2007

A catástrofe, o império da técnica e o desaparecimento da natureza: a tentação de apagar a política com a técnica

por Jean-Pierre Dupuy

Resumo

A civilização está em crise pois compreende que sua sobrevivência está em jogo. De agora em diante, sua universalização, tanto no espaço (igualdade entre os povos) como no tempo (durabilidade ou “sustentabilidade” do desenvolvimento), enfrenta obstáculos insuperáveis.

O modo de vida dos países ricos está irremediavelmente condenado tal é a voracidade do consumo de energia e de recursos não-renováveis. Os experts sabem que os objetivos do protocolo de Quioto são irrisórios em comparação com o que se deveria ter como meta para pôr termo ao aumento da concentração de gás carbônico na atmosfera que seria dividir por dois as emissões na escala planetária. A condição sine qua non para chegar a esse resultado seria impedir os países em desenvolvimento de seguir o modelo de crescimento dos países industrializados. Mas como fazê-lo?

Os americanos (não signatários do Protocolo de Quioto) jogam um jogo franco: eles não abandonarão seu modo de vida. Já os governos europeus, hipocritamente, prometem respeitar Quioto mas evitam dizer a suas populações que esse é somente um pequeno primeiro passo.

Os especialistas nucleares pensam que têm respostas para a questão aguda dos dejetos, mas eles também sabem que a aceitação pelo público será cada vez mais difícil. Eles não podem garantir nem a segurança das centrais nem a segurança da rede de transportes diante das ameaças terroristas.

Quanto às energias renováveis, biomassa, eólica e outras, por razões técnicas, de dispersão entre outras, elas serão extremamente insuficientes. No limite, uma revolução científica e técnica atualmente em gestação verá o dia: as nanotecnologias, apoiando-se na manipulação da matéria, átomo por átomo. Acredita-se que elas serão capazes de contornar os obstáculos que surgem no caminho. A técnica moderna repousa sobre um princípio de ausência de limites, seu imperativo é que tudo o que o homem é capaz de fazer ele fará. O reino da técnica volta-se, então, para entrar em conflito com toda regulação política.

Para evitar uma catástrofe climática maior, deve-se, imperativamente, parar de extrair do subsolo mais de um terço dos recursos fósseis, petróleo, gás e carvão, que ainda estão ali enterrados. Porém, não parece possível acreditar que o mercado de energia será capaz de um tal esforço de autolimitação.


1. Diante da catástrofe

Nossa civilização está hoje em crise. Crise de uma humanidade que desperta a si mesma no momento em que compreende que sua sobrevivência está em jogo. O modo de desenvolvimento cientifico, técnico, econômico e político do mundo moderno sofre de uma contradição fatal. Ele se vê, ele se pensa como universal. A história da humanidade, ele pensa, só poderia conduzi-la a ele mesmo. Ele constitui o fim da história. E, entretanto, sabemos que, de agora em diante, sua universalização, tanto no espaço (igualdade entre os povos) como no tempo (durabilidade ou “sustentabilidade” do desenvolvimento), enfrenta obstáculos insuperáveis.

Voraz consumidor de energia e de recursos raros não-renováveis, o modo de vida dos países ricos está, no limite, irremediavelmente condenado. É difícil imaginar que possa durar ainda mais do que meio século. Muitos de nós não estaremos mais neste mundo, mas nossos filhos estarão. Se nos preocupamos com eles, já é mais do que tempo de tomarmos consciência do que os espera. Três razões principais justificam esse prognóstico.

O tempo em que nós podíamos explorar as fontes fósseis a um custo baixo (petróleo, gás e carvão) tem seus dias contados. Cada ano que passa nos aproxima do limite. Ora, as necessidades energéticas, em escala mundial, vão crescer muito rápido se países tão populosos como a China, a Índia, e, claro, o Brasil se engajarem no mesmo caminho de desenvolvimento dos países do centro. É também difícil imaginar em nome do que ou de que forma se poderia impedi-los.

Em seguida, há que se considerar que as regiões do mundo onde esses recursos estão concentrados são as regiões mais “quentes” do planeta, do ponto de vista geopolítico: o Oriente Médio e as ex-repúblicas muçulmanas da ex-União Soviética. Quando essas duas primeiras razões tiverem penetrado na consciência comum, sem dúvida bem tardiamente – ou melhor, tarde demais -, o pânico irá se apoderar do mundo, os preços subirão enormemente, e a crise estará terrivelmente agravada.

A terceira razão é certamente a mais grave. Não se passa uma semana sem que um novo sintoma do reaquecimento climático deixe de confirmar aquilo que, nos dias atuais, todos os experts se põem de acordo: esse reaquecimento existe mesmo, ele se deve essencialmente à atividade dos homens, e seus efeitos serão muito mais sérios do que se imaginava há pouco. Faz trinta anos as geleiras andinas estão desaparecendo numa velocidade recorde. Brevemente cidades como La Paz estarão sem água. A desertificação do entorno do Mediterrâneo avança a passos largos, contribuindo para fazer da água um bem cada vez mais raro. Os experts sabem que os objetivos do protocolo de Quioto, ignorados pela potência americana, são derrisórios em comparação com o que se deveria ter como meta para pôr termo ao aumento da concentração de gás carbônico na atmosfera: dividir por dois as emissões na escala planetária, prevendo-se que, dada a inércia do sistema, esses emissores aumentarão continuamente até 2030, pelo menos. A condição sine qua non para chegar a esse resultado seria impedir os países em desenvolvimento de seguir o modelo de crescimento dos países industrializados. Se não começarem, eles mesmos, a renunciar a esse modelo, sua mensagem não terá a menor chance de ser escutada. Os Estados Unidos são menos culpados pela parte que têm na poluição do planeta do que pela sua recusa de fazer o menor gesto nesse sentido. Pelo menos, no seu cinismo, os americanos jogam um jogo franco: eles não abandonarão por nenhuma razão seu modo de vida, assimilado por eles ao valor fundamental de liberdade. Diante deles é lamentável ver a hipocrisia dos governos europeus: eles prometem respeitar Quioto, mas evitam dizer a suas populações que esse é um pequeno primeiro passo e tudo o que lhes custará em mudanças nas suas maneiras de ser e de fazer para ir mais longe.

