as imagens entra a voz do primeiro narrador:

Eu era bem pequeno e ainda não a conhecia, já que morava numa pequena cidade provinciana no norte da Itália. Roma era, para mim, apenas uma estranha mistura de imagens contraditórias [ ]. Em todos os meus anos escolares me parecia não haver nenhum caminho que não levasse a Roma.

Percebe-se que a capital constituía, para o ponto de vista do interior, uma referência maior, como abrigo e somatória de valores. Com tal caráter, amalgamava ideias variadas. Assim, estas primeiras cenas fazem referência à grandiosidade pagã, recordam outras grandezas e qualificações da capital. Caracterizam uma representação fabulosa do desconhecido. Nestes termos, revela-se a perspectiva duplamente ingênua, típica de um colegial de província. Sua visão se apóia numa dicotomia de mundos. Pela divisão esquemática, a capital está numa esfera superior. Abaixo, o mundo da província, enquanto domínio derivado.

Pressupondo esta dualidade, o olhar passa a operar como síntese entre as esferas apartadas. O filme, porém, satiriza este tipo de visada. Patentemente, o motivo da escolha do fio condutor inicial, que reconstitui a perspectiva provinciana, é farsesco. Assim, o autor-narrador se afasta de Roma, sabidamente o lugar que habita. O que planeja, quando decide principiar o filme por um recuo que remete a narração a um tempo remoto? Com esta manobra, designa um saber ou uma linguagem da ordem do mito. Contudo, é em tom humorístico que reelabora a posição, fingindo resgatar uma perspectiva lendária ou visionária. Efetivamente, ironiza o ponto de vista mitológico. Chega à caricatura. A visão ingênua, acerca das excelências de Roma, faz rir os espectadores de Roma, filme de Fellini. A imaginação ingênua parece fadada à ilusão.

Não se estrutura dessa maneira uma dicotomia autêntica, nos moldes pretendidos pela doutrina cristã. A divisão de mundos, construída pelo autor, é paródica. A província, como origem de um olhar mitológico ou visionário, é tomada como cópia pobre do que tem por modelo. Noutro extremo da perspectiva, Roma, enquanto núcleo dos valores autênticos, é identificada, na ótica de Fellini, com o clericalismo, a monarquia e o fascismo. Assim, nesta descrição da imaginação ingênua, o visionarismo, o provincianismo e a linguagem mitológica, lendária ou fabulosa, aparecem identicamente. Não partilham de nenhuma verdade. Não fornecem relatos convalidados pelo filme em sua atualidade narrativa. Neste grau predomina, ao invés, o enfoque irônico e distanciado, marca-damente crítico.

Remata-se o bloco inicial de cenas pela figura de um menino, agarrado à grade da estação ferroviária, de olhar embevecido com um trem de partida para Roma. Todos os quadros até então focalizados pertencem a uma mesma ordem. Determinam invariavelmente um tipo de olhar longínquo, sonhador e reverencioso, visando metas as mais díspares, sejam sublimes, sejam profanas. Importa, de acordo com tal classificação, destacar no olhar sempre uma finalidade; ele visa um objetivo e vale como meio para tal fim. A ordem, posta pelo filme, abriga casos aparentemente estranhos, como o dos padres que, através da projeção dos slides mostrando os monumentos da Cidade Eterna, buscam dar lição exemplar, e ainda os casos dos colegiais e dos frequentadores do bar que, pela via de figuras femininas, visam um prazer erótico distante e, para eles, fora do alcance. Linha comum, nesta ordem visual ingênua, o ato de ver comparece, em todos os casos, como transporte ou meio de mudança de gênero de vida. O olhar, nestes termos, é posto de modo menor perante um produto da imaginação, tido como representação to-talizante de algo maior.

Na obra Roma, a ironia refuta, como se vê, tal atitude de minoridade e submissão em relação à instância das imagens ou do visível. Gradativamente, irão se elaborar uma instância visual e uma ordem do olhar diferentes, em processo seguido pelo espectador da obra, através da confrontação de abordagens da cidade. Desse modo, despontam no filme diferentes linguagens, trazendo à cena narradores e recursos diversos, evidenciando estilos distintos. Perfazem várias enumerações visuais de Roma. Vale notar, na pluralidade dos meios e dos parâmetros, que nenhuma via, em princípio, mostra-se perfeita ou acabada.

Trata-se de uma polêmica visual, onde cada série de imagens, estilisticamente precisa, não é suficiente. Nestas circunstâncias, a instrução, na forma de provérbio, duas vezes aludida — todos os caminhos levam a Roma —, embora exata quanto à diversidade das vias alternadamente tomadas, é de comprovação impossível relativamente ao fim. Porque a essência da cidade, tida como Eterna, escapa no ser cambiante e múltiplo, nunca captado satisfatoriamente pela obra. Na minha opinião, Roma, dita por Fellini, é uma paródia do Ser, o que dá uma medida das dificuldades da obra. Porém, nesse mar de incertezas define-se certamente uma fronteira, determinando duas naturezas de imagens segundo a origem histórica. Assim, como já foi destacado, uma remete à tradição, ligando-a a padrões do fascismo, da monarquia e do cristianismo. Enquanto outra família de imagens implica a atualidade da obra e focaliza principalmente o seu fazer como algo problemático. Na circunscrição de tal questão, surgem signos evidentemente modernos da metrópole em que se transformou Roma. A feitura do filme depara o tráfego intenso de uma rodovia periférica, um ônibus de turistas em visita à Villa Borghese e trava contatos breves e informais, de gênero urbano, com frequentadores de praças, transeuntes e curiosos.

