2002

A ética do artesão

por Jorge Coli

Resumo

O conflito entre criação artística e liberdade tem variado ao longo da história, em função da censura, das exigências de engajamento do artista, das reações do público diante de sua obra ou de outros fatores. Havia esse conflito mesmo quando, no passado, a adesão das artes ao universo político e religioso era tácita. Os românticos vão reivindicar o direito de escolha e de intervenção do artista. Mas o mais importante é que, a partir de Courbet, suas atividades políticas se desvinculam de suas atividades artísticas. Constrói-se a imagem do artista-gênio, situado acima do público. Observa-se também um deslocamento do objeto produzido para o gesto que o produz. Isso se intensifica com as provocações da vanguarda no século XX. Para Duchamp qualquer objeto é arte desde que colocado numa exposição. O público contemporâneo, porém, parece ter aprendido a reagir “bem” a essas provocações, fazendo que o artista se torne, de certo modo, prisioneiro da liberdade que ele instituiu. (Salvador Dalí chegou a dizer, provocativamente, que a liberdade é nociva ao artista, ao mostrar que o apogeu da arte espanhola se deu no tempo da Inquisição. De fato, a presença da censura não impede a criação de grandes obras, assim como sua ausência não é condição necessária delas.) Diante da banalização da vanguarda, pensadores como Eliot, Alain e Mário de Andrade passaram a pregar um retorno ao artesanato. O artista só se inventa trabalhando, e sua liberdade, nunca absoluta, só se alcança no gesto do trabalho artístico.


Iniciemos por um episódio que se passa em Veneza, quando os Dominicanos de Zanipolo pedem a Paolo Veronese para executar uma tela destinada ao refeitório do convento, representando a Santa Ceia. Veronese leva dois anos para completar a tarefa. Imenso, monumental, o quadro mede 5,50 m por 12,80 m, ou seja, mais ou menos 71 metros quadrados. Seu caráter muito ambicioso causou grande expectativa. A superfície é ocupada por grande número de personagens imaginários junto ao Cristo e aos apóstolos. Eram figuras que faziam parte de um espetáculo colorido, pitoresco, dando a impressão de uma suntuosa festa, tal como as que ocorriam na Veneza daqueles tempos.

Em 20 de abril de 1573 a tela ficou pronta. No dia 18 de julho, Veronese era chamado diante do Tribunal do Santo Ofício. A Inquisição fez um interrogatório, cujas atas ainda existem. Eis aqui um excerto:

Juiz — “O que significa este homem sangrando pelo nariz?”

Veronese — “É um criado que, por qualquer motivo, está sangrando pelo

nariz.”

Juiz — “O que significam estes soldados alemães armados com alabardas?”

Veronese — “Preciso dizer aqui algumas palavras.”

Juiz — “Diga.”

Veronese — “Nós, pintores, podemos nos permitir as mesmas liberdades que
tomam os poetas e os bufões. E se pintei dois alabardeiros, foi porque me pareciam convenientes e bonitos. Se o dono da casa era poderoso e rico, segundo me disseram, era de esperar que dispusesse de tais servidores.”

Juiz —”Para que efeito o senhor pintou o bobo com um papagaio na mão?”

Veronese — “Por ornamento, como se costuma fazer.”

Juiz — “Quem o senhor acredita que estava, de fato, naquela ceia?”

Veronese — “Creio que se encontravam o Cristo com os seus apóstolos. Mas como no quadro sobra espaço, eu o adorno com figuras que encomendam e segundo o costume.”

Juiz —”Alguém encomendou ao senhor que pintasse alemães, bufões e coisas semelhantes?”

Veronese — “Não, senhores. Mas a encomenda foi a de decorar o quadro como eu o desejasse. E o quadro é grande, capaz de conter muitas figuras. Fiz o que me parecia.”

O Tribunal concluiu que esse a   mbiente de festa era um desrespeito. A última ceia do Cristo devia ser solene e severa. Veronese foi condenado a mudar o quadro. Em vez disso, ele preferiu mudar o título. A Santa Ceia passou a se chamar Ceia em casa de Levi. Tratava-se de um tema evangélico menor, onde a exuberância visual da obra podia ser permitida. Com a mudança de denominação, salvava-se a imagem.

