A psicanálise e o domínio das paixões
por Maria Rita Kehl
Resumo
Eros e Thanatos, pulsões de vida e de morte, matérias-primas das paixões, se encontram quando buscam o retorno a um estado de repouso da vida intrauterina e de fusão narcísica com o outro (a mãe, no inconsciente).
A impossibilidade de manutenção desse estado narcísico do qual fomos expulsos com o nascimento, chama-se castração. Lacan trouxe o conceito da castração para o terreno simbólico onde castração é perda, falta, limite imposto à onipotência do desejo. Quando o desejo da mãe se move para o pai ou qualquer outra instância da cultura que impeça o idílio entre criança e mãe, a ilusão da criança de que ele é um com a mãe se rompe. Rompimento necessário pois a manutenção da ligação umbilical com a mãe só pode levar à psicose ou à morte.
Todas essas situações vividas pela criança são revividas na paixão amorosa adulta onde a primeira fantasia é a da restauração de nosso narcisismo primário. Quando a paixão sofre as primeiras desilusões, o amor pode se instaurar. Ou não: da segunda vez em que o apaixonado se desencanta ele pode escolher a morte.
Entre as aspirações de satisfação total das pulsões e a satisfação parcial que a vida nos permite, há um excedente de energia que não obtém descarga. A psique recorre, então, a mecanismos para lidar com esse excedente: repressão, desvio do objeto ou negação das paixões. Porém, nenhuma desses mecanismos são eficientes para que as paixões desapareçam sem deixar rastros.
O mecanismo capaz de produzir os melhores subprodutos das paixões é a sublimação. O amor sublime não abre mão da paixão, mas sabe transformar o impossível da paixão em possibilidade de troca simbólica.
Cada cultura tem seu próprio modo de apropriação das paixões. No século XXI, o lugar das paixões é ocupado pelo consumo. O mercado se apropria de eros propondo o narcisismo; o amor de cada um por si mesmo. E se apropria de thanatos propondo aquilo que as classes média e alta consideram conquistas maiores: o conforto e a segurança.
O amor é visto como uma ameaça, porque reintroduz a evidência da falta. Toda essa energia se volta para o ego, o enamoramento estéril de cada um por si mesmo ou pela cópia mais parecida possível.
A psicanálise é uma tentativa de reintegrar o que foi banido da consciência moderna às custas da repressão e da sedução consumista. Freud refaz o caminho a partir da repressão até o inconsciente, ajudando a dar voz às paixões que, caladas, se manifestavam através dos sintomas. Hoje o “doente-padrão” da psicanálise já não é a histérica. A psicanálise hoje luta contra o narcisismo e aponta para a desilusão, para a perda das fantasias, perda dos domínios da infância onipotente. Uma desilusão que nos coloca diante da nossa condição de humanos, mortais, solitários, incompletos.
I
Quero começar contando três lendas que me ajudaram a pensar sobre a psicanálise e as paixões. A primeira é bastante conhecida na sua versão moderna: é a história de Chapeuzinho Vermelho. Encontrei uma versão dessa história tal como devia ser contada antes do século XVIII, ou seja, antes que a revolução burguesa começasse a modificar o pensamento e o comportamento ocidentais, criando o que hoje estamos acostumados a considerar como a nossa civilização. Eis a história de Chapeuzinho… que os camponeses contavam em volta do fogo, nas noites compridas do inverno europeu:
Certo dia a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de pão e de leite para sua avó. Quando a menina ia caminhando pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe aonde ia:
— Para a casa da vovó — ela respondeu.
— Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou o das agulhas?
— O das agulhas.
Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na cama, à espera.
Pam, pam.
— Entre, querida.
— Olá, vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e leite.
— Sirva-se também de alguma coisa. Há carne e vinho na copa.
A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho disse:
— Menina perdida! Comer a carne e beber o sangue da sua avó!
Depois, o lobo disse:
— Tire a roupa e deite-se na cama comigo.
— Onde ponho o avental?
— Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.
Para cada peça de roupa — corpete, saia, anágua e meias — a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia:
— Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.
Quando a menina se deitou na cama, disse:
— Ah, vovó! Como você é peluda!
— É para me manter mais aquecida, querida.
— Ah, vovó! Que ombros largos você tem!
— É para carregar melhor a lenha, querida!
[…] Até que ela perguntou:
— Ah, vovó! Que dentes grandes você tem!
— É para comer melhor você, querida.
E ele a devorou.
E, para nossa decepção, a história acaba aí. Não tem o caçador que tira a menina da barriga do lobo, não tem a “moral da história”, não tem redenção nenhuma. A história de Chapeuzinho… medieval é essa tragédia, em que a menina devora os restos da própria avó e depois, numa cena erótica escabrosa, se deita nua com o lobo e é devorada por ele.
Essa história não tem uma função moralizante (a curiosidade castigada, da menina que escolheu o caminho “mais perigoso”…). Não tem uma função apaziguadora (a criança se defrontando com suas fantasias perversas e aprendendo a dominá-las, como quer Bettelheim). É uma história de pura crueldade. Parece uma tentativa de fornecer um continente para algumas paixões ameaçadoras — a crueldade, a violência, a fome (que não é uma paixão mas pode mobilizar paixões intensas), a sexualidade incestuosa (o que é que este lobo/avó representa?) etc. De alguma forma, trata-se de uma lenda civilizadora, pois as civilizações são construídas sobre a matéria bruta das paixões; são tentativas de se estabelecer os domínios, de se dar forma às paixões.
Outra lenda que me interessa pertence ao século XII: a lenda do código do amor cortês. Segundo essa lenda, que vem com a tradição do Graal e do rei Artur, um cavaleiro bretão encontra o código do amor amarrado na pata de um falcão que ele deve levar como prova de dedicação à dama sua escolhida, depois de muitas provações e peripécias. Entre os 31 itens do código do amor do século XII — um código atualíssimo, cujo primeiro mandamento é: “A alegação do casamento não é uma desculpa legítima contra o amor” [!] —, encontrei três especialmente instigantes: “Menos come e menos dorme aquele que está cercado por pensamentos de amor”, que estabelece uma espécie de oposição entre a fome amorosa e outras fomes e necessidades vitais mais ligadas à sobrevivência; “O amante não pode saciar-se do gozo do que ele ama”, ou seja, a fome amorosa não está sujeita à saciedade. A matéria de que se alimenta o amor é volátil e aquilo que o amor deseja é sempre móvel: não há saturação no amor.
O terceiro item (no 29 no código) nos parece de significado menos evidente do que os outros dois: “O hábito muito excessivo dos prazeres impede o nascimento do amor”. O que significa isso? Hoje estamos mergulhados numa cultura que supervaloriza os prazeres. Uma cultura que se apoderou de algumas reivindicações libertadoras dos anos 60 e devolveu a resposta na forma de mercadorias: todos os prazeres que você puder imaginar estão à sua disposição no mercado. O que significa essa incompatibilidade entre o excesso de prazeres e o amor, expressa no código do amor cortês do começo da Idade Média? Voltaremos a esse ponto mais adiante.
A terceira e última lenda que se refere ao domínio das paixões é narrada por Freud no Mal-estar na cultura e conta como o homem primitivo se apoderou do fogo. O fogo já existia antes do homem, pela combustão espontânea. Quando o homem primitivo encontrava em seu caminho aquela estranha manifestação de energia da natureza, costumava praticar uma espécie de jogo ou ritual que consistia em apagar o fogo com o jato de sua urina. Uma espécie de relação sexual dramatizada em que o homem, com sua potência, dominava e apaziguava a força mágica e desconhecida que a natureza colocava em seu caminho. Até que o primeiro homem que renunciou a esse prazer sexual de segunda ordem em vez de apagar conservou o fogo e o levou para sua caverna, aprendendo seus segredos e se beneficiando com isto. (Não ocorreu a Freud que este primeiro homem, que renunciou a testar sua potência contra o fogo poderia ter sido uma mulher…) O que nos interessa nessa lenda é que, a partir de uma renúncia, o homem funda a civilização, estabelecendo, pela primeira vez, uma relação de domínio e apropriação de uma força natural, em troca de abandono de um prazer aparentado com os prazeres sexuais.
Essas histórias pertencem, de uma forma ou de outra, ao domínio das paixões. A proposta inicial desta palestra — A psicanálise e o domínio das paixões —, ao que parece, principalmente por estar incluída sob a retranca “A paixão silenciada”, era a de uma abordagem que caracterizasse a psicanálise como agente dominador, submetedor das paixões. Uma abordagem bem em moda, aliás. Eu gostaria de me aproveitar do duplo sentido da palavra domínio e inverter essa proposta, abordando a psicanálise como uma forma de reflexão — e de prática — que tenta compreender e estabelecer quais são os domínios, os territórios das paixões e propiciar que o desejo se liberte de suas fixações primárias, podendo se mover mais livremente por esses territórios, muito mais amplos que o terreno (por si só, vastíssimo) da paixão sexual — a primeira que nos ocorre quando se pensa em paixão.