O otimismo cientista e técnico nos convida a ter paciência. Breve, nos sussurram, os engenheiros saberão encontrar o meio de superar os obstáculos que nos obstruem o caminho. Nada é menos seguro. Os especialistas nucleares pensam que têm respostas para a questão aguda dos dejetos, mas eles também sabem que a aceitação pelo público será cada vez mais difícil. Eles não podem garantir nem a segurança das centrais nem a segurança da rede de transportes diante das ameaças terroristas. De todo modo, em escala planetária, apenas marginalmente a energia nuclear terá combustível suficiente para transformar. Quanto às energias renováveis, biomassa, eólica e outras, por razões técnicas, de dispersão entre outras, elas serão extremamente insuficientes. O recurso maciço ao carvão fóssil, cujas fontes planetárias são consideráveis, é uma tentação à qual será preciso resistir energicamente, sob pena de agravar-se ainda mais o reaquecimento do clima. Treme-se de medo quando se toma conhecimento de que nenhum cenário descrito pelos organismos especializados comporta solução realista para passar pela virada dos anos 2040-2050. No limite, uma revolução científica e técnica atualmente em gestação verá o dia: as nanotecnologias, apoiando-se na manipulação da matéria, átomo por átomo. Acredita-se que elas serão capazes de contornar bem os obstáculos que surgem no caminho, particularmente porque permitirão captar e estocar a energia solar, mas não é menos provável que elas criarão riscos que os tecnólogos, eles mesmos, julgam “extraordinários”.

A humanidade está contra a parede. O centro deve dizer o que conta mais para ele: ou bem sua exigência ética de igualdade que deságua em princípios de universalização, ou bem seu modo de desenvolvimento. Ou bem a parte privilegiada do planeta se isola, o que quererá dizer mais e mais que ela se protegerá com escudos de todos os tipos contra as agressões que o ressentimento dos abandonados à sua sorte conceberá cada vez mais cruéis e mais abomináveis; ou bem se inventa um outro modo de relação com o mundo, com a natureza, com as coisas e com os seres, que terá a propriedade de poder ser universalizado à escala da humanidade.

O problema político maior tornou-se a sobrevivência da humanidade. No imaginário político dos países do centro, a catástrofe a evitar tende a substituir a revolução a realizar.

Estamos aqui tratando do “esquecimento da política”. A tarefa que me foi confiada é a de falar da “tentação de apagar a política com a técnica”. É verdade que, em face das catástrofes mundiais que se anunciam, é em direção à técnica que a esperança do mundo se volta primeiro, como o drogado em direção à sua droga.

A política da qual o mundo precisa é uma política de limites. A liberdade não consiste, como nos ensinou a filosofia política, em fazer qualquer coisa. Bem ao contrário, a liberdade consiste em darem-se regras, normas, limites e a encontrar em si a força moral de respeitá-los, para entrar em comunicação com os outros que respeitam as mesmas regras ou limites. Ora, a técnica moderna repousa sobre um princípio de ausência de limites. Seu imperativo é que tudo o que o homem é capaz de fazer ele fará. O reino da técnica volta-se, então, para entrar em conflito com toda regulação política.

Meu trabalho filosófico destes últimos anos se direcionou para a questão das catástrofes, sejam elas sociais (fenômenos de pânico) naturais (do terremoto de Lisboa em 1º de novembro de 1755, que criou um verdadeiro tsunami na metafísica ocidental, até o tsunami asiático de dezembro de 2004) industriais ou tecnológicas (catástrofe nuclear de Chernobil, riscos associados às tecnologias avançadas, em particular as nanotecnologias) ou morais (Auschwitz, Hiroshima, 11 de setembro de 2001), sem esquecer as catástrofes futuras, que serão inextricavelmente naturais, tecnológicas e morais.

Antes de tratar diretamente do esquecimento do político com relação à nossa situação diante da catástrofe, preferi fazer um desvio para caracterizar melhor a hegemonia da técnica. Se o homem sonha que pode fazer tudo, a ideia mesma de um exterior a ele, que escaparia de sua dominação, só pode ser mesmo desvalorizada. Tradicionalmente, esse lugar da exterioridade nós denominamos natureza. É na natureza que as sociedades pré-modernas procuravam a fonte e a legitimidade dos limites que elas se davam. A política moderna substituiu a natureza pela vontade humana. Não causa espanto que o império da técnica, antes mesmo de “apagar a política”, tenha feito desaparecer a ideia tradicional de natureza como exterior ao mundo humano. Nada pode ilustrar melhor isso do que a obsolescência da noção de catástrofes naturais.

2. Ainda existem catástrofes naturais?

Durante uns dez dias, acreditamos que o ciclone que atingiu a costa estadunidense do Golfo do México em 29 de agosto de 2005 tinha feito muito mais vítimas do que os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Muitos dos que se satisfazem em minimizar a importância histórica e geopolítica do ataque da Al Qaeda ao próprio coração da potência americana não deixaram de sublinhar isso. Mas teria algum sentido em colocar lado a lado uma catástrofe natural e um ato de guerra que não diz o seu nome?

Referindo-se ao Katrina, o editorialista do New York Times de 2 de setembro de 2005 intitulou-o “a catástrofe causada pelo homem” (the man-made disaster). É verdade que o Katrina revelou, aos olhos daqueles que ainda o ignoravam, a incrível fragilidade da sociedade americana, minada por dentro pelas desigualdades perenes, por uma violência endêmica que a cordialidade e o caráter bem-comportado das relações cotidianas dificilmente mascaram, por serviços públicos inoperantes devido a uma flagrante falta de meios, pelo desprezo ou indiferença da elite do poder e do dinheiro pelos pobres e pelos miseráveis, abandonados à sua triste sorte.