Caracteriza-se nestes termos uma visibilidade atual. Ao longo da primeira aproximação dessa esfera, que ocorre na sequência das filmagens no trânsito, esta visibilidade se destaca, contrariamente à anterior, pela prolixidade e heterogeneidade dos seus elementos. Apresenta-se através de muitos planos gerais de duração demorada, entremeados de outros planos próximos que suscitam efeitos de choque, de modo a configurar no todo um quadro caótico. O estilo televisivo de enquadramento, marcado por sensações abruptas e guinadas agudas, denota a precariedade e a proveniência anônima, como a. proliferação das novas imagens. A oscilação da objetiva, a moldura do pára-brisa, as possibilidades de um olhar postado à janela de veículos acelerados, componentes de linguagem bastante ressaltados no curso de toda esta sequência, indicam uma visibilidade nova que ainda se faz perceptível pela multidão de imagens heterogêneas e de vida curta. Deste modo a caracterização da nova esfera visual opera negativamente. Uma multidão de figuras de raiz indistinta, de vida indeterminada e enfocada coletivamente, opõe-se às representações rigorosamente individuadas e altamente valorizadas, próprias à ordem anterior. Aos olhos habituados à situação antiga, o novo fenômeno terá o ar de alguma invasão bárbara. No primeiro contato, o entrar na metrópole, o se confrontar com imagens atuais, equivale a se deparar com linguagens estranhas. Neste cenário, o caráter problemático da tarefa do cineasta entra em ressonância com o ambiente, adquirindo intensidade dramática.

Uma cena bucólica se descortina brevemente: uma criança de branco, ladeada por uma paisagem de bosque, corre atrás de uma bola. A paz natural apontada serve apenas, na minha opinião, a que o problema de realização da obra desponte, consecutivamente, contrastado e ressaltado. A cena imediatamente seguinte traz o cineasta, sua equipe e maquinário parados num parque, detidos pelas dúvidas. Perguntam-se acerca do próprio fazer, do que filmar. A chegada do ônibus de turismo contribui para interromper a perplexidade. “Depressa! Depressa! Me dêem uma máquina! Eu quero tirar uma fotografia!” — ouve-se de uma passageira que admira a paisagem. A realização partilha do buliço, tirando proveito de um interesse alheio. Aí se apresentam as marcas de relações artificiais, de intimidade com máquinas, de permissividade visual e de fabricação automática de imagens. Coisas evidentemente vizinhas de aspectos problemáticos do fazer, enfrentados pela obra. Nesta proximidade em que se compara a outros termos da atualidade, embora partindo de considerações específicas, distinguem-se melhor as dúvidas próprias à realização. Delineia-se o campo de incertezas do filme. Desde então, pelo exame dos dados contemporâneos, o problema passa pela determinação dos fatores de uma situação visual com sabor de novidade. Assim, deixando a atitude de introspecção marcada por experiências infantis, para atender à hora, chega-se a algumas constatações preliminares: as máquinas de fotografar estão quase à disposição de todos, portanto, não prevalece a dura necessidade de dobrar ou persuadir o outro para a obtenção da imagem de si. Noutros termos, a devoção obrigatória a algumas poucas representações, a fixação de uma iconografia foram trocadas pelo apreço indiscriminado às imagens e, mais, o artesanato artístico tornou-se largamente prescindível diante do operar industrial. Na mesma era, o primado do belo deu lugar à diversificação das linguagens plásticas, expandiu-se em escala geral o domínio da informação visual. Enfim, perdeu-se o campo de visão demarcado pela exigência de distância e veneração das formas perenes.

Para a realização, resulta deste exame comparativo a opção de interpretar a nova visualidade, não mais como barbárie, mas, aceitando a modernidade visual, como caso análogo ao da difusão do uso da palavra, constituinte da atividade democrática na pólis grega. Nessa medida, esboça-se uma mini-assembleia, abrindo-se a discussão de questões visuais. O cineasta tem que ouvir opiniões desabusadas acerca da sua obra, de autoria de um velho advogado com posições reacionárias, e ainda de estudantes contestado-res. O primeiro interlocutor de Fellini, “ciumento de Roma como estaria de sua esposa”, diz a narração, receia que o autor do filme venha a caracterizá-la pejorativamente. Por isto recomenda que o diretor mostre o lado melhor de Roma, em vez de se entregar às suas habituais inclinações “pelos bandos de homossexuais e de prostitutas disformes”. já os estudantes que tomam a palavra têm outras preocupações. Querem que os seus problemas e os dos trabalhadores sejam tratados pelo filme. Têm em mente uma nova sociedade e a obra cinematográfica deve servir a tal solução. Apesar do antagonismo manifesto desta intervenções, elas têm uma origem comum: a ideia, de ambos os lados, para a revolução ou para a restauração, é determinar a imagem segundo o fim aspirado. Com este critério, todos usam e julgam a linguagem visual. Em resumo, nesta cena, não vale mais a concepção da figura como algo natural, substituída pela ideia corrente de objeto visual manipulável. Deixando de ser intocável e derivando de uma gênese discutível, essa linguagem não é mais objeto de culto, perdeu a sua aura tradicional, pos-sívelmente, como aponta Walter Benjamin em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.[4]

Mas, embora se verifiquem alterações no polo da imagem, a concepção do olhar, aí apresentada, está nos moldes da tradição. Para o advogado e para os estudantes, renovaram-se a natureza, o alcance e a vigência das formais visuais. Porém, permanece o olhar submetido a um fim. As opiniões emitidas concedem às figuras, na condição de finalidade, o privilégio de se tornarem fatores determinantes, valores do olhar. Tomam-nas por derivadas de um mundo superior. Deste modo, situa-se aí o fundamento de toda visibilidade. Persiste, portanto, a validade fundamental das representações. Assim, não se alterou o seu valor relativo, previsto no princípio do olhar, como tampouco, de outro lado, a concepção do ato, posto como secundário em relação às imagens. Em conclusão, nestas interpretações, a visibilidade configurada a partir da introdução de artefatos atuais é apenas parcialmente nova.

