2010

Como nossos jovens pensam?

por Pascal Dibie

Resumo

Como pensa o jovem. Sim, como será que pensa? Será que pensa mesmo?

Para começar, é preciso reconhecer que a questão é ingênua. É obvio que ele pensa. Só que de modo tão diferente que é difícil para o adulto de hoje conseguir apreendê-lo.

Ao considerar o modo de pensar na era digital, rapidamente se verifica que ele é outro se comparado a qualquer geração anterior, mesmo sua imediata. Daí a relutância do adulto, já que pensar significa menos pensar o mundo do que pensar o mundo em sua atualidade, isto é, tal como foi e é mentalmente construído. Não é surpreendente, pois, a dificuldade, por parte do adulto, em aceitar a relação que o jovem estabelece com o mundo e o tempo, mesmo que o faça abertamente.

Acontece que, através da internet, os jovens encontraram – fora da família, da escola e de qualquer instituição – outros tutores de desenvolvimento. Ela, com efeito, modificou profundamente a arte de se comunicar e de existir deles.

Para começar, “comunicar-se com” conta mais do que “fazer com”.

Os fóruns de discussão digitais, por exemplo. É neles que se dá boa parte das trocas simbólicas entre jovens. Embora neles se redija de modo particular, os fóruns continuam sendo um lugar de gozo verbal evidente e se inscrevem num fundo comum de referências que manifestam a adesão a uma faixa etária precisa. Não seriam novos a não ser pela escrita ditada pela informática, pela própria essência desta técnica, que acelera, aperta e fragmenta as mensagens proposicionais, lançando mão de símbolos contrativos que lembram os símbolos alquímicos da época em que boa parte da população era analfabeta. É que, neles, ao mesmo tempo em que o jovem evita escrever uma palavra ou uma expressão convencional na íntegra, introduz uma maneira mais direta, mais esquemática do que gramatical de se expressar. O propósito desse tipo de expressão – a atração que exerce – obriga o jovem a escrever e, com esse sistema altamente reativo, também a ler. Ora, a experiência histórica ensinou que tal operação não é fácil.

O jovem lida com outras formas de autoridade. Menos pessoais, elas são medidas por máquinas cujos protocolos ele precisa respeitar, seguindo estritamente suas regras para que o diálogo não seja interrompido. O computador, como nenhum outro tutor ousaria fazer, dita suas condições, e o jovem corre o risco, se ele não as respeitar, de ser sancionado pela própria máquina, imediata e inexoravelmente. Nesse caso, porém, a submissão ao protocolo parece não o afetar. A obrigação de uma autodisciplina parece, ao contrário, responsabilizá-lo e colocá-lo diante do seguinte desafio: obedecer estrita e pessoalmente, por necessidade, uma máquina, sabendo muito bem que ela não passa disso. Obviamente, essa conduta requer uma submissão necessária e muito temporária que o jovem consegue suportar graças ao ludismo que o move.

Eis, pois, a pergunta: será que brincar é pensar? Será que pensar é brincar?

Quando a sociedade passa a basear-se apenas no consumo e na mediação compulsória das máquinas e de seu poder de atração, tudo reside na busca do prazer fácil. Conhecimento, comunicação, sexualidade, viagem ou o que for, a vida é organizada por meio do “Enorme Diretório de Tudo”. Pensar torna-se então cada vez mais uma atividade assistida ou dependente de listas analógicas fornecidas pelos computadores através de programas cada

vez mais complexos e, com isso, qualquer esboço de concepção de mundo é predisposta, preparada, pré-pensada por essa indispensável e nova prótese, que é a máquina inteligente que acompanha de agora em diante o cotidiano pessoal.

Como não poderia deixar de ser, há um custo disso. Um individualismo que tudo pretende conhecer, inclusive – por contraditório que seja – o outro.


Como muitos pais, pergunto-me como nossos filhos pensam. Sim, como será que pensam? Será que pensam mesmo? É com este difícil dilema que vou me confrontar agora.

