A voz do outro
Resumo
Comece-se pelo curta-metragem “Congo”, de Artur Omar. Era 1972, e a cultura popular estava em destaque. Ou melhor: a discussão em torno dela. Melhor ainda, uma discussão por parte da classe intelectual. Daí que nenhuma imagem de “Congo” trata da temática anunciada. Nenhuma congada. Não diretamente, pelo menos. Antes, o que há nesse filme de sonegação, nesse filme em branco, constituído de apenas 24 cenas ao vivo, é um plano geral de uma imensa praça retangular em que brincam três crianças. Um palco. Um lugar em que nada se dá ou em que nada dá. O silêncio. O segredo – entrecortado por cataratas de palavras, extraídas de livros sociológicos, antropológicos ou folclóricos sobre o assunto. Nada que decorra da vivência produtiva, mas a distância entre a cultura urbana e o que esta chama de cultura popular. Está em destaque, pois, o que o documentário tende a ocultar, isto é, o sujeito ou o lugar de onde parte o discurso, que se quer onisciente, e é exterior.
Dá-se o contrário em “Rito e metamorfose das mães Nagô”, de Juana Elbein dos Santos, de 1979, que narra diretamente o mito da mãe ancestral, negando-se a comentá-lo. As imagens de pássaros, as pausas, a fixação dos fotogramas, as fusões – são o mito. Trata-se de uma ruptura com o discurso “científico”. Eis a diferença com relação a “Barra-vento” (1962), de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, pois esse claro antecessor de “Rito…” aborda o Candomblé como um meio de alienação, assim como “Viramundo” (1965), cuja ênfase recai sobre a miséria, o deslocamento social, as condições de trabalho, a humilhação, a fome, as frustrações sociais etc. Seguem a mesma linha “Opinião pública”, de Arnaldo Jabor, “A falecida”, de Leon Hirszman, e “Subterrâneos do futebol”, de Maurice Capovilla. É, então, só em 1970 que se faz a crítica do intelectual superior. Num documentário filmado em Recife, Geneton Moraes Neto assume o papel de interlocutor da elite cultural do país negando-lhe o discurso pseudocientífico. Assim, para Geneton, o futebol, por proporcionar prazer, não poderia ser alienador. Tampouco o Candomblé e a Umbanda, que também passam a ser aceitas pelo Geraldo Sarno de “Iaô” e pelo Nelson Pereira dos Santos de “O amuleto de Ogum”. É como se o cinema começasse a praticar uma antropologia de nós mesmos, como acontece em “Loucura e cultura”, de Antônio Manuel, e “Di”, de Glauber Rocha. Aquele retoma um debate sobre arte que aconteceu no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, em 1968. Do filme participam Rogério Duarte, Lígia Pape, Luís Saldanha, Caetano Veloso e Helio Oiticica, em onze planos muito destacados, acompanhados de fragmentos do debate, de que se destacam temas como “a grande farsa que é a cultura brasileira” e “loucura como liberdade de criação”, diante de uma plateia que assume uma postura policialesca e acusa os artistas de “masturbação intelectual”. Preenche os silêncios “A Marselhesa”, numa clara intenção de representar a aspiração à liberdade, o que soa ambíguo tanto porque há muito tempo “A Marselhesa” representa um poder estabelecido quanto porque a orquestração é pomposa, operística. Já Glauber festeja a morte. Em “Di”, o amigo morto é um motivo para viver de modo exuberante, erotizado, carvanalizado. A estranheza dos costumes – os nossos – é, sob a aparência de relato de acontecimentos – da turnê de Ruth Escobar no Oriente Médio –, o tema do documentário “Interprete mais, pague mais”, de Andrea Tonacci (1975). Isso porque o que se destaca dele são as relações que as pessoas estabelecem entre si e com as situações que as envolvem. A representação máxima disso se dá quando diretor, atores e técnicos discutem acerca de uma máquina que, indispensável ao espetáculo, está quebrada. O que seria, então, uma situação banal passa a clímax porque os interlocutores, ao perder o objeto de vista, começam a tratar de dominação, submissão, proteção, alheamento, narcisismo etc. Depois de tal “antropologia”, há ainda uma possibilidade: a de trocar a câmara de mãos. Ou seja: a de transformar o personagem em diretor. E por que não, para maximizar o efeito de tal expediente, alguém exótico? Um lavador de carros, por exemplo? Assim, substitui-se a ideia de produto artístico pela de processo. É o que propõe Aluísio Raulino com “Jardim Nova Bahia”, de 1972. Com “Migrantes”, de João Batista de Andrade, começa o chamado “documentário de intervenção”. Ou seja: passa-se do documentarista “objetivo” para o que intervém ativa e produtivamente. Ele que, ao agir assim – supõe-se –, faz com que aspectos do real venham à tona. Foi essa a proposta mais interessante do Cinema de Rua, movimento documentarista que se desenvolveu na São Paulo do início da década de 1970. E, de fato, há em tal filmografia passagens inusitadas mais ricas do que muito discurso pronto. Exemplo disso dá um burocrata paulistano ao voltar-se para a câmara e dizer que “os migrantes trazem mais problemas a São Paulo, de modo que o baiano devia era ter ficado no Nordeste para trabalhar a terra”. O nordestino continua em destaque em “A pedra da riqueza”, de Vladimir de Carvalho (1975), cuja fotografia branco-e-preto lavada, pouco matizada, oferece poucos detalhes do que ela mostra e, assim, remete à precariedade e à pobreza da realidade para a qual ela se volta: a do garimpo, com seu trabalho árduo, seus acidentes de trabalho, suas famílias desprotegidas. Tudo isso que é reforçado pela música que, estridente e dissonante, gera uma tensão, assim como os ruídos de batidas de ferro contra ferro. Trata-se da realidade como um dado da vida cotidiana, da especulação internacional, da vivência imaginária – sem que haja um discurso que organize os vários níveis que o filme atravessa. Antes, eles surgem da própria estrutura do filme, ao mesmo tempo complexa e simples.
Este texto não é um balanço do cinema documentário brasileiro na década de 70. Pretende apontar para algumas atitudes que se diferenciam do conjunto, algumas atitudes de ruptura que o documentário brasileiro atual não pode ignorar.