Esta é a proposta psicanalítica radical, embora muito da prática que se diz “psicanalítica” não tenha nada de radical. E é nos seus aspectos radicais que se funda minha paixão pela psicanálise, pela inteligência e sensibilidade do velho Freud, um dos grandes pensadores deste século, que nos deixou algo melhor do que guerra nuclear, lixo, poluição. Um parêntese: a paixão intelectual tem uma característica oposta à paixão sexual: enquanto esta quer exclusividade, aquela quer adesões. Quer ser compartilhada pelo maior número possível de pessoas: é o que eu pretendo conseguir aqui.
II
A matéria-prima de que se originam as paixões são as pulsões em duas grandes vertentes: Eros (pulsões de vida) e Thanatos (pulsões de morte). Nos parece evidente a relação entre pulsão e vida mas não a outra associação, pulsão/morte. Mesmo sabendo que a morte é a única certeza que temos sobre o destino de tudo o que é vivo. Mesmo constatando (Freud) que toda matéria viva tende a voltar ao estado inorgânico. Mesmo constatando que é a vida, e não a morte, que representa uma espécie de milagre, de improbabilidade da matéria. Hans Castorp, na Montanha mágica: “Que era, então, a vida? Era calor, o calor produzido pela instabilidade preservadora da forma [grifo meu]; era uma febre que acompanhava o processo incessante de decomposição e reconstrução de moléculas de albumina […]. Não era matéria nem espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenômeno sustentado pela matéria, tal qual o arco-íris sobre a queda d’água, e igual a chama. Mas, se bem não fosse material, era sensual até a volúpia e até o asco, o impudor da natureza tornada irritável e sensível a respeito de si própria, e a forma lasciva do ser”.
Ainda que a vida, e não a morte, seja o fruto de uma improbabilidade extrema, nos parece mais fácil compreender as pulsões de vida do que as de morte. Por quê? porque estamos vivos, e a vida, “em seu caminho inevitável para a morte” (Gil) quer se perpetuar tanto quanto possível. Freud outra vez: “o organismo quer morrer — mas ‘à sua maneira’”…
As manifestações mais primitivas das pulsões de vida são as da defesa da sobrevivência do indivíduo — que buscam manter o organismo nesse estado de preservação (e movimento) da forma. Que buscam o sono, o alimento, a excreção de toda a matéria tóxica do organismo; que buscam a água, o ar, o calor. A essas se mesclam as pulsões eróticas que buscam de certa forma essas mesmas coisas, em seu estado de fusão inicial com o corpo materno. O calor, o repouso, o alimento que Eros procura, ele procura sob a forma de contato com outro ser vivo — e seu poder de irradiação é tão violento que ele contamina (erotiza) o grupo das pulsões de vida. De tal forma que todas as funções vitais vão sendo carregadas de erotismo pela vida afora; e a tal ponto que a psicanálise batizou de Eros o conjunto das pulsões de vida.
Também parece estranho que entre as pulsões eróticas se encontre a agressividade. A tendência agressiva não é apenas, como poderia parecer, um componente das pulsões da morte; ao mesmo tempo, o que impele uma pessoa ao contato com outra(s), ou com o mundo em geral, não são somente impulsos amorosos, de fusão e aceitação. O contato agressivo pode ser, por exemplo, uma tentativa de modificar o outro, ou o mundo, para torná-los mais compatíveis com o princípio do prazer. O que é, no limite, uma tendência destrutiva, mas também representa a vocação humana para a rebeldia. Como disse Helio Pellegrino em sua palestra aqui: o homem é aquele ser para o qual “o mundo, tal como está, não serve”…
Outra função — a mais evidente — dos impulsos agressivos é a defesa perante a ameaça que o outro pode representar. Nesse sentido um dos pactos fundamentais de toda forma de convivência social dita civilizada é aquele que propõe (pela força ou pelo consenso; mas, em geral, o que é consenso algum dia se impôs pela força) a repressão de grande parte da agressividade em troca das vantagens da convivência. Mas os instintos não moram em departamentos estanques: ao contrário, formam uma espécie de trama sobre a qual se estrutura a psique. Assim, o preço que pagamos pelo pacto- -de-não-agressão que funda a nossa (entre outras) civilização é o de um rebaixamento geral dos instintos de vida. Em “O por que da guerra?”, Freud compara o processo de civilização da humanidade com o da domesticação de certos animais: “A este processo devemos o melhor do que alcançamos e também boa parte do que ocasiona nossos sofrimentos. Suas causas e origens são incertas; sua solução, duvidosa. […] Talvez leve à desaparição da espécie humana (grifo meu) pois inibe a função sexual em mais de um sentido”…
Enquanto o vetor erótico impulsiona a vida humana ao contato, ao embate com o outro e com a realidade — impulsos, como se pode constatar, geradores de constantes tensões —, o outro vetor da trama pulsional impele o ser humano ao repouso, à entropia. É Thanatos, o grupo das pulsões de morte, que quer a abolição das tensões, o grau zero de energia. Quando Freud se pergunta sobre o que está “mais além do princípio do prazer”, o que nos move para atividades repetitivas onde aparentemente não há satisfação de nenhum desejo, surge uma das hipóteses mais discutidas e frequentemente mal-entendidas da psicanálise: mais além do princípio do prazer está a tentativa do organismo de retornar ao inorgânico. Já que a vida é tensão, excitação, irritação da matéria. Já que o desejo não encontra satisfação definitiva e não para de renascer de suas satisfações efêmeras, Thanatos deseja a abolição do desejo; o retorno à matéria inanimada da qual um dia, por um acaso extremo, a vida se gerou da coesão improvável, e até hoje misteriosa, entre algumas moléculas. A vida é uma espécie de vitória sobre alguma coisa — sobre a força conservadora do inorgânico. Somos todos sobreviventes de nossa “vontade” de morrer. Sobreviventes porque o organismo, uma vez jogado à vida, quer se conservar assim e fazer seu próprio percurso até a morte. Morremos antes de saber como seria esse percurso. As atividades da vida nos tiram a vida antes que possamos saber qual seria o caminho ideal da matéria viva para a morte, a acomodação suave para este repouso gentil que não conhecemos, mas que está representado no inconsciente por todas as fantasias nirvânicas de relaxamento, de abolição das tensões, de paz.
E aqui está por que Thanatos não impera soberano sobre Eros. Porque a representação mais próxima do repouso absoluto que temos marcada pela experiência no nosso inconsciente não é a morte — já que ainda não morremos — e sim a vida intrauterina: a fusão perfeita com o corpo materno, quando não há desejo porque todas as necessidades estão sendo supridas continuamente. É desses nove meses de perfeição que o ser vivo tira a “memória” do repouso; e é por isso que, enquanto busca o repouso que pode ser a morte, está buscando também o repouso do contato, da fusão com o outro. É porque Eros e Thanatos no limite buscam a mesma coisa — o retorno a um estado anterior, prazeroso —, que não é um, nem outro, que move a vida, mas a tensão constante, dialética (Freud não usou esta palavra) entre os dois. O que mantém ligada a trama das pulsões é que eles todos são conservadores: e enquanto Thanatos busca o repouso Eros busca o estado de fusão narcísica com o outro (representante da mãe, no inconsciente) que nos promete a abolição da confrontação cansativa e ameaçadora com o mundo, inaugurada com o nascimento e só abolida na morte. Na fusão narcísica inicial com o corpo da mãe (assim como em momentos privilegiados da paixão…) o mundo desaparece: eu sou o mundo, o mundo é uma extensão de mim.
O estado narcísico da vida intrauterina, que a criança conserva na fantasia nos primeiros meses de vida até que alguma experiência de separação venha desiludi-la, é um estado em que o amor ainda não tem lugar. Diz Melanie Klein que, para o pequeno ser narcisista, tudo aquilo que é recebido como bom e prazeroso ele sente como sendo parte de si mesmo. Só quando alguma coisa frustra a criança é que ela a sente como sendo parte do mundo externo. “O bom sou eu; o mau é o não-eu” — é este o mundo do narcisismo. O primeiro sentimento de diferenciação criança-mundo é o ódio. Ela só vem a sentir amor por um objeto fora de si mesma depois de ter sido frustrada algumas vezes pela mãe. Só depois de algumas frustrações é que a criança consegue perceber que o objeto gratificante que ela pensava ser parte dela mesma não é. O objeto que satisfaz é o mesmo que frustra. O amado e o odiado são um só — ambivalência que nos acompanha pela vida toda. Ambivalência que é da essência de toda relação amorosa, pois todo objeto que satisfaz também frustra, e o absoluto não se recupera mais…
Se a frustração na vida adulta mobiliza às vezes todo o ódio de que somos capazes, nos é difícil imaginar (ou “lembrar?”) a magnitude desse ódio no recém-nascido. A criança pequena é absolutamente dependente dos cuidados da mãe ou de seus substitutos, e a falta ou a demora desses cuidados é sentida por ela como uma ameaça à sua vida. A fome, por exemplo, uma sensação que o recém-nascido não conheceu na vida intrauterina, aparece para ele com uma violência aterradora; e o ódio que ele sente por não ser imediatamente alimentado/aplacado é diretamente proporcional a este terror. São demônios atacando o bebê a partir de dentro dele mesmo.