Para começar, tenho que reconhecer que minha questão é ingênua. É obvio que nossos filhos pensam; mas acho que eles pensam tão diferente – ou melhor, de outro jeito, tão diferente – que temo não conseguir apreender a maneira como eles pensam hoje.

Se considerarmos o jeito de pensar nesta nova era do digital, veremos que ficou muito diferente do caminho, do sistema de pensamento que seguíamos quando crianças. Um sistema que relutamos em deixar, pois pensar não significa tanto pensar mundo, e sim nosso mundo, tal como o construímos mentalmente. Nada de surpreendente, com efeito, no fato de termos dificuldade em aceitar outro esquema de pensamento, como a nova relação com o mundo e com o tempo que nossos filhos estão estabelecendo diante de nossos olhos.

No ano passado, neste mesmo ciclo Mutações, sob o título “Ondulações paranoides de uma época”[1], eu abordava em conclusão a questão do pós-humano. Se pensarmos um pouco, não é a primeira vez que assistimos ao que os filósofos chamam de crise da consciência[2], embora os dados desta “mutação radical” não tenham nada a ver com o que aconteceu até hoje na história humana. No fim do século XV, a emergência da tradição “hermética” – que propunha (inversamente ao que vamos desenvolver aqui) uma comunhão mágico-religiosa com o cosmo, que se resumia no fato de que o homem iria entrar em comunhão com o mestre do “Tudo” – é um exemplo de uma dessas mutações antropológicas do pensamento humano. Este ser novo, regenerado, que reencontrou sua divindade, não é nem tanto um “homem”, mas de fato um “mago” ou, mais exatamente, um “homem-mago”, que segundo Pico della Mirandola seria “o homem dotado de poderes que lhe permitem agir sobre o cosmo graças à magia”. Esta visão mágico-religiosa, que se desenvolveu na Europa de Copérnico a Giordano Bruno, impregnou a ciência do século XVI até Leonardo da Vinci e até Newton, que no início do século XVII foi inspirada tanto pela importância das matemáticas quanto pela alquimia e a astronomia[3].

Hoje, no entanto, estamos saindo do contexto europeu e de seu legado: a questão do pós-humano se faz em nível mundial, em relação direta com a cultura cibernética. Numa obra recente, Jean-Michel Besnier aborda esta questão, colocando-se ele também do lado dos futorólogos que levam em consideração a evolução imprevisível e irrefreável das tecnociências que se impõem a nós com grande velocidade (nanociências, biotecnologias etc.) e que tornam tão precárias as fronteiras entre o homem e a máquina. Desta vez, não se trata mais de um “homem-mago”, mas da “interconexão planetária dos computadores reencenando a aniquilação do eu na unídade cósmica”. Uma espécie de contrautopia fulgurante em que a utopia pós-humanista se configura nesta embriaguez tecnológica quase absoluta e muito impregnada de eugenismo, com pouquíssima resistência diante dela, visto o quanto este pensamento nos escapa[4].

Mais uma vez, falar do futuro é uma maneira de falar de nossos filhos presentes e vindouros. Ocorre que entender o que é o pensamento significa procurar saber como as diferentes formas de atividades mentais podem se ligar entre si e gerar o que chamamos de “pensamentos”. A questão continua sendo: como produzir um pensamento, como mantê-lo e fazer com que ele adquira um conteúdo?[5] Aqui, não estamos mais falando em sensações: no que diz respeito à cibernética, trata-se de conceitos organizados, no sentido de uma teoria do pensamento, explorando as analogias entre o pensamento puro e os estados de uma máquina que trata o pensamento como uma forma de cálculo. O fato de que as “máquinas para pensar”, como eram chamadas no inicio, pudessem reproduzir certo volume de comportamentos e de tarefas “inteligentes” nos dava a esperança que se desenvolvessem por meio delas todas as propriedades do que chamamos “pensar”. A ideia de que o funcionamento dos computadores poderia servir de modelo teórico para entender as propriedades do pensamento natural era intrínseco à invenção dessas máquinas, bem como a sugestão de que elas poderiam servir um dia para reproduzir artificialmente um pensamento. Allan Turing acreditava em 1950 que as máquinas podiam “pensar”, os filósofos respondendo que havia pelo menos uma coisa que as máquinas não conseguiam fazer: demonstrar sua própria coerência. Acontece que é pela capacidade de reproduzir máquinas com mecanismos de pensamento inteligente que se mede o sucesso da inteligência artificial, e não na sua pretensão em reproduzir o conjunto do que chamamos inteligência ou pensamento. Contudo, para retomar Merleau-Ponty, a condição necessária para qualquer pensamento é seu envolvimento num “mundo” ou num pano de fundo de práticas; chegamos a este ponto ou, melhor dizendo, “chegaram” a este ponto: estou falando das gerações futuras.