Essa constatação são os próprios americanos que a fazem, alguns deles pelo menos. Eles têm vergonha do seu país e já não têm medo de dizer isso diante do mundo inteiro. O Katrina terá então produzido um efeito inverso ao do 11 de setembro. Na mesma medida em que o atentado terrorista uniu o país em torno do seu chefe, o ciclone dividiu-o, entre os que continuam a apoiar o poder e os que o culpam inteiramente pela catástrofe. Sou testemunha de que, na primavera de 2003, era impossível discutir nos Estados Unidos a justeza da guerra no Iraque, mesmo com amigos, mesmo com pessoas que sabíamos rejeitarem a política da Administração Bush. “Support the troops” [Apoiemos nossas tropas] era a palavra de ordem que todos respeitavam, fosse por constrangimento, por docilidade ou por convicção. Uma espécie de macarthismo doce – no mesmo sentido de que Tocqueville falava, a propósito da democracia, de um “despotismo doce” – reinava sobre a América. Terá sido preciso o Katrina para fazer voar em pedaços essa unanimidade de fachada. Os que se opõem à guerra no Iraque dizem agora em alto e bom som que os recursos que lhe são consagrados – por exemplo, as guardas nacionais dos Estados do Sul – teriam permitido reduzir consideravelmente o custo humano e material da passagem do Katrina, se tivessem podido ser mobilizados para esse fim.

O paradoxo é patente. A história e a antropologia ensinam-nos que, na maior parte das vezes, é ao voltar-se contra um inimigo exterior e ao eliminá-lo que as sociedades humanas reencontram a sua unidade após um período de dissensões internas. Seria então preciso admitir que a externalidade de um atentado terrorista, que é em princípio um ato intencional, produzido por uma vontade humana, impressiona mais do que uma catástrofe natural? O próprio paradoxo que constitui essa sugestão deixa nitidamente claro o estatuto da catástrofe natural no imaginário das sociedades modernas. Percebemos, além disso, que os atentados de 11 de setembro, não-assinados, não-reivindicados, e portanto sem objetivos declarados ou inteligíveis, aparentemente indiferentes à identidade e características das suas vítimas, mimetizaram a brutalidade cega de um tremor de terra ou de um tsunami. Mas a devastação produzida pelo Katrina apareceu, por seu lado, como uma catástrofe pela qual o homem é responsável.

Será que devemos nos resignar à ideia de que, a partir de agora, temos que abandonar a noção de catástrofe natural? Essa é precisamente a conclusão a que chegou uma associação especializada no estudo das catástrofes que até há pouco tempo chamávamos de “naturais”:

Um risco natural caracteriza-se pela combinação do acaso (ou seja, do fenômeno geológico gerador) com a vulnerabilidade (o efeito sobre os agrupamentos humanos). Muitos sismos importantes passam despercebidos quando atingem regiões inabitadas. O que caracteriza hoje um risco, no plano do seu impacto, o que faz dele uma catástrofe, é a exposição dos homens. Nessa medida, uma das conclusões do decênio internacional para a prevenção das catástrofes naturais (DIPCN), que terminou em 2000, foi considerar que já não fazia sentido falar de “catástrofe natural”. Se o acaso natural existe, e não o podemos impedir, é a vulnerabilidade social que transforma o fenômeno em catástrofe.

Defendi em meu livro Petite metaphysyque des tsunamis que era preciso responsabilizar Jean-Jacques Rousseau por essa confusão das categorias – Rousseau que, na sua Lettre à monsieur de Voltaire, de agosto de 1756, respondia ao autor do Poème sur le Désastre de Lisbonne nos seguintes termos:

“Creio ter demonstrado que, exceto a morte, que quase só é um mal devido aos preparativos com que a precedemos, a maior parte dos nossos males físicos é ainda obra nossa. Sem deixarmos o seu assunto de Lisboa, tem que admitir, por exemplo, que a natureza nunca teria aí reunido vinte mil casas de seis a sete andares, e que se os habitantes dessa grande cidade estivessem dispersos de forma mais uniforme, e mais ligeiramente alojados, o prejuízo teria sido muito menor, e talvez até nulo. Todos teriam fugido ao primeiro desmoronamento, e tê-los-íamos visto no dia seguinte a vinte léguas dali, tão contentes como se nada tivesse acontecido. Mas foi preciso ficar, obstinar-se em torno das mansardas, expor-se a novos tremores, porque o que se deixa vale mais do que o que se pode levar. Quantos infelizes pereceram nesse desastre por quererem apanhar, um as suas roupas, o outro os seus papéis, o outro o seu dinheiro? Não sabemos que a pessoa de cada homem se tornou a parte menos importante dele mesmo; e que quase não vale a pena salvá-la quando se perdeu todo o resto?”

Tem-se geralmente na cabeça a imagem de um Jean-Jacques Rousseau precursor da ecologia, fazendo da Natureza a norma da bondade e da sociedade o lugar da corrupção. Pode então parecer surpreendente tornar Rousseau responsável pela eliminação da ideia tradicional de natureza! Mas isso é esquecer que Rousseau é o primeiro a reconhecer que esse “estado de natureza”, em que o homem era bom, sem dúvida nunca existiu. É sobretudo não ver que, para Rousseau, essa natureza boa não é um Éden ao qual conviria regressar através de um percurso regressivo, mas, pelo contrário, é uma tarefa a realizer voltada para o futuro, no sentido de uma perfeição cada vez maior, em que a liberdade de que o homem é dotado é a capacidade de se construir a si próprio, como povo ou indivíduo. A natureza rousseauniana é, fundamentalmente, uma natureza artificial (man-made).

