A mulher e a lei
por Maria Rita Kehl
Resumo
A tradicional interdição da sexualidade feminina, além dos motivos práticos de controle de linhagem dos herdeiros, funda-se no temor inconsciente à mãe devoradora. Mitos antigos já vinham dizendo que a sexualidade feminina livre de freios poderia ser muito perigosa.
É a lei da sexualidade, e não a lei contra o incesto, que é capaz de submeter a sexualidade feminina. A lei que enquadra a mulher em seu papel materno-passivo-infantil e faz dela a mais ferrenha defensora das piores restrições do superego, instância que representa psiquicamente as exigências e limitações do real.
Considerada por Freud, a menos de um século atrás, um ser pouco confiável no sentido de algum compromisso ético e pela psicanálise pouco ético por causa de uma falha na formação do superego, a mulher de hoje, de uma maneira mais pesada que o homem, se responsabiliza pelas consequências de seu desejo.
Que a mulher tenha se tornado no século XX capaz de amar e trabalhar – amar de acordo com suas escolhas sexuais – foi uma reviravolta que não alterou apenas os costumes mas até mesmo os sintomas e as insígnias da feminilidade.
As posições se inverteram: a mulher, nova rica do mundo da cultura (Cioran) é mais realista que o rei em relação às leis, suas responsabilidades e interdições.
Não vemos, efetivamente, que necessidade haveria de se proibir o que ninguém deseja realizar. Aquilo que se acha severamente proibido tem que ser objeto de um desejo.
Freud, Totem e tabu
Quando se fala em lei, na psicanálise, trata-se da lei que interdita o incesto. Essa é a proibição que funda as civilizações, na concepção freudiana. Interdição do incesto: obstáculo a que a pulsão esgote seu movimento de retorno à forma original de satisfação, que realize a eterna tendência de volta às origens, a qual, uma vez impedida, impulsiona a psique humana em busca das mais diversas formas substitutivas de satisfação até encontrar seu destino na morte. Entre a interdição inicial e a satisfação final, o universo humano foi — e segue sendo — criado.
O que o tabu do incesto impõe à pulsão não é uma renúncia completa: é um rodeio na busca de sua satisfação, ao mesmo tempo que uma parcialização dos modos dessa satisfação. Se o objeto total a que aspira a pulsão é interditado, abre-se a possibilidade, exclusivamente humana, de criar seus objetos e diversificar seu gozo. A lei é então necessária — talvez não suficiente, é o que veremos — para fundar uma ética. Ao impor um rodeio à satisfação da pulsão, a lei exige um duplo compromisso: com a interdição de um modo de satisfação, digamos, mais imediato, e com a busca de alguma ou algumas possibilidades substitutivas. A lei exige um trabalho de Eros contra as tendências conservadoras da Pulsão de Morte. O sujeito que se organiza segundo esta lei é o sujeito de um desejo; responsável por sustentá-lo ao longo da vida e também por procurar realizações parciais possíveis para ele. Por esse caminho, poderíamos pensar que toda ação e realização humanas são fruto de soluções de compromisso.
A concepção ética que se funda nas premissas freudianas não difere muito de uma concepção clássica, aristotélica. Para Aristóteles (certamente o autor mais citado ao longo deste seminário), a ética é o compromisso do homem com o bem supremo, que para os gregos seria, sem sombra de dúvida, a felicidade. E mais: felicidade no sentido de uma vida feliz, o que não é dito de graça aqui — há uma valorização também do prolongamento da vida até sua potencialidade máxima, o que implica a busca de uma felicidade tal que não se realize contra o corpo (e que, por isso mesmo, não dependa só do corpo). Além disso, para os gregos a concepção de sujeito (feliz) era indissociável da ideia do ser político, o cidadão da pólis. Acrescenta-se assim uma exigência a mais: “É mais perfeito o bem da pólis do que o do indivíduo”, o que nos indica que não é na tirania nem no isolamento que se encontra o “bem supremo”. A ética seria assim um conjunto mínimo de preceitos que tentam conciliar o bem individual com o coletivo.
O percurso de Aristóteles para a busca da felicidade passa pela questão dos prazeres. Ele privilegia os prazeres do espírito aos do corpo, em função da maior limitação dos prazeres corporais e de seu parentesco com os prazeres animais. Aristóteles não prega (como mais tarde os cristãos) a abolição dos prazeres corporais ou sua condenação como um mal em si, mas a sua superação pelas atividades do espírito, até a “afirmação do divino no homem”. “A atividade perfeita consiste na atividade do pensamento”, afirma, depois de examinar o parentesco dos prazeres corporais com os vícios e ignorando, com uma ingenuidade que só foi possível há 2300 anos, que as atividades do pensamento também portam vícios e são capazes de conduzir às mais sofisticadas manifestações do mal. Aristóteles fala da contemplação, da reflexão, da criação — prazeres do espírito aos quais Freud veio a chamar sublimação — como exemplos dos recursos à disposição do homem para recuperar no plano simbólico a onipotência perdida no plano das pulsões e do narcisismo (termos a que Aristóteles obviamente não se refere). A “afirmação do divino no homem” seria então o caminho mais perfeito para uma vida feliz.