Em face destas colocações, o cineasta assente quanto à real importância dos problemas apontados. Não, porém, quanto a tratá-los no filme, e se desculpa: “Este diretor de filmagens nem pode solucionar seus problemas pessoais”. Com esta escapatória, se afasta do pressuposto comum baseado na prioridade da imagem. Evitando dar parecer visual sobre problemas reais, contraria as expectativas de sentido investidas na representação, delimitando o alcance da linguagem visual.

Completando a operação crítica, expõe a sua proposta:.

Aqui, por exemplo, neste ponto, gostaria de tentar recriar uma noite típica no pequeno teatro de variedades, de Barafonda, como era trinta anos atrás, no início da guerra […].

A apresentação do teatro, situada em Roma na iminência da invasão da Sicília pelos exércitos dos aliados, repete figuras copiadas e caricatas, focalizadas inúmeras vezes no curso da obra de Fellini, desde Luci del Varietà (1950). Porém, o que efetivamente marca esta sequência não se encontra nesta citação ou paródia da própria obra. O fator novo surge em contraposição: nesta ocasião, é a plateia que possui na cena a iniciativa dramática e avalia em posição de força os números do palco.

Deste modo, a obra reequaciona a sua problemática através de um novo termo. O espectador de Roma vê-se diante de uma plateia exuberante, mais ativa do que os quadros do espetáculo de variedades. Nesta perspectiva, as imagens valem muito pouco; em troca, a atitude do espectador ganha todo realce. O foco volta-se da questão do tema, da natureza ou dos meios de representação para a força das interpretações. Delineia-se um outro horizonte no fluxo da atenção que se realiza pelos comportamentos do espectador. Esta virada copernicana restringe a valia do plano da imagem e das aspirações aí reunidas ou a importância pressuposta do visível. Em contrapartida surgem evidências de energia na plateia. Opondo-se à ordem do palco, a plateia parece, à primeira vista, uma manada selvagem — em movimentação incessante, em contato contínuo e sem regras. Como é dedutível dos rumos dessa sequência, a via escolhida conduz a uma situação em que, por princípio, as alternativas de linguagem se põem numa situação altamente conflituosa, sujeitas ao jogo das interpretações. Propõe a reconsideração das relações perceptivas, especialmente do âmbito do espetáculo, supondo em primeiro lugar as energias do espectador.

O novo regime promove uma redefinição geral. A descrição da disputa entre espectadores e imagens indica que a natureza destes elementos é diferente da anterior. As imagens mostradas a nada conduzem, já que não contêm por si nenhum sentido. Do mesmo modo, ao se deixar a corrente de interpretação tradicional, constatando-se na plateia forças disponíveis, tomando-se a disposição de olhar como um ato de sobra e exuberância, seu exercício se instala como avanço ou atividade que amplia e inventa os limites do presente.

Através desta interpretação, dá-se por transposta ou esquecida a dicotomia de esferas, determinante do olhar nos moldes do cristianismo, da monarquia e do fascismo. Na situação nova, em outra correlação de forças, que papel caberá ao olhar? De que modo determinar seus efeitos? Como demonstra a sequência em que a filmagem se embrenha pelo subterrâneo, o olhar, definido como força com poder de iniciativa, não tem poder intemporal; não vence o tempo como não sobrepuja a distância. O ato visionário, a antevisão ou a reconstituição visual fiel de um passado qualquer tornam-se, por conseguinte, inviáveis. Considerado a partir do espectador, vinculado à sua atualidade, pondo-se como atividade, o olhar inevitavelmente se liga de modo constitutivo ao presente. A força visual implanta-se em novas bases tendo o tempo como condicionante. Na nova formulação o olhar apresenta-se como ato temporal e com destreza de artífice.

Nesta redefinição geral dos termos da visibilidade, destacando no olhar o avanço instantâneo de uma energia atuante, o papel do visível deixa de ser interpretado como originário. Engendra-se a partir de uma força disponível e é simultâneo ao olhar. Não preexiste e portanto não traz um sentido. Não se vincula a nenhuma verdade. Em consequência, para a realização põe-se o problema de conceber o seu propósito sem recorrer seja a uma experiência originária, seja a qualquer antevisão ou restauração pela memória, nos moldes de Marcel Proust.

Portanto, tratando do presente como foro dos seus bens visuais, a pesquisa toma como amostra extratos dos romanos mais recentes, cujo comportamento erótico se contrapõe visceralmente ao agir antigo. Na primeira destas sequências, abordando os costumes de 1970, focaliza-se na Piazza di Spagna uma multidão de hippies despidos que dorme, canta, banha-se nas fontes e faz amor ao ar livre, à luz do dia. Não têm constrangimento em serem olhados. É como se nada vissem em redor. A narração os compara a uma ninhada. Participam indubitavelmente de uma nova situação visual. Como delimitá-la? A combinação entre uma visibilidade em grau excelente, mostrando os corpos e nada velando; e o desencanto evidente nos olhares, como se nada mais interessasse à vista, forja uma ordem inteiramente nova e incompreensível para o cineasta-narrador. Em conclusão, o resultado não é tão melhor que o ocorrido, nas escavações do metrô, em relação às imagens de Roma antiga. O que Fellini vê lhe escapa ao mesmo tempo.