Há algum mal nisso? Não há grandeza em querer-se assim autônomo, senhor de si, artesão de sua própria natureza? Não há magnificência em exclamar: “Homem, não procures mais o autor do mal: esse autor és tu mesmo. Não existe outro mal senão aquele que tu provocas ou sofres, e tanto um quanto o outro vêm de ti”? (Emílio). Rousseau quer ser o sábio dos mecanismos pelos quais os homens se fazem sofrer mutuamente. Ele é, segundo a famosa frase de Kant, o “Newton do mundo moral”. Procurando por todo lado remédios para os males que cataloga e descreve com uma complacência que provoca por vezes um sentimento de asfixia, ele é o protótipo do “construtivismo social”. Com ele, o mal reduz-se ao estatuto de problema. Toda a transcendência, mesmo a da contingência, qualquer dimensão de externalidade, é esvaziada. As reações ao tsunami asiático de dezembro de 2004 mostraram a pregnância desse rousseaunismo, não menos do que as suscitadas pelo Katrina.

3. A obsolescência da condição humana

Estamos aqui numa descida muito perigosa. Para prová-lo, proponho percorrê-la até o fim. Teremos que notar que Rousseau abre uma exceção na sua máxima que faz dos homens responsáveis pelos “males físicos” que os atacam: a morte. É, hoje em dia, uma exceção supérflua. A noção de “morte natural” não está menos ameaçada de obsolescência do que a de “catástrofe natural”. Num texto posterior ao tsunami de dezembro de 2004, o filósofo da Universidade de Cambridge (Inglaterra) Nick Bostrom recorreu à seguinte parábola. Há a cada dia, no mundo todo, cem mil mortes… “relacionadas à idade” (age-related deaths). Suponhamos que esses cem mil falecimentos cotidianos sejam causados por uma espécie de tsunami giratório, de potência mortífera equivalente a mais ou menos a metade da potência do tsunami de 2004. O mundo, horrorizado, levantar-se-ia e exigiria que se tomassem imediatamente medidas adequadas. Ora, constata Bostrom, nós nos resignamos a morrer de velhice ao mesmo tempo que julgamos intolerável morrermos levados por um ciclone. Essa diferença de atitude aparece como o cúmulo da incoerência aos olhos do nosso pensador.

Poucas pessoas sabem quem é Nick Bostrom. Filósofo de origem sueca, não se poderia ser mais sério e brilhante. O professor Nick Bostrom é o intelectual que encabeça um movimento internacional denominado “transumanista”. Foi ele quem redigiu a sua carta de constituição, bem como os estatutos. Os trans-humanistas se dão como tarefa acelerar a passagem para a próxima etapa da evolução biológica, a qual verá este ser radicalmente imperfeito que é o homem ser substituído por uma “pós-humanidade”, graças à convergência entre as nanotecnologias, as biotecnologias, as tecnologias da informação e as ciências cognitivas. O projeto nanobiotecnológico parte da constatação de que a evolução é um engenheiro incompetente que fez seu trabalho de concepção mais ou menos ao acaso, apoiando-se no que estava mais perto para erigir novas construções mais ou menos instáveis – em resumo, fazendo bricolage. O espírito humano, ” expandido pelas tecnologias da informação e da computação que o ultrapassarão muito em breve em capacidade de inteligência e de imaginação”, alcançará bem melhores resultados, chegando a transcender-se a si próprio. Numa perspectiva de estudos culturais comparados, observo o quão fascinante é ver a ciência americana, que deve se bater fortemente para afastar do ensino público qualquer traço de criacionismo, inclusive nas suas versões mais recentes, como a do intelligent design, reencontrar, pelo viés do programa nanotecnológico, a problemática do design, simplesmente agora com o homem no papel do demiurgo.

A ciber-pós-humanidade que se prepara poderá aceder à imortalidade quando se souber transferir o conteúdo informacional do cérebro, “portanto” o espírito e a personalidade de cada um, para as memórias dos computadores do futuro. Um dos inúmeros ideólogos do programa nanotecnológico americano, Ray Kurzweil, publicou recentemente uma obra edificante, Fantastic Voyage [Viagem fantástica], cujo subtítulo resume bem a sua proposta: Live Long Enough to Live Forever [Viver o bastante para viver para sempre]. O projeto consiste em manter-se vivo o tempo suficiente para alcançar uma época em que as técnicas de “interfaçage” [sic] do ser vivo e da máquina nos permitam estender ao infinito as nossas capacidades físicas e mentais e, de fato, vencer a morte. Kurzweil não esconde a sua filosofia: “Encaro a doença e a morte, em qualquer idade em que se produzam, como calamidades e problemas a resolver.”

Não deveríamos sorrir dessas divagações. Agir assim seria, para começar, ignorar que os trans-humanistas conseguiram ocupar eminentes posições de poder no aparelho científico e militar-industrial estadunidense. Um dos seus principais responsáveis, William S. Bainbridge, dirige a “Iniciativa” americana, lançada pela National Science Foundation, em matéria de nanotecnologias, e, nessa condição, comanda um orçamento federal de mais de um bilhão de dólares anuais. Mas o mais importante é que o delírio aparente dissimula um profundíssimo problema filosófico.

O terremoto de Lisboa de 1º de novembro de 1755 não destruiu apenas uma das mais belas capitais culturais da Europa. Fez também voar em pedaços o sistema metafísico que, constatando a existência aparente do mal no mundo, impedia os homens de se desesperarem demais por sua condição. Era, evidentemente, preciso tentar eximir Deus da responsabilidade de ter deixado esse mal no próprio seio da Sua criação. Ao julgamento, ou justificação de Deus, dá-se em grego o nome de teodiceia, e foi sob esse nome que, em 1710, o filósofo e matemático alemão Leibniz propôs sua solução para este escândalo teológico e filosófico: o que nós chamamos de mal não é senão um efeito de perspectiva produzido por nossa finitude. Se nós pudéssemos ocupar a posição de Deus, compreenderíamos que esse mal aparente não o é em verdade, pois contribui para a maximização do bem geral. Depois de Lisboa, tornou-se muito difícil satisfazer-se com uma tal tese. O que é que a veio substituir? As reações, tanto ao tsunami de Sumatra como ao ciclone da Louisiana, ilustram-no claramente: foi Rousseau quem a trouxe. Rousseau terá simplesmente posto o homem no lugar de Deus. Doravante, é apenas o homem que deve ser justificado ou, antes, já que não há senão a humanidade em face de si própria, o homem deve justificar-se aos seus próprios olhos. Torna-se inevitável nomear esta tarefa impossível e despropositada: antropodiceia.