UMA CONGADA INVISÍVEL
Em 1972, Congo, de Artur Omar, aborda uma temática perfeitamente enquadrada no cinema de curta-metragem da época: a cultura popular, o folclore. No entanto, com uma sensível diferença: nenhuma imagem refere-se à temática anunciada pelo título. O filme compõe-se de cerca de 148 planos, dos quais 124 são letreiros, letras pretas, fundo branco, filmados em table-top, assim como um desenho, algumas fotografias e páginas de livros. Apenas 24 são planos filmados ao vivo, nenhum deles porém ilustrando a congada. Filme paradoxal por não fornecer ao espectador o que ele anuncia. Filme de sonegação (“filme em branco”) em oposição aos outros que oferecem abundantes imagens destas festas populares em vias de desaparecimento. Em ruptura com estas imagens. A ruptura — nunca diretamente dita pelo filme, devendo ser elaborada pelo espectador em contato com o filme — consiste na afirmação radical da impossibilidade de representar, de reproduzir na tela o fenômeno congada ou uma congada em particular. Problema este que os outros filmes da época não tematizam, fornecendo ao espectador uma última olhadela ingênua sobre estes espetáculos antes que a cortina se feche definitivamente. Com exceção exclusiva, a meu conhecer, de O país de São Saruê (Vladimir de Carvalho, 1971), que coloca a representação de um cavalo-marinho na tela na dependência de uma encenação.
Plano geral de uma imensa praça retangular formada por edifícios de alguma fazenda. Vazia. No fundo, minúsculas, três crianças brincam, acentuando o vazio do espaço. É um palco. É o lugar do espetáculo que não ocorre, que não se dá, que não dá.
Fotografia fixa de uma família negra em trajes cotidianos diante de uma casa de roça. Supostamente guardiã de tradições. Nenhuma informação. Suponho que eles preservem o ritual da congada, transmitido por antepassados e que talvez não conseguirão passar adiante. Talvez, nada a ver.
Primeiro plano de um jovem e belo mestiço. Chapéu de palha, olhando para a câmara. Mudo. Há um espaço vazio. Há uma retenção. Há um silêncio. Há um segredo. Em oposição às imagens loquazes esbanjadas pelos filmes preservadores da cultura popular. É grave. Este filme nega até a função de registro do cinema. Guardar o real, guardar o passado enlatado. A função da imagem cinematográfica para a elaboração da memória nacional. Temas tão queridos. O arquivo histórico, assunto sobre o qual me debruço num projeto para a Fundação Cinemateca Brasileira.
Se não esbanja imagens, Artur Omar esbanja palavras. Cataratas de palavras escritas. O livro é que é o lugar da palavra escrita, não a tela, inclusive porque no livro a gente pode se deter à vontade, voltar, comparar, meditar. O ritmo da projeção não permite que extraiamos todas as significações que rapidamente percebemos nestas palavras, nem que estabeleçamos entre os letreiros as relações que vislumbramos. Mergulhados num mar de palavras que assumem uma força dramática em si, além do que elas significam. Num deserto de imagens, vamos vivendo a nossa vida urbana, universitária, livresca. As palavras de Omar são as nossas palavras de autores ou leitores de sociologia, antropologia, folclore etc. É através de nossas palavras sociológicas ou antropológicas emitidas nas cidades e nos livros que entramos em contato com formas da cultura popular, rural, tradicional. E não através de uma vivência produtiva. Mesmo que nos aproximemos de um bumba-meu-boi, por mais que tentemos aspirar por osmose essa tradição cultural, a nossa formação não deixará de ser os livros e a cidade; e até se rompermos esta formação, poderemos ser espectadores empáticos, nunca produtores de um bumba-meu-boi em evolução. Mas palavras poderemos produzir, livros como esse Dança dramática no Brasil, de que o filme reproduz uma partitura tirada por Mário de Andrade da congada de Atibaia.
É disso que fala Congo. Da distância entre nossa cultura, nosso meio, nossa classe e aquilo que chamamos de cultura popular. Distância que o projeto de memória nacional nega em nome da unidade nacional. Um filme não sobre a cultura popular, mas sobre a relação que estabelecemos com a cultura popular, pois a única e exclusiva maneira de atingirmos a cultura popular é através dessa relação, já que jamais seremos produtores de cultura popular, que será sempre o outro mediatizado.
Ao negar o alcance direto e mágico à cultura popular e ao trabalhar sobre a mediação, Congo faz surgir o sujeito que, tradicionalmente, o documentário tende a ocultar. Ao apresentar-se como contato direto com o real, como registro do real, o documentário tradicional disfarça o sujeito que toma contato, que registra o real. O sujeito finge que não existe. Em realidade, existe. É o sujeito, nem tão invisível assim, que assume uma posição onisciente: ele sabe tudo sobre o real de que trata, e assim fazendo ele torna o real objeto de seu conhecimento, objeto de seu filme. Ao afirmar a presença do sujeito e ao trabalhar sobre a mediação, Congo não atribui à cultura popular a função de objeto, mas estabelece relações entre dois sujeitos, do ponto de vista do sujeito que fala. Donde a radical impossibilidade de sua representação, que tornaria objeto, para o documentarista e para o espectador, o representado, já que qualquer representação seria sempre uma representação produzida pelo sujeito.
Imagens, palavras, músicas de Congo ordenam-se como uma rede que constitui a mediação entre o sujeito e a cultura popular. Não descreverei o filme. Apenas alguns exemplos. A faixa imagem constitui-se de duas séries: uma referente à cultura burguesa e ao catolicismo, a outra ao interior. Numa sala de prédio colonial, uma panorâmica de 3600durante a qual a câmara encontra medalhões onde lemos “Indústria — Poesia — Escultura — Pintura” etc. São os valores de uma certa cultura burguesa, é o recorte que ela estabelece no saber e nas atividades culturais. Vacas, porcos, um galpão, crianças: é o que o sujeito apreende do interior. Os letreiros fazem piscar a palavra “Mímesis”, dizem: “Antigas epopeias contra herói atual” (uma referência a Lukács), “Romances históricos — marítimos — mouriscos — cavalheirescos e novelescos”, “Kinoglaz”, “Dialética do filme + alvos táticos”: são as referências culturais do sujeito, seu instrumento de conhecimento para abordar a congada. Ou uma fotografia de Os inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade. Aí Congo dialoga explicitamente com outros filmes de seu contexto cultural: o filme histórico representa a História, gruda a ela como grudam os documentários à cultura popular, ou instituem a História como outro sujeito? Os inconfidentes, em particular? Na sua abordagem da cultura popular, Congo posiciona-se em relação a outros discursos cinematográficos que fazem parte de seu contexto cultural.
Até o sistema de pensamento que apreende a congada e a relação com a congada se explicita: “sudaneses x bantus”, “marujos x mouros”, “Rainha Ginga contra Ana de Souza”, “poder absoluto contra dissolução dos laços”, “1618 + 1972”: é esta forma de pensamento binário, por junção ou por oposição, que estrutura cerca da metade dos letreiros, tal como esse “Tese contra antítese”, e que estrutura a relação com a cultura popular.
Congo nos diz que, do lugar onde estamos, não temos contato direto produtivo com a cultura popular. Não existe essa de registrar, preservar, memorizar, arquivar a cultura popular em filmes. Donde estamos, falar de cultura popular só pode ser trabalhar sobre a nossa exterioridade, a nossa mediação com a cultura popular.
