A glória
Resumo
Por que a glória, a honra, a reputação, tão valorizadas no Antigo Regime (séculos XVII e XVIII), foram esquecidas como paixões relevantes? Elas apontam a imagem pública que se tem de alguém, independente da intenção ou do que se passa no íntimo. Não importa o que sou, mas o que pareço ser. Por isso, no tempo do Rei-Sol, a pompa é teatral. Num período de transição entre a aristocracia em declínio e a burguesia em ascensão, abranda-se a antiga violência, impõem-se padrões de conduta (regras de etiqueta na corte) e desenvolve-se toda uma arte de agradar (sobretudo às mulheres). Há também a consciência barroca de que somos máscaras, ficções. A vida é sonho, diz Calderón de la Barca. Sonhamos, mas sabendo que é um sonho. Esse estilo de vida regido pela Aparência e pela Fortuna (que fazia um homem duelar com seu melhor amigo, de coração partido, mas com a consciência segura) será abandonado após a Revolução francesa. Desde então importa a responsabilidade do indivíduo por seu destino e a intimidade como espaço de regeneração dos vícios sociais e da mentira. Mas com isso algo se perde na compreensão do passado e do presente. Honra e glória não caracterizam apenas os cortesões ou as sociedades machistas remanescentes, elas continuam agindo em muitas circunstâncias. Entre artistas e intelectuais, por exemplo, cuja atividade depende do retorno da fama e requer uma dimensão pública que está se perdendo com o triunfo das racionalidades. Confinados hoje a trabalhar com fantasias, eles percebem que o social e o coletivo talvez sejam mesmo uma ficção.
Em nossos dias, quando se fala em paixão, pensa-se em amor e enamoramento; nos séculos XVII e XVIII porém, a paixão por excelência era outra, a glória, a honra, a reputação. Hobbes diz, em 1640: “No prazer ou desprazer que sentem os homens, devido aos sinais de honra ou desonra que lhes são tributados, consiste a natureza das paixões…”;[1] a paixão, antes de mais nada, nessa época, refere-se à honra. Isso, porém, é passado; por isso, hoje, estudar a honra é estudar a sua história; e é perguntar por que foi esquecida, como paixão relevante, por que é encoberta em sua importância.
Comecemos por uma definição, embora sintética. Afinal, esses termos que vamos agora manejar foram utilizados exaustivamente durante duzentos anos; não há como expô-los numa definição única, incontestável; o que podemos é tentar uma aproximação a eles. Glória, honra, fama e reputação apontam o renome que tenho, a imagem que os outros veem de mim. A imagem, pública, assim se opõe à intenção: quando os outros me valorizam ou depreciam pelo que de mim é visível não importa o que eu esteja sentindo no mais íntimo. O universo das intenções, a consciência, não pode ser devassado pelo outro. Desta forma, a honra, a reputação, a fama se afastam do campo propriamente moral ou ético,[2] no qual conta, justamente, a intenção que me move a agir. Um ato pode ser admirado, pode dar relevo social a uma pessoa, e no entanto dever-se a motivos vis; ou o inverso. A religião cristã, em especial, preocupada com a salvação do indivíduo, destaca as intenções, em detrimento do lado público de meus atos. Ao contrário, o pensamento dominante na vida de corte, durante os séculos XVII e XVIII, já por princípio desconsidera a intenção; descobri-la, conhecer a intimidade de uma pessoa, o seu mérito autêntico, não interessa ao nobre. Vejamos uma sociedade na qual ainda hoje a honra é questão essencial, a do mar Mediterrâneo; num filme italiano dos anos 60, Por uma questão de honra, um homem se vê forçado a fugir de sua aldeia, na Sicília, acusado de um crime que não cometeu. Para ser absolvido, os chefes da Máfia exigem que ele volte às ocultas e pratique outro crime, do qual não será suspeito, é claro, porque ninguém saberá de sua presença. Mas ele é recém-casado — teve de fugir antes mesmo de consumar o matrimônio — e aproveita a ocasião para passar a noite com a mulher. Quando volta, absolvido, a mulher está grávida. Ele contará a todos que o filho é seu? Neste caso será condenado a longa pena de prisão; pior, nem acreditarão nele, e sua honra também se perderá. Resta-lhe a seguinte alternativa: ou aceita o suposto adultério da mulher, e a infâmia para si, ou mata-a, e assim recupera a honra, até mesmo a aumenta, porque se limpou da indignidade. É esta a sua escolha, difícil, trágica. Numa ação dessas não conta a verdade, a intenção — apenas o aspecto público, fama ou infâmia. O que importa não é o que sou, é o que pareço ser. Por sinal esse é um dos traços marcantes do barroco; uma frase famosa do século XVII é que, para um homem parecer honesto, convém ser honesto. As aparências não bastam, mas sem elas de nada vale a verdade íntima.