O primeiro escândalo de que a antropodicéia deve tratar é precisamente esta “catástrofe” que é a finitude do homem – particularmen­ te o fato de o homem ser mortal, mas também o fato de ele ter nascido: a vergonha de ter nascido, ou seja, de ter sido colocado no mundo sem saber por quê, é a vergonha por não se ter feito a si próprio. O remédio nanobiotecnológico para o escândalo da finitude é radical: ponhamos fim, através das nossas técnicas, à finitude. O efeito secundário desse remédio, mesmo se ele estivesse condenado a ficar no mundo dos sonhos (ou dos pesadelos), é terrível. Até aqui, a humanidade tinha encontrado um meio, ao mesmo tempo simples e incrivelmente sutil, de lidar com a própria finitude: dando-lhe um sentido. O fato de uma vida ter um início e um fim é precisamente o que faz dela uma história: “a morte transforma qualquer vida em destino” etc. Mas como se pode dar sentido àquilo que se busca extirpar?

É interessante analisar aquilo que os promotores da “convergência” das tecnologias avançadas imaginam ser o estado de espírito daqueles que tomam por seus “inimigos”, ou, em todo caso, seus críticos. Há uma expressão que é usada de forma recorrente para designar esse presumível estado de espírito: os seres humanos não teriam o direito de usurpar os poderes que não pertencem senão a Deus: playing God seria um jogo proibido. Acrescenta-se muitas vezes que esse tabu seria, especialmente, uma consequência “judaico-cristã”.

Afirmo que essa imputação desconhece totalmente tanto a lição talmúdica como a teologia cristã. Ela as confunde simplesmente com a concepção que os gregos tinham do sagrado: os deuses, invejosos dos homens culpados de hybris (a desmedida), mandam contra eles a deusa da vingança, Nemésis. Já a Bíblia, pelo contrário, representa o homem como co-criador do mundo. Como escreve o biofísico Henri Atlan, grande especialista do Talmude, analisando a literatura sobre o Golem:  “Não encontramos [aí], pelo menos inicialmente, e ao contrário da lenda de Fausto, qualquer julgamento negativo sobre o saber e a atividade criadora dos homens, ‘à imagem de Deus’. Bem pelo contrário, é na atividade criadora que o homem atinge a plenitude da sua humanidade, numa perspectiva de imitatio Dei que lhe permite associar­se a Deus, num processo de criação contínuo e perfectível. Quanto ao

cristianismo, toda uma série de autores importantes, de Max Weber a Louis Dumont, de Marcel Gauchet a René Girard, o analisam como “a religião do fim da religião”: mostram-no como responsável pela dessacralização do mundo (o famoso “desencantamento”) e, portanto, pela eliminação progressiva de qualquer tabu, interdito ou limite. É, além do mais, a razão pela qual os mesmos autores fazem do cristianismo a principal causa do desenvolvimento científico e técnico do Ocidente, pois a ciência e a técnica repousam precisamente sobre a emancipação em relação a qualquer limite.

Foi a própria ciência que acompanhou essa dessacralização do mundo operada pelas religiões da Bíblia, ao despojar a natureza de todo o valor prescritivo ou normativo. Assim, é perfeitamente vão querer opor a ciência à tradição judaico-cristã nesse ponto. O pensamento kantiano deu seus ares de nobreza filosófica a essa desvalorização da natureza, fazendo dela um mundo sem intenções nem razões, habitado unicamente por causas, separando-o radicalmente do mundo da liberdade, em que as razões para agir caem sob a jurisdição da lei moral.

Onde, então, se situa o problema ético, se é que há um aqui? De forma evidente ele não está na transgressão de não sei qual tabu, já que a evolução conjunta do religioso e da ciência privou de qualquer fundamento o próprio conceito de limite sagrado e, logo, de transgressão. Mas é precisamente esse o problema. Porque não há sociedade humana livre e autônoma que não se baseie num princípio de autolimitação. Rousseau, e depois Kant, definiu a liberdade ou a autonomia como obediência à lei que impomos a nós próprios. Para lhes dar força suficiente, Rousseau queria ainda que as leis da Cidade tivessem a mesma exterioridade em relação aos homens que as leis da natureza, mesmo sendo os homens que fazem as primeiras, e que eles o saibam. Mas numa sociedade que sonha moldar e fabricar a natureza de acordo com seus desejos e suas necessidades, é a própria ideia de uma exterioridade ou de uma alteridade que perde todo o sentido. Tradicionalmente, a natureza era definida como aquilo que era exterior ao mundo humano, com os seus desejos, seus conflitos, suas torpezas diversas. Mas se a natureza se torna, nos nossos sonhos, integralmente o que nós fazemos dela, é claro que já não há exterior e que tudo no mundo refletirá, cedo ou tarde, o que os homens fizeram ou não fizeram, quiseram ou, ao contrário, negligenciaram.