Freud não se afasta de Aristóteles ao pensar a questão do bem e do mal, da felicidade e dos prazeres possíveis dentro dos compromissos impostos pela civilização. E, em 1929-30, no seu já clássico O mal-estar na civilização, Freud reafirma que o sentido da vida é a busca dos prazeres: “Quem fixa os objetivos da vida é simplesmente o Princípio do Prazer, que rege as operações do aparelho psíquico desde a sua origem”. Mas como o Princípio do Prazer não reconhece limites, adiamentos e muito menos o outro, não se pode identificar suas demandas com os objetivos de uma “vida feliz”. A civilização surge da necessidade de se impor restrições à sofreguidão do Princípio do Prazer, no mínimo para que ele não destrua ou danifique seus próprios objetos e alguma felicidade seja possível ao longo de uma vida. A subjugação dos poderes individuais da força bruta pelo poder coletivo, simbolizado na forma da lei, é um passo importante na construção das civilizações. É a lei que exige dos sujeitos uma certa renúncia, por exemplo, à posse sexual que desconhece os limites do outro, às rivalidades sem trégua, à satisfação imediata das pulsões agressivas etc. Desde 1920, em Além do Princípio do Prazer, Freud vinha advertindo que, se o Princípio do Prazer dominasse sem restrições o funcionamento psíquico, nos conduziria rapidamente à morte, ao repouso sem tensões, e não à felicidade.
Como compensação pelas renúncias exigidas pelo pacto civilizatório, Freud anuncia os prazeres sublimados, mas adverte: “A orientação estética da finalidade vital (sexual) da pulsão nos protege escassamente contra os sofrimentos, embora possa nos indenizar pelos pesares sofridos”. Para além da sublimação, Freud afirma nesse texto a importância da diversificação dos investimentos libidinais para possibilitar-nos um pouco de prazer, e questiona: de que adianta simplesmente se garantir o prolongamento da vida se isso se der à custa do prazer? O que a civilização nos oferece — uma longa vida miserável? Como se Freud cobrasse da civilização, europeia pelo menos, a retomada de seu duplo compromisso ético: com a preservação da vida em sociedade e com os prazeres.
Nesse texto, como em vários outros (volto a ele), Freud descreve a mulher como a grande solapadora do pacto civilizatório e, ao mesmo tempo, como a grande defensora dos prazeres — principalmente dos prazeres do amor. A mulher, para Freud, é um ser muito pouco confiável no sentido de algum compromisso ético. Aliás, o grande mito freudiano que tenta explicar a origem da lei da interdição do incesto, em Totem e tabu, de 1913, apresenta a mulher como objeto da disputa que motiva o pacto civilizatório, e não como sujeito corresponsável por esse pacto. A substituição do pai tirânico, onipotente, detentor de todas as mulheres — assassinado pela força coletiva dos filhos — pelo pai simbolizado em forma de tabu se dá para garantir que a posse de alguma mulher para cada um dos membros da horda não se desse à custa de novos assassinatos. A clássica fórmula freudiana da resolução do complexo de Édipo do menino teria surgido da substituição do pai tirânico pela lei do pai: “Você pode ter tudo o que o pai tem, menos a sua mulher”.
A lei contra o incesto representa um avanço contra a ordem do pai onipotente: tenta garantir a cada um dos filhos o direito à vida e a algum prazer. Ao mesmo tempo, se ela presentifica simbolicamente o pai, eterniza também o seu assassinato, o que significa que toda lei está sujeita não só à transgressão como também a cair, se não cumprir minimamente seu compromisso com o Princípio do Prazer. Onde a lei do pai é imposta pela força bruta, os filhos não são sujeitos — são submetidos. Não existe ética ou pacto, existe submissão ao mais forte. A simbolização da lei na forma de interdição do incesto (a proibição do acesso à “mulher do pai”) vem mostrar novamente que o sujeito de um compromisso ético é o sujeito de um desejo (recalcado) — o desejo pela mulher-tabu. A mulher, nesse mito, não tem o lugar do sujeito. É o objeto do desejo, o objeto-tabu e o objeto tornado acessível pela nova lei. Não é responsável pelo pacto civilizatório. O que nos leva a pensar em que mulher Freud tinha em mente ao construir seu mito.
A casa de bonecas
Para entender a mulher-paradigma do pensamento freudiano, tomo emprestada uma peça de Ibsen muito conhecida, escrita em 1879, que mostra uma personagem em transição de uma posição tradicional para uma posição, digamos, moderna. A Nora da Casa de bonecas é uma dona de casa obediente ao marido, infantil, encantadora, deliciosa — deliciosa porque infantil —, apelidada pelo marido amoroso com uma série de nomezinhos também infantis: cotovia, esquilinho, ave canora. O que nos encanta em Nora é que, apesar de sua completa ignorância sobre as coisas do mundo, ela exibe um imenso desejo de ser feliz. Mas o que é ser feliz, no caso dela? Ibsen nos descreve aqui os signos da felicidade doméstica; para Nora, a felicidade consiste no aconchego, na paz, na companhia dos filhos, na “ausência de preocupações”, no amor familiar. Familiar. O lar e a intimidade são os dons que a mulher oferece ao homem, junto com o convite a uma retirada do mundo que é tão sedutora quanto a morte.