Com efeito, desenvolver um pensamento não significa apenas ter uma representação qualquer de algo, mas também ser capaz de comunicar seu conteúdo e de interpretar o comportamento de outrem como o exercício da mesma faculdade. É possível conhecer um objeto não na sua realidade apreensível, mas num de seus aspectos específicos, considerado separadamente e suscetível de ser encontrado assim realizado em outros objetos. Esta é a natureza do conhecimento abstrato. Será que perceber não é antecipar sobre o que ainda não existe? E será que pensar não é simplesmente querer ir mais longe? Sabemos que a representação do mundo para uma criança vai sendo esculpida pelo ambiente em que ela está mergulhada e que ela vê o mundo da maneira como o mundo a constrói. A grande descoberta do adolescente – a categoria quase social, hoje, da adolescência é, aliás, uma invenção recente, um luxo a que nossas sociedades abastadas podem se dar – é que ele pode pensar por si mesmo e, como ele acha, de um modo diferente das pessoas ao seu redor. Seu “gosto do mundo”, para repetir Boris Cyrulnik, foi no entanto “moldado” por esse círculo. Sua pulsão genética faz com que ele vá em direção ao outro; é a resposta do outro, porém, que tutora seu desenvolvimento[6].

Ocorre que, através da cibernética, os adolescentes como os mais jovens encontraram – fora da família, da escola e de qualquer instituição – outros tutores de desenvolvimento. A internet modificou profundamente a arte de se comunicar e de existir das gerações que vieram para nos substituir.

Hoje, “comunicar-se com” conta mais do que “fazer com”. Os fóruns de discussão que alimentam a maioria das trocas dos adolescentes, embora sejam redigidos no “linguajar dos jovens”, a gíria de hoje, continuam sendo um lugar de gozo verbal evidente e se inscrevem num fundo comum de referências que manifestam a adesão a uma faixa etária precisa. Eles não representariam nada de novo, a não ser uma escrita mais ditada pela informática, pela própria essência desta técnica, que acelera, aperta e fragmenta as mensagens proposicionais, lançando mão de símbolos contrativos que lembram os símbolos alquímicos da época em que boa parte da população era analfabeta. Os fóruns de discussão, ao mesmo tempo em que evitam escrever uma palavra ou uma expressão convencional na íntegra, introduzem uma maneira mais direta, mais esquemática que gramatical de se expressar. O propósito desse tipo de expressão, para não dizer sua atração, leva os adolescentes a escrever e, com esse sistema altamente reativo, também a ler. Ora, nossas próprias experiências nos ensinaram muito bem que conseguir esta última operação não é – salvo exceção, evidentemente – uma coisa fácil, como eu pude explicar na ocasião do primeiro ciclo Mutações[7].

Os jovens lidam com outras formas de autoridade. Estas são menos pessoais e medidas por máquinas cujo protocolo eles precisam respeitar, seguindo estritamente suas regras para que o diálogo não seja interrompido. O computador, como nenhum outro “tutor” ousaria fazer, dita suas condições e o adolescente corre o risco, se ele não as respeitar, de ser sancionado pela própria máquina, imediatamente e sem discussão possível. Neste caso, porém, a submissão ao protocolo parece não afetá-los, a obrigação de uma autodisciplina parece ao contrário responsabilizá-los e colocá-los diante de um desafio: obedecer estrita e pessoalmente, por necessidade, a uma máquina, sabendo muito bem que ela não passa de uma máquina. Obviamente, isso requer uma submissão necessária e muito temporária que só lhes diz respeito e que conseguem aguentar graças ao ludismo que os move.

