2011

Crença, descrença de si, evidência

por Renato Lessa

Resumo

A evidência, como modo de fixação da verdade, está na origem dos principais enunciados e sistemas da filosofia política moderna e tem como principal característica, digamos, estrutural a presença de uma tensão entre um solipsismo radical originário e uma pretensão de legislar para o conjunto da humanidade.

Praticamos de forma abertamente imperita a linguagem da evidência. Por toda parte, estudantes submetidos a treinamento em metodolatria perseguem o que aprenderam a designar como “evidências empíricas”. O termo é claramente um oximoro. O contrário seria supor a naturalidade de sentenças do tipo: é “evidente que está a chover”, como marcador mais forte do que simplesmente “chove”. O modo da faticidade não pode desfrutar da prerrogativa da evidência. Tal prerrogativa é, antes, exclusiva de termos que dispensam prova, demonstração e argumentação.

Vejamos o que diz Thomas Jefferson, a respeito: “Consideramos essas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre eles estão a Vida, a Liberdade e a busca de Felicidade”. Independentemente do contexto histórico — trata-se de sua versão para a Declaração da Independência norte americana — é notável no texto de Jefferson a presença de uma linguagem da evidência. Ao tomar aqueles valores como autoevidentes, Jefferson está a indicar a presença e a força de verdades que escapam à prova, à demonstração e à persuasão.

Se as operações da crença em contextos de provas, demonstrações e argumentos não se apresentam como especialmente problemáticas, ao contrario parece ser o caso de indagar: qual a natureza das crenças envolvidas no ato de crer em uma evidência?

O tema da evidência foi originalmente posto no século XVII. É certo que tais datações são sempre sujeitas a reparos. É possível, com efeito, detectar sinais de operações de princípios de evidência na filosofia grega — quer pela recusa da doxa como critério de verdade, quer pela fixação de primeiros princípios como condição necessária para o conhecimento verdadeiro — e no pensamento medieval — sobretudo nos esforços de Anselmo para a produção de uma prova da existência de Deus que, de forma engenhosa, buscava combinar demonstração e evidência.

No entanto, a filosofia do século XVII pode ser definida como marcada pela busca de evidências capazes de fornecer ao sujeito uma certeza epistêmica. Descartes e Hobbes são os principais operadores dessa mutação filosófica. O estatuto da verdade não mais depende de algo associado à tradição ou à revelação, mas exige o preenchimento do sujeito — antes mesmo que ele diga algo a respeito do mundo — por uma certeza que, quando lhe aparece, o faz sob a forma de algo que exige não menos do que um assentimento completo. Da mesma forma que marcado pelo tema da evidência, o século XVII foi atravessado por esforços de refutação dessa busca, tal como pode ser detectado na variante cética que teria, segundo olhares pouco generosos, infestado os espíritos.

O rebatimento do tema da evidência sobre a filosofia política é, para dizer o mínimo, significativo. A linguagem dos direitos — tidos como fatos de razão e não como efeitos de acumulações históricas particulares — muito devém das operações da evidência. Por suas características intrínsecas, a experiência da verdade, proporcionada pela evidência, é de natureza solipsista e não-compartilhada.

Na origem de tudo — e como condição de tudo — ocorre um experimento de intuição filosófica, por definição solipsista. Crer na verdade de uma intuição, anterior a toda experiência e a operar como condição de consistência epistêmica do sujeito. Tal é a modalidade de crença a ser exigida pelo modo da evidência. Importa, pois, investigar por que meios uma experiência originariamente solipsista dá passagem a configuração do espaço público.


Para Vitangelo Moscardo, in memoriam

Vero e il mare […] ma l’uomo?