As fantasias e necessidades de uma criança recém-nascida estão sob o pleno domínio das paixões em seu “estado bruto”, e, ao contrário da valorização romântica que costumamos fazer a respeito das paixões desenfreadas, a irrupção dessas excitações sem nenhum mecanismo psíquico mediador, controlador de sua intensidade, é sentida como extremamente desprazerosa. Daí que uma certa dose de repressão, de contenção das paixões é uma necessidade interna da psique, e o papel ideal dos adultos seria simplesmente o de ajudar a criança a lidar, a dar continente e ter um certo controle sobre suas emoções. Como a repressão que a sociedade nos obriga a fazer em geral é bem maior do que aquela necessária para lidarmos com nossas paixões, mantemos uma espécie de mistificação nostálgica do “estado natural” em que desejos, terrores e ódios são intensos. Em função de nossa pequena capacidade de sentir prazer, vivemos saudosos de um estado primitivo em que a satisfação dos desejos também era intensa, e ignoramos que fomos nós os primeiros agentes da contenção de nossas paixões: uma necessidade própria do ser humano, necessidade de sobrevivência psíquica do pequeno ser que teme naufragar no mar furioso de suas demandas furiosas.[1]
Estou tentando descrever os sofrimentos que são consequência dos primeiros embates do pequeno narcisista com o mundo, num momento da vida em que o desejo do absoluto ainda não foi abandonado e nem sequer abalado em sua onipotência. O desejo quer o repouso, o desejo quer o absoluto. Esse absoluto que foi a vida intrauterina, e depois, definitivamente perdido, sobrevive e renasce sempre nas fantasias inconscientes. Se pudesse, o desejo nos conduziria de volta à fusão total com o ser amado: se pudesse. Mas não pode. Porque a realidade, nossa inimiga desde sempre, é também a contraposição à onipotência do desejo e nos obriga a barganhar o absoluto em troca de muitas, de infinitas outras satisfações não absolutas que podemos obter pela vida. A realidade é inimiga da satisfação absoluta do desejo, mas o princípio de realidade dentro de nós, aliado do princípio do prazer, nos ensina os caminhos para a vida e para o amor em troca do abandono do narcisismo primário. É dessa brecha entre o tudo que se quer e aquilo que se pode que nascem as possibilidades de movimento do desejo, movimento que não cessa enquanto a vida não cessa.[2] Não existe objeto que satisfaça plenamente o desejo e é justamente por isso que ele não para de renascer de cada pequena satisfação, de cada pequeno repouso: é justamente por isso que a vida é tensão permanente, é movimento permanente: o que não encontro aqui, vou buscar noutro lugar; se não encontro o absoluto, sigo perseguindo tudo o que se aproxima das minhas representações da perfeição.
A essa impossibilidade de manutenção do estado narcísico do qual fomos expulsos com o nascimento, a psicanálise chama castração. Freud começou a utilizar esse conceito a partir da observação de fantasias angustiantes de seus pacientes, que expressavam literalmente o medo da perda do pênis, e este foi o primeiro sentido do complexo de castração. As associações pênis-falo/ falo-significante da falta nos levam a entender a castração como um outro corte: o corte que nos separou da nave-mãe e nos expôs nossa incompletude diante do universo. É o pensamento de Lacan que nos ajuda a trazer esse conceito para o terreno simbólico. Castração é perda, é falta, é limite imposto à onipotência do desejo. A diferença anatômica entre os sexos apenas simboliza, na infância, esta perda e favorece para o menino a ilusão de completude ao mesmo tempo em que o atira à angústia diante da possibilidade da perda (perda que ele já sofreu, mas nega) — enquanto favorece para a menina a desilusão em relação à sua completude no mesmo tempo em que a atira à inveja e às tentativas fálicas de restauração do narcisismo ferido. Mas na verdade não há solução para esta perda: castrados somos todos.
A ilusão do pequeno narcisista de que ele é um com a mãe, de que ele é tudo o que a mãe deseja e a mãe é tudo o que ele deseja, essa ilusão se rompe quando o desejo da mãe se move para outro lugar — um lugar a que chamamos pai, mas que pode ser qualquer outra instância da cultura que interdite o idílio entre a criança e a mãe. O pai é o agente da castração — mas, a rigor, quem castra é a mãe. Se a mãe recusa formar um todo narcísico com o filho; se a mãe aceita sua incompletude e permite que seu desejo não se detenha todo na criança; se a mãe suporta essa perda que é o parto quando a criança deixa de ser posse sua para se tornar posse da vida — então, ela castra. A mãe psicótica, a mãe que recusa sua incompletude e faz do filho seu falo, não castra. E mantém no inconsciente de seu filho, intacto, o narcisismo primário, diminuindo muito as chances de que o pai possa interditar sua onipotência. Pois, se mãe quer se fazer de completa com o filho, ela não deseja o pai; e o pai não desejado irrompe na cena idílica mãe-criança, ou como rival desprezível ou como inimigo aterrador — não como o portador amigável de um convite para que a criança renuncie ao mundo da natureza (do incesto) em troca do imenso repertório de possibilidades que é o mundo da cultura e do amor por outros seres humanos.
A castração é, portanto, essa ferida “moral”, essa perda de uma ilusão paradisíaca em troca da qual se ganha a possibilidade de continuar vivendo — já que a manutenção da ligação umbilical com a mãe só pode levar à psicose ou à morte. A castração é a perda de um privilégio que já se desfrutou, perda que abre em troca um leque de possibilidades de se viver o novo. A conservação do narcisismo é que é a verdadeira perda porque é a manutenção (ilusória, ainda por cima: um mau negócio!) de um estado antigo que não permite que o desejo se mova. Nesses termos, a castração é um evento absolutamente progressista na nossa vida.
Mas é preciso relativizar a castração, que pode ocorrer de maneiras diferentes na história de vida de cada um. A situação extrema de castração — o abandono, o desamor, a mãe que não encontra absolutamente nenhuma gratificação narcísica contemplando a criança (a mãe para quem os filhos só representam evidências de sua própria castração); e do outro lado o pai que é portador de interdições absolutas e não aponta nenhuma saída para o desejo da criança, o pai opressivo, o pai indiferente, que abandona e não dá amor — essas situações de extrema castração não trazem nenhum benefício progressista para a vida da criança. Ao contrário, apresentam-lhe o mundo como um panorama tão ameaçador e/ou tão interditado que a libido infantil só encontra saída encerrando-se em si própria e abandonando ou rebaixando ao máximo todas as suas pretensões eróticas. São situações em que a castração não representa uma saída para o narcisismo da criança.
Todas essas situações vividas pela criança em seus primeiros contatos com suas demandas pulsionais e com as formas apaixonadas que essas pulsões vão adquirindo são revividas na paixão amorosa. A primeira fantasia que surge nas relações apaixonadas da vida adulta é a da restauração de nosso narcisismo primário; a primeira esperança do(a) apaixonado(a) é a de reencontrar no ser amado sua total completude. Na paixão amorosa espero encontrar este ser que me completa, cujos desejos são meus desejos — este ser que é igual a mim e que chegou para me salvar da condição solitária que é a própria condição humana: cada um de nós é um ser único diante do mundo. Só quando a paixão nesse primeiro momento, mergulhada em suas fantasias, sofre as primeiras desilusões, é que o amor pode se instaurar.
Não quero com isso endossar a oposição ideológica que se faz entre amor e paixão, em que a paixão é representada como um momento fulgurante — mas impossível — do encontro entre duas pessoas, enquanto o amor é visto como a água morna do dia a dia cinzento, com o qual somos obrigados a nos conformar. A verdade é que as fantasias do início de uma relação apaixonada não concedem existência própria ao outro, que se torna um depósito das fantasias mais arcaicas, um representante da possibilidade de restauração do narcisismo ferido, um outro eu-mesmo que deseja as mesmas coisas que eu e me resgata para sempre da condição da falta em que me encontro (que é a própria condição humana) para me elevar à condição dos deuses: a recuperação da onipotência.