Então, poderíamos nos perguntar: será que brincar é pensar? Será que pensar é brincar? Isso remete à questão da forma de vida na qual a gente é inserida ou, no nosso caso, da qual viemos.

Quando a sociedade passa a se basear apenas no consumo e na mediação compulsória das máquinas e de seu poder de atração, que tudo reside na busca do prazer da facilidade para ter acesso a tudo: conhecimento, comunicação, sexualidade, viagem etc. – que organizamos nossas vidas consultando sem motivo aquele “Enorme Diretório do Tudo” que é a internet, tudo é possível… Pensar torna-se cada vez mais uma atividade assistida e se inscreve mais numa dependência de listas analógicas fornecidas pelos computadores através de programas cada vez mais complexos do que num esforço de concepção do mundo; concepção que nos é predisposta, preparada, pré-pensada por esta indispensável e nova prótese, que é a máquina inteligente que acompanha de agora em diante nosso cotidiano pessoal.

A contrapartida é que o individualismo latente nas nossas novas formas de existência nos leva a dispensar o social, a arte da convivência, e nos introduz necessariamente outra concepção do mundo cuja filosofia central seria baseada numa contagiosa anosognosia, isto é: o não reconhecimento ou a incapacidade de assumir nossas ignorâncias.

Ao mesmo tempo, os jovens sabem que adquiriram um novo poder de transmissores do manuseio das técnicas de comunicação para seus ascendentes, o tempo inteiro ultrapassados pela novidade dos aparelhos lançados no mercado, sem saber como manuseá-los. A juvenocracia também se impõe assim: tornando-se treinadora de uma “geração antiga”, portadora de técnicas necessariamente obsoletas. Os sonhos de uma educação severa, à moda antiga, acariciados por certos políticos ou a crença na transmissão de um know-how (exceto às vezes algumas profissões artesanais artísticas, ligadas à conservação do patrimônio) não têm mais nem sentido nem aplicação, do mesmo jeito que os fatores geracionais. O diálogo predominante com a internet nos coloca todos em pé de igualdade, uma igualdade onde não há mais determinação sexuada nem classe nem idade.

A internet permite uma autonomização absoluta dos adolescentes em relação ao resto da família e – segundo eles – ao resto da sociedade, na medida em que ela não tem acesso ao seu mundo virtualmente real. Contudo, isso não impede que esses mesmos adolescentes sejam ainda paparicados dentro da família, que continua tendo a responsabilidade de criar e prestar assistência aos seus filhos. Embora aí também as coisas tenham começado a mudar (em teoria, sempre em beneficio da criança). A lei de 4 de março de 2002 sobre a autoridade parental na França é ligada ao reconhecimento do direito dos indivíduos de se tornarem si próprios; é uma nova crença de nossa sociedade individualista, central até para o que os sociólogos chamam de “segunda modernidade”. Esta história nos interessa diretamente, pois o estatuto completo da criança é repensado pela sociedade: a criança não é mais destinada a prolongar uma linhagem em que ela seria a compulsória garantia de sustento dos seus pais idosos. Hoje, os “benefícios secundários” que se espera dela são levados em consideração: seja pelo seu simples nascimento (de acordo com a mídia, seria aparentemente cada vez mais dificil ter um filho: barrigas de aluguel, procriação assistida etc.; fenômenos interessantes, que salientam as mutações de nossa sociedade, embora não representem muita coisa em termos de porcentagem da população), seja pelo seu bom desenvolvimento (regimentos de psicólogos; aparelhos dentários para endireitar os dentes, enriquecendo os ortodentistas; custo sempre calculado e recalculado da educação de um filho etc.); enfim, é por intermédio de todas essas medidas e expressões que a criança entende que ela terá que gratificar seus pais.