No começo da peça ficamos sabendo que essa doce criatura cometeu um crime: falsificou assinaturas do pai, gravemente doente, para conseguir de um agiota empréstimo de dinheiro para levar o marido, também doente, a uma viagem de cura. O objetivo do crime era poupar dois seres amados de preocupações — o pai, que deveria morrer em paz sem saber dos apuros da filha, e o marido, que deveria ignorar a gravidade de sua doença. Morto o pai, curado Helmer, o agiota descobre a falsificação e vem ameaçar Nora de chantagem. Nessa cena ela mostra que seus compromissos se limitam àqueles que ama. Não tem o menor interesse pelo código que rege a vida em sociedade. Quando o agiota argumenta que poderia ter sido prejudicado, Nora responde: “Mas que me importa a mim o senhor!”. Em outra cena, quando o marido lhe diz que se não puder pagar alguns empréstimos vai prejudicar os credores, também objeta: “Essas pessoas… quem pensa nelas? São estranhos!”. Ao que Helmer, enternecido (ainda sem saber do “crime”), responde que ela não deve ocupar a cabecinha com problemas desse tipo.
Quando o agiota ameaça Nora com o código penal ela se defende alegando seus nobres motivos. O agiota: “As leis não se preocupam com motivos”. E Nora: “Nesse caso, são leis bastante ruins” — o que nos faz pensar na observação freudiana de que o superego da mulher seria “pessoal demais”. Ao alegar nobres motivos, Nora está afirmando que os fins justificam os meios — princípio do arbítrio e da tirania ao qual não hesitamos em aderir quando os fins nos parecem bons, ou justos, mas sob que critérios? É justamente onde se instalam os critérios “pessoais demais”, insuficientes mas inevitáveis, do superego de cada um.
Helmer, marido de Nora, é um homem “da lei” — advogado — e do dinheiro — um importante diretor de banco. Apaixonado por Nora, sempre desejoso dela, sacrifica imediatamente seu amor ao descobrir o crime cometido pela esposa. A ele também não importam seus nobres motivos. Pensa que ela não tem nenhum senso moral, e argumenta: “Suportaria tudo por você, preocupações, sacrifícios, privações… mas não existe ninguém que sacrifique sua honra pelo ente que ama”. Ao que Nora responde: “Milhares de mulheres têm feito isso”. “Você pensa como uma criança insensata”, diz Helmer. “Não entende nada da sociedade da qual faz parte.” Nora: “Você, porém, não pensa nem fala como o homem a quem possa me unir por companheira”.
Durante todo o drama, Nora diz a uma amiga que ainda espera “um milagre” salvador: o milagre do amor e do perdão de Helmer. Que ele assuma publicamente a desonra, protegendo a esposa que um dia o protegeu. Mas o amor e o perdão só chegam quando o chantagista retira a ameaça de tornar público o caso. Nesse momento Helmer volta imediatamente a amar a esposa, tentando devolvê-la à inocência perdida. Nora, no entanto, está decepcionada. Já sabe que o amor do marido está condicionado ao cumprimento da lei. Ela esperava que o amor o levasse para fora do jugo da lei — como havia levado a ela mesma.
Deixo o fim da peça para depois. O que chama a atenção nas diferenças entre Nora e Helmer é que eles parecem representar duas éticas diferentes ou, mais, dois aspectos complementares de uma ética. Enquanto Nora parece comprometida com o amor e a felicidade daqueles que ama, Helmer tem como prioridade os compromissos com o “contrato social”. Uma ética do espaço privado — tipicamente feminina — contraposta a uma ética do espaço público, masculina. Ou, dito de outra forma, a partir das “soluções de compromisso” entre as instâncias psíquicas e suas diferentes demandas: uma ética que prioriza o prazer contra uma outra que procura antes de tudo evitar o desprazer. Vale pensar, seguindo a trilha de Freud em O mal-estar na civilização, que o crescente apartamento entre os interesses do indivíduo e os da coletividade, entre aquilo que representa a felicidade individual e o que se considera o bem comum, torna cada vez mais difícil, se não impossível, a formulação de parâmetros éticos que atendam à dupla determinação aristotélica — a realização de “vidas felizes” e o exercício da cidadania. A ética feminina e a masculina.
O superego e a lei
Estou falando livremente de uma ética feminina sem ignorar que a psicanálise considera as mulheres como seres muito pouco éticos a partir de uma falha na formação do superego feminino. A questão é simples. O superego é o herdeiro do complexo de Édipo. Instância que se forma a partir de um duplo movimento psíquico: a renúncia às pretensões eróticas do amor edípico e o retorno de uma parte da libido sobre o próprio eu, na forma das identificações paterno e materna, e da formação dos ideais. Representa ao mesmo tempo um substituto para as pretensões do amor edípico e uma formação reativa contra ele: “Criando uma expressão duradoura da influência dos pais, [o superego] eterniza a existência daqueles momentos a que deve sua origem”, escreve Freud em O ego e o id.