Associemos a este episódio um outro, ocorrido no ano retrasado,1999, em Nova York. O Museu do Brooklin recebeu uma exposição de jovens artistas ingleses, impulsionados pela galeria Saatchi, um dos marchands mais importantes da atual Grã-Bretanha. Em meio às obras, havia a de um jovem pintor negro, chamado Chris Ofili. Seu título é A santa Virgem Maria. Ofili nasceu em Manchester, na Inglaterra, mas identifica-se, numa busca por raízes africanas, com tribos do Zimbábue. Nelas, o excremento de elefante possui uma significação central: ele fecunda as terras áridas, é vital para o plantio. Ofili incorporou fezes de elefante em seu quadro. À imagem da Virgem — mulher negra, com um manto azul, trazendo o Menino nos braços — são acrescentadas bolas de estrume. Elas foram envolvidas numa resina, para conservá-las e protegê-las, e ficam dispostas sobre a pintura. Duas delas se encontram no chão, sustentando o quadro, como pedestais. Em uma vem escrito “Virgin”, em outra “Mary”.

Além disso, Ofili ajunta à obra, que é bastante grande, pequenos recortes extraídos de revistas pornográficas. Eles foram feitos de maneira a torná-los imprecisos, perturbando a visão, dificultando o reconhecimento imediato. São recortes de nádegas, de sexo feminino, colados à volta da imagem da Virgem. Ofili estabelece, com isto, uma relação orgânica, voltada para o princípio da fecundação: a Virgem Maria, fecundada por Deus, que pariu o Deus feito homem, liga-se à fertilização da terra, ao princípio que engendra, próprio do ato sexual.

Ocorre que isto apareceu obsceno ao prefeito de Nova York, Giuliani, que é descendente de italiano e de origem católica. Giuliani deu um ultimato: ou o museu retirava a obra, ou ele retirava a verba municipal destinada ao museu.

O quadro de Ofili foi mantido na exposição, contra ventos e marés, em nome da liberdade artística. Ficou protegido por um reforço policial fora do comum e, diante dele, dispôs-se um vidro pára-balas, para evitar que sofresse qualquer agressão.

Quatro séculos separam esses episódios, unidos, no entanto, por um conflito entre criação artística e liberdade. Nos tempos de Veronese, o Tribunal da Inquisição intervinha em nome de uma ortodoxia. Veronese havia perturbado a espiritualidade do quadro por uma suntuosidade mundana. Em consequência do impacto provocado pela Reforma protestante, parecia então essencial para a Igreja Católica controlar qualquer tipo de desvio que pudesse parecer, de alguma forma, herético. O artista estava proibido de produzir, voluntária ou involuntariamente, imagens passíveis de suspeita de uma eventual heresia.

No caso de Ofili, não se trata exatamente da mesma coisa. Ele, decerto, não tinha, como Veronese também não, desejo de insultar. Sua obra pode — e deve — ser entendida por meio de uma leitura segundo a qual o mistério da encarnação e da natividade do Cristo é posto em sintonia com forças naturais fecundantes: fecundação da terra pelo excremento, fecundação humana e divina pela sexualidade. Estas questões, porém, foram confundidas com o insulto e com a provocação. O modo como o prefeito Giuliani reagiu indica, com clareza, a seguinte posição: o artista tem a liberdade de produzir aquilo que quiser, desde que respeite crenças e convicções de outrem.

Trata-se de uma diferença importante, em relação a Veronese, que nos remete à história da liberdade vinculada à criação artística. O episódio da Ceia de Levi, de Veronese, é sintoma de um momento de crise. No final do século XVI a Igreja Católica, por meio da Contra-Reforma, opunha-se à Reforma protestante. Foi o momento também da instalação dos Estados nacionais, escorados nos regimes monárquicos absolutistas. A arte passou a ser submetida tanto a um — a Contra-Reforma — quanto ao outro — os Estados nacionais. O artista era então honrado, participava das cortes, às vezes em posições importantes, em missões diplomáticas, como aconteceu com Rubens. Mas sua arte, naquele momento, vinha compreendida sempre como um veículo. Seria perfeitamente deslocado se pensássemos que o artista, por meio de sua arte, dentro de sua produção artística, pudesse levantar-se contra o mundo no qual se encontrava. O pintor evoluía no interior de um mecanismo cujo funcionamento era perfeito e que ele próprio não tinha interesse em emperrar. O artista áulico transmitia convicções que se encontravam fora dele, às quais aderia. Le Brun, pintor de Luís XIV, orquestrou uma extraordinária celebração para o mito do Rei Sol. Bernini transformou Roma, no século XVII, num prodigioso cenário que confirmava os mistérios da fé católica.