É verdade que a criança sofre uma injunção para que sua performance esteja à altura, sendo cada vez mais precocemente programada para um sucesso escolar obrigatório. Uma injunção constante para a precocidade também vai transformá-la num dos valores principais de nossas sociedades abastadas contemporâneas, cujo modismo pró-jovem é um dos avatares. De qualquer jeito, a criança está mudando e mudou muito de estatuto com o crescimento da individualização no mundo ocidental e ocidentalizado (termos que seria necessário revisitar hoje…). Para entender como, mas também por que os futuros adultos pensam e pensarão nossas relações sociais e nossa sociedade, seria preciso seguir passo a passo essas transformações profundas, essas mutações do mundo da infância.

Podemos, por exemplo, nos perguntar se a criança não teria se aproveitado das mudanças ocorridas, entre elas a desestabilização da autoridade dos genitores masculinos, para se imiscuir no lugar liberado e tomá-lo. Não, a criança de hoje é rei apenas no seu mundo, um mundo onde justamente não estão e não se encontram mais seus pais. A criança mudou de identidade, não porque os pais estariam se inclinando diante dela, mas porque qualquer indivíduo, jovem ou não, de agora em diante é “rei”, ou pelo menos tem direito de sê-lo, numa sociedade igualitária e individualista. Então, a criança é rei como são reis todos os indivíduos de nossa modernidade. Para voltar aos meus adolescentes, essa fase que abre o processo de autonomização, que De Singly recentemente chamou de “adonescentes”[8]envolve por extensão uma mudança radical na relação com o outro e com o mundo, ou seja, um novo modo de pensar[9].

A comodidade da abstração provocada pela presença onipotente da máquina permite ao jovem, além de trancar a porta de seu quarto, de estar lá sem realmente estar e de adquirir um novo estado de presença virtual para o mundo nos segredos do instante. Livre dos conformismos e das prevenções da vida real, extraído da tirania doméstica (a boa organização do lar), enfim, do que se chama vida social, o jovem pode experimentar sua relação com o outro por “tentativas e erros” que são julgados apenas por ele. Por exemplo, ele escreve como quer e como pode o que não ousa dizer, até expressar seus temores e suas vergonhas, participando de uma espécie de protestantismo regressivo, acrescentando, por meio de uma língua e de uma ortografia relativas, o gozo patente de uma regressão libertadora, já que sem controle aparente; isso tudo num sistema de autoavaliação constante e reversível a todo instante. O importante não é tanto a maneira de se expressar, antes a possibilidade de se apresentar como ele se sente enquanto está falando.

Os fóruns de discussão são uma maneira de continuar o debate ou de lancer um novo, com um ou vários interlocutores, dependendo do momento ou do astral, e continuar saindo em direção ao outro mesmo sem sair de casa, participando da construção do sentimento de pertencimento ao grupo.

Nova pergunta: como nomear as não crianças, que cresceram rápido demais e com grave dependência da internet? O pesquisador Joel de Rosnay propõe o termo de “pronetários”, conceito que ele tenta definir assim:

Chamo de “pronetários” ou “pronetariado” – do grego pro: frente, diante, mas também favorável, e de net, que significa a rede, a internet – uma nova classe de usuários das redes digitais. Eles são capazes de produzir, divulgar e vender conteúdos digitais não proprietários partindo de princípios da “nova economia”, ou seja, de criar fluxos importantes de acessos em sites, de permitir acessos gratuitos, de cobrar muito barato por serviços muito personalizados e de aproveitar os efeitos de ampliação, em outros termos, de inventar e implementar novos usos econômicos[10].