UM PEIXE MÍTICO
Congo nega radicalmente um tipo de cinema sociologizante que pretende falar sobre o outro tomado como objeto, que se recusa a reduzir o outro a ser falado. Rito e metamorfose das mães nagô, que Juana Elbein dos Santos realiza em 1979, nega este cinema sociologizante, mas também se opõe a Congo, porque, ao invés de trabalhar sobre a exterioridade, tenta construir um ponto de vista de dentro. Rito e metamorfose aborda o mito da mãe ancestral no imaginário nagô. Só que não fala sobre o rito, nem fala sobre uma comunidade de candomblé, seus rituais e sua mitologia. As duas primeiras sequências, que são as que importam aqui, expressam diretamente o mito. O discurso é de dentro para fora. O filme não nos diz que há pessoas para as quais pássaros e peixes simbolizam a mãe ancestral. A linguagem cinematográfica reelabora o mito. As imagens de pássaros, suas pausas, a fixação de fotogramas, as fusões, são o mito. As imagens não se referem ao mito, elas são cinematograficamente o mito. Há evidentemente muito a fazer nesse sentido, já que o documentário que trabalha nos campos da sociologia, da antropologia e da etnografia está pouco preparado para isso, inclusive pouco preparado para deixar de ser um documentário sociológico, antropológico ou etnográfico.
Num momento da segunda sequência, o filme chega a provocar no espectador uma emoção reveladora, a meu ver, dessa ruptura com o discurso “científico” a que estamos acostumados. A primeira sequência estabelece o mito da mãe ancestral, ligado ao pássaro e suas plumas, ao peixe e suas escamas. A segunda sequência mostra mulheres baianas em afazeres cotidianos, na feira. Uma peixeira escama um peixe, num gesto familiar para quem vai à feira. O peixe morto é escamado, um objeto que compraremos e comeremos. Mas sobre o plano do peixe sendo escamado entra um trecho do poema já ouvido na primeira sequência e que afirma o status mítico do peixe e das escamas. Este peixe, de repente, é invadido por uma outra dimensão que nos escapa nas relações que mantemos habitualmente com ele. Valor de troca, valor de uso, mas mito e imaginário. Essa realidade peixe não pode ser abordada de um ângulo único, esta realidade é múltipla e irredutível.
A ruptura com a voz sociológica que opera Juana dos Santos em relação a religiões populares não é um ato solitário. Encontramo-la também em filmes de Geraldo Sarno e Nelson Pereira dos Santos. Nelson montou, no início dos anos 60, o filme de Glauber Rocha Barra-vento, onde o candomblé era visto sob o ângulo “religião ópio do povo”, como uma alienação que bloqueava o despertar da consciência social e obstruía uma prática lúcida e eficiente. Em 1965, Sarno concluía Viramundo, o clássico do documentário sociológico brasileiro: a miséria, o deslocamento social, as condições de trabalho, a humilhação, a fome, a impossibilidade de se tornar dono de sua vida empurram o contingente nordestino da classe operária paulista para comportamentos místicos em que os crentes compensam suas frustrações sociais e emocionais e se alienam. Frequentes são os filmes dessa época que apresentam cenas de explosão mística em que desaguam a frustração, a opressão, a humilhação, a agressividade reprimida, a impotência, seja a religião propriamente dita, como nos filmes acima citados ou em Opinião pública (Arnaldo Jabor, 1966), seja a religião futebolística, em A falecida (Leon Hirszman, 1965) ou principalmente Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965).
Nos anos 70, essa atitude muda de 180°. Faz-se uma crítica do intelectual superior que do alto de sua câmara julga cientificamente o comportamento do povo, lhe mostra seus erros e aponta para o caminho correto pelo qual evolui a História. Num documentário Super-8 realizado no Recife, Geneton assume o papel de um intelectual que se dirige à elite cultural negando taxativamente as interpretações pseudocientíficas oriundas dessa elite, conforme as quais o futebol é uma alienação e gera ou decorre da passividade do povo, ou é exclusivamente uma manipulação por parte da classe dominante. Ele afirma (antes afirma verbalmente do que mostra ou vivencia e, por isso, não altera o nível do discurso, que continua sendo um discurso “sobre” o povo) que futebol é um prazer, que prazer não é alienante nem incompatível com consciência e luta social e política. Em relação à religião, encontramos uma reviravolta semelhante em Iaô, de Geraldo Sarno (1975), e O amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos (1975). Candomblé e umbanda passam a ser aceitos. Nelson afirma que a atitude do cineasta diante deste comportamento religioso deve ser acrítico e o filme, intencionalmente, é dirigido aos umbandistas, que, diz Nelson, ao sair da projeção, deveriam sentir-se bem e aprovados no seu comportamento. A vontade de se dirigir aos umbandistas e de tentar oferecer uma visão de dentro está explícita nas intenções de Nelson quando ele diz que os espectadores não familiarizados com a umbanda não entenderão os ritos apresentados pelo filme. Basta que, no terreiro, se vejam algumas pessoas se comportarem como crianças para que um umbandista identifique de imediato a festa de Cosme e Damião, e quem não estiver a par não entenderá. Mas uma maior explicação do ritual, que se dirigiria a pessoas não informadas, já afirmaria o ponto de vista externo e tornaria a festa de Cosme e Damião objeto. Afinal, no “nosso” cinema, basta que vejamos uma mulher vestida de branco numa igreja para que, sem mais amplas explicações, reconheçamos um casamento e achamos isso natural, pois, católicos ou não, fomos formados nos rituais católicos. Para quem não tivesse essa formação, seria necessário dizer: eles vestem as suas mulheres de branco e as levam para um edifício onde…
Quanto a Iaô, Sarno filma o processo de iniciação com extrema dedicação e ternura, e afirma que os valores populares expressos no candomblé são revolucionários. E Sarno não pretende tratar o candomblé como objeto, revelando explicitamente essa preocupação quando o próprio diretor se filma praticando rituais: ele não é exterior ao que filma, ele penetra dentro. Ao nível desta sequência, pode pairar alguma ambiguidade entre a participação e a atitude tática para poder filmar. Mas não deixa de ser uma tentativa de quebrar a relação sujeito-objeto e encontrar um discurso de dentro.
Nem Nelson, nem Sarno, a meu ver, deram o salto qualitativo de elaborar uma expressão religiosa de dentro, o que com certeza não poderiam ter feito. Mas as suas atitudes expressam a profunda mudança de postura dos filmes dos anos 60 para os dos anos 70, e sua posição pode ser vista como uma transição para a de Juana dos Santos.
ANTROPOLOGIA DE NÓS MESMOS
Gostaria de relacionar com este assunto outros filmes que na aparência não têm rigorosamente nada a ver com isso: Loucura e cultura, de Antônio Manuel (1972), e Di, de Glauber Rocha (1977), por exemplo, trabalhos que inovam em matéria desse cinema que se tem chamado de antropológico. Tradicionalmente, antropologia, cinematográfica ou não, pratica-se junto a povos tidos como primitivos, em todo caso não aos grupos sociais aos quais pertencem os próprios antropólogos.