Era um momento em que a maneira individual de ver o mundo, própria a cada artista,vem enxertada numa percepção genérica e coletiva, claramente delineada, à qual não é possível que ele se furte. É preciso termos cuidado com as projeções anacrônicas. A maneira individual é, para nós, hoje, o essencial: é ela o que nos interessa em Rubens, Velásquez ou Zurbarán. Mas se enxergarmos a partir da ótica do século XVI ou XVII, a individualidade de cada artista é apenas o meio de fazer passar as mesmas verdades. Há, portanto, uma inversão, algo que está oposto à perspectiva dos nossos dias. Naqueles tempos, os modos de cada artista são os acidentes destinados a revelar uma essência maior, coletiva, que os ultrapassava.

É no século XVIII, é com o Iluminismo, com o pensamento burguês, que esta situação se modifica. Voltemos à etimologia da palavra burguês: habitante do burgo, isto é, cidadão. O artista, a partir do século xvm, será um cidadão como um outro, com a mesma autonomia e liberdade de pensamento de qualquer um. É verdade que para os iluministas esta liberdade de pensamento — não apenas nas artes, mas em todos os domínios — estava condicionada a um princípio racional. Ou seja, todos são livres, mas cada um é portador da mesma razão universal que nos une; ou seja, eu sou livre para ser racional. Espera-se do artista uma posição pessoal em relação aos acontecimentos da história, mas espera-se do artista a boa escolha, isto é, a escolha racional.

O grande agente da pintura do Iluminismo, da pintura da Revolução Francesa, foi David. David instaurou, definitivamente, a reforma neoclássica, chamada então de “arte regenerada”. Ele introduz princípios racionais no próprio processo da fabricação das imagens. Há, nele, um método analítico que deve ser claramente enunciado: a escolha do tema, e cada etapa da construção do quadro, são pensados, passados por escolhas cuidadosas. Numa palavra, a criação artística fica permeada pela razão.

Essa disciplina é estratégica. Ela foi estabelecida para impor à obra um caráter de imagem poderosamente emotiva. Deste modo, o célebre quadro A morte de Marat, de 1793, transforma o líder político num mártir das novas ideias. Com ele, opera-se a transfiguração de um fato da história política contemporânea, um crime que corre os jornais, e a projeção desse fato na eternidade. O acontecimento deixa o efêmero para adentrar no eterno.

É importante notar que David fez uma escolha política. Sabemos de que lado se encontram suas opiniões. Isso quer dizer que David, em sua escolha, também adere a algo que o ultrapassa, e pelo qual ele milita. Não se trata mais de obediência, porém. Trata-se de uma escolha. Quando Marat foi assassinado, David já havia feito outro quadro, de outro mártir da Revolução, que se chamava Le Pelletier de Saint-Fargeau. Era um aristocrata que aderira à Revolução e que fora também assassinado. O paralelo é expressivo — o personagem de origem aristocrática também escolhe politicamente. As consequências dessa escolha prosseguem, por sinal, na própria história física da tela. Le Pelletier assassinado, que deveria fazer pendant ao Marat, não existe mais. A filha do retratado, de ideias completamente opostas às do pai, monarquista e católica, termina comprando a obra para destruí-la, como mancha vergonhosa na família.

Com esses dois quadros — as homenagens aos mártires políticos Le Pelletier de Saint-Fargeau e Marat — David é o cidadão que faz suas escolhas. Decidiu seu lado, no jogo político, o que significa submeter-se às regras estabelecidas por esse jogo. Tanto é assim que, concebendo o Império napoleônico como uma continuação da Revolução Francesa, David celebrou o imperador, um pouco à maneira como Le Brun fazia com Luís XIV. Mas com uma diferença. David escolheu. A fidelidade à sua decisão é comprovada pela história pessoal. Quando cai o imperador, David, embora solicitado para ficar na França pela Restauração, irá exilar-se na Bélgica, onde morre. Não quis pactuar com um regime que ia contra suas ideias.

Este é o último momento dentro da história das artes no qual o artista endossa a positividade do poder, mesmo que esse endosso signifique o resultado de uma escolha, e não uma adesão tácita como outrora. Com os românticos a questão se radicaliza. Os artistas românticos encontram-se na oposição, na recusa ao poder, ali onde os sentimentos se levantam contra as injustiças e as opressões. Diante da censura, diante das proibições, eles inventam a denúncia metafórica: é o caso de A balsa da medusa, de Gericault. Inventam também novos emblemas, para exaltar a liberdade social, coletiva: é Delacroix e A liberdade guiando o povo. Há, ainda, a exasperação contra a tirania racional, sentida como autoritária. Blake, Fussli, Friedrich foram alguns dos artistas que se ergueram contra a razão ditadora.