4. A busca da exterioridade na contingência: a solução de Voltaire

Se alguém, depois do terremoto de Lisboa, compreendeu que o homem não está em condições de entender os mistérios da natureza e que apenas a humildade é válida em face dos seus desmandos, esse alguém foi Voltaire, de quem ainda não falei. Repete-se com demasiada frequência que o “Poème sur le désastre de Lisbonne” constitui uma refutação da “doutrina otimista” formulada por Leibniz e colocada na forma de poema por Alexander Pope no seu Essay on Man [Ensaio sobre o homem], publicado em Londres em 1734. O subtítulo do poema de Voltaire: “Examen de cet axiome, Tout est bien”, refere-se com efeito à conclusão de Pope: “whatever is, is right”. Ora, no seu Prefácio, Voltaire sustenta, pelo contrário, que ele “não combate de modo nenhum o ilustre Pope, que sempre admirou e amou: ele pensa como ele sobre quase todas as questões”. O que Voltaire retém de Pope é a crítica que este faz de toda essa arrogância que pretende decifrar a ordem do cosmos. O “Poème sur le désastre de Lisbonne” fala disso de forma admirável:

Leibniz ne m’apprend point par quels noeuds invisibles,

Dans le mieux ordonné des univers possibles,

Un désordre éternel, un chaos de malheurs,

Mêle à nos vains plaisirs des réelles douleurs

Ni pourquoi l’innocent, ainsi que le coupable,

Subít également ce mal inévitable.

Je ne conçois pas plus comment tout serait bien:

Je suis comme un docteur: hélas! Je ne sais rien.

E, mais adiante:

Que peut dane l’esprit la plus vaste étendue?

Rien: le livre du sort se ferme à notre vue.

“O livro da sorte encerra à nossa vista”: não é por preocupação metafísica que Voltaire assume a nossa finitude, aceita a nossa ignorância e olha a cruel contingência do destino nos olhos. É porque qualquer outra opção só pode sufocar a compaixão:

Tranquilles spectateurs, intrépides esprit,

De vos frères mourants contemplant les naufrages

Vous recherchez en paix les causes des orages:

Mais du sort ennemi quand vous sentez les coups.

Devenus plus humains, vous pleurez comme nous.

O tsunami de dezembro de  2004 provocou reações muito diferentes na França e nos Estados Unidos. Assim como o meu país se mostrou rousseauniano, a América mostrou-se voltairiana! Que paradoxo, se persistirmos em acreditar que Voltaire destruiu o otimismo! Pois, que povo é mais otimista que o da América? Isolo o comentário do editor conservador do New York Times, David Brooks, mas ele está de acordo com o tom geral do que se pôde ler ou ouvir na América a propósito do sismo de dezembro de 2004. Tal como Voltaire, Brooks começa por lembrar que houve uma época em que os terremotos se explicavam como sendo a justiça de Deus infligindo aos pecadores um justo castigo. Como Voltaire, ele acha que este tipo de ajuste de contas é “repugnante”. No entanto, ele acrescenta: pelo menos, nestes relatos, o homem estava no centro da história; pelo menos havia um Deus que fazia planos a propósito da humanidade. Hoje, constata ele, escutando o que se diz, a impressão é de que “o sentido do acontecimento é o acontecimento não ter qualquer sentido”, pelo menos um que nos seja acessível. Mas é precisamente isso que permite a compaixão. David Brooks conclui o seu editorial com estas palavras:

“A generosidade do mundo foi incontestavelmente admirável, mas usamos por vezes a compaixão como se fosse um nevoeiro em que nos envolvemos para não ver o abismo. Há algo de doentio em transformar esse desastre numa história feliz que nos aquece o coração neste período festivo. Há algo de doentio em fazer uma história que fala de nós, do que demos, muito mais do que deles, cujas vidas foram despedaçadas. E é totalmente doentio fazer disso o pretexto para medíocre querelas politiqueiras, nas quais muitos se envolveram de uma maneira que provoca náuseas.

A hora é para a tristeza que sentimos pensando nos mortos e em todos aqueles dentre nós que não encontramos explicação.”

Há grandeza e dignidade nessa atitude. Otimismo com certeza não, mas pessimismo também não: talvez os alicerces de uma ética da finitude.

Não encontrei nos comentários que surgiram na França qualquer alusão à querela entre Voltaire e Rousseau a propósito de Lisboa, mas, percorrendo a cobertura norte-americana do desastre, encontrei esta referência que resume perfeitamente o seu espírito: trata-se da célebre réplica de Gloucester na primeira cena do IV Ato do Rei Lear:

”As flies to wanton boys are we to the gods. They kill us for their sport.”

que François-Victor Hugo traduz assim:

“Ce que les mouches sont pour des enfants espiègles, nous le sommes pour les dieux: ils nous tuent pour leur plaisir:”

“O que as moscas são para aa criança travessas, nós somos para os deuses: eles nos matam por prazer.”

5. O mal como “sobrenatureza”

Que as reações ao tsunami de dezembro de 2004 tenham reproduzido quase fielmente o estado da discussão entre os leibnizianos, Voltaire e Rousseau após o terremoto de Lisboa de 1755, isso muito me chocou. Tudo se passou como se, em 250 anos, nada tivéssemos aprendido a respeito do mal. Ora, os horrores morais do século XX deveriam ter-nos aberto os olhos para uma propriedade essencial das formas modernas do mal.

Na minha Petite métaphysique des tsunamis, eu retomo a interpretação que Hannah Arendt deu de Auschwitz, bem como sobre a que Günther Anders deu de Hiroshima. Arendt, Anders e Hans Jonas, três filósofos judeus alemães que foram alunos de Heidegger, deixaram-nos reflexões tocantes e controversas sobre aquilo que Kant chamava o mal radical. Não posso resumir aqui análises extremamente sutis e, na maior parte das vezes, mal compreendidas. Limitar-me-ei a isto. Com Rousseau, e sobretudo com Kant, como vimos anteriormente, se coloca uma separação radical entre o mundo da natureza, sem intenções nem razões, habitado unicamente por causas, e o mundo da liberdade, onde as razões para agir recaem no âmbito da lei moral. É essa separação que, por sua vez, se estilhaça com os horrores morais produzidos no século passado. Quando certos limiares de monstruosidade são ultrapassados, as categorias morais que nos servem para julgar o mundo caem em desuso. Parece então que só se pode dar conta do mal em termos que evocam um atentado irreparável à ordem natural do mundo. Eu mostro em meu livro que não é por acaso que o termo que acabou por ser usado (em vez de “holocausto”) para descrever o extermínio dos judeus na Europa, shoah, designa uma catástrofe exclusivamente natural; nem que os

sobreviventes dos massacres nucleares de Hiroshima e de Nagasaki se refiram à catástrofe utilizando a palavra japonesa… tsunami.