“Como éramos diferentes, como era diferente o nosso relacionamento com as mulheres!” — explode o seu comentário, retroagindo para melhor situar o novo e explicando a distinção, antes de tudo, enquanto questão visual. “Tínhamos que nos esconder para fazer amor; na cozinha, tentando apalpar a empregada, na penumbra dos cinemas, no banheiro […].” A partir daí, tem início uma outra sequência implicando mudança acentuada de luz nas imagens de Roma. Assim se opondo à claridade que imperava na Piazza di Spagna, é esboçado um ambiente escuro. Nessas sombras, que cobrem as ruas estreitas do bairro antigo, delineiam-se os antigos bordéis da cidade, oferecendo ao espectador uma concepção-diferente do erotismo. O contraste dos costumes demarca-se também por universos de luminosidades distintas. Desde então a diferenciação que salta aos olhos não cessa de se acentuar. Deduz-se que as épocas, além de espécies de luz, demarcam olhares. Diferenças históricas de costumes remetem a visibilidades diversas. Considerando os comportamentos, observa-se que os jovens de 1970 não fazem amor furtivamente e também não se maravilham com corpos nus. Diversamente, nos bordéis segundo a maneira antiga, o erotismo se baseia antes de tudo numa relação visual intensa e dirigida. Os afetos em jogo fluem pelos ‘olhos e sinalizam campos próprios. Este olhar, além de distinguir e ver, avança, sorri, chama, retruca, pressiona, interpela, faz sinais de oferecimento, etc. É uma via para a emergência e circulação de várias forças. Esta ampla e complexa atividade visual baliza e semeia a relação erótica.

Valores e costumes, por conseguinte, apresentam-se correlatos a ordenações visuais. O engendramento histórico de uns e outros se acopla. O modo de enxergar, a luminosidade e o horizonte, enfim, todos os elementos que definem uma visibilidade mostram-se como variantes, tendo dimensão histórica. Deste modo, a redefinição da situação visual, a partir da ação do espectador, não acarreta uma simples inversão da ordem anterior, pautada pela posição originária do visível. A atividade do olhar engendra o visível, abrindo as próprias portas e traçando as suas vias, carregando consigo vários elementos, porém enquanto se ajusta a uma visibilidade precisada em termos históricos. Ou-seja, vê-se à luz do tempo; não por algum procedimento absoluto, mas com olhar delimitado. Assim, de acordo com as eras, constituem-se olhares e universos visíveis, historicamente organizados, que correspondem a poderes e fronteiras inteiramente específicos.

Logo, a caracterização das atitudes no bordel serve também como lição de visualidade. De um lado os homens sugerem espectadores. Ombro com ombro, seus vultos são distinguidos contra um fundo de sombra e imantados segundo o fluxo das mulheres pelo salão. Enquanto isso, de outro lado as prostitutas portam-se efetivamente como imagens — pintadas ao extremo, despontam gesticulando muito e ao desfilarem são focalizadas pela objetiva em close ou primeiríssimo plano, de uma perspectiva cinematográfica chamada plano subjetivo.

Dentro da mesma pertinência visiva, marcando uma ordem desaparecida, enquadra-se o desfile de moda eclesiástica na morada da princesa Domitila. Aspectos solidários envolvem os frequentadores dos bordéis e a plateia do desfile de modas. Assim como as mulheres se exibem para os homens, os modelos com as vestes se exibem na passarela do palácio. De igual modo, nos dois casos, aquilo que se apresenta tem primazia é exige com insistência um reconhecimento imediato. Constituído por elementos de mesma ordem, em ambos os ambientes, esta forma de visível se configura pelo metro do exibicionismo e da ostentação. Tal aparecer não é natural. Manifesta-se segundo um código. As propostas das prostitutas, como o voltear das manequins, para a apreciação clerical, põem em cena, estereótipos, marcos culturais com vigor tradicional, instituindo como signos a casa, o campo, a infância, a família, a maternidade, o primitivo ou, ainda, remetendo a virtudes e instâncias teologais. Por estas vias e com tais recursos, o visível, apoiado em modelos, disposto em prisma segundo certos valores, imposta o originário ou o sublime, projeta diferentes figuras e outorga a visão, preenchendo o desígnio de encher as vistas.

Nestes termos, a retomada da visibilidade tradicional em Roma cita ilusões antigas ou hipóteses sem fundamento à luz de hoje. Esta ordem visual desaparecida, vigente nos bordéis e nos laços entre o clero e a nobreza, é situada entre parênteses, nitidamente delimitada. Sucede às conclusões que vinculam o olhar à atualidade do espectador. Portanto, esta derradeira incursão visual oitocentista tem o sentido de um ato arqueológico. Esta esfera é compilada enquanto anacrônica. Quer dizer, a ordenação precisada servirá eventualmente para um confronto com a atual. Em contrapartida não estabelecerá nenhum modelo visivo válido em princípio no presente.

Até esta etapa, o percurso crítico da realização inventariou e invalidou o repertório de imagens consolidadas acerca do tema escolhido. Refutou os principais pressupostos da ordenação visual própria à tradição. Configurou-se, consequentemente, um processo de extrema indeterminação, gerador de inquietações. No estado anárquico de visão, caracterizado pelo cada-um-vê-o-que-quer, alcançado pelo filme nesta etapa, a incerteza e a insatisfação também comparecem. Devem-se ao desaparecimento de um mundo em comum para o olhar? Reclamam o dom da objetividade e o fio da certeza na designação? A riqueza plástica, como a liberdade do olhar, mostram-se, agora, bens desvalorizados? Em termos símiles, que revelam desconcerto, as conjecturas de Fellini e da equipe lançando perguntas, mesa a mesa, a esmo e sem nexo amplo, durante a festa de Noantri,[5] no bairro de Trastevere, laboram em face de uma ordenação paradoxal para o olhar, análoga à encontrada entre os hippies de Piazza di Spagna, — na qual tudo se pode ver e sem nenhuma restrição, anulado o encanto. Provar a indeterminação do visível e o excesso das suas possibilidades, sem gosto ou com náusea, será o traço bem característico do presente? Vale perguntar, será que o olhar mais corrente, quando faz patente a anestesia ou a insatisfação, lastima um alvo antigo, enaltecido pela experiência consensual da vista, pela autenticação do visto, por alguma visão originária? Sem mundo em comum, preso ao gonzo do ponto de vista, fadado à incomunicabilidade, este olhar faz de espelho apenas? De fato, seguindo o fio da narrativa, para o espectador de Roma a cena da festa traz a relação entre imagens fáceis de serem colhidas pelos olhos, como de uma galeria com seres famosos e personalidades que se deixam filmar e entrevistar, e o correlato olhar que procura outra distração. As liberdades de filmar e olhar, concretizadas aí, no levam a nada. Não solucionam a problemática posta pela obra. Como retratar Roma, se se apresentam inúmeras como os pares de olhos? Perdeu-se, nesse estágio, o sentido da realização como de toda atividade perceptiva. Portanto, esta sequência, ao invés de caracterizar o reencontro de um estado natural do olhar ou de algum paraíso visual, faz sobressair o labirinto que enreda obra e percepção em tal ocasião.