No caso dos românticos não basta a posição individual que diz. eu, pessoalmente, sou contra. O artista romântico não se dissocia de sua obra, ele empenha sua arte. Encontra-se assim, nas obras, de modo imanente, um poder crítico, de oposição. Por vezes, esse poder é mesmo autônomo em relação as ideias, ou motivos, do próprio criador. O quadro de Delacroix é um bom exemplo. Nasceu das revoltas parisienses de 1830, colocando em cena uma multidão em luta pelo direito da liberdade. Mas é preciso lembrar que ele possuía um sentido oficial: o rei Luís Filipe legitimava seu poder como emanado da vontade popular, e a alegoria pintada por Delacroix era uma liberdade “recuperada” pela nova monarquia.

O quadro, porém, possuía poderes mais subversivos do que esperava seu autor, e adquiria uma vida própria. Num primeiro tempo, as revoltas populares foram um dos fatores que permitiram a Luís Filipe tomar o poder. Mas depois disso, como elas continuassem a ocorrer, ameaçando a estabilidade da nova monarquia, o quadro, de oficial, passou a ser percebido como subversivo. O povo, que se levantara, retratado por Delacroix, mostra-se não tão manipulável como se esperava. Ao contrário, revela-se perigoso. Assim, também o quadro revela-se indesejável, porque passou — involuntariamente — a exaltar as ações populares, de fato ameaçadoras. A obra fora comprada pelo governo mas terminou sendo devolvida a Delacroix. Sob o Segundo Império, trinta anos depois, será ainda objeto de censura. Este exemplo revela bem o quanto chega a ser pequena a noção que um autor pode possuir do alcance e dos efeitos de sua própria criação. Uma vez a obra produzida, o cordão umbilical foi cortado e ela passa a ter uma trajetória autônoma, cursando um caminho independente. C) que faz de seu criador, quando comenta sua própria obra, apenas um exegeta entre outros. Talvez privilegiado, mas exegeta apenas.

Com os românticos afirmou-se algo que se prolonga até nossos dias: toda uma corrente artística que se quer engajada. Durante o século XX, os regimes totalitários arregimentaram os artistas, pondo-os a seu serviço. O nazismo e o fascismo submeteram assim os criadores. Mas também a esquerda — o Partido Comunista — solicitava a artistas modernos — isto é, artistas que, afinal de contas, navegavam em águas da autonomia e da liberdade de criação desde o final do século XIX — uma posição obediente a certos ideais políticos. Depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos de 1950, o debate a esse respeito tornou-se agudo. Existe um texto clássico de Sartre, desse período, chamado O que é literatura?. Nele, o autor se obriga a uma espécie de malabarismo mental para exigir que todo escrito literário seja empenhado, e para excluir de qualquer empenho as outras artes. Sartre estatui que a música, a pintura, a escultura, possuem uma característica ontológica diversa da literatura. Como esta última é feita de palavras, ele a credita como essencialmente portadora de mensagem, o estilo vindo como um acompanhamento secundário ao papel principal. Desse modo, Sartre afirma que a literatura pode e deve ser engajada. As outras artes carregariam uma dimensão emocional “em si”, intrínseca aos próprios elementos plásticos ou sonoros que compõem um quadro ou uma sonata. Isso as tornaria incapazes de empenho político ou social. Uma leitura atual desse pequeno livro, muito agudo, revela o quão sensível era o debate em torno de tais questões naqueles anos, quando parecia necessário encontrar justificações teóricas dentro do que se supunha ser a natureza de cada atividade artística, para empenhá-la ou não.

Em nossos dias, a questão parece adormecida. Poderíamos dizer que pouco importa o engajamento, pelo menos no que concerne à qualidade do objeto artístico. Trata-se de uma velha discussão: será que o artista, abdicando de sua liberdade individual, consegue produzir grandes obras? Consegue, está claro. Guernica é o exemplo, no século XX, do sucesso de uma empreitada desse tipo. Mas é interessante notar que o Picasso dos anos de 1950, o que pinta a La guerre et la paix, em Vallauris, por bela que seja a obra, chega a um resultado menos intenso, muito menos vigoroso do que em Guernica. Eram tempos em que ele tentava se submeter às pressões do Partido Comunista, empenhado numa campanha cuja palavra de ordem era paz.