LUIGI PIRANDELLO, Cosi è (se vi pare), 1917

[…] a violência tirânica com que essa crença trata toda a empina…

FRIEDRICH NIETZSCHE, A filosofia na época trágica dos gregos, 1873

A crença, saber; uma vivência que, enquanto a estamos a ter,

reconhecemos justamente como sendo isso

LUDWIG WITTGENSTEIN, Últimos escritos sobre a filosofia da psicologia, Hi, 33, C. 1949

Creio que há muitos modos possíveis de se falar em crenças. Dos mais intuitivos, leves e inocentes aos mais rebuscados, pesados e obscuros. Pode-se tomar uma crença como um assentimento breve e perecível, a exprimir uma inclinação com relação à qual o sujeito emitente não possui mais do que o compromisso do instante. Algo presente, por exemplo, na seguinte simulação: posto diante da indagação sobre se “haverá a reunião prevista para amanhã”, posso responder que “creio que sim”. Trata-se aqui de um leve, discreto e habitual salto alucinatório, imperceptível em uma escala sismográfica das alucinações.

A crença em questão, com efeito, incide sobre eventos ordinários e exteriores ao sujeito. Tão logo se confirme (ou não), ver-se-á a medida de sua adequação à assim chamada realidade das coisas e ao inapelável curso natural do mundo. Do ponto de vista do sujeito desse tipo de crença, nada há de existencialmente vinculante entre si e os possíveis efeitos — positivos e negativos — de validação de seu ato simples de crer. Parece ser razoável supor que o portador da crença em questão não sofrerá abalos em sua integridade cognitiva, permanecendo idêntico a si mesmo, qualquer que seja o resultado de sua projeção.

A verificação da consistência desse tipo de crença não parece ser filosoficamente problemática. Seria curioso e inusitado, ao contrário, se o emitente — o portador da crença, o crente —, diante do cancelamento súbito da reunião a cuja realização dera seu assentimento antecipado, se sentisse obrigado a investigar e a rever seus procedimentos epistêmicos mais profundos e a pôr sob inspeção sua própria fixação, como sujeito de conhecimento, no mundo da experiência. Seria mesmo extraordinário vê-lo indagar-se de tal maneira, diante da refutação fática da sua crença. Ao aviso da suspensão do evento, sobreviriam, nessa hipótese — já semi-demencial, por certo —, indagações do seguinte tipo: Quem sou eu? O que é este eu que crê? Há mesmo razões para crer em algo? A vida ordinária, para o bem ou para o mal, não acolhe tal tipo de inspeção, fundada em uma inevidência do eu, segundo inspirada expressão de Fernando Gil, empregada em sua análise do poeta português Sá de Miranda[1].

Como veremos adiante, Luigi Pirandello oferecer-nos-á valiosa oportunidade para observar cenários no quais dúvidas autocorrosivas daquela natureza — fundadas na inevidência do eu — foram levadas a sério, com implicações nada triviais.

Há modos mais pesados e menos descartáveis para falarmos em crenças. Modos segundo os quais não nos é dado escapar de certas crenças, pelo simples reconhecimento de suas falhas perceptuais e de seus limites antecipatórios. Antes de qualquer aproximação com tal terreno mais denso e opaco, é forçoso reconhecer que o próprio cenário ingênuo que antes mencionei, o do descarte de uma crença quando refutada pela experiência, pode ser tratado de modo filosoficamente menos ligeiro, se a ele acrescentarmos o proviso de que só uma crença no valor da experiência pode operar como fundamento para a refutação de crenças contrárias à própria experiência.

Há, portanto, sempre uma teoria da experiência a montante da crença. Uma teoria, por sua vez, fundada em crenças a respeito do que pode significar a ideia mesma de “experiência”. É o que podemos depreender da reflexão a respeito da melancolia, desenvolvida por Ludwig Binswanger, em seu livro Melancolia e mania. Segundo Binswanger, a vivência da “realidade melancólica do mundo” é precedida pelo preenchimento, por parte do sujeito, de uma “modalidade de experiência melancólica”[2]. Passamos, então, de uma teoria da experiência — vivida enquanto “modalidade melancólica” — para a inscrição em um estado de mundo ontologicamente melancólico. A percepção fina de Binswanger pode, a meu juízo, ser generalizada para além da observação clínica.