Loucura e cultura retoma um debate sobre a arte realizado em 1968, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Do filme participam Rogério Duarte, Lígia Pape, Luís Saldanha, Caetano Veloso e Helio Oiticica, nesta ordem. Rogério, Lígia e Caetano são filmados ao vivo e aparecem sucessivamente de frente, de perfil e de costas, posando para a câmera, encostados sobre o fundo, praticamente imóveis. Saldanha não aparece, é substituído por ponta preta. De Oiticica, foi filmada uma fotografia de perfil. No total, onze planos muito destacados, pois o corte nunca é disfarçado. Na faixa sonora, fragmentos do debate, que fora gravado, e A Marselhesa, inicialmente só música instrumental e a seguir cantada. “Atenção. Atenção. Eu preciso falar. Atenção. Eu quero falar” é a primeira frase do debate selecionada para o filme. Fala-se da “grande farsa que é a cultura brasileira”, “a loucura para mim significa um sentido de liberdade, de criação”, “é que eu sou muito garoto ainda, entendeu?”, acusa-se a atitude repressiva e policial de parte da plateia, em particular uma pessoa que tachou a discussão de “masturbação intelectual”. O filme revela um momento de uma intelectualidade oprimida, acuada, desorientada. A opressão policial manifesta-se pelo tipo de enquadramento: as pessoas estão filmadas como se se tratasse de uma identificação policial. O exílio é a ponta preta e a foto de Oiticica. A dureza geométrica da filmagem e da montagem, que lembra a dureza de certos filmes de Júlio Bressane, expressa a repressão a que estão submetidos estes artistas e se vincula também à propagação no Brasil de certas teorias linguísticas (composição em série etc.). A faixa sonora é o lugar da aspiração à liberdade: fala-se e expressa-se necessidade de falar (enquanto as pessoas na imagem permanecem mudas), fala-se da repressão, mas da repressão no ambiente, fala-se de liberdade e criação. A Marselhesa é o sonho literário. O que escrevi até agora representa mais ou menos o nível intencional do filme.
Mas Loucura e cultura adquire maior dimensão se percebido como profundamente ambíguo. A começar pela Marselhesa. Se foi um hino de liberdade, há muito deixou de ser, é hoje um hino oficial manipulado pelos donos do poder. A gravação escolhida por Antônio Manuel só reforça este aspecto: pomposa orquestração, canto operístico. Nada a ver, por exemplo, com a Marselhesa assobiada no final de O noivo da morte (Walter Rogério, 1975): um assobio interrompido, hesitante, desafinado, pobre, paradoxalmente forte. A Marselhesa de Loucura e cultura é um apelo à liberdade, mas uma liberdade abstrata, indefinida, já deglutida pelo poder. A imagem, ela também é ambígua: repressão policial, sim, mas o que vemos na tela é sinistro. As pessoas estão mudas e petrificadas. E o fato de o último segmento da série ser uma foto fixa aumenta a sensação de petrificação progressiva. Essa petrificação será só efeito da repressão, será ela só uma fachada atrás da qual fervilha uma vida reprimida? Não é essa a impressão: antes parecem horríveis figuras de cera de que se retirou a vida, a morte já interiorizada, o que é resultado da maneira de filmar (é um dado da expressão de Antônio Manuel, não das pessoas filmadas). Mudas porque não as deixam falar, ou mudas porque não têm mais o que dizer, a não ser esse confuso apelo a uma liberdade abstraída e fossilizada?
Há uma tensão entre o que chamarei o nível intencional, planejado, controlado pelo autor, e a ambiguidade das leituras possíveis, o que provavelmente lhe escapou. Esta repressão, esta dureza de estilo, esta morte, este apelo à liberdade, esta confusão no apelo à liberdade delimitam um campo em que se debatia a angústia de uma determinada intelectualidade, findo o sonho.
Glauber faz da morte uma festa. A morte do amigo é um momento de vida exuberante, altamente erotizada, donde jorra o carnaval de uma vida. Através do morto, Glauber mergulha na sua vida. Profundamente chocante para quem a morte é um momento de silêncio, de sepulcro, para quem o morto deve ser reverenciado pela tristeza. Ao se opor à atitude que adotamos usualmente diante da morte, Di nos confronta com esta atitude (que consideramos inquestionável — quem não fica triste diante do morto querido? — qualquer questionamento seria irreverente) e ao mesmo tempo nos abre para outras possibilidades de nos relacionarmos com a morte na nossa sociedade, de vivermos a morte de outra maneira. É bastante diferente fazer um filme que encara o processo da morte na nossa própria sociedade ou sobre os rituais fúnebres de uma longínqua aldeia zulu.
Interprete mais, pague mais, que Andrea Tonacci realizou em 1975 a partir de uma turnê de Ruth Escobar no Oriente Médio, também se inclui neste movimento de fazer a antropologia de nós mesmos. O filme poderia ser promocional ou um relato de acontecimentos: o espetáculo, os ensaios, a viagem etc., há tantos assim. Porém, a maneira de Tonacci filmar, o que ele valoriza e aquilo a que ele dá pouca importância tornam os episódios um simples pano de fundo. O que ele desenvolve (com a participação, às vezes, das próprias pessoas envolvidas no filme, embora não tão intensa como ele teria gostado) são as relações que as pessoas estabelecem entre si e com as situações que as envolvem. Num dos momentos mais intensos do filme, a produtora do espetáculo, o diretor, atores, técnicos discutem em torno de uma máquina indispensável ao espetáculo, mas que não funciona e cujo conserto é problemático. Perplexidade geral, a discussão estagna. Esquecemos a máquina. E o que desponta nesta grotesca e angustiante discussão, que vai se tornando sem objeto, são os comportamentos e as relações entre as pessoas. Dominação, submissão, proteção, alheamento, narcisismo, pequenas demissões, pequenos apoios, pequenos rituais. O mesmo ocorre com um laboratório que acaba em briga. Não é o comportamento de algum povo “primitivo”, nem mesmo o de seres estranhos e engraçados que seriam as pessoas de teatro, mas é o comportamento do próprio meio a que pertencemos. Somos sujeitos e objetos, simultaneamente, na tela e na sala.