A História nos revela que a qualidade de uma obra não depende nem da liberdade, nem da exigência de empenho: ela depende do modo como certas circunstâncias, em certos acasos, atingem o artista e estimulam sua produção. Salvador Dalí, com suas posições frontalmente provocadoras, chegou a dizer que a liberdade é nociva ao artista. Declaração, está claro, que corre a contrapelo das libertárias tradições modernas. Dali fornecia um exemplo que lhe era caro. Quando a arte espanhola atingiu seu apogeu? No século XVII, com Velásquez, com Zurbarán, com Murillo, com pintores admiráveis que viviam no período em que a Espanha esteve submetida, do modo mais cerrado, ao controle rigoroso do poder absoluto do rei, à paranóica polícia religiosa dos tribunais da Inquisição.

Não há dúvida: do ponto de vista histórico, nem sempre situações de censura, de restrição, de controle e patrulhamento sobre o ato de criar, bastam para reduzir as forças da arte. Às vezes, ou antes, com frequência, essas situações terminam por estimular a criação. Existe, no século XX, um caso evidente.

Logo depois da invenção do cinema sonoro, por volta de 1930, os produtores de Hollywood decidem estabelecer um código de censura para controlar a moralidade dos filmes. O cinema parecia adquirir um caráter de divertimento um pouco vulgar, afastando o público familiar, mais moralista. Para garantir a presença desse público — mas também, está claro, para satisfazer as exigências do puritanismo imperante — cria-se um código de moral, conhecido como Código Hays. Esse código era de extrema pudicícia e muito detalhado. Proibia apresentar, por exemplo, famílias compostas por raças diferentes ou casais dormindo na mesma cama. Impedia-se a exibição do umbigo ou que se fizessem piadas com sacerdotes, cronometrava-se exatamente o número máximo de segundos que um beijo podia durar. Assim, quando o cineasta queria sugerir uma longa duração para um beijo, impedia, por um corte, que ele terminasse diante dos olhos do espectador. Por metonímia, a plateia imaginava uma prolongação maior do que o filme estava autorizado a expor.

Ora, a história constata que o Código Hays não bloqueou, de modo algum, o surgimento, em Hollywood, de grandes e extraordinárias obras-primas. Como os diretores eram obrigados a inventar astúcias para iludir as regras absurdas, a criação ficava estimulada por essas próprias regras, que exigiam ser ultrapassadas. Interlúdio é um dos mais admiráveis filmes de Alfred Hitchcock, datado de 1946. Nele existe uma célebre sequência, na qual um beijo dura muito tempo. Para conseguir isso, Hitchcock fez com que Cary Grant e Ingrid Bergman se beijassem enquanto o protagonista respondia ao telefone. Eis aqui o que diz Hitchcock numa entrevista concedida a François Truffaut, na qual comenta o aspecto erótico da sequência:

ET — Não falamos o suficiente do amor em seus filmes. Creio que a partir de Interlúdio, consideram-no não apenas um especialista do suspense, mas também um especialista do aspecto físico no cinema.

A.H. — Sim, havia um aspecto físico nas cenas de amor de Interlúdio e você pensa provavelmente na longa cena de beijo entre Ingrid Bergman e Cary Grant…

ET — Sim, e creio me lembrar que a publicidade dizia a propósito dessa cena: “O mais longo beijo da história do cinema…”.

[…]

A.H. — Se eu os tivesse separado um do outro a emoção teria sido perdida. Ora, havia, com efeito, ações a cumprir, eles deviam andar até o telefone que tocava, continuar abraçados durante toda a duração da comunicação, depois um segundo deslocamento os levava até a porta. Eu sentia que era essencial para eles não se separarem e não romperem aquele abraço. Dava ao público o grande privilégio de abraçar Cary Grant e Ingrid Bergman juntos. Era uma espécie de relação a três temporária.

A intensa dimensão erótica — no caso, com essa consciência de certa perversão envolvendo o público — tem o seu ponto de partida no Código Hays, que controlava a duração dos beijos. Eles não podiam se prolongar mais do que tantos segundos. Como fazer para conseguir “o mais longo beijo da história do cinema”? A interdição estimula o gênio de Hitchcock, que inventa esse beijo renovando-se antes que os fatídicos segundos da censura possam intervir. Se a censura não existisse, está claro que Hitchcock não teria a necessidade de driblá-la como fez: ela foi, portanto, necessária para a invenção desse prodigioso momento cinematográfico.