Ao que eu gostaria de acrescentar, para ser mais claro: de trabalhar para a indústria da comunicação. A partir da definição do “pronetário”, podemos nos perguntar não se as crianças cabem nela, mas, indo um pouco mais longe, se podemos ser criança no ciberespaço ou se todo mundo não volta a ser criança no ciberespaço? Mais uma vez as gerações se confundem e, se não há dúvidas sobre a existência de ‘blog-adolescentes”, o que há por trás dessa falsa máscara verdadeira e quem é o ‘blogger” são perguntas que continuam em aberto. Se ele for muito ativo, ele sem dúvida nenhuma faz parte de um desses “pronetariados”. Todos nós conhecemos alguns na nossa rede de contatos, próximos ou afastados, geralmente mais jovem do que velho.

Eu gostaria de voltar às crianças ou aos adolescentes nesse percurso que significa um jogo informático ou uma busca, nesse processo de um novo tratamento dado ao tempo pelas próprias crianças, que faz com que elas passem do vago (a representação que gostam de dar de si – fala-se até em “geração desanimada”) ao perfeito pleno, ou seja, do tédio ao que podemos chamar de aprendizagem/descoberta, que requer uma relação hiperativa com a máquina: explorar a fundo a lógica da simulação, prever os obstáculos num prazo longo, agir em conformidade com os protocolos. Trata-se de fato de desenvolver um esforço cognitivo extremo, de agir no imediato e de ter uma visão de longo prazo, melhor dizendo: parece mesmo que pensar ainda faz parte da área infantil (incluo nisso os adolescentes). É óbvio – e mostrei isso nas minhas duas participações anteriores no ciclo Mutações – que as crianças desenvolvem, com os fenômenos de atenção peculiar porém contínua, um comportamento de gestão da multiplidade das tarefas da nossa vida atual que requer operações cognitivas muito complexas, as quais, se não forem mais complexas, são pelo menos muito diferentes das desenvolvidas na escola; e isso só pode ter efeitos colaterais sobre a aprendizagem[11]. Trocar em fóruns de discussão, blogar ou jogar on-line com vários parceiros os conecta com um espaço de reflexões compartilhadas, funciona como um modo de aproximação, visto que o espaço não é mais um obstáculo nem à transmissão de informações nem à expressão de emoções. Ao passo que fornecem aos indivíduos uma ferramenta de identificação social, os blogs contribuem para consolidar a busca de laços sociais, preocupação fundamental dos adolescentes antes que se torne uma preocupação geral da nossa nova sociedade “solitariana” (soliterráquea)? Há de reconhecer que esse tipo de comunicação é o espaço por excelência de inteligências coletivas e que estamos assistindo hoje a uma reviravolta, ou melhor, a uma fusão dos papéis de produtores e receptores de conteúdos. Não se sabe mais muito bem o que é verdadeiro e o que não é; o que é único ou comum; o que está aqui, o que está em outro lugar (se é que este conceito ainda existe!); tamanha a pregnância da ubiquidade como característica das nossas sociedades contemporâneas. O impacto da desmaterialização dos saberes e da cultura através da informática faz com que se estoquem volumes cada vez maiores de conhecimentos em volumes cada vez menores; que estes volumes sejam dificeis de hierarquizar, e que seja possível reproduzir e divulgar em escala planetária tudo o que se quer. Poderíamos dizer que é a digitalização da cultura. Por que não? Por enquanto, porém, a diversidade selvagem da chamada era digital ainda nao é cultura. Ou, pelo menos, não temos muita certeza disso, embora pareça inevitável que a internet se torne a via de acesso principal a qualquer cultura (ou única, ou anti, ou não cultura)[12]. Por agora, sentimos apenas os efeitos colaterais disso tudo e é só o que conseguimos ver e entender.

Para os antropólogos que observam essas mutações, se a vida se resumisse apenas à técnica de comunicar, que o consumo básico (não passar fome, ter uma moradia decente) fosse assegurado a todos (o que é longe de ser o caso, já que o sistema existente gera uma espécie de eugenismo tecnológico e consumista que deixa vários bilhões de indivíduos de lado), eles poderiam então começar a falar em metabolização do mercado na vida coletiva e individual. Ora, o que ontem ainda parecia levantar suspeitas democráticas por ser a ferramenta de uma exacerbada vigilância do cidadão está imperceptivelmente entrando nos costumes comerciais, empurrando aos poucos os limites do que até então era considerado como intolerável. Penso no “rastreamento dos corpos e dos bens” em nome do famoso e novo princípio de precaução e da sacrossanta segurança, que serve muito a novos mercados numa onda falsamente “conservadora”, propondo restabelecer a ordem onde ela não pode mais reinar.