Mas passado esse momento de felicidade plena (que também pode ser de intensa angústia, já que eu já “sei”, por experiência, que o outro me escapará), a paixão amorosa tem de reviver a decepção infantil do recém-nascido que perde a condição de único no desejo da mãe: o outro volta a se mover. Ganha corpo, existência concreta para além das minhas fantasias apaixonadas. O outro não pode estar sempre; o outro não pode dar tudo; e, o que é pior: eu não posso lhe dar tudo. A realidade se instala mais uma vez entre os dois-que-tentavam-ser-um e revela o que estava sendo negado: a falta; mais uma vez e sempre, a falta.
Dessa decepção revivida na paixão amorosa — uma reedição das primeiras frustrações infantis — o outro pode ganhar vida própria, independência, existência para além do meu desejo onipotente. Ou seja, dessa decepção revivida pode nascer o amor. Ou não: da segunda vez em que o apaixonado se desencanta (revivendo sua primeira experiência de castração) ele pode escolher a morte. O “amor que mata”, na verdade “paixão que mata”, símbolo do amor romântico e recusa do morno e conformado amor burguês, é o amor que quis se manter apaixonado mas não aceitou a evidência de sua incompletude. Lamartine (um romântico!): “Um único ser vos falta e tudo fica despovoado”. O mundo da desolação pela perda ou afastamento do ser amado que vive sua independência em relação a mim — o ser amado “absoluto” de quem o apaixonado passa a depender de maneira tão completa que sua falta faz do mundo um verdadeiro deserto —, este mundo pode ganhar vida, e o apaixonado pode descobrir que também tem condições de se mover dentro dele, se ele conseguir suportar a desilusão fundamental de não formar um todo indissociável com o objeto de seu amor. Do contrário, ele pode preferir a morte a viver num deserto. A sua morte, ou a morte do outro. A morte pode ser a outra face do princípio do prazer, quando ele não consegue se associar ao princípio de realidade. O domínio absoluto do princípio do prazer não propicia satisfações ao desejo a não ser na fantasia; fora da fantasia o mundo é um deserto onde o desejo não consegue encontrar seus objetos.
III
Entre as aspirações de satisfação total das pulsões e a satisfação parcial que a vida nos permite, há um excedente de energia que não obtém descarga — um excedente de excitação que não se aquieta porque não encontra o que o satisfaça plenamente. Quais os destinos desse excesso da energia que constitui a matéria-prima das paixões? Um recurso da psique para lidar com o excedente de energia que não pode ser descarregado — que não obtém repouso — já se incorporou ao repertório do senso comum: a repressão. Dela só se tem notícia quando é malsucedida. A repressão bem-sucedida não deixa traços. A malsucedida deixa os sintomas, tentativas canhestras da psique de dar expressão ao que não pode ser dito, de trazer à luz o que está mantido, à força, na obscuridade.
A histeria fundou a psicanálise, “doença” do desejo reprimido que se manifesta no corpo, onde o médico não encontra doença alguma. O “ataque histérico”, misterioso para a medicina, foi para Freud a ponta do fio de Ariadne que ele seguiu para investigar o labirinto da alma humana. Falar da histeria como uma “doença da alma” para a medicina do século XIX era o mesmo que propor que a ciência recuasse às práticas de feitiçaria — mas foi a partir de conceitos desse tipo que a psicanálise nasceu como ciência nova de um objeto recém-descoberto: o inconsciente. E então as falas do corpo da histérica, as falas dos rituais “ridículos” do neurótico obsessivo começaram a fazer sentido como tentativas de retorno do reprimido.
O reprimido não é o afeto, a energia do desejo. Reprimida é a ideia a que o desejo se associa. O afeto não se reprime; fica livre e dissociado de seu conteúdo, ligando-se a outros conteúdos e desse modo formando os sintomas. A repressão dissocia o desejo de seu conteúdo, o que equivale a dizer que o neurótico anseia, mas não sabe pelo quê. Ainda que pense saber (os mecanismos de defesa do ego conseguem criar uma certa coerência entre a personalidade e seus “sintomas”) — mas então, não entende por que não encontra prazer.
Ou seja: a repressão é um mecanismo insuficiente para dar conta do excesso de energia que não encontra meios de descarga. A repressão dissocia, aliena, faz da pessoa uma cega para seus desejos, ignorante sobre o que é bom para ela. Uma presa fácil de líderes totalitários, dos grandes pais autoritários que prometem alívio para as angústias de prazer que acompanham todas as tentativas de retorno do reprimido, em troca da obediência, da adesão total à sua liderança. A repressão é a condição da obediência: quem não sabe o que quer, quer aquilo que lhe dizem que ele deve querer. É tão simples assim, e é partindo desse raciocínio simples que Reich veio a entender a adesão do pobre povo alemão ao nazismo. A energia do reprimido desvinculada da ideia que lhe dá significado constitui a matéria burra das paixões: paixão alienada de seus conteúdos eróticos, facilmente capturável por propostas tanáticas: o “viva la muerte” do fascismo, a morte aos judeus (ao outro, ao diferente de mim) do nazismo, o suicídio romântico (ainda a melhor saída dentre essas três) do amor proibido.
Outro mecanismo de canalização do desejo que às vezes se combina com a repressão, mas não se confunde com ela, é o desvio de objeto, em que a ideia que representa o afeto não é abolida mas dirige-se a um objeto socialmente permitido — ou possível — em troca do objeto interditado. O terceiro destino das paixões é a transformação em seu contrário, que consistiria uma espécie de base psíquica para a hipocrisia. Transforma-se ódio em amor, amor proibido em repulsa, desejo sexual perverso em nojo. O ódio que ameaça o próprio sujeito do ódio (que pode ser punido, ser odiado em igual medida ou, o que é pior, pode destruir o objeto de seu amor que frequentemente é o mesmo objeto de sua agressividade) não pode ter sua energia eliminada mas pode ter seu conteúdo invertido, e então se transforma nesse tipo de amor excessivo, obsessivo, extremamente ativo que precisa de toda esta atividade para impedir que irrompa sua verdadeira face. É claro que as pessoas que “amam” segundo esta modalidade são capazes das formas de crueldade mais refinadas e mais sutis, assim como os ascetas reativos em relação a seus desejos considerados perversos são capazes das formas mais elaboradas e sutis de perversão. Porque nenhuma dessas formas de repressão, desvio ou negação das paixões são tão eficientes quanto deveriam ser para que elas desaparecessem sem deixar sinais de vida.
Por último quero me deter um pouco mais na sublimação, que é o mecanismo capaz de produzir os melhores subprodutos das paixões. O termo sublimação, como tantos outros conceitos em psicanálise, foi emprestado da física e significa a transformação do estado sólido para o estado gasoso da matéria. Essa é uma imagem perfeita do que ocorre na sublimação, quando o estado de concretude das paixões — que querem possuir, fundir, devorar, matar, aniquilar… — se transforma numa outra expressão, mais leve que o ar, que é a expressão simbólica desses mesmos desejos.
A sublimação exige alguns pré-requisitos, e o primeiro deles é que uma parte do desejo — a parte possível, compatível com o princípio de realidade — tenha sido satisfeita. A segunda condição, consequência da primeira, é a de que alguma renúncia verdadeira tenha ocorrido. Digo “renúncia verdadeira” em oposição aos mecanismos de negação do desejo que já mencionei. A renúncia parte não da negação do desejo mas do contato com ele e da constatação da impossibilidade de sua realização plena. É a alegria de se estar no mundo e de se pertencer à sociedade humana (fruto da satisfação de uma parte dos desejos), aliada à liberdade que se obtém renunciando-se ao que não pode obter satisfação (liberdade de não se permanecer fixado a objetos impossíveis), que possibilita a melhor sublimação, aquela que não opera para negar ou destruir as paixões mas para lhes dar alcance ilimitado no terreno da criação simbólica. É só no simbólico, a partir da renúncia do domínio concreto do princípio do prazer, que eu “posso tudo”, posso viver de uma forma compatível com o pacto mínimo de renúncias que a cultura me exige (além desse mínimo, o resto das renúncias fica por conta da mais-repressão e da angústia de prazer que ela gera): um tipo de satisfação semelhante à onipotência das fantasias infantis. O amor materno — o amor da mãe que renunciou a seu narcisismo — é a primeira condição para a sublimação. “O amor, chão da liberdade”, de Helio Pellegrino — já que não se pode renunciar ao que nunca se recebeu. Tanto a falta de amor quanto o excesso (aquele que não exige renúncia) fixam o sujeito ao objeto primário e não lhe permitem partir para outras possibilidades de satisfação dos desejos que o mundo lhe oferece.