Arendt e Anders, os dois, puseram em evidência a estrutura do mal moderno. O escândalo, que não parou de subverter as categorias que nos servem ainda para julgar o mundo, é que um mal imenso possa hoje em dia ser causado por uma completa ausência de malignidade; que uma responsabilidade monstruosa possa fazer par com uma total ausência de más intenções. Três anos antes do processo Eichmann, Arendt escrevia em Human Condition [Condição humana]: “seria possível que, criaturas terrestres que começamos a agir como habitantes do universo, não sejamos nunca mais capazes de compreender, ou seja, de pensar e de exprimir as coisas que entretanto somos capazes de fazer. […] Se se confirmasse que o saber (no sentido moderno de saber­fazer) e o pensamento se separaram realmente, nós seríamos então joguetes e escravos, não tanto das nossas máquinas quanto dos nossos conhecimentos práticos, criaturas sem cérebro à mercê de todos os engenhos tecnicamente possíveis, mesmo que mortíferos”.

Quanto a Günther Anders, ao regressar de Hiroshima em 1958, escrevia: “O caráter inverossímil da situação é de tirar o fôlego. No mesmo instante em que o mundo se torna apocalíptico, e isto por culpa nossa, ele oferece a imagem… de um paraíso habitado por assassinos sem maldade e por vítimas sem ódio. Em nenhuma parte há traços de maldade, não há senão escombros.” E Anders anuncia: “a guerra por teleassassinato que aí vem será a guerra mais despojada de ódio que jamais tenha existido na história. […] esta ausência de ódio sera ausência de ódio mais inumana que alguma vez já tenha existido; ausência de ódio e ausência de escrúpulos serão uma só”.

Contemplamos um quebra-cabeças espantoso. Com Rousseau o mal é inteiramente moral, é um assunto nosso. Com Hannah Arendt e Günther Anders o mal é como que uma sobrenatureza, ele nos transcende. Precisamos sair desse jogo pendular.

Como já disse no início, a época em que vivemos é verdadeiramente fascinante: a humanidade está em vias de tomar consciência de si própria no mesmo momento em que percebe que a sua sobrevivência está em perigo. Arendt e Anders têm razão: a maior catástrofe que se esboça no nosso horizonte será menos o resultado da malignidade dos homens, ou da sua estupidez, do que da sua visão curta. Se ela se apresenta como algo que nos ultrapassa e que nos recusamos a ver, não é porque ela é uma fatalidade; é porque uma multiplicidade de decisões em todos os níveis, caracterizadas mais pela miopia do que pela malícia ou pelo egoísmo, se compõem num todo que as ultrapassa, segundo um mecanismo de autotranscendência. Ei-la, a síntese-superação de Rousseau e de Arendt: nós somos a fonte do mal, mas esse nos transcende. A única transcendência que nos resta, o único exterior onde possamos encontrar os recursos da nossa salvação, está nesse mal de que nós somos capazes mas que, paradoxalmente, se revela muito maior do que nós.

6. A tentação do orgulho

No dia seguinte ao da explosão das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, Robert Oppenheimer disse: “Nós, os físicos, conhecemos o pecado.” Compreendeu-se que o responsável pelo projeto Manhattan se reconhecia culpado de ter causado centenas de milhares de mortes e de pessoas atingidas pela radiação. O que ele queria dizer era muito mais profundo, como explicou um ano mais tarde. “Eu queria dizer”, comentou ele, “que nós, os físicos, conhecemos o pecado do orgulho. Dotando a humanidade de um poder inaudito, nós lhe permitimos pretender ser o árbitro do bem e do mal. E isso não é da nossa competência.”

Penso que a principal ameaça que pesa hoje sobre o futuro da humanidade é a tentação do orgulho. Sabemos por alto como serão as catástrofes futuras. Reaquecimento climático, destruição do ambiente, tecnologias que escapam ao controle dos que as conceberam, utilização terrorista ou estatal de armas de destruição em massa, conflitos mundiais provocados pelo pânico que se apoderará dos povos da Terra quando por fim tomarem consciência de que não podemos explorá-la impunemente de modo duradouro: pouco importa ao filósofo a forma particular que essas catástrofes tomarão, visto que elas procedem de uma mesma fonte. Desde sempre os homens tiveram que aprender a viver com os resultados inesperados das suas ações, que se voltavam contra eles como se fossem potências estrangeiras. Dessa experiência primordial de autonomização da ação em relação às intenções dos seus autores nasceram provavelmente o sagrado, a tragédia, a religião e a política – outros tantos dispositivos simbólicos e reais susceptíveis de manter dentro de limites essa capacidade altamente perigosa que os homens têm de desencadear, na rede dos negócios humanos, processos irreversíveis e que não têm fim. O fato totalmente inédito que caracteriza as nossas sociedades fundadas sobre a ciência e sobre a técnica é que agora somos capazes de desencadear tais processos na e sobre a própria natureza. As  secas, os ciclones e outros tsunamis de amanhã, ou, simplesmente, o tempo que fará, esse tempo que desde sempre serve de metonímia à natureza, serão produto das nossas ações. Não os teremos feito, no sentido de fabricado, porque a atividade de fabricação (poiesis para os gregos), contrariamente à ação (praxis), tem não somente um começo mas também um fim, nos dois sentidos do termo: objetivo e término. Eles serão os produtos inesperados dos processos irreversíveis que teremos desencadeado, na maior parte das vezes sem querer nem saber.