Ora, sabemos que o que força o menino a fazer tais renúncias e reorientar de tal maneira os direcionamentos libidinais é o complexo de castração que se cristaliza justamente quando ele descobre a falha no sexo da mulher. É pelo complexo de castração que o menino sai do Édipo; mas é pelo mesmo complexo que a menina entra nele, reorientando seu amor da mãe castrada para o pai fálico. Se ela já entra no Édipo (isto é, no segundo movimento edípico, de amor pelo pai) ao se constatar castrada como a mãe, que ameaça pode empurrá-la a sair? Como forçar a renunciar a um amor quem já entrou nele com o ímpeto dos que não têm nada a perder?
Antes de concluirmos depressa demais sobre a imperfeição moral da mulher, vale a pena investigar a relação entre o superego e a construção de uma ética individual. Quando Freud afirma que o superego “eterniza a existência dos momentos (de amor edípico pela mãe e pelo pai) a que deve sua origem”, o que isso quer dizer? Que o superego eterniza, em sua relação com o ego, a elevadíssima exigência de perfeição narcísica que a criança imagina ser a condição para obter o amor incondicional dos pais; e que ele perpetua também a elevada exigência de prazer dos impulsos mais poderosos do id, dos quais se torna uma espécie de para-raios desde a tal renúncia exigida a partir da ameaça de castração. São exigências elevadas e também contraditórias, que o ego não pode cumprir por mais renúncias que faça; pois quanto mais renuncia aos prazeres para corresponder aos ideais, mais enfurece o id em sua demanda de gozo, que mais energia envia ao superego para que castigue o pobre ego, oferecendo ao id o consolo de um gozo sádico e nunca suficiente.
Como pode ser esta uma instância ética? “Com a severidade de seus preceitos e proibições”, escreve Freud em O mal‑estar na civilização, [o superego] “se despreocupa demasiado da felicidade do ego, pois não leva em conta nem as dificuldades para o cumprimento daqueles, nem a premência da energia pulsional do id, nem as dificuldades do mundo real” — a tal ponto que muitas vezes os psicanalistas têm a ingrata tarefa de comprar uma briga contra o superego dos analisandos.
Ora, se o superego joga o sujeito numa relação sadomasoquista consigo mesmo, gerando no limite desse impasse os chamados “delinquentes por sentimentos de culpa”; se não está comprometido com a felicidade do ego e sim com um padrão de perfeição correspondente ao narcisismo infantil; se promove uma repetição das exigências mais infantis pela vida afora, como se pode pensar nele como premissa para a fundação de uma ética? E, no entanto, assim é: condição necessária, mas não suficiente. O superego, apesar de tudo, é a instância que representa psiquicamente as exigências e limitações do real — e o real nesse caso pode ser visto como os limites impostos pela existência do Outro. Se não se pode conceber uma ética diretamente a partir das determinações do superego, também é certo que não se pode conceber qualquer tipo de pacto civilizatório que funcione minimamente sem ele. O superego é responsável, no mínimo, por estabelecer o suporte imaginário da relação dos sujeitos com a lei: a angústia de castração, o medo da perda do amor das figuras paternas internalizadas, representadas também pelo código de cada cultura.
A questão é que esse suporte imaginário é essencial mas não garante, por um lado, que a relação dos sujeitos com a lei não seja de mera submissão, ou, por outro, que não se transforme na compulsão a pequenas e grandes transgressões gratuitas típicas dos “delinquentes por sentimento de culpa”. Alguma coisa precisa ser simbolizada na relação do sujeito com a lei para que ele ganhe mobilidade e algumas possibilidades de escolha na vida. No dizer de Mustafá Safouan: contra a angústia de castração, a castração. Simbólica.
É a simbolização da relação com a lei que abre caminho — por exemplo, na via dos prazeres — para uma sexualidade não perversa ou não exclusivamente perversa, permitindo que as pulsões parciais se realizem com a mesma finalidade da situação edípica mas com outros objetos. Uma “ética do erotismo” (Lacan) que sustente o prazer de desejar, isto é, paradoxalmente — o prazer de adiar, de experimentar o desprazer.
Numa outra vertente, diria que alguma coisa precisa escapar da relação de submissão à lei para possibilitar a sublimação — o acesso ao “bem supremo” aristotélico que ultrapassa as limitações dos prazeres sexuais. Lacan, em seu Seminário vii sobre a ética, dedica todo um capítulo à questão da sublimação, referindo-a à função significante do Nome do Pai, que faz com que “o recurso estruturante à potência paterna intervenha como uma sublimação”. Aqui, podemos antever complicações para a mulher — complicações que serão ou não impeditivas da sublimação, a depender de como ela consiga se apossar, de alguma forma, do Nome do Pai.