Até que repentinamente um tumulto interrompe o olhar abandonado a si mesmo, levando a uma atitude de pronta presteza. São gestos e gritos de entusiastas, junto a um ringue armado na rua, acompanhando um combate de boxe. Nesta hora, a linguagem do filme evidencia estar mudando novamente de fase. Para o espectador atento, diferencia-se no enquadramento e no andamento. Como se encontrasse um alvo real, abandona o estado atomizado marcado na passagem precedente. Muda a condição ou a base do foco, vindo a ser parte do público que segue a luta. A vontade de enxergar, em exposição intensa, comunica-se, desperta outros olhares. Pondo em interação os espectadores, uma energia coletiva difusa difere constitutivamente o olhar em público do olhar individual, marcado antes. Desta vez, a atenção não parte da alma e nem almeja os significados. O motivo da atenção não é cognitiN4), não se trata de algum sentido transmitido. O ajuntamento humano é que força a atenção a se desdobrar, se abrir e se dispor na direção apontada pelo interesse geral. A atenção desta espécie não se confia a signos determinados, mas, levada pela escolha de outras, coloca-se em conjunto e aberta como as demais. É como se estivesse magnetizada, porém sem ser consumida pelo visto, mas incitada e levada pelos que dão atenção. Vincula-se assim a todas as outras, constituindo o público de um evento. Este tipo de atenção vem à luz tratando com a multiplicidade e a pluralidade das forças anônimas, agindo em âmbito comum. Articula-se um regime de comunicação pública. A alteração radical de estilo, transcorrida então, com a câmara se instalando no calor das atenções dispendidas com o andamento da luta, corresponde a mudanças de monta no alicerce narrativo e na mira da objetiva.

A noção tradicional de olhar, pautada pela interioridade, funda-se numa alma individuada, por princípio, ao abrigo da exterioridade. Em contrapartida, exposto em público, o engendramento em aberto e em conjunto da atenção supõe o encontro coletivo com forças inomeadas e potencialmente deformadoras do indivíduo. Deste modo não se estabiliza no caso forma alguma. Este público não constitui uma massa passiva, nem um conjunto homogêneo, capaz de uma interpretação única, nos moldes de aglomerados populares monumentais e uniformes, estampados em algumas obras do “realismo socialista”. O público, apresentado em Roma, ao inclinar-se pela sorte de um ou outro dos boxeadores, em torno do ringue armado na rua, caracteriza um ajuntamento elástico e heterogêneo, fonte de atos de linguagem e movimentos díspares, exposto a todo fator fortuito ou inomeável.

Assim se refaz, com traços mais definidos, a apresentação do gesto perceptivo, introduzido com a proposição do cineasta no diálogo com o advogado e os estudantes.

Pela observação da cena, evidencia-se que o exercício visual não está preso a um ponto do vista exclusivo, mas resulta de uma exposição integral de cada olhar aos outros presentes. Constata-se, ainda, pelo alarido das vozes interferindo no combate, que o modo de o público ver está sempre conjugado a uma provocação desfechada adiante contra os lutadores, a fim de que se exponham aos golpes.

O termo provocare em latim significa literalmente chamar para fora. Desta noção surge um novo recurso para o prosseguimento da obra: entender o olhar como ato de provocação, associado a fatos orais que lhe servem de incentivo. O apelo provocativo não se confunde a um convite com a finalidade de uma união pacífica. Não enseja um passeio amável dos olhos sobre as superfícies visadas ao modo contemplativo. Trata-se antes de uma interpelação misturada à afronta, um chamado a se descobrir mediante um desafio ou quase insulto. Deste modo, na luta focalizada, o vencedor não demora a ser interpelado. Carregado nos ombros como o melhor, não continua a ter a sua sorte incorporada pela maioria. Ao contrário, ato contínuo passa a ser o mais recente adversário do público, o alvo da provocação. Ou seja, o mesmo público que pouco antes o incentivava, chamando o outro contendor a se expor à sua força, quebra a própria perspectiva e desacata o que ficou de pé. Por que inferir daí que o sucesso é passageiro ou que o público é ingrato e esquecediço? Considerando o novo confronto, de fato, o que fica evidente é que o olhar não se reduz ao traçado da linha perspectiva de um ponto de vista. Marca-se antes pelo predomínio e persistência de um impulso provocativo.

Neste caminho, a realização foi quase arrastada pelo público. Destaca-se a procedência popular desta interpretação do olhar. É instrutivo buscar a contraposição com o modelo de olhar apresentado, em A divina comédia, por Dante. Nesta obra, o enamorado de Beatriz, conduzido por Virgílio e depois são Bernardo, vai ao encontro da essência luminosa do Universo. Do Inferno ao Paraíso, procedendo-se à depuração progressiva do corpo em alma, remata-se a viagem ascensional com a visão inefável de uma essência eterna e luminosa, denominada pelo poeta “Amor que move o sol e as demais estrelas”.[6] Já em Roma, de Fellini, o caminho tomado difere, em todos os termos, deste paradigma do modo de olhar visionário, típico do cristão. A atenção de quem anda a pé, pelas ruas de Roma, dissocia-se da alma e passa à envergadura pública. Em vez de elaborar sínteses, participa de desacatos. Tal atitude não culmina nalguma figura inefável de harmonia, mas no concreto de uma luta. Recusando a perspectiva tradicional do modo contemplativo, o olhar elaborado em Roma não se enquadra, faz-se marginal, errático, observador das coisas ordinárias.

