A paixão revolucionária e a paixão amorosa em Stendhal
Resumo
Stendhal, pseudônimo de Henri Beyle (1783-1842), compreendeu bem o amor-paixão por ter vivido, ele próprio, uma tensão constante entre emoção e conhecimento, apontando nossas ilusões e ao mesmo tempo reconhecendo que a felicidade se constitui sobre bases imaginárias. Num estudo de 1820 (Do amor) ele já observava que o amor-gosto da aristocracia, delicado, espirituoso e vazio, veio abaixo com a Revolução francesa que pôs em xeque posições e valores sociais. O amor se torna então perigo e tragédia. Mas o que vemos nos seus romances não é o sentimento de alguém que quer se apaixonar, é um sentimento maduro que surge naqueles que enfrentam as ilusões da sociedade. E não é tanto o amor que obceca Stendhal, é antes a felicidade que tudo mede e avalia e que, como acontece com Julien Sorel em O vermelho e o negro, acaba descobrindo que o amor não pode ser um jogo de teatro e guerra, mas sim uma entrega mais pura. Pois os apaixonados também se distinguem pelo tipo de medo que sentem: os aristocratas e burgueses stendhalianos apenas temem perder suas posses, enquanto o medo de seus personagens mais sensíveis implica um novo começo ou o fim da vida. Se o amor não é redenção, de algum modo ele salva o amante porque rompe com o poder político. Para o romancista Stendhal, que dizia percorrer as estradas com um espelho na mão, há um paralelo entre heróis revolucionários e apaixonados, mas estes vão mais longe porque, indiferentes ao poder, perdem a vaidade e assim se livram da dominação.
Estamos acostumados, quando ouvimos falar em “paixão”, a pensar num tipo apenas dela: o amor apaixonado. Nestas conferências, porém, o que se destacou foram os outros sentidos da paixão, a começar do principal, o de afecções da alma (no plural), que podem ser o medo, a esperança, a glória, a inveja, o ciúme etc. Mas por que, quando se fala em paixão, pensamos logo num arrebatamento amoroso? Essa identificação — que se impôs definitivamente no uso habitual da palavra — parece ser recente. Talvez date de Stendhal, talvez seja anterior a ele — mas, de qualquer forma, foi ele quem deu ao amor-paixão sua melhor e decisiva definição. Foi ele quem consumou a constituição da paixão como amor-paixão.
No seu livro Do amor (escrito em 1820), Stendhal construiu interessante tipologia do amor, nele ressaltando dois tipos principais, o amor-gosto e o amor-paixão.[1] O amor-gosto, diz, “reinava em Paris por volta de 1760… é um quadro em que tudo, até as próprias sombras, deve ser cor-de-rosa, no qual nada deve entrar de desagradável, sob nenhum pretexto e sob o risco de faltar com o uso, com o bom tom, com a delicadeza etc. Um homem bem-nascido conhece de antemão todos os procedimentos que deve ter e encontrar nas diversas fases desse amor: como nele nada é paixão ou imprevisto, muitas vezes tem mais delicadeza que o amor genuíno, pois tem, sempre, muito espírito; é uma fria e bonita miniatura, comparada com um quadro dos Carracci, e, enquanto o amor-paixão sempre nos arrasta contra nossos interesses, o amor-gosto sabe, sempre, a eles se conformar. É verdade que, se tiramos desse pobre amor a vaidade, bem pouco lhe resta; uma vez privado da vaidade, é um convalescente debilitado que mal consegue se arrastar”.
O amor-gosto obedece a um código preciso. É um jogo que torna agradável e amena a vida, que nela introduz uma certa porção de prazer, mas que, por isso mesmo, jamais põe em xeque as posições ou os valores sociais. Ele, que prevaleceu durante o Antigo Regime, entrou, porém, em crise com a Revolução Francesa. Nos romances desse período, os amores em que se entra por jogo, conforme a boa tradição da douceur de vivre,[2] resultam logo em algo mais terrível, arrebatador. Assim sucede com Faublas, o personagem libertino dos romances de Louvet de Couvray, que inicia um caso de amor com a marquesa de B segundo um dos procedimentos mais excitantes, eroticamente, da literatura do século XVIII: o do “travesti”. Vestido de mulher, o moço inexperiente é convidado pela marquesa a dormir em seu quarto; ela se surpreende ao ver que é um homem, porém o torna seu amante; até aí, nada de novo no quadro picante da literatura erótica do Setecentos. Mas a novidade é que ela se apaixona; o jogo converte-se em coisa séria, e não faltará tragédia à história.[3] Algo parecido lemos em Adolfo, romance de Benjamin Constant: para matar o tempo e distrair-se um pouco, Adolfo põe-se a cortejar Elenora, amante de um amigo seu — mas o sentimento logo os arrebata ao jogo, e, para o melhor e o pior, envolve a ambos.
Com a Revolução e o Império napoleônico houve um recuo do gosto ou, se quisermos, do bom gosto. Isso podemos notar já na busca da glória — que era, no Antigo Regime, a paixão por excelência, a que melhor mostrava o caráter ilusório de todas as paixões (Hobbes). A glória antes dependia das convenções sociais, das quais também dependia o amor. Ora, o arrebatamento marca a Revolução: recordemos um quadro como o de David, O juramento do jogo da pela, no qual vemos os deputados que juram exaltados dar à França uma constituição, erguendo- -se nas cadeiras, vivendo um momento que é glorioso, histórico, porque recusa o comedimento. A glória, almejada, virá agora das batalhas revolucionárias, imperiais, que mudam o perfil do mundo, não mais da vida em sociedade; e mudará, também, a forma de travar batalhas. A arte da guerra no século XVIII era, acima de tudo, estratégia. O melhor general era o que menos batalhas travasse, e assim vencesse a guerra. Frederico, o Grande, rei da Prússia, enfrentou adversários superiores graças a um exército treinado em marchar bem e rápido. Dessa forma ele colocava o inimigo numa situação em que já nem tinha como lutar. A esse tipo de guerra provavelmente se deve que, quando a batalha era inevitável, ela obedecesse a regras de gosto: conhece-se a frase do general francês que oferece aos ingleses a primeira fila do seu exército, para que se inicie o combate: “Senhores ingleses, atirem primeiro!” E, por sinal, o código militar britânico, de cavalheirismo ímpar, proibia os soldados de se esquivarem dos tiros inimigos, deitando-se ou se escondendo: durante toda a luta deviam permanecer em formação, de pé, expostos — com seus uniformes coloridos — como bons e elegantes alvos.