Se a condição da sublimação é o “recurso estruturante à potência paterna”, isso significa que o sujeito precisa se dar o direito de tomar certas liberdades, digamos, em relação ao que sejam os atributos do pai, sem sucumbir à angústia de castração. A tal fórmula freudiana — você pode ter tudo o que o pai tem, menos a sua mulher — entra tanto na condição do amor quanto da sublimação. É preciso que o sujeito possa se aventurar sem grandes riscos a roubar o fogo paterno, e isso por dois motivos. Primeiro, o pai não é dono do fogo; ninguém é. O fogo sempre terá sido legado, e parcialmente, por um outro. Segundo, o fogo é um elemento móvel possível de ser compartilhado infinitamente — o único elemento que se pode tomar a alguém, sem privar dele o antigo dono. O roubo do fogo pode representar alguma transgressão, mas não um crime.
Roubo que continua representando a pretensão humana de se equiparar aos deuses. Novamente Lacan: a frase bíblica “e Deus fez o mundo, e viu que era bom” pode ser aplicada igualmente ao oleiro que acaba de modelar um vaso… “Mas nem toda sublimação é possível no homem”, adverte Lacan lembrando que o fogo que permite a criação não é só roubado ao pai: é também roubado ao id, como formulou Freud em seu texto sobre Prometeu. Portanto, convém não enfurecê-lo demais. Uma parte das pulsões sexuais deve poder se satisfazer diretamente: “Há uma exigência libidinal de satisfação direta, imperiosa […] cuja frustração não só impede a sublimação como pode conduzir a sérias perturbações”. Não é a satisfação sexual que inviabiliza a sublimação: é o recalque.
Se nem tudo da pulsão pode ser sublimado, fica difícil por outro lado pensar em alguma solução para o problema humano da ética dos prazeres que não passe pela sublimação. “Nem todo o prazer, nem todas as tendências unificadoras eróticas da vida de modo algum bastam para fazer do organismo vivo, das necessidades e precisões da vida o centro do desenvolvimento psíquico” (ainda Lacan, no Seminário vii). A correlação entre o prazer, a ética e a sublimação fica sugerida nesta fórmula: “Do lado da obra está o belo — o mal está do lado da matéria”. Do lado da matéria, isto é, da mortalidade. Do lado da Coisa (das Ding), “aquilo que, no real, padece de significante”. Do lado da mulher, portanto, e de seu sexo inominável — pois não é do feminino que se trata isso que “padece de significante”?
Então sublimar é tarefa imposta ao homem diante do enigma da matéria, da morte e da mulher. E para a mulher, que fica sempre um passo aquém nas tarefas da simbolização, já que não precisa simbolizar a evidência que porta concretamente no corpo — qual a tarefa da sublimação? Se (Serge André) “toda criação é uma tentativa de resposta à inexistência d’A mulher”, o que faz a mulher ao criar? Talvez um dizer a si mesma — e daí todos os clichês sobre a subjetividade como marca da escrita feminina, por exemplo; uma tentativa de moldar um significante que a fale. De construir fora de seu corpo, o falo da fala — e assim introduzir-se no mundo.
O édipo feminino
Já sabemos: o homem sai do complexo de Édipo pela descoberta da castração, mas a mulher entra no Édipo — no “segundo tempo”, do amor edípico ao pai — por aí. A diferença entre a severidade das ameaças que pairam sobre o homem e sobre a mulher no complexo de Édipo fez com que Freud perguntasse: o que força a mulher a deixar de ser incestuosa, infantil, onipotente etc., se ela já entra sabendo que não tem nada a perder? Nada a perder, a não ser suas pretensões amorosas. Nada a perder, a não ser seu narcisismo, ainda marcado pelo amor materno, e que ela tenta manter na relação com o pai. Nada a perder a não ser uma ilusão, uma pretensão jamais abandonada, segundo Freud, de um dia vir a receber, pelo amor que for capaz de despertar no pai ou um seu substituto, um falo igual ao dele. Nada a perder a não ser as fantasias fálicas que acompanham seu prazer clitoridiano, e que ela abandonará por decepção diante da evidente inferioridade de seu pequeno órgão sexual. Abandonará para viver a inveja, inveja que talvez só possa ser superada se essa mulher voltar a valorizar seu sexo e recuperar sua dupla inscrição de prazer — clitoridiana e vaginal, ativa e passiva, masculina e feminina. (Embora Freud tenha escrito que a aceitação da sexualidade vaginal e da posição passiva é suficiente para a superação da inveja, não encontramos na vida a tal mulher que corresponda ao ideal freudiano de feminilidade.)
Este “nada a perder” está na origem da formação do superego da mulher, que fica assim tão complacente quanto implacável. Se por um lado é difícil ameaçar alguém com a perda de um falo imaginário, por outro esse imaginário se incorpora ao próprio ser da mulher — seu falo é a feminilidade mesma, e podemos dizer que na rivalidade edípica ela não tem nada a perder a não ser… a feminilidade. Nada a perder a não ser tudo o que faz dela uma mulher.