Seu caso não foi o único. Ao contrário, é muito fácil constatar o quanto essas regras limitadoras serviram para estimular a criação em Hollywood. Mas está claro que não é possível estabelecer uma regra geral. Nem sempre a censura é positiva para a criação, nem sempre ela é negativa. Que a censura seja sempre — do ponto de vista das mais profundas convicções éticas — algo abominável e indesejável, não há dúvida. Porém, a ausência de censura não é condição necessária para a criação de grandes obras, nem sua presença impede, também, a realização de grandes obras.

Nesse campo, não há regras, nem previsões são possíveis. O sucesso ou o fracasso de um clima estimulando a criação permanecem muitas vezes misteriosos. É, por sinal, muito fascinante o fato de que certas culturas, em certas épocas, tenham produzido, com grande densidade, obras admiráveis num campo das artes e não em outros. Por exemplo, sob Stalin, o cinema soviético foi esplêndido, e a música também, mas a pintura foi pífia. Por que um povo, como o holandês, possui uma pintura tão elevada no século XVII, mas não uma literatura do mesmo nível? Por que o Renascimento florentino não deixou música à altura de suas estupendas criações no domínio das artes plásticas? Por que os ingleses, que sempre possuíram uma literatura notável, se afirmam, na pintura, apenas a partir do século XVIII? Por que certos setores das artes entram em ação e outros não entram, numa mesma época, numa mesma cultura? Está claro que é possível enumerar certos fatores, buscar certas causas, mas elas serão sempre insuficientes, sobretudo na compreensão genérica desses mistérios.

Resta que, do ponto de vista da história, a questão da liberdade nas artes deslocou-se, e questões éticas ou políticas — ao menos de maneira direta — deixaram de fazer parte do campo artístico. Quando Chris Ofili é censurado em Nova York, isso não é feito pelas qualidades ou defeitos de sua arte, mas por razões religiosas. E seus defensores não se levantavam para exprimir admiração diante do produto artístico, mas para erguerem-se em favor da liberdade de expressão.

O debate se situa então em outro terreno: o artista tem ou não o direito de expor todo o seu pensamento em nome da liberdade das artes? Não se trata, portanto, de uma questão de forma, como ocorria com os impressionistas que foram atacados porque eram impressionistas, ou os cubistas, porque eram cubistas. Recapitulemos: nos tempos de Veronese, de Le Brun ou Velásquez, a adesão das artes ao universo político ou religioso era tácita e indiscutível. O mundo, a ordem das coisas — as “ideologias”, para empregarmos uma palavra bárbara — são confirmados e reforçados pelo artista. No final século XVIII, com David, com Goya, pressupõe-se uma adesão por reflexão e por escolha. Os românticos, por sua vez, trarão a possibilidade da recusa ao poder e à ordem, reivindicarão o direito à crítica, à intervenção do artista no mundo, por meio de sua arte, para denunciá-lo ou transformá-lo.

Se esta ideia do objeto artístico que denuncia, que intervém, que critica se prolonga no século vc, ela aparece, nos dias hoje, por assim dizer, como uma questão “não atual”. Ocorreu, nela, um deslocamento. Há uma dissociação entre as opiniões do artista e aquilo que sua obra exprime. O ponto de articulação histórico ocorreu com Courbet, na metade do século XIX, que abriu uma nova trilha. Courbet, chamado por si próprio de “realista”, foi um artista empenhado politicamente no seu tempo, a ponto de passar pela prisão e terminar a vida como exilado. Mas desvinculou as atividades políticas pessoais de suas atividades artísticas, fazendo nitidamente a distinção entre liberdade artística e liberdade política. Com ele, a arte não está mais a serviço de qualquer ideia exterior a ela, mas a serviço de si própria, arte. Depois disto, liberdade nas artes significará, mais e mais, encontrar um modo específico interno aos objetos artísticos, sem que nenhum critério exterior ao próprio objeto possa intervir. O artista, aos olhos de si próprio, situa-se acima do seu público. Se, nas situações de vanguarda, ele escolhe, como Van Gogh, o campo da marginalidade, é que esse campo — muito cruel por várias razões — mostra-se compensador, porque nele o artista é senhor absoluto de sua liberdade criadora.