Um seguidor dos atomistas gregos Demócrito de Abdera e Leucipo de Mileto, por exemplo, poderia retrucar diante do cancelamento da reunião que, a despeito de sua suspensão, muitas outras reuniões tiveram lugar (ou foram desmarcadas) nos inumeráveis mundos possíveis, existentes para além de nossa capacidade perceptual[3]. A consistência interna do sujeito — de ordem epistêmica — não seria dada pela adaptação ao evento (ou ao não evento) que antecipara com sua crença, mas pela compreensão do caráter aleatório e múltiplo do universo, composto por átomos invisíveis em movimento incessante. É estranho pensar isto, reconheço, mas não necessariamente absurdo: em algum mundo possível, uma combinação aleatória de átomos, idêntica à que me configurou como sujeito, neste mundo possível, comparece a reuniões idênticas à cancelada.

Em outra chave, um Azande — estudado genialmente pelo antropólogo Evans-Pritchard — poderia sustentar que a ocorrência da reunião não passaria de artimanha de bruxos — decantações sudanesas do malin génie de Descartes —, capazes de turvar e inverter nossas experiências e percepções mais comuns[4]. A reunião, na verdade, não teria ocorrido e crer em sua não ocorrência parece ser o procedimento epistêmico mais adequado.

Jorge Luis Borges, em “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, ensaio escrito no Uruguai em 1940, faz referência a uma curiosa enciclopédia — The Anglo-American Cyclopedia(Nova York, 1917) — na qual o verbete Uqbar”, de modo um tanto caprichoso, apareceu apenas no exemplar comprado por seu amigo Adolfo Bioy Casares, em algum alfarrabista. Nele é mencionado um heresiarca gnóstico — não nomeado — que afirmava ser o universo visível uma ilusão. Proposição grave que o levou a condenar os espelhos, julgados abominables, tanto quanto a cópula, por sua capacidade de multiplicar os seres humanos. A condenação gnóstica teria sido lembrada por Bioy Casares, em uma conversa anterior com Borges. Para além de genial, ela revela a disposição gnóstica de não adotar a experiência imediata como condição de validação de crenças[5].

Os três exemplos compartilham da premissa de que o invisível dá sentido ao visível. Por contraste, nossa epistemologia ordinária é agnóstica, pois aceita os termos da experiência imediata como condição de validação de crenças cujos juízos incidem, por sua vez, sobre o próprio mundo da experiência imediata. Alimenta-se, assim, circularmente da visibilidade. Devolvemos à experiência, em forma de enunciados, os termos que dela recolhemos, para validá-la. É nossa adesão comum a essa forma de perceber e configurar a experiência que faz com que ela se torne o recurso mais básico para a aferição de alguns de nossos juízos.

Toda enunciação, portanto, mobiliza alguma teoria da experiência. Os enunciados envolvidos na mera afirmação — ou em sua projeção — de que haverá uma reunião são pouco problemáticos, pois nos remetem a uma teoria da experiência sustentada no compartilhamento dos fatores que a sustentam: confiança nos sentidos, na capacidade de nomeação e na regularidade do mundo e segurança na predicação. Juízos estéticos, por exemplo, implicam modalidades distintas de experiência, cuja extensão obedece a critérios menos compartilhados. Por certo, tais juízos mobilizam alguma teoria da experiência, distinta, contudo, do que poderíamos designar como a teoria ordinária da experiência[6]O mesmo se aplica a modalidades mais fundas de crença, de natureza epistêmica ou primária, que incidem sobre a autofixação do sujeito, como operador de crenças secundárias, a respeito de objetos e de circunstâncias externas e mutantes. Toda crença implica, de modo mais preciso, uma experiência com a verdade. Não nos é dado, simplesmente, descrer no que acreditamos, no ato mesmo em que acreditamos. Na chave posta por um de seus “Proverbs of Hell”, o poeta William Blake definiu belamente esse ponto: Every thing possible to be believ’d is an image of truth. É-nos impossível crer em uma dúvida, a não ser que a promovamos filosoficamente ao estatuto de suporte de uma certeza. Há precedentes nessa artimanha, por certo. A própria negação peremptória da verdade, praticada pelos filósofos da Nova Academia, como já sabiam os antigos céticos, sustentava-se na verdade da proposição de que a verdade não existe.