Um superego mais complacente em relação à lei paterna e bem mais exigente em relação às demandas do narcisismo materno. Uma bissexualidade muito menos recalcada que a do homem, já que para ele toda identificação com a mãe é sentida como ameaça de perda e para a mulher toda a possível identificação paterna é lucro. Um destino para o amor edípico que depende inteiramente do corpo; do Édipo a mulher herdará, na melhor das hipóteses, a feminilidade e a promessa de receber (de volta?) o falo paterno na forma da maternidade. Não será esta a origem da exagerada demanda de gozo, o exagero no amor, a exigência de felicidade que parecem denunciar o tal superego malformado da mulher? Pois se só lhe resta o corpo como destino para o reinvestimento libidinal a que ela teve que renunciar na passagem (incompleta) pelo Édipo, é dali que ela vai tentar tirar tudo. Que os filhos sejam então o falo da mulher; que ela tente conseguir tudo o que o amor puder lhe dar, já que é do amor que lhe virão todas as compensações. Essa a condição da mulher, ou de alguma mulher: a mulher sobre a qual Freud formulou suas teorias. Apartada do convívio social, ignorante quanto às regras do jogo do mundo em que vivia, infantilizada por sua condição de dependente de pai ou marido, impedida de exercer livremente sua sexualidade, distante do acesso à grande maioria dos recursos que lhe possibilitariam sublimar — para onde poderia crescer essa mulher? Onde mais construir uma identidade a não ser onde Nora tentou constituir a sua — na maternidade, no aconchego doméstico, no amor? De onde mais extrair seu quinhão de prazer a não ser do corpo — amor, sexo e maternidade.
Então vejamos o que diz Freud dessa mulher. Que ela é a grande solapadora da civilização, com suas exigências de amor antissociais, que tentam roubar o homem de seus compromissos com as tarefas da cultura. (E, no entanto, completa Freud em seu texto sobre a “Feminilidade”: “São essas mesmas mulheres que originalmente estabeleceram os fundamentos da cultura, com as exigências de seu amor” — onde podemos ler: com as exigências de uma “vida feliz”.) Que ela tem escasso senso de justiça — e aqui devemos pensar no papel da inveja em relação ao senso de justiça: parece que este depende em parte da elaboração daquela.
Que a mulher tem “baixos interesses sociais e pobres realizações sublimatórias”, prossegue Freud, acrescentando nesse mesmo texto que a grande contribuição da mulher às civilizações foi a invenção das técnicas usadas para fiar e tecer os panos “com que ela recobre a sua castração”. E, por fim, que sua libido se cristaliza mais rapidamente que a do homem. “O homem aos trinta anos parece ainda jovem e inacabado, enquanto uma mulher da mesma idade mostra um aspecto de imutabilidade e inflexibilidade psíquicas — sua libido ocupou já posições definitivas e ela parece incapaz de mudá-las. Não existem caminhos para o desenvolvimento posterior, como se a árdua evolução em direção à feminilidade houvesse esgotado suas forças.”
No entanto, em outro texto (O ego e o id) Freud observa outro tipo de mulher que parece diferir radicalmente do primeiro. “Nas mulheres de vida sexual intensa e diversificada”, escreve ele, “podemos ver claramente os resíduos que as diferentes cargas de objeto deixaram em seu caráter”; a biografia da história amorosa dessas mulheres estaria escrita em seu caráter, composto de diferentes traços dos homens que ela amou. Ora, essa mulher não parece ser a mesma da primeira afirmação. Uma se cristaliza, se “cronifica” precocemente, como se seu desenvolvimento libidinal e de personalidade tivesse chegado muito depressa a um beco sem saída. A outra segue incorporando a essa personalidade os traços que vai herdando de seus diferentes investimentos libidinais. O divisor de águas não é a passagem pelo Édipo e a “árdua luta em direção à feminilidade”, comum a todas as mulheres, mas a riqueza das histórias amorosas da vida adulta. Que uma mulher se alimenta de homens, e não só da identificação primária, materna, já se sabe; que ela possa ou não fazer escolhas e diversificar sua relação com os homens depende de determinações externas — da repressão ou da mais-repressão (Marcuse) — e não do recalque resultante do complexo de Édipo.
É a lei contra a sexualidade, e não a lei contra o incesto, que é capaz de submeter a sexualidade feminina, enquadrar a mulher em seu papel materno-passsivo-infantil e fazer dela uma feroz defensora das piores restrições do superego, por falta de possibilidades de prazer. É a lei contra a sexualidade que infantiliza a mulher, deixando-lhe os filhos como consolo — para depois se dizer dela que permanece sempre incestuosa. Mais realista que o rei, a resignação da mulher que abriu mão da sexualidade promove um recolhimento ao lar que é uma espécie de espera da morte — a cristalização precoce a que Freud se referiu. Também é o caso de se perguntar como é possível a sublimação nesse contexto, a não ser que se considere, e sobre isso a psicanálise é controversa, que qualquer emprego não sexual de energia — como, por exemplo, nas tarefas braçais repetitivas — consiste em sublimação. Ainda assim poderíamos distinguir as atividades sublimatórias criativas das repetitivas, do ponto de vista da obtenção de algum prazer que compense as renúncias no campo da sexualidade. Contra a perda da onipotência infantil, a “afirmação do divino no homem…”.