Se o artista atinge o sucesso sem sair do livre universo próprio à marginalidade, isso significa que é reconhecido no seu patamar superior e passará a ser venerado como um demiurgo. É o caso, mais evidente e mais extremo talvez, do compositor Richard Wagner. Wagner se situa nas margens das produções musicais do seu tempo, e consegue ser reconhecido dentro dessa marginalidade. Ele tira uma consequência lógica. Já que, contra tudo e contra todos, consagrou-se inteiramente à arte, colocando-a antes de qualquer coisa, e já que, com isso, atingiu alturas vertiginosas no domínio da criação, abrindo caminhos insuspeitados, é o público, é toda a humanidade que lhe devem admiração, louvor, culto, dinheiro, luxo, bem-estar, um teatro fora do comum, porque ele se tornou o supremo sacerdote da arte, gênio trazendo um benefício único e insubstituível para o mundo.

A liberdade conquistada leva assim não só à emergência do gênio, mas à construção da imagem do gênio. Construir-se artista como gênio, dentro do campo marginal da liberdade, estabelecer-se como senhor de um domínio à parte: assim, a própria liberdade deixou de manter uma relação dialógica com o mundo para tornar-se interna e fechada no interior da produção de cada criador. É interessante notar que, como a luta pela liberdade nos tempos do neoclassicismo localizava seu objetivo fora da arte, a visão neoclássica instituiu um sistema de deveres que se iniciam éticos para resultarem artísticos. Dentro dessa liberdade, aquilo que poderia se chamar de originalidade criadora é profundamente reduzida. O artista neoclássico, como os outros homens em suas diversas funções, segundo a perspectiva do Iluminismo, submete seu trabalho, sua criação, a regras racionais, regras universais e eternas, das quais não é possível escapar, diminuindo o papel da singularidade criadora.

Os românticos trouxeram atitude oposta: instauraram a liberdade de invenção, cuja exigência paradoxal é a de ser livre, cujo corolário é o da originalidade necessária.

O artista passa a ter, com eles, o dever de ser livre, e esse dever pode se tornar muito pesado. Chega a conduzir à perda dos pontos de referência, à perda das regras do jogo artístico. Assim, na realidade, o artista elimina qualquer possibilidade de transgressão, já que não há mais limites ou fronteiras, já que não há mais nada barrando os seus processos de criação artística.

Há um fenômeno social curioso, ligado a este ponto. As mais antigas manifestações da vanguarda — desde a batalha do Hernani, de Victor Hugo, que vai causar escândalo no mundo do teatro parisiense, em 1830, até os impressionistas, de 1874, ou o Sacre du printemps, de Stravinsky em 1913 — provocarão abalos no público por meio de grandes escândalos. Eles ocorrem não em nome de ideias políticas, não em nome de ideias sociais, mas em nome de ideias artísticas, que se configuram de um modo diferente daquele que o público pensava ser a arte.

Curiosamente, essa incompreensão do público terminou por tornar-se uma espécie de termômetro, ou melhor, uma garantia, um sinal de vigor criativo. O tempo mostrou que os escandalizados estavam errados, que Hugo, Cézanne, Wagner ou Duchamp — isto é, aquilo que chamamos de “vanguarda” — entraram para o panteão da genialidade. Portanto, se o artista mostra-se capaz de provocar reações raivosas no público, ótimo, ele está, por este meio, identificando-se, diante de si mesmo e dos que o admiram, como original e criador.

O problema é que, com o passar do tempo, o público que reagia mal, de maneira escandalosa, às novidades, aprendeu a “bem” reagir. Ele entendeu os mecanismos, percebeu que, para mostrar-se intelectualmente sofis ticado, é melhor não mais se escandalizar. Educou-se para assimilar aquilo que era afronta, sabe agora rir com indulgência daqueles que, por exemplo, riram dos impressionistas em 1874. Metaboliza de antemão quaisquer novidades. Sabe mesmo, por vezes, com sinceridade, identificar e saborear essas mesmas novidades.

Com isso tudo, tornou-se mais e mais insensível às provocações. Provocar escândalos passou a ser cada vez mais difícil. Paradoxo: o artista, ao acender reações raivosas no público, sabe, segundo as experiências das passadas vanguardas, que está no bom caminho, que está criando, que está produzindo novidades. Mas como o público aprendeu a manha, a provocação institucionalizou-se, e é raro que o escândalo ocorra. Ainda hoje, alguns artistas buscam desesperada, pateticamente, provocar escândalos. Fazem isso tentando projetar-se como precursores, e confirmarem-se a si mesmos como criadores. São modos sociais, coletivos, testemunhando que, cada vez mais, o artista encontra-se prisioneiro da liberdade que ele próprio instituiu.