Com efeito, o filósofo Sexto Empírico, responsável no século III da Era Comum pela reunião e glosa dos materiais do ceticismo grego, gerados desde o século III da era anterior, distinguiu a atitude cética da praticada por dogmáticos e acadêmicos. Enquanto dogmáticos afirmavam a incontroversa existência da verdade, os acadêmicos invertiam a pretensão, ao asseverar, sem qualquer sinal de hesitação, que não havia verdade alguma. A querela assemelha-se à hoje protagonizada entre adeptos do fundamentalismo religioso e os militantes do neoateísmo, ambos agarrados a crenças absolutas que incidem sobre o invisível: a existência de divindades ou a inexistência de divindades.

A atitude dos céticos, por contraste, implicava a suspensão do juízo diante do conflito entre asserções peremptórias a respeito da existência ou inexistência da verdade. Os termos de Sexto Empírico são de um agnosticismo exemplar: os dogmáticos creem na existência da verdade, os acadêmicos na sua inapreensibilidade e os céticos seguem a investigar[7]. Tal compromisso com a investigação — sképsis — está fixado na própria denominação da tradição filosófica que se lhe seguiu. Os céticos, dessa forma, pretenderam situar-se fora da jurisdição da crença. Seria interessante refletir a respeito do padrão de crenças que sustenta tal pretensão de escapar do regime da crença[8].

De qualquer modo, o descarte de uma crença depende da intervenção de outra crença, capaz de desfazer as condições experimentais que dão suporte à crença anterior. É esse o mecanismo ordinário de correção de crenças ordinárias. Falemos, agora, de crenças, a um só tempo, não suprimíveis e incorrigíveis. Mas, antes disso e mais uma vez, que fique claro: toda crença pressupõe uma experiência com a verdade. Em outros termos, regimes de crenças estão sempre associados a regimes de verdade.

DO QUE NÃO NOS É DADO DESCRER

Deixemos as crenças simples e descartáveis, assim como algumas hipóteses extremas de suspeita a seu respeito. Agarremo-nos ao juízo, sustentado por certa filosofia da vida comum, de que tais pequenos atos de crença são capazes de associar duas propriedades aparentemente díspares: (i) são atos simples, fugazes e perecíveis, ao mesmo tempo que (ii) são atos necessários para a cognição e para o estar-no-mundo dos humanos. São pequenos atos de aposta na previsibilidade das pequenas coisas que, por meio de crenças causais, vinculam-se à nossa experiência pregressa e consolidam a confiança de que possuímos uma consciência distinta do mundo e somos dotados de identidades pessoais.

(Que o filósofo assim descreva esses mecanismos, de forma distanciada e um tanto cínica, isso diz respeito a suas crenças e hábitos profissionais e, de nenhum modo, o qualifica para descartar, em sua própria experiência como sujeito no mundo, modalidades de crenças praticadas pelos humanos filosoficamente imperitos.)

Voltemo-nos para estratos de crenças, tal como foi sugerido acima, menos descartáveis, ainda que o ato puro de crer seja tudo, qualquer que seja a sua incidência, menos descartável. Aqui movemo-nos na direção de um cenário abissal, que contém nossos mecanismos cognitivos mais recônditos. David Hume, no século XVIII, dedicou-se a perscrutar essa parte funda de nós mesmos, ao estabelecer uma equivalência entre crença e oxigênio, tal como posto na seção IV do Livro I de seu Tratado da natureza humana, de 1739: “A natureza, por uma necessidade absoluta e incontrolável, determinou-nos a julgar, assim como a respirar e a crer”[9].