Ora, tudo isso se modifica com a Revolução. As sucessivas coligações contra a França republicana e regicida nada mais têm em comum com as guerras dinásticas que, antes, opunham um rei a seu primo, por algumas poucas terras. Confrontam-se, desde a batalha de Valmy (1793), visões de mundo antagônicas, políticas em luta de morte. Os patriotas descalços que formam os exércitos revolucionários sabem que serão trucidados, caso o inimigo os vença. A guerra assim perde a galanteria e se resolve em enormes batalhas, nas quais o francês acomete com fúria (termo que Stendhal constantemente associará aos seus compatriotas) e morrem soldados às centenas de milhares. As campanhas napoleônicas cifram suas mortes numa escala que só a Primeira Guerra Mundial, e depois a Segunda, conseguirão ultrapassar. Enfim, desenvolve-se ainda, sobretudo na Espanha e contra os franceses, a guerrilha — na qual o inimigo não se apresenta com uniforme nem em formação regular, e que consiste portanto na maior das infrações ao código do gosto.
Se a glória assim se libertou do gosto, também o fez o amor — desde Rousseau, crítico implacável de uma sociedade identificada por ele à mentira. Um discípulo seu, Bernardin de Saint–Pierre, deixou um romance que ainda era popular na geração de nossos pais, Paulo e Virgínia: os apaixonados, separados pela diferença de posses, reencontram-se na morte. Fora da literatura, é famoso o destino de Léopoldine, filha de Victor Hugo, que se afoga passeando de barco com o marido: este, sem mais razão para viver, lança-se na água e morre com ela. Não se pergunta mais o que me convém fazer ante a perda de minha amada: simplesmente faço o que me resta, que é morrer também.
O amor assim larga o que nele era interesse, razão (se a pensarmos no seu sentido matemático de cálculo, como aparece no latim ratio e no grego logos). O amor-paixão é aquele que de certa forma me prejudica, ou que prejudica, pelo menos, a minha integração na sociedade — a minha imagem pública, externa. Assim se liberta um sentido outro de paixão: não tanto o que é afecção da alma; não só o que se opõe ao cálculo; mas o de paixão como o que é autêntico, genuíno, verdadeiro em nós. Quer dizer: paixão não será mais propriamente o que de fora nos ocorre, mas sim o que dentro de nós revela dimensão secreta e rica. Essa paixão é uma vitória da intimidade — o espaço que, a partir do final do século XVIII, se vai revelando como o da verdade expressa nos sentimentos, contraposto à falsidade resultante das racionalizações e dominações.
É o que veremos em Stendhal, que nasce — com o nome de Henri Beyle — em 1783 e morre em 1842, vivendo portanto a Revolução, o Império napoleônico, a Restauração conservadora e a monarquia liberal (repressora porém dos movimentos sociais) de Luís Filipe. Aos 19, 20 anos, ele quer ser o maior escritor do século que se inicia, e para isso mergulha nas obras dos empiristas, procurando entender como as paixões nascem e o que significam, e compreender o homem a partir do jogo passional. Aos 40, escreve Do amor, com o mesmo objetivo, o de conhecer o homem pensado como ser essencialmente de paixão. Trata-se de uma obra “de ideologia”, como ele explica, referindo-se à ciência recente, fundada por Destutt de Tracy, que nada tem a ver com o sentido que o marxismo depois lhe deu. “Ideologia” era a ciência que mostra como se produzem as ideias; Stendhal vai investigar como se geram os sentimentos. Como, por que me enamoro? E nisso o seu interesse não é puramente teórico. Ele então vive em Milão e está apaixonado por Mathilde Dembroski, a quem chama de “Métilde”. Um dia a moça viaja para Volterra, e não quer, por recato e receio de maledicência, que ele a siga. Mas a saudade fala mais alto; Henri Beyle quer vê-la, ainda que a distância; põe óculos escuros, barba postiça e, como numa opereta, parte para Volterra. Ela prontamente o reconhece, e proíbe-o de procurá-la; e jamais cederá a suas instâncias, a seus pedidos de perdão e protestos de amor. Do amor é então uma espécie de peça justificativa em que ele se desculpa; é também uma rememoração de seus bons momentos com ela; é uma carta de amor, longa, bela, tentando reconquistar Mathilde. Sem sucesso.
Estudar o amor-paixão é estudar como ele nasce: o apaixonamento. Isso Stendhal faz em páginas notáveis (Do amor, cap. II), definindo o seu objetivo: chegar a “uma descrição pormenorizada e minuciosa de todos os sentimentos que compõem a paixão chamada amor”. Uma mulher me impressiona; eu penso quanto prazer me dará beijá-la, ela me beijar etc.; basta agora um grão de esperança (de que ela me ame), e nasce o amor. Começa então a primeira cristalização, imagem que Stendhal celebrizou: “Nas minas de sal de Salzburgo, joga-se, nas profundezas abandonadas da mina, um galho de árvore desfolhado pelo inverno; dois ou três meses depois, quando é retirado, está recoberto de cristalizações brilhantes: os menores ramos, os que não são mais grossos que a pata de uma avezinha, estão ornados com uma infinidade de diamantes, deslumbrantes; não é mais possível reconhecer o galho primitivo”. É isso o que o apaixonado faz: “Basta ele pensar em uma perfeição, para vê-la no objeto a quem ama”.