Recém-saído desta experiência, o diretor do filme vislumbra, emergindo das trevas para chegar em casa, Anna Magnani, estrela de Roma, cidade aberta,[7] obra de seu mestre e iniciador Rossellini. Altas horas, aborda-a com um tom provocativo, recordando o comportamento de um dos seus vitellonis[8] chamando-a de “símbolo vivo de Roma”. Face à esquiva de Magnani, Fellini insiste em espicaçá-la com várias qualificações, talvez, mais próprias: “Vestal, virgem, loba, aristocrata, leviana […]” Porém a atriz tranca-se definitivamente atrás da sua porta: “Lamento, Federico. Não confio em você. Vá dormir!” Através desta atitude inabordável, marcada pela desconfiança e constrastante com a de outros entrevistados na festa de Noantli, pouco antes, sobressai um aspecto inédito da relação visual.[9]

A desconfiança do espectador visando a imagem pertence à trama da tradição. Faz parte da visão fundada na dicotomia de mundos, acarretando o exame do valor da imagem diante da suposição de primazia do visível. No caso, demanda-se para a atribuição de confiança: “será tal imagem autêntica?”. Já a desconfiança partindo de Anna Magnani contra o cineasta é de outro teor. Atesta a irredutibilidade e a autonomia da atriz sob o olhar que a procura enquadrar.

Tal confronto denota a efetividade de um termo oposto ao olhar, considerado na pele de um chamado provocativo. Demarca um campo onde se trava uma luta. Define uma espécie de visibilidade segundo o antagonismo e a irredutibilidade radical dos termos. Nesta ordem conflituosa, o olhar não leva a uma fusão com o visível, não apanha essências, mas, isto sim, topa um adversário e se forja na contenda. Então será impossível tratar de determinar qualquer olhar sem considerar a força oposta, seja sem situar o conflito no qual os dois se diferenciando se engendram. Estas interpretações visuais se dispõem em confronto. As imagens captadas, enquanto produtos de investidas específicas, aparecem como despojos obtidos na luta e valem como armas.

Este ver não parece confortável nem fácil, senão quando oculta todo o seu custo. Nem poderá ser duradouro. O confronto impede a plenitude visual da contemplação e a completitude com a imagem, cara ao virtuoso. Neste contexto, obter lugar para ver requer luta. Contemplar é ser presa de engano. O visível se furta aos olhos e pretende forçar um modo de apreensão, impor outra perspectiva. Quem faz pose, ordena. Subtrair às vistas é dominar. Cada imagem é conquistada à força. A um antagonismo sucede outro. A luta se dá de maneira permanente. Ver e se fazer visto aparecem enquanto alternativas diferenciadas, mas ambas congênitas a poderes. Resumidamente, estes são alguns tópicos do conflito visual vivido hoje em escala geral, que o breve diálogo entre a atriz e o diretor tem o condão de evidenciar.

Trata-se de uma concepção estranha aos parâmetros cristãos, e também ao racionalismo moderno, ambos sempre em busca da harmonia e do consenso. Modernamente, o sentido estimulante da luta teve em Nietzsche um porta-voz. Abordando o pensamento de Heráclito, Nietzsche afirma:

Da guerra dos opostos nasce todo vir-a-ser: as qualidades determinadas, que nos aparecem como duradouras, exprimem apenas a preponderância momentânea de um dos combatentes, mas com isso a guerra não chegou ao fim, a contenda perdura pela eternidade. Tudo ocorre na medida desse
conflito […].
[10]

Esta dialética arcaica, anterior à de Platão, ligava-se ao jogo conflituoso das forças, fundamental para a persistência da polis democrática. O pensamento de Heráclito, como outros de então, louvava e regulava a luta para que se mantivesse permanentemente acesa.

Em Nietzsche, a retomada do elogio à luta perene contrapõe-se à interpretação da, dialética por Hegel, que privilegia a síntese. Para Hegel, tese e antítese se opõem enquanto contrários, mas convergem para uma síntese superior. A tal conjunção concebida por Hegel, Nietzsche opõe uma disjunção baseada na noção heraclitiana de logos. Para Nietzsche, a luta produz um devir. Este não se caracteriza porém como síntese. Diversamente, o devir, preconizado a partir de Heráclito por Nietzsche, provém através da diferenciação e da separação que se engendram na disputa.[11] Neste sentido, Nietzsche destaca:

Constantemente uma qualidade entra em discórdia consigo mesma e separa-se em seus contrários; constantemente esses contrários lutam outra vez um em direção ao outro […].[12]

Modernamente, o paradigma do conflito passou a ser o extermínio. Porém, no sentido homérico, retomado por Nietzsche,[13] a guerra e o combate se parecem com jogos. O adversário recebe uma estima determinada e é indispensável. A existência do oponente é condição fundamental para o devir do jogo.

No filme, com a realização dotada pelo contato com o público, a objetiva fica animada de um poder equivalente ao do logos heraclitiano: o de apontar uma rivalidade sem a qual não haverá devir. Com o devir forjado deste modo torrencial, toda aparição brota em situação de luta e pronta para o confronto. A imagem é configurada numa relação de forças. Apresenta-se como determinação momentânea no desenrolar de uma contenda. O achincalhe público à imagem triunfante do boxeador, a recusa de Anna Magnani em atender ao diretor são flagrantes de um combate, torrentes contrapostas ou faíscas a partir de visadas transitórias que podem ser e são contrariadas no correr da cena. Nesta colocação não há, portanto, como se procurar verdade, equilíbrio, harmonia, consenso ou justiça no âmbito da imagem. Se tal interpretação se explicita somente neste ponto da filmografia, parece, entretanto, que o trabalho de Fellini, valendo-se frequentemente de imagens grotescas e deformes, quem sabe por que pautou-se, desde o início, pela noção de uma tensão visual dada por elementos heterogêneos e inconciliáveis.