A presunção fatal consiste em acreditar que a técnica, que destronou o sagrado, o teatro e a democracia, poderá desempenhar o papel que estes tinham quando a capacidade de agir só dizia respeito às relações humanas. Acreditar nisso é ficar prisioneiro de uma concepção da técnica que vê nessa uma atividade racional, submetida à lógica instrumental, ao cálculo dos meios e dos fins. Mas a técnica é hoje, precisamente, essa capacidade de desencadear processos sem retorno. Ela pertence muito mais ao domínio da ação do que ao da fabricação. Abandonar-se ao otimismo cientista, que conta unicamente com a técnica para nos tirar dos impasses em que ela nos colocou, é correr o risco de engendrar monstros que nos irão devorar.

Anexo

A catástrofe de Chernobil

Se queremos evitar uma catástrofe climática maior, devemos, imperativamente, nos impedir de extrair do subsolo mais de um terço dos recursos fósseis, petróleo, gás e carvão, que ainda estão ali enterrados. Nunca o mercado de energia será capaz de um tal esforço de autolimitação. Os mercados existem apenas para administrar recursos escassos. Ora, os recursos fósseis não estão escassos, eles permanecem fortemente superabundantes: repito, temos recursos fósseis em quantidade três vezes maior do que aquela que temos direito de utilizar, se quisermos evitar o apocalipse climático.

O lobby nuclear mundial sabe disso, e se ele age, tanto publicamente ou em segredo, de modo a fazer com que as atenções se voltem para a ameaça ao meio ambiente é porque vê aí a grande chance do nuclear cívil. É verdadeiramente esta a escolha que nos resta fazer: o envenenamento do planeta ou uma espécie de ditadura da técnica? Porque eu coloco a questão: as condições que fazem a energia nuclear segura são compatíveis com as regras de base que fundam uma sociedade democrática, transparente e justa? A gestão da catástrofe de Chernobil nos faz duvidar muito disso.

No mês de agosto de 2005, em razão da proximidade do seu vigésimo aniversário, participei, na Ucrânia, de um curso de verão consagrado à análise das consequências da catástrofe nuclear de Chernobil, ocorrida em 26 de abril de 1986. Um dos objetivos desse encontro foi a preparação de uma grande exposição itinerante sobre a catástrofe, inaugurada em maio de 2006 no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, na Espanha. Depois da Espanha, essa exposição deveria vir para São Paulo, aqui no Brasil. Nós passamos uma semana em Kiev, depois um dia na zona contaminada, algumas horas nas proximidades do reator que explodiu e que está recoberto por uma estrutura de cimento e aço que recebeu o nome de “sarcófago”.

Na volta para Paris, o contraste entre o que eu vi e senti lá no local e a leitura do relatório oficial da ONU com o balanço “definitivo” da catástrofe me escandalizou. Lá nos falaram de dezenas, na verdade de centenas de milhares de mortos; o balanço oficial reconhecia 37

mortos até o momento, e talvez 4000 quando tudo tiver acabado. Eu decidi publicar este livro, Retour de Tchernobyl. Journal d’un homme en colère [Retorno de Chernobil. Diário de um homem em cólera].

A conclusão que eu tiro das minhas reflexões é a de que o lobby nuclear internacional, Agência Internacional de Energia Atômica à frente, está pronto para as dissimulações as mais escandalosas para não desacreditar a imagem do nuclear civil, já bem degradada por razões reais e simbólicas. Eu não penso que as pessoas sejam desonestas. Por que elas agem assim? Porque elas têm medo de desencadear o pânico. Elas têm muito mais medo do medo da população do que de suas máquinas. E isso é o mais preocupante. Porque o medo pode ser bom conselheiro. Nós podemos dizer hoje que Chernobil em nada nos terá servido de lição. A Associação Mundial dos Exploradores das Centrais Nucleares, criada depois da catástrofe com a intenção expressamente declarada de impedir sua repetição, reconheceu recentemente que a segurança média das centrais nucleares no mundo era desastrosa e que seria suficiente um novo Chernobil para que a organização desabe. A lição de Chernobil foi varrida com as costas das mãos pelo refrão enganoso: “foi um acidente soviético e não um acidente nuclear”.

Para fazer vocês sentirem o horror da catástrofe, descreverei duas séries de slides. A primeira reúne fotos que tirei quando da nossa estada em Kiev e da nossa visita a Chernobil; a segunda mostra as fotos tiradas pelo fotógrafo ucraniano Igor Kostine nas horas, nos dias e nos anos que se seguiram à catástrofe. Nelas há o reator que explodiu, o trabalho dos “liquidadores”, estes 800.000 bombeiros, soldados do contingente e voluntários que, com perigo de suas vidas, apagaram o fogo do reator, varreram o lixo radioativo e construíram o sarcófago. Há ali também a cidade de Pripyat, onde viviam os trabalhadores da central e suas famílias, 50.000 pessoas ao todo que foram evacuadas 36 horas depois da explosão. Essa cidade está lá, quase intacta, mas privada de vida pelos próximos 20.000 anos. O que é mais duro são as fotos dos bebês monstros que nasceram de mães que tiveram a infelicidade de estar grávidas em Pripyat naquele 26 de abril de 1986.

Notas

    Tags

  • antropodiceia
  • bem
  • Bíblia
  • catástrofe
  • Chernobil
  • ciber-pós-humanidade
  • clima reaquecimento climático
  • combustíveis fosséis
  • cristianismo
  • desencantamento
  • desenvolvimento
  • desmedida
  • Deus
  • ecologia
  • energia
  • energia nuclear
  • energia renovável
  • esquecimento
  • ética da finitude
  • exterioriade
  • finitude do homem
  • Güther Anders
  • Hanna Arendt
  • Hiroshima
  • homem
  • humanismo
  • hybris
  • inimigo
  • Jean-Jacques Rousseau
  • mal
  • morte
  • nanobiotecnologia
  • nanotecnologia
  • natureza
  • Nick Bostrom
  • pós-humano
  • Protocolo de Quioto
  • recursos naturais
  • sobrenatureza
  • sociedade
  • universalização
  • Voltaire