A sublimação é, portanto, incompatível com o narcisismo,[3] já que sua condição é a renúncia ao objeto total e a busca incessante de outros objetos e outras formas de expressão/satisfação dos desejos pela vida afora. Do mesmo modo, a sublimação é incompatível com o excesso de repressão, já que essa proibição que a repressão impõe — de acesso aos conteúdos dos desejos — inibe a expressão, a liberdade, o contato com a subjetividade e com o mundo. A repressão não cega o sujeito apenas para si mesmo: ela o faz cego para o mundo, onde existe o risco permanente de ele deparar com algum representante daquilo que ele não pode nem ao menos saber que quer. A sublimação requer a possibilidade de expressão, mas não de qualquer fala; a fala neurótica, por exemplo, é uma fala vazia porque, neste caso, as palavras têm a função de negar o desejo; as racionalizações neuróticas não passam de mentiras bem construídas que escondem o que não pode ser dito. A fala da sublimação é fértil, criativa, porque parte de algum contato com o desejo. O poeta sabe de seu desejo; de alguma forma, ele sabe. Freud sempre deu razão aos poetas. Em muitos de seus textos ele parte de uma “verdade poética” — cita Goethe, Heine, Schiller (que chama de poeta-filósofo) para chegar a uma “verdade psicanalítica” — em Mais além do princípio do prazer ele termina por lamentar as limitações do cientista, que está condenado a trabalhar, pensar e pesquisar tanto para, afinal, chegar a conhecer aquilo que os poetas sempre souberam a partir de seus próprios sentimentos. Por outro lado, a criação da psicanálise não demonstra outra coisa senão imensa tarefa de sublimação a que se dedicou esse homem (e depois dele, tantos outros) partindo de pequenas intuições, do registro de seu próprio sofrimento, de seus próprios sonhos e frustrações, para depois ouvir e levar a sério os sonhos e o sofrimento de outras pessoas até criar o que hoje é um dos maiores patrimônios da cultura moderna, na tradição do Iluminismo e do Humanismo.
Mas nem a psicanálise deve nos iludir de que a sublimação seja a chave para a felicidade. Ela não passa de um mecanismo mais completo, mais “evoluído” de canalização do desejo não satisfeito (evoluído no sentido de que se aproveita melhor dos recursos do intelecto e da sensibilidade, ao invés de restringi- -los, como fazem os mecanismos de defesa em geral). A sublimação criou a cultura, mas, por outro lado, a cultura não passa de um subproduto da infelicidade humana. A paixão bem-sucedida (assim como a repressão bem-sucedida) costuma ser silenciosa: raramente deixa marcas de sua passagem a não ser quando se transforma em saudade. A concretude é silenciosa. Só a falta tem necessidade da fala…
A sublimação não é o caminho da felicidade. Mas o encontro da sublimação com a paixão amorosa foi definido por Benjamin Péret como alternativa feliz para o beco sem saída que parece ser a paixão em seu estado narcísico. O amor sublime é o encontro da pulsão sexual do amor apaixonado, de toda a demanda de fusão com o outro que a sexualidade apaixonada contém, com os benefícios mais elevados da sublimação. Péret, em seu ensaio sobre o amor sublime, faz uma rápida história das formas que a relação amorosa foi tomando desde a Idade Média e conclui que a sublimação dentro da relação amorosa (não a sublimação da relação amorosa) só é possível nas civilizações em que o homem e a mulher se encontram em uma posição de igualdade social e intelectual. Em civilizações assim — como a nossa — é possível que o encontro entre o homem e a mulher ultrapasse as demandas iniciais da paixão, as demandas de fusão total do amor narcísico, do amor/morte, sem que a única saída seja reprimir e/ou negar a paixão no leito estreito do amor burguês, do amor de conveniência. É possível que os apaixonados ultrapassem suas fantasias narcísicas apaixonadas e se encontrem num outro plano além da sexualidade (mas não em detrimento dela), que é o plano da sublimação. O amor sublime é a possibilidade da troca (também) no plano simbólico. A possibilidade da poesia no encontro amoroso — não a poesia produzida pela frustração da paixão, mas a poesia da paixão. A transformação dos desejos que não podem se concretizar na paixão amorosa no desejo de uma outra coisa que a poesia (no sentido lato, não apenas no sentido da produção de poemas) pode realizar.
Para Péret o amor sublime seria a contrapartida do amor romântico, da paixão grandiosa mas impossível, do amor que não encontra nem limites sem possibilidades concretas e por isso leva à morte — na melhor das hipóteses, a morte do outro em mim. O amor sublime não abre mão da paixão, mas sabe transformar o impossível da paixão em possibilidade de troca simbólica. É quando o outro fala comigo, é quando dois universos simbólicos se tocam, se interpenetram, frutificam, se potencializam, é nesse caso que a paixão pode se tornar aliada do amor.
O amor por sua vez perde suas tonalidades cristãs que exige o rebaixamento do erotismo em nome da santidade da união, que exige a fidelidade e a obediência mútua, que propõe o conformismo e a responsabilidade como motivo mais sublime da união — o amor sublime recusa isto tudo, é amor de escolha e, portanto, amor de liberdade. É união com base em afinidades eletivas e, portanto, uma aliança a favor, e não contra, o voo livre de cada um pela vida. O amor sublime dá asas ao erotismo. Péret: “o desejo, longe de perder de vista a carne que lhe deu à luz, tende em definitivo a erotizar o universo!”.
IV
A psicanálise tem sido acusada de não levar em consideração os fatores históricos na construção de seu modelo da psique. Não é verdade. O inconsciente, por exemplo, é uma espécie de arquivo secreto da história não oficial de cada ser humano — sendo que uma parte do que é considerado “secreto” ou proibido depende de cada época, de cada cultura. Mas a instância psíquica que mais depende das circunstâncias histórico-sociais é o superego, este grande assimilador das normas e valores vigentes, este regulador do comportamento (através do ego, que se comunica com ele) de acordo com o que cada cultura considera reprovável ou desejável. Assim, embora uma grande parte do que move as pessoas — a matéria instintiva que constitui as paixões — seja inerente ao que venho chamando condição humana, a forma que as paixões adquirem, a maneira como se expressam, a valorização positiva ou negativa de cada uma delas, tudo isso está permeado por essa modalidade de expressão do consenso e da visão de mundo de cada cultura que costumamos chamar de ideologia. O superego, portador da norma e da “moda”, é tanto mais ideológico quanto mais neurótico o sujeito, ou seja: quanto menos independência ele tem para formar seus próprios julgamentos, quanto mais obediente ele for, quanto menos ousado para arriscar seus limites no mundo e verificar, a partir da experiência (que muitas vezes pode ser dolorosa), o que se pode ou não se pode fazer. Ou seja, o superego é tanto mais ideológico, moralista etc. quanto menos livre — mais neurótico — for o sujeito para criar um código ético que lhe pareça justo e adequado.
O superego é (também, mas não exclusivamente) ideológico. Assim, a expressão das paixões é permeada pela ideologia. Cada cultura tem seu próprio modo de apropriação das paixões: interessa-me entender como é que a cultura burguesa, na qual hoje estamos tão mergulhados que mal enxergamos seus contornos, se apropria das paixões para criar aquilo que Michel Foucault chama de poder disciplinar: o poder que age a partir de dentro (eu diria, a partir do inconsciente), expressão de um “desejo de obediência”, desejo de adaptação à regra, que demora anos ou séculos para se estabelecer como estilo de civilização, e outros tantos anos/séculos para ser abalado.
Há um texto de Renato Janine Ribeiro — O prazer da regra — onde ele narra como, entre os séculos XV e XIX, a longa transição do feudalismo para o capitalismo foi acompanhada de lentas e profundas modificações no estilo de vida europeu, que passou da violência à cortesia como modo dominante de relação entre as pessoas. No século XVII, por exemplo, o cardeal Richelieu proíbe os duelos (modo corriqueiro da nobreza feudal resolver suas pendências) ao mesmo tempo em que cuida de detalhes menores, mandando substituir as mortíferas facas de ponta pelas facas arredondadas nos serviços de mesa. Duas medidas de alcance diferente e igual objetivo: impedir que os homens se matassem pela violência descontrolada das suas paixões.
A instauração da cortesia como modo de relacionamento predominante nas cidades dos regimes monarquistas (pós-feudalismo) representa uma mudança profunda em termos de psicologia social: trata-se de incentivar as pessoas a uma barganha. Sublimar as paixões — principalmente as agressivas — em troca do que chamamos as “vantagens secundárias” da participação no jogo da vida na corte.[4] Nas monarquias europeias recém-nascidas, o prazer passava a se situar no terreno das regras e não no das transgressões. “Fazer amena a vida é uma construção meticulosa do século XVIII”, escreve Renato Janine. Expressar emoções “antissociais” como o ódio, a inveja, os ciúmes e até mesmo o desejo sexual, sem rodeios, situava o indivíduo fora dos mores da morte — e a corte (como espaço psicossocial) era o lugar desejável de se estar. As paixões passam a ter outros destinos: o refinamento das regras de etiqueta vai adquirindo um fim estético, o próprio cumprimento rigoroso e obsessivo da regra adquire valor de descarga das pulsões reprimidas e se torna tão mais rigoroso e obsessivo quanto mais o reprimido ameaça vir à luz. (Isto já são minhas inferências a partir das ideias contidas no texto de Janine.) Quando a “frivolidade” instaurada pela cortesia chega a um tal ponto que já não consegue dar conta das paixões reprimidas (que já não encontrem nenhum modo de expressão/satisfação direta) surge o romantismo trazendo um aspecto libertário — a reivindicação da paixão sexual e da paixão revolucionária — e um aspecto decadente — a erotização da morte como admissão do fracasso da civilização em relação à dominação das paixões.