Mas o processo não termina aqui. Se nesse momento a mulher se entregasse, daria o maior prazer físico possível; porém o amor não demoraria a terminar, por falta do que imaginar. Será preciso, para que ele se prolongue, nascer a dúvida, haver a frustração — e assim, na alternância de medos e esperanças, de fracassos e êxitos, é que irão ocorrendo sucessivas cristalizações, que dão sequência ao amor apaixonado.
Nesta análise, como dissemos, Stendhal tenta aplicar aos sentimentos implicados no amor o mesmo procedimento que Tracy utilizou para as ideias: mostrar-lhes a gênese, as operações. Quer dizer que, num sentido, Stendhal prolonga o empenho dos pensadores do século XVIII em deslindar os mecanismos mentais: iluminista, empirista, nosso autor desconfia das ilusões e aponta sempre, em suas obras, como elas funcionam. A sociedade, entende ele, está montada em grandes ilusões: as superstições que a Igreja difunde e as mentiras que os poderosos incutem servem de principal esteio à dominação. Ora, como podemos desmontar as ilusões, condenar uma sociedade que funciona segundo a mentira — e, ao mesmo tempo, valorizar essa outra ilusão que é o amor-paixão? Pois as cristalizações significam, simplesmente, que a felicidade se constitui sobre bases imaginárias, sobre as fantasias que projeto na pessoa amada, e não em cima de dados reais, objetivos. Stendhal imagina um rapaz que, entre uma mulher belíssima e outra com o rosto marcado pela varíola, se apaixona por esta — porque lhe recorda a amada, que morreu da mesma doença.
É nesse fino fio esticado que vai se desenvolver a principal inquietação de Stendhal. “L’amour a toujours été pour moi la plus grande des affaires, ou plutôt la seule”: o amor sempre foi minha maior preocupação, ou melhor, a única. Mas tanto o escritor Stendhal quanto o homem que está sob esse pseudônimo viverão tensão constante, entre a emoção e o conhecimento. Porque, se Stendhal valoriza o apaixonamento, ele nada tem de romântico. Não usa os símiles fáceis para o amor — lua, estrelas. Não admite um uso desmedido da linguagem, o abuso de metáforas. Não se afirmou que seu ideal de estilo era a prosa precisa, concisa, enxuta do Código Civil?
Até é curioso como ele usa o etc. etc. Volta e meia alguma personagem sua faz um longo discurso, que dura às vezes meia hora ou mais; o que faz Stendhal? Edita; simplesmente conta as dez primeiras linhas do que foi dito e acrescenta “etc. etc”, ou ainda: “E prosseguiu meia hora nesse tom”. Não quer gastar papel, tempo, nem a inteligência, sua ou do leitor, na redundância. Dirá certa vez: “Se escrevesse para a glória, da página anterior eu faria dez páginas, em estilo grave, neológico e moral, e seria um distinto homem de letras”.[4] Nessa recusa da repetição está presente não apenas um senso moral, também um gosto algo musical — dá-se o tom, o ritmo, a melodia, e isso basta; o leitor, ou o ouvinte, seguirá pelo tom.
Esse rigor na linguagem corresponde muito bem à crítica das ilusões e ao conhecimento da emoção apaixonada. Porque a paixão traz para nós um grande problema, talvez o mesmo que irá marcar, desde os dias de Stendhal, tudo o que é saber sobre o homem, saber em que somos ao mesmo tempo sujeito e objeto: conhecendo a paixão, o homem vê como ela se gera no que tem de fortuito — e, ao mesmo tempo, ele a vive como algo inexorável, de que não escapa se a vida valer a pena. Conhecer é dizer adeus a ilusões; mas se o ser do homem forem as ilusões?
Dessa forma a reticência de Stendhal face à paixão apenas atesta a força que ela possui: a paixão stendhaliana não é o sentimento de alguém que quer se apaixonar, de adolescentes amando o amor; ao contrário, é um sentimento maduro que somente surge naqueles que, antes, romperam com as ilusões da sociedade. São esses céticos, esses indiferentes à ambição que o amor irá colher. Mas o amor só os tomará vencendo-os, porque também descreem da paixão — outra ilusão, pensam. O apaixonado é exatamente alguém que lutou com todas as suas forças contra a paixão. Fabrício é rapaz bonito, amado das mais belas mulheres napolitanas, e, no entanto, a elas prefere seus cavalos. Lamenta-se: devo ser pessoa muito fria, insensível, para ver as loucuras que tal condessa faz por mim, e ainda assim só me aborrecer com ela. Porém, ele, uma vez apaixonado, fará por sua amada Clélia os maiores sacrifícios (A Cartuxa de Parma). O mesmo vale, no mesmo romance, para a duquesa Sanseverina e, em O vermelho e o negro, para a sra. de Rênal: o amor lhes chega com certa dificuldade, mas quando se enamoram é para a vida e a morte; e nenhuma dessas personagens, perdido o seu amor, tem forças para sobreviver a ele.