Lembro de uma frase de Valêncio Xavier: estávamos conversando sobre a Guerra do Contestado, as motivações religiosas dos chamados fanáticos, o primeiro militar morto em combate, a quem foi feito, em Curitiba, um enterro copiado no de Sadi Carnot em Paris. Valêncio observou que nós e os livros sempre consideramos como digno de estudo o comportamento religioso dos rebeldes, mas nunca questionamos o comportamento religioso dos militares e da classe dominante que os reprimiam. Basta isto para marcar posições: os rebeldes são os outros, por quem podemos ter a maior simpatia, mas continuam os outros; estamos do outro lado. Do lado dos militares, por quem podemos até ter a maior antipatia, criticar sua ação, mas não os consideramos como objetos de estudo estranhos a nós. O que estou dizendo é que os filmes de Antônio Manuel, Glauber e Tonacci inauguram um cinema antropológico sobre nós mesmos, uma antropologia em que não se distingue o sujeito do objeto (o que não deve parecer muito científico). Antônio Manuel não fica de fora do grupo de artistas que ele mostra na tela, ele investiga dimensões ideológicas deste grupo de dentro. Glauber fala da vivência ou da não-vivência da morte que tem o grupo a que ele e seus espectadores pertencem.
CÂMARA NA MÃO DO OUTRO
Haveria um outro passo: passar a câmara para as pessoas que são vistas na tela, de forma que o filme não expresse apenas como elas são vistas por outros olhos ou como se dialoga com elas, mas como se vêem. Por volta de 1972, Aluísio Raulino realiza Jardim Nova Bahia, onde ele tenta dar esse passo. O filme mostra um nordestino lavador de carros em São Paulo; Raulino o leva a Santos e, na praia, lhe passa a câmara. No filme, vemos o rapaz filmar e o material por ele filmado. O resultado é pouco significativo, nem podia deixar de ser; muito significativa é a situação do documentarista que sente a necessidade de quebrar o domínio de sua voz e de deixar o outro falar. Mas o documentarista defronta-se com o exótico da situação do lavador-cineasta: este se encontra numa situação estranha às coordenadas de sua vida, uma situação concedida, e não sabe manejar
equipamento. Quanto à seleção do material, montagem e sonorização do filme, ficam nas mãos do cineasta. De qualquer forma, o filme de Raulino expressa uma das tensões principais do documentário brasileiro e aponta para uma solução mais radical que a que se divulgou nos anos 60: dar voz àqueles que não falam através das entrevistas do Cinema Verdade.
Outros trabalhos vêm sendo feitos. Enquanto Juana dos Santos filma Rito e metamorfose, pessoas da comunidade filmam em Super-8. Por enquanto estas filmagens servem de treino para o pessoal da comunidade e de informação para os cineastas. Tonacci vem desenvolvendo há tempo um trabalho semelhante com comunidades índias, só que usando TV, o que permite uma resposta imediata: quem opera logo vê no vídeo o resultado de seu trabalho e pode reagir na hora à imagem que, com o aparelho, ele cria de si próprio, como também podem reagir os que aparecem no vídeo.
Essas atitudes, desde que não entendidas como experiências de etnólogos, podem gerar entre nós novos conceitos de cinema. O conceito de obra, diante dessa prática de filmagem, perde muito de seu sentido. A ideia de obra como unidade, bem como a de autor, se dilui. A ideia de obra como objeto diferenciado tende aqui a ser substituída pela ideia de processo que pode ou não resultar num objeto final. Mesmo que se chegue a um objeto final, este não é o objetivo principal do processo. Também se dilui a ideia de mercadoria a que atualmente o objeto artístico está visceralmente ligado. Também fica colocada a questão da fonte de produção. Enquanto produção e equipamento permanecerem nas mãos exclusivas dos cineastas profissionais, a passagem da câmara será sempre uma situação concedida e limitada, por mais que as experiências se tornem mais complexas e interessantes. A transformação estrutural da produção coloca evidentemente questão extracinematográfica; é toda a questão dos meios de produção e da produção do saber que está em jogo. Neste contexto, o cinema amador, o filminho de família, as anotações de viagem podem vir a se tornar bastante significativos.
DOCUMENTÁRIO DE INTERVENÇÃO
Existe uma fortíssima tradição conforme a qual o documentarista deve desenvolver todos os esforços possíveis para não alterar a realidade que documenta. De fato, há sempre um processo de intervenção, nem que seja pela presença do equipamento e da equipe, nem que seja pela escolha do enquadramento na filmagem e pela montagem. Mas, frequentemente, o documentário faz de conta que não há intervenção, dá a volta por cima e a realidade lá estaria na tela, objetivamente.
João Batista de Andrade assume uma posição antagônica: a intervenção é inevitável, deve ser assumida, e mais: deve ser uma intervenção ativa e produtiva. Longe de fingir a neutralidade, Batista intervém na realidade que filma, o que ele pretende é que esta intervenção faça vir à tona aspectos do real. O que ele filma é esta intervenção, como o real se revela graças a esta intervenção, que envolve o documentarista na sua relação com o que ele filma.
Foi esta a proposta mais interessante do Cinema de Rua, movimento documentarista que se desenvolve em São Paulo na primeira metade da década de 70, e que retoma uma temática popular ausente das telas durante muitos anos: condições de vida, acidentes de trabalho, condução, trombadinhas, construção civil etc. O tom é de reportagem. São feitos em condições de produção precárias. Dirigem-se especificamente a pessoas concernidas pelos problemas abordados na tela. A proposta de uma dramaturgia de intervenção foi certamente, para o nosso propósito, o que de mais rico houve no movimento no sentido de criar novas relações entre o documentarista, a realidade abordada e o público. Migrantes, realizado por Batista, é o primeiro filme do movimento.
Já em 1966, ele dava início a esta proposta com Liberdade de imprensa, filme cuja originalidade não foi devidamente percebida na época. Ao lado de entrevistas com personalidades que falavam sobre o assunto-título, ele aproximava-se de pessoas que estavam perto de bancas de jornal, entregava-lhes livros com trechos grifados sobre imprensa, pedia-lhes que lessem, e depois as entrevistava sobre o que acabavam de ler. Tecnicamente, era uma heresia, o inverso dos bons modos, pois o entrevistador não deve motivar o entrevistado, nem lhe sugerir pistas de respostas. Mas o que Batista queria registrar era exatamente isto: como reagia o entrevistado ao receber a informação nova, e essa reação revela tanto a situação em que se encontra a pessoa, como o desequilíbrio provocado pela informação e eventual reequilíbrio. Num sentido semelhante, em vez de filmar policiais na cidade para mostrar a repressão, ele armou na rua uma situação: um debate entre algumas pessoas na calçada provocou ajuntamento de gente; policiais intervêm para dispersar o grupo que discute. Liberdade de imprensa foi tão importante pelo tema que abordava como pela proposta que lançava no quadro do documentário brasileiro. Era a negação do discurso sociológico como fonte de verdade, a recusa da posição de superioridade que consiste em mostrar fatos e pessoas e falar a respeito, ex-câmara, era assumir não o papel de um pretenso observador neutro, mas uma posição ativa que assume a responsabilidade de criar situações nas quais as contradições sociais se expressam.. É isto, me parece, que leva Batista ao conceito de dramaturgia de intervenção.