Por que essa paixão depois feneceu, ou melhor — dado que veremos como ainda funciona, clandestina, na psique contemporânea —, por que ela hoje é encoberta, mal confessa? Em primeiro lugar, porque a sociedade que lhe deu origem foi morrendo, a partir da Revolução Francesa. Seu apogeu foi durante o Antigo Regime, nos séculos XVII e XVIII. É o tempo em que os reis fortalecem o seu poder; Richelieu, ministro forte de um rei fraco, Luís XIII, nos anos 1630 arrasa os castelos fortes que serviam à alta nobreza da França de bases militares para contestar o poder da coroa; Luís XIV, depois de longa menoridade na qual conheceu a humilhação frente ao povo de Paris e aos grandes do reino (somados na rebelião da Fronda), começa a exercer o poder diretamente em 1660 — e o Rei-Sol, como logo se fará conhecer, substitui a repressão de Richelieu pela sedução. É o que vemos num magnífico filme de Rossellini, A tomada do poder por Luís XIV: o rei concentra a alta nobreza à sua volta, reparte parcimoniosamente sorrisos e palavras entre esses novos e graúdos espectadores — faz, em suma, da realeza e da monarquia um espetáculo.
Raras vezes a pompa foi tão teatral; pois, entre os duques de Borgonha, que deram início à etiqueta moderna, e os reis de Espanha, que a herdaram, a vida de corte e a própria etiqueta inspiravam-se no ritual religioso, na missa. Assim, na corte borguinhã, os padeiros e copeiros tinham precedência sobre os demais servidores porque traziam o pão e o vinho — que, sabemos, no ofício divino se transformam em corpo e sangue de Cristo. Com Luís, porém, novo e vital fator vai intervir na etiqueta, dando à vida de corte um prazer antes pouco visto: é o jogo de sedução das artes cênicas. À volta do rei, na França, a vida se teatraliza. Mas essa teatralização não aparece como uma falsificação da vida — porque é na corte que mais se vive a vaidade, a importância das aparências, que na verdade marca a própria condição humana. É por isso que nasce na corte a psicologia, ou, pelo menos, uma psicologia: a do homem vão, ser passional, isto é, cuja conduta não se rege pela razão, ou pela moral, ou ainda pela fé — porém por suas emoções, pelas ilusões que o dominam. A corte é microcosmo da sociedade, ou, melhor dizendo, é laboratório de psicologia: nela, as condições que dominam a vida social melhor se desenvolvem. Sabemos que a psicologia que então se aprimora tem duas origens: uma, na Retórica de Aristóteles, que esmiuça as paixões que tornam os homens mais ou menos receptivos a aceitar e acolher um discurso, independentemente de ser este verdadeiro ou não (o que só incumbiria à Lógica questionar); outra, na corte da época. É este o contraste, podemos dizer, entre os Caracteres de Teofrasto — discípulo de Aristóteles que investigou os tipos morais numa Atenas ainda marcada pela tradição republicana e que portanto possuía como lugar principal de encontro público a praça, a ágora — e os Caracteres de La Bruyère, seu tradutor e comentador, que se voltam sobretudo para a conduta nobre e cortesã, embora sem descurar a cidade.[3] Em suma, nos tempos modernos, que hoje se tornaram Antigo Regime, a vida é espetáculo — é teatro, é sonho —, e a corte é a produção consciente, deliberada, in vitro poderíamos dizer, dessa espetacularidade.