É preciso falar um pouco das técnicas. Já mencionei, a propósito da glória,[5] as técnicas que os homens dos séculos XVII e XVIII usavam para aumentar seus prazeres, sua alegria em viver etc. Foucault, num de seus últimos livros, tratou do “uso dos prazeres” na Antiguidade. Existem técnicas sutis, em várias culturas, para proporcionar maior prazer ou satisfação. E faz parte do iluminismo setecentista desvendar as técnicas ocultas das corporações, o que a Encyclopédie realiza mediante pranchas, imagens que revelam procedimentos secretos de fabricação — e, quando a corporação não é de ferreiros ou ourives, mas política ou espiritual, quando o saber que encerra não se exerce sobre a matéria, mas sobre as mentes, mediante uma análise, inteligente, subversiva, de seus truques, de sua prestidigitação: assim se desmascaram os milagres, como o católico, da transubstanciação na missa (a hóstia que se converte no corpo de Cristo), ou o político, dos segredos nos quais assenta o poder de Estado.[6]
E no amor, esse outro mistério, como ficarão as técnicas? Poderíamos ler Do Amor como um receituário, sugerindo modos pelos quais faço alguém apaixonar-se por mim. É certo que Stendhal bem gostaria de chegar a um tal saber. Eis a questão: como produzir paixão na pessoa a quem amo. Essa preocupação levará o nosso autor, ou melhor, mais propriamente o homem Beyle em sua vida do que Stendhal em sua obra, a uma dupla tentação, militar e matemática, de desvendar esses mistérios e dominá-los, convertidos (devo dizer: reduzidos) a técnicas. Tentação militar: como vencer a batalha do amor, cheia de fintas, de jogos, de manobras (voltaremos, depois, a essa imagem do amor como guerra). Isso vemos na segunda parte de O vermelho e o negro: Mathilde de la Mole, moça nobre, apaixona-se por Julien Sorel, o secretário pobre de seu pai, mas, depois de se entregar a ele, ela se afasta, enquanto o rapaz — não por causa da noite passada juntos, que foi fria, mas do próprio afastamento — se apaixona por ela. E Mathilde o trata tão mal que Julien só consegue êxito recorrendo ao que chama a “política russa”, isto é, à estratégia que um amigo russo lhe dita para reconquistar a moça. Em suma: fingir que está gostando de outra mulher, conhecida de Mathilde, e escrever a essa pseudoamada uma série de cartas de amor. Como Julien não tem condições sequer de pensar, o amigo lhe dá 52 cartas de amor que tem em mãos, já usadas para seduzir uma inglesa; o rapaz as copia literalmente (o que traz alguns absurdos, como dizer Londres em vez de Paris — mas, como a sua suposta amada é muito devota, é fácil convencê-la de que ele estava tão exaltado com os temas espirituais sobre os quais discorria que até se esqueceu da cidade onde morava etc.), e obedece a indicações cênicas precisas: entregar a primeira carta vestindo um redingote de tal cor, enxugar uma lágrima furtiva, ostentar melancolia no rosto.[7] É, na obra de Stendhal, um dos momentos de maior humor, e isso justamente enquanto Julien Sorel, apaixonado, desdenhado, a cada instante namora o suicídio. A política russa funciona, e Mathilde, ciumenta, apaixonada, volta para Julien.
Há também um aspecto matemático nessa tentação de Beyle — o que é lógico, se lembrarmos que ele vive num tempo de avanço nas ciências, mais ainda, de crença em que elas possam trazer aos homens a solução de tantos problemas sociais, religiosos, políticos. Nesse intuito a Revolução instalou em cada capital de departamento uma Escola Normal; na de Grenoble o menino Henri Beyle teve boas notas em matemática.[8] Desse quadro cultural, talvez venha a vontade stendhaliana de introduzir o cálculo no amor. A beleza mais perfeita, diz ele, proporciona uma felicidade que posso medir, quem sabe, em quatro ou dez unidades de felicidade. Porém, depois de ver uma beldade ímpar, encontro uma mulher com o rosto desfigurado, mas que lembra a minha amada que morreu de varíola. A sua feiura valerá, então, dez, cem unidades de felicidade: a beleza foi vencida pelo amor, porque ela e ele são, apenas, promessa de felicidade.[9] No fundo, então, não é o amor que obceca Stendhal, como ele dizia numa frase que citei acima: é a felicidade, que tudo mede e avalia, inclusive o próprio amor. A importância do amor está em ser ele, como a boa música, a pintura, a guerra revolucionária (etc. etc.), um dos melhores veículos para a energia libertar-se, e fazer com que assim o homem tenha a felicidade.
A preocupação em quantificar favorece a abordagem científica, técnica portanto, do amor. E chegamos assim até um episódio cômico, o da carta que Beyle escreve a um amigo, ensinando-lhe um truque para possuir uma mulher de sociedade, não virgem, porém “honesta”, que aceite as carícias mas não o ato sexual: levar a mão ao pescoço dela, como que para estrangulá-la — assustada, distraída da defesa que fazia, ela cederá.
Mas de que valem todas essas técnicas? Se vão dar certo ou não, é impossível prever. Há atos planejados que resultam em fracasso, e impulsos que chegam a bom sucesso; assim como o contrário. Julien, desprezado por Mathilde após o primeiro encontro, ouve-a dizer “estou muito envergonhada de ter-me entregue ao primeiro que apareceu”; furioso, ele agarra num impulso irrefletido uma espada enferrujada, no escritório onde os dois se encontram, e já a tira da bainha quando cai em si: o que vou fazer, matar a filha de meu benfeitor? e que coisa mais ridícula, este gesto de melodrama! Então finge que está simplesmente examinando a espada, o que aliás seria ainda mais risível — desde quando um homem, ofendido, reage fazendo–se de perito em ferrugem… Ela, porém, fica radiante: Estive a ponto de ser morta por meu amante, coisa que não acontece há séculos! Infelizmente Julien não percebe o que Mathilde sente; desesperado, esconde-se no seu quarto: “Se, em vez de ficar escondido em um lugar afastado, ele vagasse pelo jardim e dentro do palacete, de modo a estar ao alcance dos encontros, talvez transformasse, num instante, em felicidade das mais vivas a sua atroz desgraça”. Porém Stendhal conclui: “Mas a habilidade cuja falta censuramos a Julien teria excluído o movimento sublime de agarrar a espada, que naquele momento o fazia tão belo aos olhos de Mlle. de la Mole”.[10]
Servem, então, as técnicas? Nem o jogo do amor, do Antigo Regime, que era um adestramento mais ou menos intuído, nem a ciência mais moderna, matemática, ou a estratégia nela apoiada garantem algum tipo de vitória no amor. No qual, aliás, a própria palavra vitória não vale. E afinal, na história de Julien, o amor de Mathilde parece ser o que menos conta; porque ele, transfigurado pelas suas últimas experiências, irá descobrir que o amor não pode ser jogo de encenação e campanha militar, essa mistura de teatro e guerra; o amor será uma entrega mais pura, tão simples e no entanto tão difícil, tão fácil e contudo tão fatal: porque entre o amante e a sociedade não há convívio possível.