Essa proposta desenvolve-se em alguns filmes do Cinema de Rua. Deste ponto de vista, a sequência mais significativa de Migrantes é um diálogo entre um nordestino recém-chegado a São Paulo, instalado com a família debaixo de um viaduto, e um colarinho-branco paulistano. O nordestino expõe a sua situação, a impossibilidade de trabalhar a terra no Nordeste, a necessidade de um trabalho para sustentar a família. Enquanto o burocrata defende a tese de que “São Paulo tem muitos problemas, os migrantes trazem mais, de qualquer modo o baiano não vai resolver seu problema, devia ter ficado no Nordeste ou pelo menos ir para o interior do estado trabalhar a terra”.
Esse diálogo não tinha sido previsto pelo diretor, que começa a sequência entrevistando ele próprio o nordestino. O burocrata, como outras pessoas, parou para assistir à filmagem e se meteu na conversa. Ao invés de afastá-lo, como faria o documentarista tradicional, o diretor o integrou à filmagem. Há um aproveitamento da situação de filmagem e do que essa situação pode fazer surgir espontaneamente. Esse espontâneo é aproveitado desde que seja revelador das contradições que o documentarista quer expor. O documentarista não fala sobre o nordestino, ele procura na realidade que filma os elementos cujo choque revela as tensões que ele quer passar para o espectador. Uma situação semelhante encontra-se em A escola de 40.000 ruas, sobre menores desamparados. A filmagem provoca ajuntamento de gente. Uma senhora, que diz ter sido roubada recentemente por um trombadinha, agride verbalmente um menino, como se ele fosse o ladrão, e o menino, encurralado por inimigos, defende-se.
Os dois atores em oposição podem não se encontrar no mesmo local e então o filme promove o contato. Os moradores de uma favela da marginal do Rio Pinheiros vão ser deslocados para o Jardim Maria Luiza, perto de um conjunto habitacional operário. Mulheres de operários do Jardim queixam-se contra a remoção dos favelados: como poderão criar os filhos se estes estiverem em contato com favelados, isto é, marginais, ladrões, toxicômanos etc. Esta a situação. Batista vai ao Jardim, filma mulheres de operários e grava seus depoimentos sobre os favelados. Em seguida, vai à favela, bota o gravador e faveladas ouvem o que as mulheres de operários disseram a seu respeito; esta cena é filmada, bem como a resposta que elas dão aos comentários do Jardim Maria Luiza. Com este material, monta-se o filme, que foi feito no quadro do departamento de jornalismo da TV Globo de São Paulo. Batista avisa aos dois grupos quando o filme irá ao ar. A sua intenção (ficou na intenção, porque não teve condição de produção para terminar o projeto) era voltar aos dois lugares, filmar novamente e verificar que modificações tinha provocado (ou não) o filme nos espectadores envolvidos na situação, principalmente se as mulheres de operários mudavam de opinião após ter ouvido as faveladas. Este documentário, que não foi conservado, cria uma situação nova que não existe independentemente dele (faveladas e mulheres de operários dialogando através do filme), define as posições antagônicas pelo choque entre elas, registra as reações provocadas por informações novas (as faveladas ouvindo as mulheres de operários e, se o projeto tivesse ido para frente, as reações ao filme).
Em O buraco da comadre, a intervenção iria mais longe ainda, não tivesse o material em grande parte se perdido por motivos técnicos: no Jardim Brasil, um enorme buraco de mais de cem metros atravessa uma rua; moradores filmados e entrevistados explicam a situação desse buraco, que não cessa de crescer pelos anos, sem que nenhum ofício, nenhuma gestão junto à Prefeitura tenha surtido qualquer efeito, donde as queixas contra os poderes públicos. Durante a filmagem, atores que trabalham em teatro de periferia também entrevistam e recolhem informações junto aos moradores. A seguir, descem no buraco e fazem uma representação teatral baseada nestas informações e no comportamento que se depreende do que disseram os moradores. Estes vêem o seu comportamento estilizado pelos atores, estabelecendo-se então um diálogo entre atores e moradores sobre a sua dependência em relação aos poderes públicos. Tal como ficou, o filme é uma queixa contra o descaso da Prefeitura, o que não impede que a proposta seja de uma grande riqueza. A situação de filmagem não é uma circunstância que permite a realização do filme e que deve ser mais ou menos disfarçada para não “prejudicar a abordagem do real”, mas ela se constitui como a situação concreta em que se estabelecem relações dramáticas que revelam o real.
A REALIDADE MÚLTIPLA
Quero falar de outro filme. Como ler A pedra da riqueza, de Vladimir de Carvalho (1975)? Inúmeras maneiras. Pelo que nos interessa aqui, eu diria que o filme apresenta-se como muitos outros filmes que descrevem as más condições de vida e de trabalho do proletariado brasileiro. Vemos um garimpo, a dureza do trabalho, a insuficiência de proteção contra acidentes. Sobre as imagens, a voz de um depoente que fala de sua vida na época em que trabalhava no garimpo: trabalho árduo, acidente de trabalho, família sem proteção, dormir debaixo de árvores para se proteger contra eventuais despencamentos de barreira durante a noite. Ruídos ambientes. Música. Assim lido, A pedra da riqueza não oferece grande originalidade.
No entanto, aprofundando o nosso contato com A pedra da riqueza, o filme vai revelando outros aspectos. Já a fotografia. Uma fotografia branco-e-preto extremamente lavada, pouco matizada, oferecendo poucos detalhes sobre o que ela mostra. Obviamente, a finalidade desta fotografia não é apenas mostrar. Esta fotografia tosca, que poderá provir de uso de negativo vencido (usado fora do prazo dentro do qual o negativo mantém a sua maior sensibilidade), nos remete à produção tosca. A pobreza assumida da produção e a aparente precariedade da fotografia nos remetem à precariedade e pobreza daquilo que nos é mostrado. Tenho impressão de que foi com Aruanda (o primeiro filme do movimento documentarista paraibano, no fim dos anos 50, e no qual trabalhou Vladimir de Carvalho) que se começou a interpretar a pobreza da produção em documentários, desde que assumida, como a expressão da miséria das pessoas mostradas na tela. Isto logo virou cacoete. A pedra da riqueza, na tradição paraibana, retoma isso e vai além: a fotografia estourada parece tender para uma abstração de manchas pretas e brancas, às vezes numa perda quase total de perspectiva. A gente sente neste jogo de manchas que há algo além da descrição. O que é reforçado pela música, estridente e dissonante, que cria uma tensão, mas não se relaciona diretamente com o garimpo. Os ruídos ambientes também são usados musicalmente: batidas de ferro sobre ferro surgem, na faixa sonora, no início do filme, sem que se veja a fonte do ruído, e, quando esta aparece, não há sincronização: uma defasagem entre o que se ouve e o que se vê. O filme nos faz tomar conhecimento do que ele mostra, mas ao mesmo tempo nos distancia.