Luís XIV gosta de dançar; uma das cenas sublimes em sua corte é quando el-rei dança, sozinho, para a nobreza vê-lo. Seu sucessor, Luís XV, é famoso pela destreza com que cortava os ovos quentes, de uma só colherada, na refeição matinal; vinha a burguesia de Paris vê-lo aos domingos. Já Luís XVI, no dizer da camareira de sua rainha, Mme. Campan, perdeu o trono e a vida por não saberem, ele e Maria Antonieta, dar a devida importância à etiqueta: a esse conjunto de regras cujo sentido político está em intimidar, pelo fascínio, os possíveis rebeldes.[4]
A sociedade da honra e da etiqueta é a que se costuma chamar de transição do feudalismo ao capitalismo. Costuma-se discutir a natureza específica dessa sociedade,[5] mas parece-me que a melhor leitura é ainda a de Engels: o absolutismo (em política), como o mercantilismo (em economia), marca o ponto em que a aristocracia feudal já perdeu a hegemonia e a burguesia ainda não a alcançou — o poder aparentemente absoluto do rei é, simplesmente, o fiel da balança nesse conflito. Ora, no plano dos comportamentos, esse período, que politicamente é o da contenção da velha nobreza guerreira, caracteriza-se por um abrandamento da antiga violência e pela imposição de padrões civis de conduta, incluindo o amor familiar e o processo de civilização de costumes, que Norbert Elias estudou tão bem.[6]
Nisso a cavalaria desempenha, também, um papel. A sua existência pode ser considerada mais mítica do que real. Veja–se o filme Excalibur, cuja ação se passa por volta do século VI, mas com armaduras e armamentos já do fim da Idade Média; o que não é um erro do diretor, mas, ao contrário, perfeita compreensão por ele da natureza do que conta: o filme, como o livro de Sir Thomas Malory em que se baseia, Le morte d’Arthur (1485), é um mito proposto ao passado. Desde o ano 1000 existe a ênfase na cavalaria; certas ordens de cavaleiros, como os Templários e os Hospitalários, são instituídas para defender a posse cristã da Terra Santa; outras, como a inglesa da Jarreteira, a borguinhã do Tosão de Ouro, acabam assumindo o sentido mais de condecorações do que de efetivas ordens. Uma ordem é instituição religiosa cujos membros fazem profissão de defender valores elevados — os da fé, ou do respeito à mulher, ao velho, ao órfão, ao sacerdote (que é varão desarmado). Mas a ordem por excelência, que sintetiza todas as outras, é a própria cavalaria, como tal. E a Igreja orienta a nobreza para ela, querendo conter ou canalizar sua violência; fixa prazos durante os quais é proibida a guerra entre os barões, certos dias da semana, certos meses do ano; dirige o espírito bélico contra os inimigos da fé cristã oficial, sejam estes os muçulmanos do Oriente ou do Mediterrâneo, os pagãos da Europa Oriental ou ainda os hereges cristãos do sul da França. Um dos procedimentos para diminuir a violência é festejá-la no torneio: faz-se uma mímica de guerra, com armas que não matam, porém com lucros (o vencedor apropria-se da armadura e cavalo do derrotado) e renome para o vitorioso. A difusão das (boas) maneiras na Europa deve muito à presença da mulher, tanto na contenção dos excessos masculinos quanto na aquisição de uma arte de agradar. Manuais e poemas mandam não escarrar, não comer com as mãos, não beber direto da sopeira — não por considerações higiênicas, mas por respeito ao outro, mais ainda para agradar ao outro, especialmente à mulher. É este um ponto que merece ser desenvolvido: como vão mudando as atitudes em relação à mulher, mudando as formas de namoro e cortejo? A etiqueta, os padrões de conduta, os manuais constituem repertórios de frases estilizadas para eu expressar meus sentimentos: luto, dor, alegria obedecem a esse ABC, a esse dicionário. Evitemos, porém, supor que tais formas traduzam alguma frieza ou formalismo da sociedade em questão; é justamente porque as paixões eram muito fortes que os homens convencionaram regras para não se ofenderem uns aos outros.
Essa sociedade que assim aprende a se comportar, por que não a ver como sugere La Bruyère, contemporâneo do Rei-Sol: “Nós, que somos hoje tão modernos, seremos antigos dentro de poucos séculos. Então se ouvirá falar da capital de um grande reino na qual não havia nem praças públicas, nem banhos, nem fontes, nem anfiteatros, nem galerias, nem pórticos, nem passeios e que no entanto era uma cidade maravilhosa. Sem espanto se dirá que, em plena paz e reinando a tranquilidade pública, os cidadãos entravam nos templos, visitavam as mulheres e amigos portando armas ofensivas, e que não havia praticamente ninguém que não tivesse a seu lado algo com que pudesse matar, de um só golpe, outra pessoa. Tenhamos então pelos livros dos antigos esta mesma indulgência que esperamos alcançar da posteridade, persuadidos de que os homens não possuem usos nem costumes que valham para todos os séculos e de que estes mudam com os tempos”; devemos ler aquela sociedade como ele propõe ler os antigos, ou os costumes dos “siameses, chineses, negros ou abissínios”.[7] Será pois um erro entender a sociedade da honra apenas segundo o lucro ou o dinheiro — que, obviamente, tinham importância na época, e grande, porém menor do que hoje em dia. Nos Três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, Athos concorda que pode-se jogar com qualquer um, porque está em jogo apenas o dinheiro, riqueza ou miséria; mas duelar só se faz entre iguais, porque então se põe em xeque a vida ou a honra.