Com o brilho dos olhos de Anna escondendo-se, o cineasta fica só na noite, fitando Roma oculta, sem outro parceiro ou oponente que ele mesmo. Como a atriz recolhida, a cidade dá sinais de indiferença à sua proposta de flagrá-la. Fellini se pergunta em voz alta o que fazer. Toma fôlego. Espreita no escuro.

É sabido que as forças em devir se reservam. Parecem ter uma aptidão instintiva para o ocultamento. Provocar o devir é buscá-lo como um contrário, tê-lo e estimá-lo como a própria antítese. Assim, evocando todos os poderes que o cinema abrange, o cineasta insiste em sobressaltar a cidade, que queda quieta a não ser pelo som da água brotando discretamente de suas inúmeras fontes. O diretor convoca, então, gruas, luzes portáteis e câmaras montadas em carros rápidos, reunindo toda a potência do travelling cinematográfico. Põe sob seu comando uma horda titânica de motociclistas e vai ao ataque.[14]

Em tal processo, observa-se uma redução ou simplificação de elementos figurativos. Deste modo, a prolixidade e a variegação dos termos referentes a Roma, as mediações e os vários recursos, as cópias, os símbolos, as tantas instâncias e os excessos do caricaturista, vigorando desde o início da obra, tudo se reduz, no curso desta sequência noturna, a um embate entre dois grupos de oponentes, a um confronto de forças de campos distintos como duas pincelagens enlaçadas, contrastando cor e sentido.

Avançando velozmente pelas vias abertas de Roma, a realização, contando com um olhar que opera recortes, mede forças contra uma arquitetura majestática, reconhecidamente capaz, enquanto forma visível, de exigir a seu turno a adesão obsequiosa dos olhos e do espírito. Neste avançar encenado, o realizador, em vez de celebrar, decompõe. Nesta oposição, trata do visível como algo construído. Desmonta-o, feito cenário erguido em estúdio. Ao modo de um demolidor de monumentos, demonstra a maior mobilidade do equipamento cinematográfico. Troça das estátuas, forçando-as a se tornarem borrão, sequestradas pela objetiva passageira. Traduz a potência equestre evocada na pedra em equivalente de um peão rígido, no rápido xadrez dos veículos. No fim das contas, nesse saque visual, talha a capital, símbolo da eternização do espírito cristão, com um olhar violador, que em vez de se inclinar de acordo com a magnificência apresentada, descarta o que não lhe interessa. Por fim, quando lhe basta, o filme se extingue ou vai embora, vendo o próprio mergulho na escuridão, de costas para a cidade.

Com isso, não põe fim aos enfrentamentos, como indica um depoimento do autor, depois de entregar a obra ao público:

Nos meus filmes precedentes, ao terminá-los, senti o tema do filme exaurido, gasto, exangue pelo trabalho. Após ter feito Le notti di Cabiria me parecia absurdo que a Passegiata Archeologica todavia estivesse lá, que não a tivessem desmontado como a cenografia dos estúdios. Neste filme, ao invés, tenho a sensação estranha de não haver sequer aflorado o argumento. A matéria não só não se desgastou e nem ao menos foi arranhada. Enfim, Roma permaneceu totalmente estranha ao meu filme sobre ela. Parecia-me quase a haver ofendido, ao invés… Preparei o filme com o entusiasmo de sempre, perscrutei a cidade, fui revirar os cantos mais remotos, mas no fim aqueles lugares, aquela humanidade, aqueles palácios, aquele cenário grandioso que pensava ter possuído […] se me revelaram de todo virgens, intactos. Com estupor percebo que Roma não foi minha nem ao menos por um momento. Ao contrário, com ares de desafio, mostra-se para mim mais inapreensível do que antes. E isto naturalmente a torna, para mim, sempre mais simpática e fascinante. É como uma mulher: que lhe parece já ter sido possuída, ser conhecida, ter ouvido os seus gemidos, porém, ao encontrá-la uma semana mais tarde, você percebe que ela não se assemelha absolutamente àquela que você pensava ter sido sua. Enfim, ficou-me a vontade de fazer uma outra estória sobre Roma.[15]