Quem se apaixona, então? Se as técnicas falham tantas vezes, e mesmo quando funcionam não são capazes de dar acesso a um amor verdadeiro, o fundamental será saber não como gerar o amor a partir de uma intervenção externa (que é o princípio da técnica), porém como deixar essa riqueza íntima manifestar-se. Quem, então, se apaixona? Quem pode ter essa experiência notável que distingue a vida? Os apaixonados, e os incapazes de amar, se diferenciarão conforme o tipo de medo que cada qual pode sentir — porque no mundo de Stendhal é impossível não ter medo. O medo é experiência universal e decisiva que marca os homens — e ao mesmo tempo os divide em dois tipos.
O primeiro tipo de medo é o medo de perder a própria posição social. É o dos aristocratas que temem não só a decadência econômica como, mais ainda, uma nova revolução, com a volta da sua classe à guilhotina. Com isso o amor que tinham, antes da Revolução, pelo espírito, o engenho, a inteligência, converte-se em temor e terror: convenceram-se eles de que foi a liberdade de espírito, a mentalidade zombeteira em relação a tudo, que culminou na radicalização revolucionária. Por isso nada de inteligente (exceto a música de Rossini) se ouve nos salões da Restauração — morreu a fala, a conversa leve, brilhante, inteligente.
É esse também o medo dos burgueses ambiciosos como, na Cartuxa, o fiscal Rassi, que chega a ministro da Justiça de tanto bajular os poderosos — porém receando, sempre, que os carbonaros o punam por seus desmandos. No mesmo romance, o marquês Crescenti censura a mulher, porque, distraída, se senta nos piores lugares durante as festas da corte: como é que a senhora esquece que sou o homem mais rico de Parma, além de nobre, e que por isso minha esposa precisa ocupar lugar adequado à nossa posição? Ora, esse tipo de personagem se identifica plenamente com a sua posição social; não tem qualquer interioridade, qualquer vida própria além de seu poder, ou bens, ou imagem pública; e por isso não é suscetível a se apaixonar, a aceitar que seu afeto, sua felicidade, sua vida mesmo dependam de algo tão livre, tão incontrolável quanto o afeto de outra pessoa. Esse traço define muitos dos personagens secundários de Stendhal; esse traço: porque eles são caricatos, menos até por opção do autor do que por serem, eles, assim (na medida em que é possível, como creio, dizer que nas obras de Stendhal os personagens têm vida própria, e a impõe ao autor, enquanto este passeia, espelho na mão, pelas estradas que são seus romances). E a caricatura é tema dileto de Stendhal, que, nas páginas de abertura da Cartuxa de Parma mostra o seu nascimento em Milão, em 1795: arma subversiva, desmontagem dos poderosos em seus esquemas, destruição deles pelo riso.
O segundo medo é medo no amar, no ato de amar. Caracteriza personagens mais sensíveis, que começaram resistindo ao amor, descrendo desse sentimento que lhes parece mera ilusão, mentira. Caso notável é o de Lamiel, romance inacabado e póstumo. Lamiel é moça pobre que foi educada por uma duquesa cujo filho a ama. Ela não o ama, porém, nem a ninguém — até que conhece um criminoso, e se apaixona por ele: personagem inspirado, aliás, no grande assassino da época, Lacenaire, que viveu e morreu em guerra com a sociedade.[11] É justamente a capacidade de amar, de sentir o amor como perda e gozo, de temer não ser amado, que separa o sensível do medíocre. Experiência decisiva, e que por isso mesmo não sucede todos os dias: nada mais longe de Stendhal do que esses “eternos apaixonados”, hoje por uma pessoa, amanhã por outra. Não; a paixão stendhaliana é revelação, é mudança na vida, e por isso implica um novo começo ou o fim da vida. Entregar-se à paixão é pôr a felicidade na dependência do outro, que se não corresponder fará, talvez, o amor aproximar-se de seu parente, a morte: como diziam os trovadores provençais, que Stendhal cita, amor mors. O amor apaixonado é energia, e esta abandonou a vida da boa sociedade, da bonne compagnie, da elite; a energia, diz Stendhal em 1811, hoje só está presente nas classes trabalhadoras, naquelas que lutam com as “verdadeiras necessidades”. E mais tarde: “São somente as empregadinhas que saltam do sexto andar” (nesse andar, o último, elas moram em quartinhos exíguos): somente os pobres dão tal importância ao amor, ao sentimento, que por ele desdenham as conveniências e obediências sociais. O que vence a ilusão, a vida teatral é a verdade — que, por sua força, às vezes impõe a morte.
O que fará, então, quem tem energia? Porque o sensível não é a alma romântica, o poeta tísico, o entrevado, numa palavra, o indivíduo que sofre e padece; é o homem de energia. E para ele os tempos são difíceis. Até 1815 a sua carreira ideal seria a militar; mas com a Restauração, reduzido o exército ao meio-soldo, à disponibilidade mesquinha, a função militar está desprestigiada. Julien Sorel, no Vermelho, bem gostaria de ser oficial; não o podendo, tentará satisfazer a ambição dentro da Igreja — mas como? A carreira clerical, se serve bem à ambição, exige em troca a redução de toda e qualquer energia; Julien, no seminário de Besançon, conhece adolescentes como ele, mais pobres aliás, cuja maior felicidade é a perspectiva de comerem frango todo dia. Junto a eles, Julien comete tudo o que é erro; ele, que se julga hábil e hipócrita, exprime mau grado seu uma força, uma convicção que só o prejudica.[12] E a energia que ferve nele somente se realizará no amor, e isso depois de muita resistência.