No prisma dessa operação preventiva, como por exemplo a biometrização generalizada (nossos passaportes se tornam “biométricos”), estão ressurgindo modernizados os velhos demônios da formatação eugenista, cujas terríveis consequências já vivenciamos. A verdade é que o acompanhamento da criança está se metamorfoseando numa “pedagogia do rastro”.

O chamado de uma vigilância ética diante das novas ferramentas normativas da ordem faz plenamente sentido quando nos referimos às lógicas em curso nos regimes democráticos contemporâneos. O sinal disso é o crescimento dos sistemas e dispositivos de parametrização que servem para classificar os seres humanos, como quando querem detectar a violência em crianças de três anos no ensino pré-escolar[13]. Também é a expressão de um modelo de sociedade cuja regra de funcionamento e de coerência política e econômica reside na crescente competição dos indivíduos entre si. Eu não queria ser pessimista, mas uma sociedade incapaz de administrar as diferenças e onde o dogma da performance se converte em critérios de seleção neodarwinianos entre o forte e o fraco e suas múltiplas modalidades – em detrimento do projeto de uma sociedade na qual o interesse coletivo e os laços interindividuais garantem a inovação e a imaginação social e técnica – é uma sociedade que, se não está em crise, com certeza está em mutação… Numa época em que no planeta Terra as liberdades individuais tendem global e aparentemente a se estender; os limites enfraquecem; os corpos se transformam; somos levados a deixar de ser produtores variados para nos tornar compulsoriamente os cooperadores de uma imensa cooperativa de consumidores onde reinam as leis do mercado; nossas práticas sociais outrora autônomas se transformam em simples espetáculos; o relativismo constitui a nova moeda de troca de uma cultura planetária contemporânea; nesta época em plena e profunda mutação, não é surpreendente que se instale por um tempo um “pensamento fraco”, até encontrarmos, com fundamentos inteiramente novos, um apoio que garantirá o continuum da razão de ser dos humanos: o pensamento.

Notas

  1. Pascal Dibie, “Ondulações paranoides de uma época”. A condição humana – as aventuras do homem em tempo de mutações, org. Adauto Novaes, São Paulo/Rio de Janeiro: Edições SESC SP/Agir, 2009. 
  2. A crise da razão, org. Adauto Novaes, São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 
  3. Frances A. Yates, Scíence et tradition, Paris: Éditions Allia, 2009. 
  4. Jean-Michel Besnier, Demain les pasthumains. Le futur a-t-il encore besoin de nous?, Hachette Littératures, 2008. 
  5. Pascal Engel, “Pensée”, in: Encyclopedia Universalis, Tome 17, Paris, 1968. 
  6. Boris Cyrulnik, “Comment les enfants voient le monde”, Les Grands Dossiers de Sciences Humaines, Auxerre, nº 8, set-out-nov de 2008. 
  7. Cf “Mutações – ensaios sobre as novas configurações do mundo”, dir. Adauto Novaes, Rio, 2008 e Pascal Dibie, “les enfants ont quitté notre enfance”, in Les enfants, dir. Michael Wieviorka, ed Sciences Humaines, Auxerre, 2008. 
  8. François De Singly, Les adonaissants, Paris: Éditions Armand Colin, 2006. 
  9. “Comment penser l’enfant au XXIème siècle”, in: Les Grands Dossiers de Science Humaines, nº 8, Auxerre, set./out./nov. 2008. 
  10. Pascal Dibie, “En route vers le post-humain. Un quotidien sous le pouvoir du virtuel”, Culture et Numérique, nouveau champ des pouvoirs, Actes du 5ème, colloque interdisciplinaire de lcône-lmage, Musée de Sens: Éditions Obsidianne-Les trois P., julho de 2008. 
  11. Clara Ferrao-Tavares. “Les blogs en tant que lieux d’apprentissage et de rencontre interculturelles”, Études de linguistique appliquée, ELA, Paris: Université Paris 7, 2007. 
  12. François de Bernard, “La dématérialisation des politiques culturelles. Problématiques et paradoxes de la culture numérique”, Brochura atualizada em 2005 para l’lnstitut Natinal de la Santé et de Recherche Medicale, ed. de l’lnserm, Paris, 2006. 
  13. Testemunho disso é a introdução no ensino pré-escolar de um folheto de avaliação muito marcado pela escola de sociobiologia anglo-saxã, dedicado aos distúrbios de condutas na criança e no adolescente, pensado como meio de rastrear os traços precoces da “delinquência”. Folheto elaborado em 2005 pelo lnstitut National de la Santé et de la Recherche Médicale (lnserm). 