A glória, ou melhor, essa honra é uma “bagatela”, como dirá Hobbes, incluindo-a entre as causas que levam os homens a se matarem uns aos outros; talvez nos matemos até mais por essas ninharias do que pelas riquezas.[8] É algo irreal, que só existe na opinião dos outros. E aqui chegamos à segunda razão para hoje se desconhecer a honra como paixão importante. É que, nos séculos XVII e XVIII, ela serviu de principal eixo para uma psicologia que insistia em como os homens vivem de opiniões, de aparências; como é importante que gostem de mim, que me amem pelo que pareço ser; o que constitui um jogo de aparências: eu pareço tal coisa à fulana, que parece me amar etc. Todo esse engate de intangíveis possuía grande eficácia. Porém, também, grande fragilidade: o que é nuvem se desmancha; as relações humanas são de vento, como as palavras, de nuvens, como as aparências, d’água, como emoções. Daí vem que essa “psicologia” seja muito mais técnica do que as ciências modernas que tomaram a sua inspiração, entre as quais a psicanálise: ela desenvolvia uma prática muito minuciosa de como lidar com o fracasso. O cortesão repelido “acreditará que tudo foi um sonho”, aconselha o duque de Nivernais; o que isso quer dizer? Que, na verdade, a vida de corte é sonho, irreal; mais ainda: que a própria vida é sonho, como diz Calderón de la Barca, isto é, que é sonho o convívio entre os homens, a sua vida social. Sabemos que a vida é um sonho, o qual precisamos sonhar; sonhamos (nos apaixonamos, nos apegamos), mas sabendo que isso é sonho, tendo, portanto, uma certa noção de que podemos nos distanciar dos nossos objetos oníricos.
E com isso, aprendendo a lidar com o fracasso, ficamos capacitados a técnicas que, no quotidiano, montarão os nossos prazeres. É o que faz o duque de Richelieu, libertino e cortesão do século XVIII, que em suas Memórias conta um caso amoroso seu com duas burguesas, amigas e vizinhas. Quando elas souberam que ele as traía, uma com a outra, indignaram–se; choraram; mas o duque, num discurso brilhante, sedutor, persuadiu-as de que era melhor cada uma perder um pouquinho (a exclusividade) do que perderem, os três, muito; e elas aceitaram dividir o seu amor. Há um nítido contraste entre esse estilo de vida e o approach que deveríamos chamar psicanalítico ou ainda, mais amplamente, terapêutico: este, que em nossos dias se tornou dominante, possivelmente indagaria a etiologia da conduta libertina, mostrando em que falhas psíquicas ela se assenta, tentando curá-la. Já o técnico dos prazeres, o prático da frivolidade, o cultor da vida doce não tem o que mudar: pois sua vida o contenta. As experiências más de vida, que tendemos a viver como frutos de uma precária saúde mental, requerendo portanto uma investigação da ou das chagas que nos magoaram, o Antigo Regime vivia-as em termos de infortúnios: ou seja, considerava que uma parte bastante grande de nossa vida era regulada pela fortuna, a sorte, o acaso — uma parte, pelo menos, maior do que hoje aceitamos, nós de um mundo social em que a ideia de responsabilidade ampliou, enormemente, o que na vida supomos depender de nós.