Contudo, a própria energia não escapa ao medo. O melhor caso é o de Gina, a duquesa Sanseverina, que não tem medo de nada no mundo. Porém é apaixonada pelo sobrinho Fabrício (que, embora goste dela, não a ama), e constrói-se então uma intriga palaciana que põe a vida dele em risco para chantageá-la; assim, essa personagem, a mais corajosa de toda a obra stendhaliana, é amedrontada. O medo é teia que desta forma enlaça a todos, ou pelo apego à posição social, ou pela entrega livre do coração. No mundo em que Stendhal viveu, o medo se elevou a paixão por excelência.
A paixão amorosa executa uma espécie de askesis, a purificação de um indivíduo que, (é verdade), já dava bem pouca importância às ilusões que escoram a dominação. O amor não é redenção (Stendhal nada tem de místico), mas, rompendo com os condicionantes sociais e políticos, de alguma forma salva o amante do que o prende; a tal ponto que Fabrício pode sentir-se mais feliz — mais livre — na cadeia do que solto e honrado na corte de Parma. O apaixonado está em ruptura com o poder político. Pode até ser indiferente à política, o fato é que sua maneira de ser já corrói as bases do poder. Vemos isso quando Fabrício, chegado a Parma, vai apresentar seus respeitos ao soberano, Ernesto Ranúcio IV. O duque lhe pergunta como viveu em Nápoles, se os súditos desse reino são felizes, se amam o seu rei; Fabrício, embora não tenha nenhum gosto por política, faz uma defesa brilhante do absolutismo, dizendo que não importa, a um príncipe, se os súditos lhe têm amor ou medo: “é quase insolência o povo ostentar amor por seu rei” (porque nesse caso teria o direito de não mostrar amor, até mesmo de não o amar), “o que lhe deve é obediência cega”. Até aí temos um discurso inteligente, radical em seu reacionarismo. Mas o interessante é a reação do duque de Parma, que vai adiante da superfície discursiva (o reacionarismo) para perceber o que perturba, o que ameaça a ordem constituída: a inteligência. O príncipe pensa: “Um homem espirituoso bem pode seguir os melhores princípios [os reacionários] e até de boa-fé — por algum lado ele sempre é primo-irmão de Voltaire e Rousseau”.[13]
O pensamento assim rompe todo condicionante; ele tem esse terrível poder de libertação, de subversão, que faz do próprio reacionário — se inteligente — um revolucionário em potencial. A inteligência, ou a sensibilidade — melhor dizendo, “o espírito”, que funde as duas, sendo inteligência no sensível, intuição luminosa —, vai desgarrando o homem de sua persona, de sua alienação nas máscaras sociais. Pois, se a dominação social e política se constrói baseada na mentira, todo homem inteligente é, por definição, um subversivo potencial. Temos aí exatamente o contrário do que Marx pensará do pensamento: para ele, graças à sua noção de ideologia, a atividade mental se engata em posições políticas às quais ela justifica, desenvolve, exalta — servindo elas de limites que o pensamento, como ideológico, não poderá transpor. Não é assim que Stendhal concebe o pensamento alerta: este é como uma viagem sem fim, de pícaro ou explorador, que, se descobre coisas, é porque são inesperadas. Recordemos a imagem do romancista como o homem que percorre as estradas com um espelho na mão e que não tem culpa (diz Stendhal) se ora reflete o azul do céu, ora a lama das estradas: escrever é viajar. Mas essa viagem pouco tem do otimismo das Luzes: Stendhal não espera, da razão, a utopia, ou a sociedade bem ordenada, ou a felicidade; os seus sensíveis são happy few, raros em qualidade e quantidade. E, mais importante, o pensamento em Stendhal, “o espírito”, é essa fusão de inteligência e sensibilidade, de razão e intuição, tão diferente da razão iluminista, tão distinta também da ciência marxista.
Mas o que é mais subversivo é a indiferença às ambições, às querelas que constituem a base para a crença no Poder. Este existe enquanto alguém nele acredita — como por exemplo os cortesãos de Luís XIV, até os mais avessos ao monarca (Saint-Simon, em especial), que se desvaneciam quando o rei lhes dirigia um eventual sorriso. Descrer disso é desacreditar o poder. Não ter vaidade é estar imune à mentira, liberto da dominação.
Há mais, ainda. Na linguagem encontramos uma semelhança muito forte entre a conquista do poder e a de uma mulher — ainda hoje, no Brasil, fala-se em “ganhar uma mulher”. Esse parentesco linguageiro data, pelo menos, dos séculos XVII e XVIII, e por óbvias razões: o amor-jogo era praticado por nobres, ou seja, militares de ofício. Leiamos As relações perigosas, de Laclos (1782), de preferência na perfeita tradução de Carlos Drummond de Andrade; na carta 85 um rapaz deseja conquistar a marquesa de Merteuil, para depois expor a sua reputação (de mulher absolutamente honesta) à risada pública; ele não sabe, por azar seu, que a Merteuil é uma conquistadora temível e simulada; ela monta uma armadilha para ele, seduzindo-o a seduzi-la, e quem termina como vítima é o rapaz. E no entanto, quando a marquesa conta a aventura, que já se encerrou com a sua vitória completa, refere-se ao jovem Prévan como seu “vencedor”, que acometia a sua “fortaleza” (ela) e a conseguia “derrotar”.[14] A linguagem é militar. Com o século XIX o símile permanece (e ainda hoje!), mas muda, na literatura, o seu sentido. Podemos vê-lo na Pele de Onagro, romance de Balzac (1831), que deve o título a uma pele mágica dotada de singular propriedade: realiza todos os desejos de seu proprietário; porém, a cada um deles, encolhe-se, e com ela a vida que resta ao dono. Este é Rafael de Valentin, moço de altíssima nobreza, mas pobre e tímido, que ao começar a ter fortuna, graças à pele, faz um longo discurso sobre a sua vida anterior. Na juventude, o que ele mais queria era ter uma amante: “Uma amante! isso seria a minha independência”.[15] “Declaro-te com toda a franqueza, a conquista do poder ou de um grande renome literário me parecia um triunfo menos difícil a conseguir do que um sucesso junto a uma mulher de alta linhagem, jovem, inteligente (spirituelle) e graciosa. […] Aprendi mais tarde que as mulheres não querem ser mendigadas; vi muitas, a quem eu adorava de longe e às quais entregava um coração a toda prova, uma alma capaz de se despedaçar por elas, uma energia que não se amedrontava nem com os sacrifícios nem com as torturas: elas pertenciam a bobalhões que eu não desejaria nem para porteiro […]. Finalmente, guardando em mim ardores que me queimavam, possuindo uma alma semelhante à que as mulheres ambicionam encontrar, dominado por essa exaltação de que elas são ávidas e possuindo a energia de que se gabam os tolos, todas as mulheres foram perfidamente cruéis comigo” (pp. 80-1).