    Tags

  • aceitação
  • aceitar
  • aceleração
  • acelerar
  • aderir
  • adesão
  • adulto
  • analfabetismo
  • analfabeto
  • apertar
  • apreender
  • apreensão
  • arrogância
  • arrogante
  • assistência
  • assistir
  • atividade
  • atividades
  • atração
  • autodisciplina
  • brincadeira
  • brincar
  • código
  • complexidade
  • complexo
  • compulsória
  • compulsório
  • computadores
  • comunicação
  • comunicar-se com
  • concepção de mundo
  • conduta
  • conhecimento
  • consumo
  • cotidiano pessoal
  • custo
  • dependência
  • depender
  • desafio
  • desenvolvimento
  • dificuldade
  • direto
  • disciplina
  • enorme diretório de tudo
  • época
  • era digital
  • escola
  • escrever
  • escrita
  • escrita abreviada
  • esquema
  • esquemática
  • esquemático
  • estrita
  • exercer
  • existir
  • experiência histórica
  • expressão
  • expressão convencional
  • faixa etária
  • família
  • fazer com
  • formas de autoridade
  • fóruns de discussão digitais
  • fragmentação
  • fragmentar
  • fundo comum
  • geração
  • gerações
  • gíria
  • gozo verbal
  • gramática
  • gramatical
  • imediatismo
  • imediato
  • indispensável
  • individualismo
  • inexorabilidade
  • inexorável
  • informática
  • instituição
  • íntegra
  • integridade
  • internet
  • jovem
  • leitura
  • ler
  • listas analógicas
  • ludismo
  • maneira direta
  • manifestação
  • manifestar
  • máquina inteligente
  • maquinação
  • maquinal
  • maquínica
  • maquínico
  • mediação
  • mensagem proposicional
  • mensagens proposicionais
  • modificação na comunicação
  • modificação na existência
  • modo de pensar
  • mundo mentalmente construído
  • mundo tal como construído
  • nova prótese
  • novidade
  • novidades
  • novo
  • novos
  • o outro
  • obedecer
  • obediência
  • objetividade
  • obrigação
  • operação
  • organizada
  • organizar
  • outro
  • palavra
  • pensamento
  • pensar
  • pensar o mundo
  • pensar o mundo em sua atualidade
  • pessoal
  • prazer fácil
  • pré-pensada
  • pré-pensado
  • pré-pensar
  • predisposição
  • predisposta
  • predisposto
  • preparação
  • preparada
  • preparado
  • preparo
  • processo
  • programa
  • programas
  • propósito
  • protocolo
  • referências
  • relação
  • relacionar
  • relutância
  • relutar
  • responsabilidade
  • sexualidade
  • símbolos alquímicos
  • símbolos contrativos
  • sociedade
  • submissão
  • técnica
  • tempo
  • temporária
  • temporário
  • tipo de expressão
  • trocas simbólicas
  • tutor
  • tutores
  • viagem
  • vida