Um elemento de montagem que nos distancia mais ainda são quatro pequenas sequências escuras (uma delas a primeira do filme), que contrastam com a fotografia estourada do garimpo. É a mesa de montagem onde o depoente está vendo o material. Longe da luz do garimpo, é a caverna onde o filme está sendo transado. O garimpo que estamos vendo na tela não é o garimpo puro e simples, mas sim o resultado desse trabalho de montagem.
Uma pessoa, encostada à mesa de montagem, faz uma pergunta ao depoente: “Você sabe para que serve a xelita?”, o único som sincronizado em todo o filme, o que salienta a força dramática da frase. Ficamos sabendo que se trata de uma mina de xelita, e provavelmente não saberíamos responder à pergunta. Como também não sabe o operário. “Não sei para que serve a xelita. Porque eles levam a xelita para Campina Grande, mas eu não tou sabendo para que é (…) acho que eles levam.., traz aqui para o estrangeiro.” Esta é a última fala do filme, deixando patente não apenas uma deficiência de saber, mas fundamentalmente um aspecto da relação de trabalho: o operário ignora a finalidade do seu trabalho, uma das formas da espoliação. O filme, num longo letreiro final, responde à pergunta: “O tungstênio retirado da xelita é usado, sobretudo, na indústria de guerra, na requintada tecnologia das grandes potências. Foguetes e naves espaciais são revestidos dessa poderosa liga de aço, de têmpera resistente ao fogo e ao choque mais violento (…) O garimpo visto aqui é um dos muitos da extração rudimentar no Nordeste, onde se situa a reserva brasileira, talvez a maior do mundo, depois das jazidas da China Continental.” Com este texto, dá-se um pulo imenso: o pequeno trabalho sofrido desse homem no garimpo, um detalhe minúsculo, encaixa-se de repente num sistema internacional. O garimpeiro tinha conhecimento da exploração do trabalho, mas ao nível mais imediato, aquele que ele sente na pele. Assim ele fala do patrão: “0 cara que descobriu que havia minério na terra dele continuou a exploração, então ficou numa situação boa, mas porque era dono da terra. Ele compra o minério por um preço e vende por outro. Se ele compra por, digamos, dois, ele vai vender por uns dez contos.” Só que, da exploração internacional do trabalho, o operário não tinha conhecimento. A banalidade da pergunta, a resposta do garimpeiro, o garimpo rudimentar, a ponta de lança da tecnologia espacial: estes diversos elementos dão grande força dramática à discrepância entre este nordestino miserável e a finalidade de seu trabalho. É particularmente relevante aparecer essa dimensão da exploração do trabalho em A pedra da riqueza porque ela é completamente ausente do documentário brasileiro, que, frequentemente, descreve a miséria e a exploração exercida pelo patrão mais imediato, mas não alcança o capitalismo internacional. E só este dado já diferencia profundamente o filme de Vladimir de Carvalho no contexto do documentário brasileiro.
Essas “naves espaciais” de que fala o letreiro final nos remetem ao letreiro inicial que anuncia: “A Cinemateca do MAM apresenta / A pedra da riqueza / ou A peleja do sertanejo para desencantar a pedra que foi parar na Lua com a nave dos astronautas”. O subtítulo tem o sabor de um título de livrete de cordel e gera uma expectativa que em nenhum momento o garimpo, a mesa de montagem, o depoimento, a música satisfazem. É só nas naves espaciais do letreiro final que vem ecoar a pedra mágica da literatura de cordel. E subitamente novo circuito se estabelece na realidade elaborada pelo filme. Este subtítulo sugere outra dimensão da realidade: a do imaginário, como o imaginário trabalha a realidade. E esta, mais uma vez, é uma dimensão que raramente aparece no documentário brasileiro, que ou aborda o imaginário (festas, artesanato etc.), ou descreve as condições de vida e de trabalho, mas raramente se preocupa em abranger os vários níveis da realidade. O que destaca nitidamente o filme de Vladimir de Carvalho do contexto documentarista em que foi feito é que ele trabalha simultaneamente em vários níveis. A realidade é um dado da vida cotidiana, um dado de um sistema internacional, uma vivência imaginária. Os vários níveis não resultam da fala de algum narrador que nos explicaria como são as coisas, mas os vários circuitos do real surgem da própria estrutura do filme, ao mesmo tempo complexa e simples. É a relação estabelecida entre a imagem e a fala, e os dois letreiros que as imprensam, que faz surgir os vários níveis em que a realidade é trabalhada.
Filmes que afirmam de modo inequívoco que o documentário brasileiro passou por profundas transformações nos anos 70. Numa fase de intensa repressão, que não favorece as inovações culturais, numa fase em que concursos públicos levam cineastas a produzir filmes estéreis sobre igrejas barrocas, artesanato e personalidades do mundo cultural, atitudes novas despontam. Não apenas filmes melhores ou filmes bons. Mas, sim, filmes que revelam nova compreensão da sociedade, do outro, do sujeito cineasta, da inserção do artista na sociedade. Naturalmente, não houve geração espontânea. Algumas destas atitudes são anunciadas na década de 60 por filmes como, além de Liberdade de imprensa, Lavrador, de Paulo Rufino, Indústria, de Ana Carolina Teixeira Soares, Rodas e outras histórias, de Sergio Muniz, e outros.
Entre os diversos filmes que citei (e, com certeza, poderia ter citado mais alguns, como o de Rudá Andrade sobre Oswald de Andrade, de Otávio Tavares sobre Harry Laus, trabalhos de Sérgio Peo), por mais diversos que sejam, afinidades são encontradas. Duas me parecem essenciais. A primeira é que a realidade tende a não ser mais achatada por uma compreensão unívoca. A realidade é múltipla. A multiplicidade de seus aspectos não é excludente, nem um mais verdadeiro que o outro: os vários níveis articulam-se entre si e todos pertencem a vivências tão importantes e significativas umas quanto as outras. Outra afinidade não menos essencial: a quebra do poder do documentarista que não aborda seu objeto de estudo do alto de sua sabedoria, reduzindo o outro à categoria sociológica. O cineasta coloca-se como um sujeito, e não como o sujeito onisciente e onipotente; ele se recusa a constituir o outro como objeto e trabalha sobre a distância entre ele e o outro; institui o outro como sujeito, dialoga com o outro como outro sujeito. O fato de aparecer o sujeito documentarista (e não filmando ingenuamente a câmara filmando, mas na estrutura do filme) e a constituição do outro, não em objeto, mas em outro sujeito, são movimentos complementares de um mesmo processo. Assim como são movimentos complementares o surgimento do usual objeto sociológico ou antropológico em outro sujeito e o aparecimento de uma antropologia de nós mesmos.