A repressão sozinha é insuficiente para dar conta da domesticação das paixões mas conta com uma grande aliada que hoje, final do século XX, está muito mais adaptada às demandas das modernas sociedades de consumo onde o mercado dita a regra: a sedução. Trocar o prazer infantil da descarga imediata das pulsões pelo prazer das regras de convivência representa, por um lado, uma perspectiva de evolução psíquica e social: a saída da infância, a admissão da existência, da autonomia e dos direitos do outro; a introjeção de alguma lei e a possibilidade de algum prazer numa relação onde o outro não é simplesmente um objeto de descarga das minhas pulsões mas tem existência própria. Por outro lado, a sedução da corte/mercado (moderna) atua propondo uma barganha: a dos prazeres mais imediatos pelos prazeres do narcisismo secundário. E como toda sedução propõe uma facilitação para a realização dos desejos, esta vida interrompe, cedo demais, a procura de saídas civilizadas mas ao mesmo tempo menos neuróticas, para o desejo. Todos querem ser o mais nobre cavaleiro, a mais bela dama da corte. Se eu não posso amar e gozar do meu sexo; se não posso tentar transformar o mundo a partir de meu ódio; enfim, se não encontro um destino menos neurótico para minhas paixões, a civilização burguesa me propõe que invista libido em mim mesma.[5]
A barganha que fundou o estilo de comportamento desta nossa cultura, e que veio se consolidando desde a substituição do poder feudal pelos regimes monárquicos absolutistas, foi a da troca da expressão livre e imediata das paixões pelas vantagens de uma convivência mais amena, por um lado, e pelas vantagens do prestígio de se viver à maneira da corte, mais perto do soberano (do poder — como escreveu La Boétie), por outro. Hoje, a corte é o mercado: esta entidade abstrata que não está em lugar nenhum mas nos aborda a partir de todos os lugares, como “centro” fictício de uma sociedade que não tem lugar central. Hoje a corte é o mercado e, mesmo no Brasil, onde só cerca de um terço da população interessa pelo seu potencial consumidor (ou seja: não somos uma sociedade capitalista avançada mas, de algum modo, uma forma desigual e perversa, participamos dela), a forma atual e eficaz de “domesticação” de todas as parcelas da população atingidas pela indústria cultural e pela publicidade — mesmo aquelas consideradas insignificantes como mercado consumidor — é a sedução: troque suas paixões por um objeto. Ou pelo desejo de possuir um objeto.
Na corte do século XVIII o lugar das paixões era ocupado pelo teatro vazio das paixões. Na corte/ mercado do século XXI o lugar das paixões é ocupado pelo consumo. As relações prioritárias entre as pessoas vão sendo substituídas por relações prioritárias com o mercado e com a moda — esta obsessão pela pertinência ao “lugar onde todos estão” (e que não existe…). Hoje somos seduzidos para uma volta ao narcisismo: uma apropriação das demandas libertárias dos anos 60 (contra o moralismo e o bom comportamento das gerações pós-guerra) pelo mercado, que transforma essas demandas nas propostas narcisistas da sociedade de consumo: abaixo os restos da moral vitoriana em nós; tudo o que você deseja deve se realizar, contanto que você possa comprar. A indústria cultural é fetichista também no sentido psicanalítico do termo: o lugar da falta na lógica deve ser ocupado por uma variedade infinita de objetos. Aqui se encontra finalmente o sentido atualíssimo do 29o item do código do amor do século XII: “O hábito muito excessivo dos prazeres impede o nascimento do amor’’. É a proposta narcisista para a qual somos hoje seduzidos impedindo o contato com a falta e com o outro: todos os seus desejos ao alcance da mão. O reino do fim do desejo: “o amor é pros trouxas”. Os riscos do amor, a ferida narcísica que se reabre no amor, ficam para os otários. Os espertos querem — e toda a cultura pós-moderna os leva a crer que podem — se locupletar, negar a falta, a carência. Uma volta à infância. O “proibido proibir” revolucionário dos anos 60 (que implicava um confronto arriscado com os agentes da proibição) se transforma em manha de filho mimado, no “levar vantagem em tudo” dos jovens yuppies do mundo capitalista.
Que pensam estar levando vantagem. Que não percebem que o “sistema de objetos” com que se ilude a falta é a morte em vida: a tentativa de estancar o movimento do desejo. O mercado se apropria de eros propondo o narcisismo; o amor de cada um por si mesmo. E se apropria de thanatos propondo aquilo que as classes média e alta consideram suas conquistas maiores: o conforto e a segurança. O lugar onde a vida, a tensão da vida não podem me atingir. O que é ilusório, evidentemente, já que a tensão da vida nos atinge também a partir de dentro. Mas evitar o contato com o de fora pode ser um jeito de evitar as “tentações”, tudo o que me desperta a curiosidade e o desejo, e assim aplacá-lo. Dentro dos grandes cemitérios de elefantes da burguesia, imitados na medida do possível pela classe média, cercados de grades e guardas, protegidos por sistemas internos de comunicação, isolados do mundo, também o desejo fica circunscrito. Onde eros não impera, já se sabe: thanatos ganha terreno. Vivemos num mundo que nega a morte pela onipotência mas que é permanentemente seduzido para a morte — a morte no reino desse mundo.
Manutenção do narcisismo, recuperação ilusória da onipotência, negação da falta: dentro desse contexto o amor é visto como uma ameaça, porque reintroduz a evidência da falta. A intensa circulação do mercado sexual demonstra que o grande excluído não é mais o sexo, é o amor. É o contato revitalizador entre pessoas: um contato potencialmente “subversivo” porque os apaixonados são desobedientes, descobriram alguma coisa que vale mais do que a boa adaptação às normas da corte, são menos susceptíveis às barganhas e às propostas de renúncia da liberdade em troca da segurança. Os apaixonados “estão na chuva para se molhar” e ainda que possam cair na armadilha do amor burguês (no sentido original do termo, dos casamentos de conveniência, do bom comportamento, da manutenção da ordem familiar contra as mil faces do erotismo apaixonado), têm boas chances de encontrar a saída do amor sublime: o amor que potencializa os amantes para a criação e para a rebeldia.
O narcisismo não tem via de acesso à sublimação. Não tem via de acesso ao amor sublime, e por outro lado não possibilita a transformação dos outros impulsos, os impulsos agressivos, em suas formas sublimadas: a formulação de utopias, a luta política no sentido mais amplo possível, as tentativas de transformação do real, da criação de um caminho possível para a vocação humana inata para a rebeldia, em nome do princípio do prazer, matriz de todas as nossas aspirações de liberdade, do nosso inconformismo, de nossa vontade de inventar tudo o que for parecido com um paraíso terrestre.
Toda essa energia que não toma suas formas apaixonadas, nem suas formas sublimadas, se volta para o ego, o enamoramento estéril de cada um por si mesmo ou pela cópia mais parecida possível (aqui caberia um outro debate a respeito do homossexualismo ou pelo menos de uma de suas modalidades, a do espelhamento narcísico/negação da diferença e da castração, tanto para o homem quanto para a mulher). Mas, como já se viu, o excedente de energia que não se resolve nessas satisfações narcisistas se manifesta como sintoma. Eros e narcisismo: a demanda de amor que não encontra o caminho do amor, o desejo de contato que não se satisfaz no contato porque não aguenta as evidências da castração que o contato traz: o rebaixamento das energias vitais, da alegria erótica de viver, e o sintoma do fim deste século: a Aids, a disseminação da morte através do contato sexual, bem ali onde deveria ser o lugar privilegiado da vida.
Ainda que exista a hipótese (bem provável), recentemente divulgada pela imprensa, do vírus da Aids criado em laboratórios norte-americanos com propósito de guerra bacteriológica contra minorias indesejáveis pela cultura Wasp, não deixa de nos chamar a atenção a leitura metafórica dessa doença, síntese do império dos sentidos sem sentido que começa no século XVIII, com a substituição da dialética das paixões pelas vantagens secundárias da civilização. A doença que se instala onde deveria se instalar o amor consiste na perda de todas as defesas do organismo contra quaisquer doenças, o que é uma espécie de sintoma da introjeção da agressividade, que abandona seu potencial rebelde e transformador para adquirir um caráter suicida. O organismo destrói a si mesmo porque não sabe mais se defender pela agressividade nem se revitalizar no amor.