O início do século XX viveu um momento intenso de experimentações sem freios nas artes. Elas entrariam em refluxo duas ou três décadas depois, aproximadamente em 1920 ou 30. Mas no início do século há uma explosão de obras que surgem fora de todos os parâmetros. Por volta de 1910, Schoenberg renuncia a todas as normas de construção musical, a toda referência tonal. É assim que ele vai criar uma de suas obras atonais mais célebres, o Pierrot lunaire. Mas, a partir de 1920, esse mesmo Schoenberg passa a buscar regras estritas de composição por um novo método, que ele inventa, de maneira a limitar aquela plena liberdade que ele mesmo havia instaurado. Necessitando de uma ancoragem, criou a teoria dodecafônica da construção musical.

Existiu, desde o romantismo, um deslocamento sub-reptício do objeto produzido para o gesto que o produz. Nesse gesto, as referências podem se perder, inclusive as referências materiais. Das emoções românticas até o gesto de Marcel Duchamp que transforma um objeto qualquer em arte simplesmente pelo fato de colocá-lo numa exposição ou numa sala de museu — e do porta-garrafas de Duchamp aos happenings, a imaterialidade das artes é frequente no mundo contemporâneo. O sentimento, a gratuidade do ato, o poder do gesto terminaram por se institucionalizar, por se incorporar no percurso recente da história das artes. Eles abriram caminho para a imaterialidade, que representa a situação de mais extrema liberdade, já que os artistas não dependem mais sequer dos limites concretos impostos à obra. Estes modos de ser, anunciados pelo romantismo, extremaram-se e banalizaram-se pelas situações de vanguarda.

Vários pensadores do século XX, como Elliot ou Alain — e, entre nós, Mário de Andrade —, opuseram-se, teoricamente, a essa suprema libertação do artista diante de sua obra, pregando, cada qual à sua moda, um retorno àquilo que se poderia chamar de artesanato. É uma reação: já que os artistas estão trabalhando com gestos imateriais, vamos pregar, ao contrário, a ética do artesão.

Elliot, num ensaio de 1917, intitulado “A tradição e o talento pessoal”, escreve:

A tarefa do poeta não é encontrar emoções novas, mas empregar emoções ordinárias e, trabalhando-as em sua poesia, exprimir sentimentos que não se encontram, de modo algum, nas emoções reais. L..] Há, na composição de um poema, uma grande parte de atos conscientes e deliberados. Na realidade, o mau poeta é, habitualmente, inconsciente onde ele deveria ser consciente, e consciente lá onde ele deveria ser inconsciente. Esses dois erros tendem a torná-lo “pessoal”. A poesia não é rédea solta à emoção, não é a expressão de uma personalidade, mas uma maneira de escapar à personalidade. Mas, está claro, apenas aqueles que possuem personalidade e emoções sabem o que significa querer escapar delas.

[…]

Transferir o interesse do poeta para o da poesia é um objetivo louvável, pois isso conduziria a uma apreciação mais justa da verdadeira poesia, boa ou ruim. […] A emoção devida à arte é impessoal. E o poeta não pode atingir essa impessoalidade sem se entregar completamente à obra a construir.

Alain, no capítulo VII, intitulado “De la matière”, em seu Système des beaux-arts, desenvolverá posição semelhante:

Já que é evidente que a inspiração não forma nada sem matéria, é necessário ao artista, na origem das artes e sempre, algum primeiro objeto ou alguma primeira limitação (contrainte) efetiva, sobre o qual ele exerce primeiro sua percepção, como o lugar e as pedras para o arquiteto. […] O artista é definido por essas coisas, de modo muito diverso da fantasia. Porque todo artista percebe e é ativo, sempre artesão nisso. Mais atento ao objeto do que às suas próprias paixões, poder-se-ia dizer quase passional contra as paixões […]. Em suma, a lei suprema da invenção humana é que só se inventa trabalhando. Artesão, primeiro.

São apelos que participam dos momentos pendulares, rapidamente esboçados nesta fala, onde a liberdade do artista surge na história não como um absoluto ou como um abstrato; nem sempre como amiga, nem sempre como inimiga; às vezes desejada, às vezes incômoda. Não existem melhores lições do que as da história, e a liberdade nas artes, dentro delas, deixa de ser um mito emocional ou teórico, a ser alcançado fora do gesto artístico, para tornar-se, exatamente, um resultado desse gesto.

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