O destino de nora
Quando tudo se esclarece e Nora fica livre das ameaças do agiota, o marido se dispõe a esquecer tudo imediatamente e voltarem, os dois, ao que eram antes. Mas Nora já não quer mais voltar. Decide abandonar a casa, a segurança, os filhos. Helmer lhe promete o que ela mais queria, antes: “Nora! Aqui você está segura! Eu a guardarei como a uma pomba que foi acolhida depois de ser retirada sã e salva das garras do abutre”. Mas ela já não quer mais. Parece que tem que acabar de crescer: “Quero dizer que das mãos de papai passei para as suas. […] Olhando para trás agora, parece-me que vivi aqui como vive a gente pobre, que mal consegue ganhar o seu sustento. Vivi das gracinhas que fazia para você. Mas era o que lhe convinha. Você e papai cometeram um grande crime contra mim. Se eu de nada sirvo, a culpa é de vocês”. Ela percebe que ser mulher, ser criança (das mãos do pai para as do marido) e ser pobre se equivalem.
O manifesto da emancipação de Nora, que hoje é pouco mais que um clichê surrado na boca de milhares de mulheres, anuncia no ano em que foi escrito (1879) uma das maiores transformações sociais dos últimos cem anos, para a qual a própria psicanálise viria a contribuir muito mais do que poderia imaginar o velho Freud quando começou a escutar suas pacientes. Que a mulher tenha se tornado no século xx capaz de amar e trabalhar — amar mais de acordo com suas escolhas sexuais e trabalhar num sentido bem mais abrangente do que as gracinhas que Nora fazia para garantir o sustento que vinha do marido — foi uma reviravolta que alterou não apenas os costumes mas até mesmo os sintomas e as insígnias da feminilidade.
Alguma coisa da identidade feminina se transforma quando “Nora sai de casa”. O trinômio passiva-infantil-maternal já não dá conta de dizer a mulher, que começa a ampliar o leque de suas possibilidades identificatórias à medida que amplia o leque de suas atividades e, com isso, expande seus territórios pela sociedade da qual faz parte. Helmer ainda tenta intimidar a esposa, dizendo que ela não conhece o mundo e não entende nada das regras da sociedade, ao que ela responde: “Não, nada entendo. Mas quero chegar a entender e certificar-me de qual de nós tem razão: a sociedade ou eu”.
Provavelmente nenhuma das duas, se se considerar a questão desse jeito. Provavelmente Nora tem muito a aprender com o código do mundo em que vive, mas sua ética da intimidade, do amor e dos prazeres também tem muito a dizer — e vem dizendo, neste século xx — a um mundo regido pelo código de ética masculino: dos compromissos públicos, do evitamento do desprazer e, paradoxalmente (mas isso Freud já tinha entendido em O mal-estar na civilização), da guerra. Coincidentemente ou não, a psicanálise, nascida nesse século, é feminina; e vem mostrar que a passividade — o abandono das resistências que permite a livre associação — é uma possibilidade enriquecedora para todo ser humano.
Freud não podia prever que as Noras surgidas de sua escuta iam se tornar sujeitas de sua sexualidade, perdendo com isso a posição narcisista de eternas desejadas, comprometidas com a indiferença e com a frigidez. Ao se lançar em iguais condições, em relação ao homem, na conquista de seu prazer sexual, a mulher também fica sujeita a outra lei: à do desejo do outro. Lei que só faz sentido quando seu próprio desejo entra em cena (que me importa o desejo do outro diante do silêncio do meu?). Fica também sujeita a competir com o homem num terreno que é tradicionalmente dele e assim — o que parece até hoje surpreender as mulheres — jogar o homem por sua vez na condição narcisista. Que a mulher lhe revele seu desejo, que ele experimente cada vez com mais frequência o lugar do desejado, que o preço do desejar venha sendo dividido entre homens e mulheres — são privilégios dos quais o homem ainda não terminou de gozar um tanto sadicamente, como se dissesse à companheira: “Você não queria? agora, toma!”.
Por outro lado, a mulher que exprime mais diretamente sua sexualidade se depara com o horror masculino diante desse vazio-que-fala, já que no inconsciente toda mulher se confunde com a figura da mãe cuja voracidade seduz, mas ameaça — de onde se conclui que a tradicional interdição da sexualidade feminina, além dos motivos práticos de controle da linhagem dos herdeiros, fundava-se no temor inconsciente à mãe devoradora. Mitos antigos, como o das bacantes, já vinham dizendo que a sexualidade feminina livre de freios poderia ser muito perigosa.
Avançando um pouco mais: ao se referir às “pobres realizações sublimatórias” da mulher, Freud parece não ter levado em consideração as condições sociais que determinaram esse fato: as limitações biológicas da mulher-mãe, o confinamento doméstico etc. Não podia prever que a família iria se modificar, a maternidade iria se tornar uma opção, ao menos para as mulheres das sociedades mais ricas, e milhares de Noras entrariam no mercado de trabalho. Uma nova inserção social que lhes possibilitou conhecer as “regras do jogo” que Nora infantilmente ignorava, além de sair da condição de dependência (viver como “a gente pobre” dentro da própria casa) econômica, sustentar a si próprias e frequentemente aos filhos, ganhar acesso à instrução e à cultura, ampliando o campo simbólico onde a sublimação se enriquece e se torna mais gratificante do ponto de vista do prazer criativo e do narcisismo.