Um dos temas dessa obra de Balzac é a energia: Rafael passou alguns anos praticamente a pão e água, enfurnado numa água-furtada, meditando e escrevendo um tratado sobre o poder da vontade. Esse tema era, por sinal, muito caro a Balzac: a ideia de que a força de vontade possa mudar o curso das coisas, marcando o primado do espírito sobre a matéria, do homem sobre o mundo que o cerca, do indivíduo superior sobre a massa mundana. A timidez de Rafael, fazendo interiorizar-se a sua energia, deu-lhe força. A vontade é uma vitória sobre o desejo, pois este almeja objetos externos, e por isso a única satisfação que alcança é um sursis: a posse da mulher que me atrai, para dar um exemplo, só me sacia por um prazo limitado; volto depois a desejá-la, ou passo a querer outra mulher; e o mesmo vale para todos os objetos de desejo. Ao passo que a vontade requer um grande trabalho do homem sobre si mesmo, uma redescoberta, poderosa transmutação alquímica. Por isso Rafael são vários, ricos personagens: “Fui muitas vezes general, imperador; fui Byron, e depois… nada”. Imagina-se Napoleão; embora Rafael fosse de nobreza muito antiga, discriminada pelo usurpador, embora o próprio Balzac tivesse simpatia pelos Bourbon mais que pelo corso, o fato é que a epopeia de Napoleão faz dele personagem modelar para todo admirador da energia. A suma da ambição de Rafael está, porém, em Byron — o grande poeta, dos amores célebres, totalmente indiferente às convenções sociais (publicou, sem medo ou vergonha, o seu caso de amor com a própria irmã), e ainda general dos gregos na sua guerra de independência, liberal, cristã, travada contra os turcos com a hostilidade das potências europeias. Existe nessa figura de Byron uma certa completude: o sucesso no amor, a indiferença à opinião, a glória militar, a glória também na morte, porque é lutando pela nobre causa helênica que ele há de morrer. Ser Byron, “e depois… nada”: ideia, talvez, do gozo amoroso — à plenitude sucede o vazio, à posse a perda. (Como diz Proust, na posse sexual na verdade não se possui nada, não se possui ninguém.)
Porque o amor apareceu primeiro, a Rafael de Valentin, como uma operação de guerra. Apaixonou-se por Fédora, a quem chama “la belle dame sans merci”, a dama bela e implacável, em uma palavra, nas últimas palavras do romance, “a sociedade” (p. 237). Ela não ama, e não dará a nenhum homem a felicidade. Rafael, porém, acabará descobrindo outro amor, o de Paulina, que o fará tão feliz quanto pode ser um homem que teme desejar porque seus desejos o matam. — A mesma operação de guerra aparece em Stendhal, quando Julien Sorel se diz: quando soarem dez horas da noite, pego na mão da sra. de Rênal, ou então subo a meu quarto e me mato. O mesmo Julien tem por heróis Napoleão e Danton — Danton, de quem se recorda o brado na organização da defesa contra os invasores da França: “É preciso audácia, mais audácia e ainda mais audácia”. E essa ideia do amor tornado guerra chega ao auge na relação entre Julien e Mathilde — chega, também, à sua ruína. Ele é ambicioso e por isso faz de sua vida uma série de batalhas. Mas ela tem a mente tomada por romances e fantasias; é um Quixote do século XIX, se recordarmos o homem que toma o que lê por realidade, e seus fantasmas pelo mundo; por isso o amado tem de se conformar à imagem heroicíssima do ancestral de Mathilde, Bonifácio, executado por amor à rainha de Navarra. O amor de ambos vai existir enquanto perdurar essa tensão: o amor de Mathilde depende de sua insegurança, depende pois de Julien não a amar, ou pelo menos ocultar que a ama. Daí, é claro, o êxito da política russa. Daí, também, que ele deixe de amá-la tão facilmente: Mathilde, ainda no auge do sofrimento (a cena final do Vermelho, ela na gruta com os padres), representa uma dor, embora — talvez — a sinta;[16] e Julien, ao perder a ambição, a vontade de viver o mundo como guerra, também perde esse sentimento de amor bélico.
O amor guerreiro é então um fracasso. Por uma razão de princípio: o próprio do amor não é o poder. O amor é uma negação do poder, e é nesse ponto que a paixão, embora se nutra de fantasias e ilusões, torna-se arma vigorosa contra as ilusões, de outra natureza, que sustentam a dominação do homem pelo homem e, seu efeito mais grave, a infelicidade. Numa época que elevou o medo a paixão universal, estar apaixonado por uma pessoa é já um ato de rebeldia. Entre o amante e a sociedade a relação é de guerra, e não é à toa que o criminoso terrível, Lacenaire, se torna herói stendhaliano: na sua vida real ele disse: “Faço guerra à sociedade que me guerreia”. O personagem apaixonado de Stendhal raras vezes terá esse ódio do assassino, mas terá o seu vigor, sua energia; e por outro lado a sociedade que se funda na infelicidade dos homens identificará a ameaça que ele representa, e lhe fará guerra sem tréguas. O amante porém só faz guerra a quem lhe perturba o amor, e não à pessoa amada; e, com isso, entre os dois se constrói um mundo diferente do social, do enervado e infeliz.