Figura 1. Roma de Fellini: a incursão noturna dos motociclistas

Figura 2. Roma de Fellini: casa romana encontrada durante escavações do metrô
Figura 2. Roma de Fellini: casa romana encontrada durante escavações do metrô
Figura 3. Roma de Fellini: flagrante de intervalo das filmagens
Figura 3. Roma de Fellini: flagrante de intervalo das filmagens
Figura 4. Roma de Fellini: flagrante de intervalo das filmagens
Figura 4. Roma de Fellini: flagrante de intervalo das filmagens
Figura 5. Roma de Fellini: flagrante de intervalo das filmagens
Figura 5. Roma de Fellini: flagrante de intervalo das filmagens
Figura 6. Roma de Fellini: Peter Gonzales, no papel de Fellini aos 18 anos
Figura 6. Roma de Fellini: Peter Gonzales, no papel de Fellini aos 18 anos
Figura 7. Roma de Fellini: flagrante de intervalo das filmagens
Figura 7. Roma de Fellini: flagrante de intervalo das filmagens
Figura 8. Roma de Fellini: prostitutas do bordel popular
Figura 8. Roma de Fellini: prostitutas do bordel popular
Figura 9. Roma de Fellini: no bordel de luxo
Figura 9. Roma de Fellini: no bordel de luxo
  1. João Cabral de Melo Neto, “O ferrageiro de Carmona”, in Crime na calle Relator, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987, p. 32.
  2. Roma (1971). Direção: Federico Fellini. Argumento e roteiro: Federico Fellini, Bernardino Zapponi. Fotografia (Technicolor): Giuseppe Rotunno. Operador: Giuseppe Maccari. Auxiliar de operador: Pietro Servo. Operadores assistentes: Roberto Aristarco e Michele Picciaredda. Música: Nino Rota, conduzida por Carlo Savina. Idealização cenográfica: Federico Fellini. Cenografia e figurino: Danilo Donati […]. Montagem: Ruggero Mastroianni [.. .]. Mixagem: Renato Cadueri. Coreografia: Gino Landi. Afrescos e retratos: Rinaldo Antonello, Giuliano Geleng […]. Produção: Ultrafilm (Roma), Les Productions Artistes Associés (Paris). Primeira distribuição italiana: Italnoleggio. Origem: Itália-França: Duração: 119′. Intérpretes: vá‑
rios. Entrevistados: Marcello Mastroianni, Anna Magnani, Gore Vidal, John Francis Lane, Alberto Sordi. Cf. Ennio Bispuri, “Appendice / filmografia completa”, in Federico Fellini — il sentimento latino della vita, Roma, Ii Ventaglio, 1981, pp. 219-20.
  3. Esta fala, como as citadas a seguir, de Roma, foi extraída da versão dublada em português, apresentada pela TV Bandeirantes, de São Paulo.
  4. Ver Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in Obras escolhidas – magia e técnica, arte e política, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 165-96.
  5. O termo Noantri, do dialeto romano, significa nós mesmos, conforme indica um comentário de Fellini no próprio filme.
  6. Dante Alighieri, “Paraíso”, XXXIII, 145, in A divina comédia, trad., anot. e coment. por Cristiano Martins, Belo Horizonte, Itatiaia — São Paulo, EDUSP , 1979, vol. 2, p. 562. Na versão original Dante escreve: “I’Amor che move il sole e l’altre stelle” (D. C., “Paradiso” , XXXIII, 145).
  7. Roma, città aperta (1945). Fellini participou deste filme na condição de auxiliar, convidado por Rossellini; colaborou, entre outras coisas, como roteirista.
  8. I vitelloni (1953). Direção: Federico Fellini. Argumento: Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, de uma ideia de Tullio Pinelli. Neste filme, Fellini focaliza as aventuras de um grupo de jovens provincianos de-socupadds. A cena parecida com esta, entre Fellinie Magnani em Roma, é interpretada por Alberto Sordi, numa das primeiras sequências do filme.
  9. Nesta cena, a aparência de um encontro casual entre Fellini e Anna Magnani se apóia de fato numa cuidadosa construção. Portanto, o tom deve-se antes à opção do autor pela linguagem fortuita ou vulgar, desdramatizada. Quanto ao sentido do episódio para a obra, ressaltando a desconfiança e a reticência da atriz com relação ao trabalho de Fellini, trata-se também neste caso de uma construção, contrariando a inclinação de Magnani em relação ao filme. O relato de Bernardino Zapponi, roteirista colaborador, sobre a visita sua e de Fellini à casa de Anna Magnani, a fim de combinarem a sua participação em Roma, destaca o desapontamento do diretor com os comentários favoráveis da amiga de longos anos. Durante o encontro, esta lhe ajuizou com relação ao trabalho de filmagem, cujos resultados parciais acompanhava: “Você fez um filme tão belo […] compreendeu verdadeiramente Roma e os romanos”. Mas não era isso o que Fellini queria de Anna Magnani, e na saída se lamenta com Zapponi: “Nós queríamos lhe dar um papel de oposição. Devia fazer uma aparição breve e intratável; afirmar polemicamente que eu não entendi nada de Roma, que o meu filme é irrealizável […]. Agora que Anna viu o filme e se entusiasmou […] a sua parte de antagonista se tornou impossível”. Enfim, como atesta o filme, prevaleceu o projeto de Fellini, apesar das considerações entusiastas de Anna Magnani; a cena filmada acabou estampando uma oposição deliberada. Assim fica demonstrado, sem sombra de dúvida, que Fellini desejou o confronto. Fez questão de utilizar a atriz e a amiga para situar um termo antagônico na sua obra. As declarações de Fellini e Anna Magnani, como o relato do encontro, conforme: Bernardino Zapponi, “Roma & Fellini”, in Roma — di Federico Fellini, Bologna, Cappelli, 1972, pp. 67-8.
  10. Friedrich Nietzsche, “A filosofia na época trágica dos gregos”, § 5, in Nietzsche’ — Obras incompletas, seleção de Gérard Lebrun; trad. e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo, “Os pensadores”, Abril Cultural, 2 ed., 1978, p. 36.
  11. Para confrontar detalhadamente o sentido diverso da dialética para Hegel e Nietzsche, consultar o trabalho de Gérard Lebrun a que se deve a distinção apontada: Gérard Lebrun, “A dialética pacificadora”, trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho, in Almanaque 3 — Cadernos de Literatura e Ensaio, Walnice Nogueira Galvão e Bento Prado Jr. (coords.), São Paulo, Brasiliense, 1977, pp. 24-42.
  12. Friedrich Nietzsche, op. cit., p. 35.
  13. Cf. Friedrich Nietzsche, “Homers Wettkampf, 1, 242”, cf. Lebrun, op. cit., p. 33. “La joute chez Homère” , in Ecrits posthumes 1870-1873, trad. francesa Michel Haar e Marc B. de Launay, Paris, “Oeuvres philosophiques complètes” , Gallimard, 1975, pp. 192-200
  14. No roteiro de trabalho, usado durante as filmagens, Fellini anotou: “É como uma profanação violenta, uma raiva súbita que se desencadeia contra uma cidade imóvel, que é impossível de sacudir”. Cf. Bernardino Zapponi, op. cit., p. 195
  15. Bernardino Zapponi, op. cit., pp. 72-73.

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