Pois um dos traços marcantes da história ocidental, desde a Renascença, é, justamente, o avanço da responsabilidade em detrimento da fortuna. Isso vemos desde Maquiavel, valorizando, no Príncipe, o que chama de virtù: esta nada tem em comum com a virtude moral — ela é o que faz do homem um varão (lat. vir), é portanto a sua capacidade de lidar com o mundo como autor de seu próprio destino. Pela virtù o homem faz-se sujeito e, ao mundo, torna-se objeto de sua ação. Maquiavel entende que parte de nossa ação depende de nós (mediante a virtù), outra parte não, estando governada pela fortuna; e o melhor exemplo dos limites de nossa consciência e vontade ele dá na figura de César Bórgia, por sinal o modelo que escolheu para o seu Príncipe: o filho do papa Alexandre VI tudo fez, ao alcance de um homem, para moldar o seu futuro; e, no entanto, à morte do pai, uma soma de fatores imprevisíveis, fortuitos, levou-o à completa derrota. No Príncipe, que é um apelo à virtù, quase um manual para saber o homem agir graças a ela, está presente esse momento mori, esse recorda-te de que és apenas um homem e por isso hás de morrer, não apenas ao termo de tua vida, porém ao termo de tuas ações; estas são penetradas pela morte, malogro, infortúnio. Ainda assim, porém, o fato de governar a virtù, as nossas ações, em proporção comparável à que tem a fortuna, representa no tempo de Maquiavel uma importante ruptura com o pensamento medieval e um notável início para o movimento que haveria de conduzir as nossas ações a se pautarem pela consciência e planejamento, a nossa personalidade a pautar-se por uma liberdade racional e uma consequente responsabilidade. Devemos ter sempre em mente que a sociedade do Antigo Regime não levou essas pressuposições tão longe; que ela continua a reger-se, e muito, pela fortuna: é o que faz o homem duelar com seu melhor amigo, o coração partido, porém a consciência segura; ao passo que a evolução da sociedade burguesa desenvolverá a ideia de que cada um de nós, em grau maior ou menor, é artífice de seu destino. A fortuna permitia-me aceitar as desigualdades sociais, como fruto de estranha loteria, cujos desígnios não podiam ser decifrados, e ademais pouco importava decifrá-los; o avanço da virtù e da razão faz-me indagar por que há desigualdades, e subordiná-las a algum mérito (que pode ser o do mercado, mecanismo racional de alocação de recursos). Nossa sociedade tenta, há séculos, reduzir o acaso e a morte. É dessa maneira que ela retoma o mito prometeico. Já o Antigo Regime, se joga tanto, se duela, é porque aceita quase sem restrições a fortuna.
A ampliação da responsabilidade se vincula a outro traço notável dos tempos recentes: nossa sociedade privilegia a intimidade, como tão bem mostrou Richard Sennett,[9] ao passo que o Antigo Regime aceitava que vivêssemos em meio a semblantes, a máscaras, a personae — aliás, é talvez dessa grande mascarada que Hobbes tira a sua ideia do Estado, do Leviatã como máscara.[10] Antes da Revolução Francesa, não havia muita diferença entre a vida pública e a vida cênica: o social, o político, concebiam-se partindo de máscaras, de imagens, de representações, que os próprios atores podiam sabê-las mais ou menos falsas; porém que importância tinha a falsidade? Não é que a vida pública fosse mentira; é, simplesmente, que seria pequena a distância entre ela e a ficção. Raras vezes nos damos ao trabalho de pensar que a distinção entre ficção e realidade pode ser menos óbvia do que hoje parece — e que a interpenetração de ambas, em vez de tornar a vida mentirosa, poderia torná-la encantada, encantadora: arte. É depois de ruir o Antigo Regime que um pensamento moral vai censurá-lo, fazendo da frivolidade mentira. E, se temos dificuldade em refletir segundo outros modos, é porque estamos imersos neste pensamento moral, que destaca as virtudes da intimidade, concebida, sentida como fonte da verdade; basta pensarmos na força, hoje, das propostas ecológicas, feministas, minoritárias — é como se tudo o que é público, político, padecesse por definição dos vícios da mentira e da falsidade, e fosse preciso depurá-lo, regenerá-lo, trazer-lhe energia do único lugar em que esta nasce: o espaço íntimo. Na intimidade está o que é verdadeiro, o que há de redimir um social mal organizado e que causa infelicidade. Esta perspectiva torna porém incompreensível o Antigo Regime e, o que é pior, torna inaceitável a existência, como paixão da honra; esta não pode sequer ser percebida, ou reconhecida.
Mas com isso algo se perde. No Antigo Regime, menos se buscava a felicidade que os prazeres. Rousseau faz, com muita veemência, o elogio da felicidade enquanto condena os prazeres: “as épocas dos mais doces gozos e dos prazeres mais vivos não são as que me despertam maior saudade. Esses curtos momentos de delírio e paixão, por vivos que sejam, não passam porém (devido a sua própria vivacidade) de pontos bem esparsos na linha da vida. São raros demais, demasiado fugazes, para constituírem um estado, e a felicidade por que meu coração anseia não se compõe de instantes fugidios — é um estado simples e permanente, que nada tem de vivaz em si mesmo, mas cujo encanto vai crescendo com a duração até nele se encontrar, finalmente, a suprema felicidade”.[11] Tal felicidade é a recusa dos prazeres e das técnicas antes estudadas para obtê-los. A felicidade vai exigir, a partir de então, uma ruptura com os planos externos, com as regras sociais — uma exaltação da intimidade. As regras assim perdem sentido; foi o que aconteceu, por exemplo, com a etiqueta, hoje mero pastiche, de baixa e degradada eficácia.