Por outro lado a negação onipotente da morte, a recusa da castração, encontra seu sintoma na paranoia do extermínio nuclear, evidência fantasmática da morte real que foi banida da nossa consciência; extermínio absoluto que nos acena lá de onde a onipotência atinge seu limite, a negação do outro, encerrado no “perigo soviético” (ou norte-americano, dependendo do ponto de vista), que ameaça a civilização do narcisismo. Anulação do outro cujo limite é a guerra nuclear, negação da morte cujo limite é a obsessão pela morte (que já está, de qualquer forma, inscrita em nosso inconsciente) em sua forma mais implacável, o extermínio sem esperanças de toda a humanidade.
Nesse quadro, a psicanálise é uma tentativa de reintegrar o que foi banido da consciência moderna (e pós) às custas da repressão e posteriormente da sedução consumista. Uma prática, a meu ver, atual e radical em relação às propostas civilizatórias/ humanistas tradicionais.
V
A psicanálise nasceu em fins do século passado, a partir da tentativa de Freud (e também de Charcot e Breuer) de entender a “doença” da histérica: uma doença que não se encontra no corpo. A histérica do século XIX pode ser comparada à bruxa da Idade Média. São mulheres que tentam trazer à luz a misteriosa sexualidade feminina, considerada obscura e perversa desde que o cristianismo declarou o corpo da mulher como templo do pecado. Mas são tentativas a partir do inconsciente: a histérica não “sabe” o que expressa em seus sintomas. Não sabe — mas deixa boas pistas. Tanto que seu mal foi batizado com o nome do útero, o centro sexuado da mulher, e os “ataques histéricos” eram considerados manifestações do “útero errante”, a sexualidade que sobe à cabeça da mulher.
O que Freud fez foi basicamente escutar a histérica. Aliado do desejo, Freud escutou a histérica com atenção e respeito, ao contrário da medicina de sua época, que “castigava” as crises de conversão a tapas e banhos frios, como se fossem birras de criança malcriada. Freud observou a histérica partindo do pressuposto de que ela tentava dizer alguma coisa. A mulher que perdia a visão em algumas circunstâncias mas não era cega, a paralítica que não era paralítica, a que era tomada por ataques sem nenhum foco epiléptico, essa mulher estava dizendo através do corpo alguma coisa que não conseguia dizer com palavras. Do desejo e de sua condenação. Do sexo, do amor, do ódio e da culpa. Freud refaz o caminho a partir da repressão até o inconsciente, ajudando a dar voz às paixões que, caladas, se manifestavam através dos sintomas. E quando a paciente pôde afinal expressar o desejo e a condenação — o conflito inconsciente — não precisou mais da conversão histérica. Mesmo que o desejo não possa sempre se realizar (e nem sempre se pode), ele não precisa mais ser negado. O corpo não precisa mais adoecer simbolicamente de uma sexualidade obscura, que não pode se conhecer, que é pura negação. Mesmo quando o desejo não pode se realizar, a histérica se liberta através da palavra que dá acesso ao que até então estava reprimido. Liberta-se do sintoma, que é a tentativa repetitiva e fracassada do retorno do reprimido.
Começando com a histeria, o objeto da psicanálise continuou sendo o inconsciente, o reprimido, “o instinto e seus destinos”. Hoje o “doente-padrão” da psicanálise já não é a histérica. Não é este o sintoma dos nossos tempos; nem é a neurose obsessiva dos anos entre e pós-guerras. Não que essas modalidades todas tenham deixado de existir — a humanidade é variada, e infinitamente mais do que os tipos neuróticos puros nomeados pela ciência. Mas cada época produz seus emergentes, suas modalidades de defesas neuróticas mais adaptadas às normas e às modas. Eu diria que hoje a psicanálise não luta contra a histeria — luta contra o narcisismo.
A psicanálise é uma espécie de rito de passagem da nossa civilização. Ela propõe a passagem para a cultura, para a livre apropriação dos códigos dessa cultura. Propõe a passagem do narcisismo infantil para a genitalidade, a passagem da neurose para a criatividade — tanto a criatividade que é fruto do amor, a geração de outros seres humanos, quanto a criatividade que é fruto da sublimação. A psicanálise propõe a passagem do sintoma à palavra, pois o sintoma é uma tentativa de cura que não encontra outro meio de expressão.
Uma parte das reivindicações da paixão da década de 60 se transformou nas ideologias da paixão dos anos 70 e 80 (a outra parte talvez ainda espere outra oportunidade de se manifestar — outro momento de retorno do reprimido). A sociedade de massas precisa da “liberação” dos impulsos mas evita a reintegração de seus conteúdos. Assim, as paixões emburrecidas podem ser canalizadas para a obediência fanática, para a moda, para o consumo. As ideologias da paixão hoje se encontram com a vontade de boa adaptação; o herói pós-moderno é a antítese do herói romântico, a antítese do herói solitário que se ergue acima das normas e conveniências sociais em nome da vida vivida como liberdade de experiência, em nome do amor apaixonado, em nome da experiência poética. O herói romântico é antissocial e inviável: seu fim geralmente é trágico, em troca de uma vida incendiada. Talvez as explosões dos anos 60 tenham sido sua última expressão — o “herói” dos anos 80 aprendeu às custas do seu fracasso: ele quer dar certo. Avesso à solidão (sintoma do fracasso), o herói pós-moderno quer estar na moda, tem medo de ser devorado pela voracidade da história e, principalmente no Brasil, com seu eterno complexo de colônia, quer dizer “sim” a tudo o que traga o selo da posteridade.
A psicanálise caminha na direção oposta à da boa adaptação: caminha no sentido da individuação. Por isso está sempre um pouco fora de moda, apesar de sua extrema modernidade e radicalidade. É que ela é moderna e radical justamente porque encara sempre o conflito emergente, parte sempre do conflito mais atual (o que está mais próximo da consciência) em direção a suas raízes; o que é exatamente o contrário de dizer sim à propaganda da modernidade.
Até mesmo o lugar da psicanálise é um lugar fora da moda. Pode-se pensar erradamente que o lugar da psicanálise é o discurso, porque o veículo da relação analítica é a palavra. Mas o lugar da psicanálise é uma relação a dois, relação de transferência e contratransferência que outra coisa não é senão uma relação de amor. É nessa relação, sustentada pela garantia do amor do analista, que o analisando pode refazer os caminhos da sua libido desde as fantasias infantis de onipotência em que o analisando exige “tudo” do analista, quer que o analista possa pagar todas as dívidas que a vida tem com ele, até a possibilidade de uma relação de amor com o analista, que abre esta possibilidade para a vida do analisando. Um lugar fora de moda porque é absolutamente pessoal e intransferível, relação a dois onde só contam esses dois e tudo o que a sociedade lhes exige e promete tem que ficar de fora até que faça sentido de verdade para o analisando — se fizer.
E qual é o amor do analista? Não é amor de sedução. O psicanalista não tem que satisfazer o desejo do paciente, inclusive porque não deve deixar o paciente fixado nele além da dependência necessária para uma relação de cura. O amor do analista não é amor de mãe narcisista, sedutora, que deseja suprir seu filho e evitar sua castração. E também não é amor de pai temível, punitivo, que impede o filho de viver fora da sua sombra. O amor do analista só supre o paciente de uma necessidade fundamental: a de ser levado absolutamente a sério em suas demandas (o que não significa atendê-las), ser escutado com toda a atenção que ele merece. Nessa relação, o analista passa o tempo todo de um lugar a outro, do lugar que possibilita (porque escuta sem censura) ao lugar que castra (porque não pode dar além de seus limites). Nessa relação a libido refaz seus caminhos até a infância, trazendo à luz o que não pode se expressar, dando direito ao que esteve interditado e interditando o que estava à procura de limites. Nessa relação analista e analisando podem se apaixonar, podem se odiar, embora o analista deva manter um lugar diferente de seu paciente através de uma espécie de prática “zen”, em que seu desejo não conta para que o desejo do paciente possa aparecer; enquanto o analisando deve poder expressar seu amor e seu ódio sem censura, o analista realiza permanentemente um trabalho de desapego em relação a seus desejos na análise. O único desejo legítimo do analista que vale para a análise é o de que seu paciente se cure, ou seja, se liberte dele. O analista quer que seu paciente possa fazer, em relação a ele, o que não pode fazer em relação a seus pais — dizer: “de você já recebi o suficiente, obrigado. Agora vou procurar lá fora o resto do que me falta”.