Nessa direção, uma vida sem crenças, sustentada na pura razão, é, para Hume, para além de uma impossibilidade psicológica, algo que nos conduziria à “melancolia e delírio filosóficos”[10]. Tristeza do espírito, apatia no domínio da ação. O sujeito sem crenças condenar-se-ia à inação e a crer que, por não possuir crenças, deve seguir o que lhe parece ser o curso inapelável do mundo. O regime da crença é sempre um regime calcado em hábitos de ação.

Dois aspectos fundamentais, ressaltados por David Hume ao longo de sua obra, estão presentes nas crenças que nos constituem como sujeitos na experiência histórica: (i) sua presença é condição necessária para a sociabilidade, (ii) a história é o domínio de definição e cristalização das crenças.

Não há, que fique claro, crenças inatas, do ponto de seus conteúdos. Esses são da ordem da contingência e da experiência históricas, o que facilmente se depreende da observação primária da variedade das crenças abrigadas e praticadas pelos humanos. Mas em adição ao reconhecimento desses conteúdos contingentes, é necessário que se diga que o sujeito que os sustenta é, tal como anteriormente fixado na antropologia de Michel de Montaigne e de Pierre Bayle, um animal que crê[11]. É essa a sua natureza básica, foncière. Na tradição aberta por Montaigne e Bayle, ao falar de uma natureza humana, Hume designa algo que pode ser definido como um sujeito portador de crenças.

O sujeito, afetado e constituído pela variedade, possui ademais características genéricas, que são condição de impregnação dos depósitos contingentes do tempo e da experiência. É de tal natureza humana que Hume nos fala em seu Tratado. Não sendo propriamente uma obra de história, o Tratado da natureza humana é um esforço genial para fixar as características naturais e genéricas dos sujeitos inscritos afetados e constituídos pelo curso ordinário das coisas. Tais estratos fundos, vazios de destino e finalidade, dizem respeito à nossa pregnância com as coisas e com os outros. Fixação, pregnância, ação: tudo isso se associa ao incessante trabalho da humana atribuição de sentido à experiência. Ou melhor, ao trabalho de constituição da experiência como atividade significativa. Nesse sentido, a filosofia de David Hume é uma filosofia da crença, na tradição aberta pelos céticos modernos, com Montaigne e Pierre Bayle.

Com efeito, nada há para além da natureza humana, quando observamos o curso do mundo. Os atos de observação e de dizer do que se está a observar, se exigem a suposição de algo que lhes é exterior, ao incidirem sobre o domínio da exterioridade acabam por humanizá-lo, por torná-lo significativo. Tal processo implica a operação de processos e estratos constituídos por crenças que, mais do que anteceder a experiência, são sua própria condição de possibilidade. Esse é o domínio da crença natural, da crença não afetada pela variedade das circunstâncias, posto que coextensiva à dimensão genérica dos sujeitos e não a suas particularidades.

Há, portanto, uma dimensão, digamos, natural na crença, mesmo que seu rebatimento substantivo — seu aspecto de conteúdo preenchimento — provenha da experiência da história. Esta, por sua vez, só é possível enquanto processo de fabricação e decantação de crenças, o modo humano por excelência de pôr-se no mundo. Nessa chave, a história, tal como é apresentada por Hume em sua History of England, pode ser definida como conjunto dos esforços humanos para simular e criar formas de estabilidade, através das crenças e do hábito[12]. Os humanos, dessa forma, colonizam o mundo governados por suas crenças. Em linguagem evolucionista, são elas que presidem nossos protocolos de adaptação e permanência no mundo natural e pré-humano. Uma permanência calçada no artifício da cultura — na invenção da cultura, como bem pôs o antropólogo Roy Wagner —, que só pode produzir efeitos de fixação e de regramento se sustentada em crenças constitutivas[13].