Este outro, nos filmes comentados, são grupos populares, e isto terá profundas consequências sobre as linhas populistas do cinema brasileiro. Nestes filmes, ao deixar de ser objeto do documentarista, do filme do saber, passa ao status de sujeito da história e do saber, embora, por enquanto, não tenha havido alteração nos meios de produção, o que é fundamental para que o processo evolua. Estes filmes não significam apenas uma evolução no setor do documentário, são sintomas de profundas transformações no campo social brasileiro. Transformações ainda não sabidas, que não sabemos por onde evoluem, mas que sugerem que o conceito de poder que vigora tradicionalmente no Brasil e organiza a nossa compreensão da sociedade e a nossa ação está passando por uma mudança da estrutura. A destituição do documentarista sociológico, dominador, a destituição da “voz do dono”, na expressão de Sergio Santeiro, é a destituição do príncipe, do caudilho, do presidente da República, do reitor, do pai, generoso ou não, bem ou mal-intencionado, com suas aberturas ou censuras, tanto faz: ele não é o eixo da realidade; não é ele o princípio estruturador da realidade, embora possa controlar os canhões. O fato de não se fazerem filmes-sobre-objetos-de-estudo mas reconhecer a voz do outro como igual é o desmoronamento da concepção de sociedade vista como uma composição de círculos concêntricos ou pirâmides que se encaixam umas nas outras, com o primeiro topo ocupado pelo pai ou o chefe da repartição, subindo até o príncipe. A sociedade não se organiza conforme um poder central ou uma rede de poderes centrais que ecoam uns nos outros, mas sim numa multiplicidade de poderes relativamente autônomos que se afirmam a si próprios e se relacionam entre si. É significativo e auspicioso que estes sintomas tenham despontado justamente numa época de intenso autoritarismo e repressão. Isto deixa claro que durante “a noite de quinze anos” (será que temos a ilusão de estar na alvorada?) a vida cultural da sociedade brasileira não parou, que os traços desta vida cultural não se reduziram ao “vazio cultural” ou à “cultura de resistência”. Formas positivas de cultura e de imaginário foram sendo trabalhadas. Os filmes documentários aqui comentados e suas características não resultam de qualquer forma de incentivo oficial, financiamento ou influência de alguma “política nacional de cultura”. O autoritarismo não molda a totalidade da vida social brasileira, nem a nossa vida se limita a uma relação de subjugação ou oposição a ele. Durante o autoritarismo mais intenso dos últimos anos, outros processos ocorreram e estão ocorrendo, mal sabidos, mal conhecidos, às vezes nem intuídos, mas de que estamos começando a tomar consciência. E estes documentários nos ajudam a perceber esta evolução e talvez aprofundá-la. Este projeto do cinema brasileiro não está confirmado, ele está balbuciando. Mas basta estar despontando para já negar todos os projetos oficiais e paraoficiais de unidade ou identidade nacional. No entanto, ele não se define pela oposição ao tema da união. Define-se pela afirmação da autonomia e multiplicidade das vozes. Projeto emergente, nele se deve apostar. Ou não? Pois é óbvio que a aposta não está ganha; tais movimentos podem ser brecados, neutralizados, recuperados; e também podem se limitar a ser uma forma de atualização e modernização do capitalismo no Brasil.
Este texto poderá ser (aliás, será) considerado como parcial ou excessivamente pessoal; na verdade, só falei de filmes pelos quais me apaixonei, que me perturbaram e me modificaram. Usei para escrever não apenas o conhecimento que tenho de cinema documentário, usei também como instrumental a minha reação emocional e o diálogo amoroso que mantive para chegar a uma intimidade com estes filmes. E, pelo visto, tenho a pretensão de afirmar que tal diálogo pode ser generalizado e revelador de uma dimensão atual do cinema brasileiro.
25 anos depois:
Estimulado por Ana Maria Bahiana, releio rapidamente os textos publicados nos anos 70, pensando na eventualidade de acrescentar algum apêndice. Concluo que não há necessidade. As ideias sobre o documentário foram a primeira versão do Cineastas e imagens do povo, editado em 1985 e reeditado em 2003. Não vejo o que modificar, os textos antigos são para mim documentos de época, produção de um momento histórico, esse momento passou. Portanto, deixar os textos como estão, ou então refazer tudo.
Mas estranho uma frase, escrita a respeito de filmes que “podem gerar entre nós novos conceitos de cinema”. A frase é: “O conceito de obra, diante dessa prática de filmagem, perde muito do seu sentido. A ideia de obra como unidade, bem como a de autor, se dilui. A ideia de obra como objeto diferenciado tende aqui a ser substituída pela ideia de processo que pode ou não resultar num objeto final. Mesmo que se chegue a um objeto final, este não é o objetivo principal do processo”. A surpresa vem de que no ano passado publiquei um artigo que teve bastante repercussão em São Paulo, intitulado O processo como obra. Ao redigir este artigo, tinha a impressão de estar trabalhando sobre um tema novo para mim, em decorrência de conversas recentes com Tata Amaral sobre sua participação na exposição A respeito de situações reais, no Paço das Artes, em São Paulo, e do meu interesse crescente pela crítica genética. Essa arqueologia me levou a constatar que não fiz nada mais do que desenvolver uma ideia que já tinha tido havia cerca de um quarto de século, motivado por trabalhos de Andrea Tonacci. O que me deixou perplexo.
Outra dúvida me assaltou: os textos dos Anos 70 fazem um recorte na produção documentária brasileira, destacando determinados filmes e atitudes de cineastas como marcos. Esse é um discurso que organiza a realidade, a estrutura. O receio é que esta organização passe a ser tomada como sendo a própria realidade, a qual é sempre infinitamente mais complexa e menos organizada do que os discursos a seu respeito. Os discursos sobre a realidade não a substituem, fazem parte dela.
Adendo:
Ficção e documentário são categorias falidas, vestígios de uma problemática que começou a se colocar nos anos 20. Recentemente houve em São Paulo uma mesa-redonda sobre esse tema, muito ilustrativa (simplifico): Eduardo Escorel esboçou uma definição de termos: ficção seria subjetiva, para dentro e mais alguma coisa, enquanto documentário seria objetivo, para fora… Paulo Sacramento (realizador de O prisioneiro da grade de ferro, a ver absolutamente) falou em seguida e retomou as categorias propostas por EE, dizendo que documentário era para dentro, subjetivo, enquanto ficção era para fora… Usavam as mesmas palavras com significação oposta. Em seguida, alguém estranhou que Paulo tivesse estreado no longa-metragem com documentário, já que na escola ele só tinha realizado ficções, e via nisto alguma incoerência, ou algo que pelo menos devia ser explicado. Mas Paulo tem uma trajetória coerente, pois o problema dele não é documentário/ficção, mas marginalismo, limites sociais, não julgar as pessoas, o que ele faz nos seus filmes, qualquer que seja o gênero, não é um problema.
/ comentário de Jean-Claude Bernardet /