O desejo do analista em relação ao analisando é também a fonte de seu temor; pois nessa relação a dois o analista também põe em risco permanente seu próprio narcisismo. Também o analista deve ser frustrado por seu paciente, que não está lá para satisfazê-lo, e sim para libertar-se. Também o analista deve abrir mão de sua onipotência, rever suas certezas centenas de vezes, considerar seus limites e sua ignorância, aceitar ser objeto do ódio — e não só do amor — de seu paciente, considerar que algumas (ou muitas) das críticas do analisando em relação a ele talvez sejam justas e não somente fruto de confusões transferenciais. E, finalmente, o analista se arrisca sempre ao abandono porque quando um analisando entende profundamente a proposta libertadora da psicanálise ele se torna radical na sua exigência e não hesita em abandonar o analista que ficar aquém de sua enorme vontade de compreender e se libertar.
O analista adaptativo está aquém da proposta da psicanálise; quer seu paciente obediente a ele e aos códigos do sucesso social; quer que seu paciente bem adaptado e bem-sucedido o gratifique narcisicamente. Do outro lado, o analista “surdo” é prisioneiro do seu terror em relação aos riscos que essa relação a dois implica. Não consegue ouvir o sofrimento de seu paciente porque está tapado para todo e qualquer sofrimento, pretende estar acima dele e evita tudo o que possa apontar para a sua própria dor, que ele esperou ter superado para sempre através da sua própria análise.
Só quando o analista se coloca em iguais condições com o seu paciente em relação aos perigos da análise é que a análise acontece: um longo e imprevisível percurso (porque único, não padronizado) cheio de desilusões. Afinal, a psicanálise é a prática da desilusão. Vivemos num mundo que rompeu com o inconsciente e, para compensar, valoriza, de forma sedutora, as fantasias. Mas o mundo da fantasia é impotente, é um mundo de permanente frustração. A fantasia só é progressista quando aceita deparar com a realidade e testar suas possibilidades (e, aí, deixa de ser fantasia!). A psicanálise aponta permanentemente para a desilusão, para a perda das fantasias, perda dos domínios da infância onipotente. Uma desilusão que nos coloca diante da nossa condição: somos humanos, somos mortais, somos solitários, somos incompletos. Mas, uma vez aceitas as determinações fundamentais da condição humana, uma vez rompidos com os domínios da fantasia, se abrem para nós as possibilidades infinitas do domínio das paixões: nem a onipotência, nem a submissão, mas a conquista do território humano. O mais vasto território por onde o desejo pode se mover.
REFERÊNCIAS
PARTE I:
Robert Darnton, O grande massacre de gatos. Cap. 1, “Histórias que os camponeses contavam”. Rio de Janeiro, Graal, 1986.
Benjamin Péret, Amor sublime, ensaio e poesia. São Paulo, Brasiliense, 1986.
Freud, O mal-estar na civilização. Madri, Biblioteca Nueva, 1973.
PARTE II:
Thomas Mann, A montanha mágica (reflexões sobre a morte). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 309.
Gilberto Gil, “O cérebro eletrônico” (1971).
Freud, Mais além do princípio do prazer. Madri, Biblioteca Nueva, 1973.
Idem, O porquê da guerra (carta a Albert Einstein). Madri, Biblioteca Nueva, 1973.
Idem, Introdução ao narcisismo. Madri, Biblioteca Nueva, 1973.
Melanie Klein, Inveja e gratidão. Rio de Janeiro, Imago, 1974.
PARTE III:
Wilhelm Reich, Psicologia de massas do fascismo. Porto, Escorpião, 1974.
Marcuse, Eros e civilização.
- Péret, op. cit.
Freud, Mais além do princípio do prazer.
Freud, O instinto e seus destinos. Madri, Biblioteca Nueva, 1973.
Hélio Pellegrino, Édipo e a paixão (ver p. 351 neste livro).
PARTE IV:
Renato Janine Ribeiro, O prazer da regra (Folhetim no 454, Folha de S. Paulo).
- Huizinga, O declínio da Idade Média. São Paulo, Verbo/Edusp, 1978.
- Darnton, op. cit.
Etienne de La Boétie, Discurso da servidão voluntária. São Paulo, Brasiliense, 1981.
Jean Baudrillard, O sistema dos objetos. São Paulo, Perspectiva, 1968.
PARTE V:
Freud, Estudos sobre a histeria. Madri, Biblioteca Nueva, 1976.
Freud, O instinto e seus destinos, op. cit.
Fabio Landa, Supervisões em psicanálise.
Notas
[1] A contenção/repressão/canalização das paixões desenfreadas e ameaçadoras para a psique são tarefas do Ego, o grande organizador da vida psíquica, mediador das demandas do princípio do Prazer em obediência às restrições do princípio de Realidade. O Ego joga no time de Eros, da organização, da viabilização da vida. Representa a vitória do princípio organizativo sobre o princípio entrópico: nossa maneira conectada, organizada, de estar no mundo. A instância de confronto permanente entre Eros e Thanatos é o Id, caldeirão das pulsões, refúgio do princípio do prazer onde ele ainda não foi alterado pelo contato com o real.
[2] Dessa brecha entre desejos e realidade, dos embates entre a onipotência do desejo e os limites da realidade, nasce a inteligência. Para Piaget, a inteligência se desenvolve a partir do primeiro obstáculo que o mundo interpõe entre o desejo da criança e sua satisfação. Começa a se desenvolver aí, evolui a cada novo obstáculo que aprendemos a superar e se torna, para o resto do percurso da nossa vida, parte essencial do nosso ser: característica do humano, recurso privilegiado sobre a natureza externa e sobre nossa “animalidade” — o barro biológico de que somos forjados.
[3] Com isso quero dizer que não há sublimação, nem excedente de energia a ser sublimado se a pessoa permanece fixada em suas demandas eróticas primitivas, girando em torno de si mesma e reconstruindo de maneira alucinatória o todo perfeito do qual foi desligada com o nascimento. O que não significa uma incompatibilidade completa entre a sublimação e o narcisismo, já que o objetivo da sublimação também é a obtenção de alguma gratificação narcísica. O produto da sublimação é uma espécie de espelho de narciso, e a aprovação social que se pode obter a partir dele também satisfaz e alimenta o narcisismo.
Mas a conquista dessas formas derivadas de satisfação narcísica pela sublimação requer no mínimo que o sujeito deixe, ao menos por alguns períodos de sua vida, de girar em torno de si mesmo. Alguma renúncia é necessária. Até mesmo para o psicótico (uma doença do narcisismo) que, em momentos privilegiados, sublima — e não são poucos os exemplos de artistas e criadores com passagens psicóticas pela vida. Mas o psicótico que permanece psicótico não sabe se aproveitar da sublimação para deixar a psicose. É importante reconhecer, mas não mistificar, o “artista louco”, já que o mergulho na loucura enterra as possibilidades de criação artística. O psicótico, em surto, se transforma em sua própria obra — um personagem de si mesmo. Nijinsky, louco, parou de dançar. Artaud parou de escrever peças. Transformaram-se em personagens de si mesmos. Perderam seus objetos.
[4] Vantagens secundárias da civilização, mas não só secundárias. A convivência amena, a aprovação pela instância (superior, superegoica) da corte, de imediato podem ser apenas gratificações secundárias. A longo prazo, a instauração de normas relativamente corteses de convivência representa uma espécie de passo da nossa civilização para longe da condição animal. Fábio Landa: “É a possibilidade da convivência entre machos, só possível nas sociedades humanas. Nos agrupamentos animais só um macho sobrevive como macho. Os outros são banidos ou submetidos (o que equivale a dizer, castrados) pelo mais forte”.
Acho que outras civilizações, antes da instauração da corte setecentista, resolveram de outras formas a questão de convivência entre machos, em condições de igualdade e cooperação. Os exemplos da Grécia clássica e da tradição dos cavaleiros medievais são só os mais conhecidos. A diferença — e o avanço — representado pelas normas de cortesia a partir do século XVIII é a presença da mulher. A convivência amena entre homens na presença da mulher, numa sociedade em que a mulher vem sendo cada vez mais valorizada.
Essas reflexões dão margem a uma série de outras perguntas. Por exemplo, sobre a violência feminina. Por que as mulheres — que também se odeiam, se invejam, disputam o macho — não se matam, ou se matam com muito menos frequência? Pura repressão? Ou somos “naturalmente” civilizadas?… Ou então: qual a modalidade feminina da violência? Já foi “domesticada” pelas civilizações modernas, ou ainda não?…
[5] O investimento maciço da libido no próprio Ego de uma forma normatizada pela sociedade, na forma de uma linguagem (diferente da psicose) — a estetização da aparência pessoal e do comportamento corteses, equivalente ao que Susan Sontag denominou nos anos 70 como o estilo camp de sensibilidade e comportamento, não deixa de ser uma modalidade de sublimação. Transformação da energia concreta do desejo em algum produto simbólico. Em todo caso, trata-se de uma forma precária de sublimação já que seu único produto é o próprio indivíduo, “estetizado”, e a libido não se expande para além dos limites do corpo.