Todas essas mudanças sociais teriam sido suficientes para que a mulher estenda suas possibilidades de prazer além dos limites do amor e do corpo, aceite as restrições impostas pelo pacto civilizatório e contribua para o que as culturas humanas produzem de melhor, na forma do belo, do sublime? Tudo indica que ainda é necessária outra conquista para a mulher: que ela possa roubar o fogo paterno. Se a sublimação passa pelo “recurso estruturante” à potência paterna, a mulher tem que poder de alguma forma se identificar ao pai. Ora, a identificação é um jogo de espelhamentos, e muito frequentemente nesse jogo a mulher se vê expulsa de campo pelo próprio pai, que não quer, de parte dele, identificar-se a uma castrada (identificação à qual ele pensa ter escapado ao recalcar, no Édipo, sua parcela de espelhamento materno). Se a mulher consegue se apropriar simbolicamente do falo paterno — quando consegue —, frequentemente se sente culpada ou ameaçada com uma dupla perda de amor: por parte do pai expropriado e da mãe traída.
Assim, em suas conquistas de atributos considerados tipicamente masculinos e de espaço no mundo “dos homens” é frequente que a mulher exceda limites, ansiosa por demonstrar que merece o lugar recém-conquistado. Uma “nova rica” no mundo da cultura, observa o pensador romeno Cioran diante da produção intelectual de mulheres que parecem querer dar sempre provas a mais de sua competência e de sua capacidade de pensar, como se se sentissem pouco à vontade para fazer livre uso do falo roubado.
Uma falta de liberdade que, por outro lado, é amplamente compensada pelo “a-menos-de-recalque” do qual a mulher é de alguma forma beneficiada — pois não é o que escapa ao recalque que permite a sublimação?
Um tanto a menos de recalque — da ordem do vazio que representa seu próprio sexo, que tanto angustia o homem e que ela não precisa simbolizar já que o traz no corpo; uma necessidade de dar provas a mais de que é capaz de sustentar o falo que o pai não lhe cedeu; um superego que nunca substitui perfeitamente a demanda narcísico-materna de gozo pela lei paterna que interdita o gozo (Lacan: “Para a mulher, nenhum pai nunca é…” o bastante para remeter a mãe aos porões da pré-história) — tudo isso imprime às atividades da mulher a marca de certo exagero. O primado do amor, a exagerada pretensão à felicidade, a “má-formação” superegoica fazem da “capacidade de amar e trabalhar” (única definição de saúde mental que Freud se arriscou a formular) da mulher algo muito diferente do que é no homem.
Que a mulher frequentemente “perca as estribeiras” na política, na produção teórica, na ambição pelo poder — seria um traço a se domesticar? Ou é próprio da contribuição feminina a uma ética que costuma apelar preferencialmente à contenção e ao evitamento do desprazer? Que a mulher apareça como aquela que desconhece limites preestabelecidos, que porta moções de transgressão à lei em nome dos critérios “pessoais demais” que orientam sua ética — não é exatamente esta a contribuição feminina para a civilização? E o famoso masoquismo feminino, que este texto não abordou — não seria também um modo de a mulher dizer que o preço do desprazer às vezes vale a pena?
Uma última observação: ao começar sua peregrinação à procura de “entender a sociedade da qual fazia parte”, Nora abandona os filhos. É provisório, avisa ela. Não se sente capaz de educá-los no estado de confusão em que se encontra; o próprio pai das crianças não a considera mais como um ser moral, e ela também tem suas dúvidas. Ao longo de um século de peregrinações femininas, os filhos vêm perdendo muito do seu antigo lugar junto às mães — um tanto da antiga proteção, da disponibilidade, da continuidade; mas também um pouco do papel de consolo, de falo, de compensação pelas inúmeras renúncias impostas às mulheres. Saíram ganhando e perdendo. Uma ética que leve em conta as injunções masculinas e femininas ainda está por ser formulada, e com ela a garantia de um lugar mais favorável e — por que não? — mais feliz para as crianças.
Referências bibliográficas
S. Freud
O mal-estar na civilização
Totem e tabu
Além do Princípio do Prazer
O ego e o id
“Sexualidade feminina”
“Feminilidade”, em Novas lições introdutórias à psicanálise
“A dissolução do complexo de Édipo”
“Algumas consequências psíquicas da diferença sexual anatômica”
“A organização genital infantil”
Psicologia de massas e análise do ego
“Sobre a conquista do fogo”
J. Lacan
Seminário vii: A ética da psicanálise
Seminário xx: Mais, ainda…
“A significação do falo”, em Escritos
M. Safouan
Angústia, sintoma, inibição
S. André
O que quer uma mulher?
Aristóteles
Ética a Nicômaco
H. Ibsen
Casa de bonecas
M. Cioran
“Maria Zambrano, uma presença decisiva”, em Exercícios de admiração