O amor desmascara os valores da sociedade e do mundo. A própria Revolução Francesa fracassou, talvez, porque não compactuou com os vícios dos homens (dizendo isso, declamando isso com uma veemência que lhe vem do coração, Julien consuma a sedução de Mathilde, quando ela ainda nada significa para ele): “Danton fez bem em roubar? perguntou-lhe bruscamente e com um ar que ia se tornando mais e mais feroz. Os revolucionários do Piemonte e da Espanha deveriam ter comprometido o povo através de crimes, dando, até a pessoas sem mérito, todos os postos do exército, todas as condecorações? As pessoas que portassem essas cruzes não receariam o retorno do rei? Seria o caso de pilhar-se o tesouro de Turim? Numa palavra, senhorita, disse ele aproximando-se dela com um ar terrível, o homem que quer expulsar a ignorância e o crime da Terra deverá passar como a tempestade, fazendo o mal quase por acaso?”.[17]
E assim chegamos ao paralelo entre o herói revolucionário e o apaixonado. O herói da Revolução é Danton, guilhotinado; outro herói é Napoleão, também martirizado por longo e cruel degredo na ilha de Santa Helena. Foram homens imperfeitos (Danton roubou, Bonaparte traiu a causa republicana), mas que sofreram por suas qualidades, mais que por seus defeitos. A sua paixão de revolucionar o mundo tornou impossível para eles a vida rotineira numa sociedade em paz. O seu percurso trágico é o de tantos revolucionários que, depois de se acostumarem a viver num tempo fogoso, agitado, prenhe de novos mundos, não conseguem tolerar a pacificação, o vagar: é o caso, perto de nós, de Guevara, que larga um ministério em Cuba para ir morrer na Bolívia.
Mas talvez seja ainda mais trágico o herói apaixonado. Porque o revolucionário de algum modo ainda compactua com o mundo, com a sociedade que pretende salvar ou criar. Já o apaixonado está em conflito direto com a sociedade, com qualquer sociedade — conflito ainda mais grave porque sua arma é a indiferença, o descaso face aos poderes. Vivemos numa sociedade de cant, diz Stendhal, valendo-se da palavra inglesa que designa hipocrisia, mentira; quem libera a energia que possui, quem tenta vivê-la o quanto ela merece, supera a palavra com suas mentiras, mas com isso também se desliga da vida social, que assenta em discurso; escolhe a morte social, a morte de suas honras e riquezas, às vezes a própria morte. E no entanto, nesse destino difícil, árduo, o apaixonado é o mais feliz dos homens.
Notas
[1] Os outros dois amores são “o amor físico” e “o amor de vaidade”; este último seria um pastiche do amor-jogo, existindo na França da Restauração depois de perdida a condição principal do amor cor-de-rosa: ou seja, perdida a alegria de viver. Cf. Do amor, cap. 2; Wilson Louzada traduziu partes do livro em 1958, para a Livraria José Olympio.
[2] “As gerações que não viveram o tempo anterior à Revolução não conhecem a douceur de vivre”, a vida amena, doce. Essa frase de Talleyrand é famosa. Inspirou até, entre os anos 50 e 60, os títulos de dois filmes italianos: La dolce vita, de Fellini, e Prima delia Rivoluzione, de Bertolucci.
[3] J. B. Louvet de Couvray, Les amours du chevalier de Faublas (1788).
[4] Stendhal, “La comédie est impossible en 1836”, Revue de Paris, 1836; in Oeuvres complètes, Genebra, 1972, tomo 46, Mélanges II. Journalisme, p. 266.
[5] Cf., na mesma série de conferências, a que dei sobre a glória.
[6] A ideia de que a realeza assenta em segredos, em mistérios como os divinos, é desenvolvida pelo rei Jaime I da Inglaterra, no começo do século XVI, embora já existisse antes dele; tratei desse tema em meu Ao leitor sem medo (S. Paulo, 1984), cap. 5.
[7] O vermelho e o negro (1830), segunda parte, caps. 24 a 29.
[8] Cf. a quase-autobiografia de Henri Beyle, Vie de Henry Brulard.
[9] Cf. o cap. 17 de Do amor. Nele se encontra a frase famosa, “A beleza é apenas promessa de felicidade”, que Baudelaire retoma no cap. 1 do Peintre de la vie moderne.
[10] O vermelho e o negro, segunda parte, caps. 17 e 18.
[11] O romance começa a ser escrito em 1839, e Stendhal vai lhe dando continuidade e impondo correções, de maneira intermitente, até sua morte. Lacenaire, executado em 1836, serviu de modelo para o personagem Valbayre.
[12] O vermelho e o negro, primeira parte, esp. caps. 25 a 27.
[13] A cartuxa de Parma (1839), cap. 7.
[14] Essa tradução foi feita para a Editora Globo, de Porto Alegre (esgotada), e pertence agora às edições de Ouro (Rio de Janeiro, coleção Universidade, sem data).
[15] H. de Balzac, A pele de Onagro, in A comédia humana de Honoré de Balzac, org. por Paulo Rónai, Porto Alegre, Editora Globo, vol. XV, 1959, p. 73. Nas citações fiz mudanças, poucas, necessárias à maior precisão do texto.
[16] Contrastar, no final do Vermelho, a encenação de Mathilde (“essa pequena gruta magnificamente iluminada por uma infinidade de círios… vinte padres celebraram o ofício dos mortos… Mathilde apareceu… com um longo vestido de luto… Sozinha com Fouqué, quis enterrar com as próprias mãos a cabeça do amante…”) e o singelo sofrimento do amigo (“Fouqué por pouco não enlouqueceu de dor”). Segunda parte, cap. 45.
[17] O vermelho e o negro, segunda parte, cap. 9.