Mas assim não perdemos apenas a compreensão de um tempo passado; obscurecemos, também, o entendimento do nosso. A honra, ou glória, continua funcionando nesses seres passionais que somos nós. Não mais define especificamente as classes dominantes, os cortesãos; nem apenas a sociedade machista do Mediterrâneo, ou de qualquer cultura na qual a defesa da própria honra seja critério supremo, a tornar precárias as relações sociais, vacilantes as leis, a submeter o destino e o percurso da vida à deusa Fortuna. A honra ou a glória, onde ainda se salientam é nas profissões cuja remuneração é menor em dinheiro, ou poder, do que em fama: nas que têm por traço marcante a relação com um público. Talvez seja este o caso dos artistas — especialmente os de música popular, cinema e televisão, que mais de perto recebem o retorno da fama —, dos intelectuais, dos jornalistas. E não será nessas profissões que visam à glória que hoje se refugia um dos sonhos de uma sociedade? Não é nelas, que lidam com o público, que mais perdura a dimensão pública, coletiva, hoje tão desvalorizada pela intimidade? E não é significativo que, enquanto se prega o “fim das ideologias”, como se fazia nos anos 60, ou se informatiza o social, isto é, quando se enuncia ou efetua um triunfo das racionalidades, fique a fantasia a cargo dos que trabalham, justamente, com fantasias? Talvez o coletivo, o social, tenha mesmo a ver com a ficção.
Notas
[1] Human Nature: or the Fundamental Elements of Policy, cap. 8, § 8; in R. S. Peters (org.), Body, Man and Citizen, Nova York e Londres, 1967, p. 214.
[2] É possível distinguir a glória, por um lado, que (na definição de Hobbes, por exemplo) é “uma exultação da mente… fundada na experiência que um homem tem de suas próprias ações passadas” da honra, reputação, fama e mesmo vanglória, que, todas, prendem-se em maior ou menor grau à opinião dos outros a respeito do mérito de alguém e portanto, em princípio, podem estar erradas. O que falarei aplica-se, portanto, mais a estas últimas do que à glória propriamente dita.
[3] A cidade “usualmente macaqueia a corte”, diz La Bruyère (Les Caractères, cap. “Da Cidade”, § 15). Cf. essa obra; o seu Discours sur Théophraste, que precede a tradução que fez dos Caractères de Teofrasto; e, para esta última obra, consulte-se a excelente tradução de Daisi Malhadas e Haganuch Sarian, Teofrasto: os caracteres (edição bilíngue), Faculdade de Filosofia da USP, 1978.
[4] Além do sentido político, a etiqueta teve um sentido mais amplo, civilizatório, poderíamos dizer, que consistiu na formação de novas maneiras de convívio e vida social. Estes assuntos desenvolvi em A Etiqueta no Antigo Regime, São Paulo, Brasiliense, 1983 (2a edição, 1987).
[5] O que fizeram Paul Sweezy e outros na famosa discussão dos anos 50 sobre a transição do feudalismo ao capitalismo; veja-se também, a respeito, Maurice Dobb, A evolução do capitalismo, e Perry Anderson, Lineages of the Absolutist State.
[6] Ver, de Philippe Ariès, História social da família e da criança; Norbert Elias, várias obras, traduzidas sob diferentes títulos em francês e inglês, em especial La civilisation des moeurs e La société de cour; finalmente, de J. Huizinga, O declínio da Idade Média, EDUSP e Verbo.
[7] La Bruyère, “Discours sur Théophraste”, in Caractères, Paris, Garnier–Flammarion, 1965, pp. 34-5.
[8] As principais referências a Hobbes são: Leviathan, caps. 6 e 13; Behemoth, como um todo. Essas questões abordei em Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo, São Paulo, Brasiliense, 1984, caps. 2 e 7.
[9] The Fall of Public Man, obra que está sendo traduzida para o português (Companhia das Letras). A respeito, ver Gérard Lebrun, Passeios ao léu, São Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 255-62.
[10] Leviathan, caps. 16 e 17.
[11] Rêveries du promeneur solitaire, 5e promenade. Existe tradução brasileira: Devaneios do caminhante solitário, Hucitec e Editora da Universidade de Brasília.