David Hume, além de constatar a presença indelével da crença em nossos afazeres mais ordinários e a mutabilidade de seus conteúdos, sustentou que nossas crenças estão fundadas em algumas crenças naturais essenciais. Não se trata, aqui, de incorrer em essencialismo, mas de indicar que as operações da crença configuram uma espécie de instinto natural que nenhum raciocínio ou processo do pensamento ou do entendimento é capaz de produzir ou de impedir”[14]. Se o conteúdo de algumas de nossas crenças pode ser afetado pelo tempo e pelos usos, há, contudo, atos originários de crença que podem — devem — ser tomados como condição necessária para a própria experiência com o mundo. Em outros termos, o primeiro conjunto tem seus conteúdos constituídos pela operação de uma tríade composta pelos princípios da variabilidade, da mutabilidade e da obsolescência.  o segundo possui tinturas transcendentais, pois define as condições permanentes e gerais para que a tríade mencionada configure crenças positivas (isto é, dotadas de conteúdos normativos e vinculantes à ação). Sua presença autoriza-nos a supor que há um sujeito; sua ausência configura um mundo inapelavelmente não humano.

De um modo mais direto, há que distinguir entre crenças cujo conteúdo é afetado pelas circunstâncias históricas e por minha decisão de a elas aderir, de crenças com relação às quais não me é dado descrer. A crença em um projeto político, por exemplo, é descartável, já a crença de que sou um sujeito é de natureza distinta. Seu descarte produziria consequências diretas e práticas na substância de minha forma de vida.

Três atos de crença, a seguir o argumento de Hume, podem aqui ser incluídos como crenças naturais dotadas desses atributos fundamentais. É mais do que hora de decliná-los:

  1. crer na existência contínua de um mundo exterior e independente de nossas percepções: crer em algo independente de mim;
  2. crer que as regularidades que ocorreram e ocorrem em nossa experiência passada e presente constituem base confiável para compreender as que ainda ocorrerão;
  3. crer na confiabilidade dos nossos sentidos.

O primeiro conjunto diz respeito a crenças ontológicas, constitutivas de enunciados que afirmam a existência de algo que de mim independe, posto que fixado em alguma natureza que não resulta da minha vontade e capacidade de representação. Trata-se, de modo direto, de uma crença no mundo fixada, por sua vez, em uma crença de regularidade.

O segundo conjunto estabelece crenças epistemológicas, ao indicar condições de observação e de formulação de juízos e expectativas a respeito do comportamento futuro do mundo. Regularidades percebidas, assim, formam a base de nossas crenças a respeito do modo pelo qual coisas e processos ainda não presentes deverão se constituir. São crenças, portanto, que estabelecem expectativas fiáveis a respeito do que ainda não ocorreu. Em termos belos e precisos, tal como postos por Fernando Gil, trata-se do “conforto da indução do incógnito a partir de acontecimentos já ocorridos”[15]. Aspecto central nesse conjunto de crenças é constituído pelas crenças causais, que permitem que a presença humana no mundo seja marcada pela continuada atribuição de sentido à experiência. Um modo fulcral de atribuição de sentidos é da instituição de princípios de causalidade. Trata-se, aqui, de uma crença no pensamento, na possibilidade de algum conhecimento a respeito do mundo. Tal crença é o suporte cognitivo e existencial para crenças de previsibilidade.

Ambos os conjuntos configuram crenças que podem ser tomadas como exteriores, já que gravitam em torno da afirmação da existência de objetos e das condições para sua cognoscibilidade. Tais conjuntos distinguem-se do terceiro, constituído por crenças epistêmicas que dizem respeito à consistência do próprio sujeito que crê, aqui implicado o crer em si. Nesse sentido, crenças interiores (de existência). Em outros termos, trata-se de uma crença em si, marcador necessário da consistência epistêmica.

A atenção desenvolvida por David Hume a respeito do tema da crença teve importantes seguidores. Algo dessa inspiração parece ter frequentado o Clube Metafísico de Cambridge, criado em 1870, que contava com a presença de gente como os filósofos Charles Sanders Peirce e William James. Peirce, com efeito, devotou à questão da crença o melhor de suas atenções. Algo de David Hume esteve presente em suas reflexões, sobretudo no que diz respeito à associação entre crença e hábito. Em seu importante e incontornável ensaio A fixação da crença, de 1877, Peirce afirmou que “o sentimento de crença é uma indicação mais ou menos segura de que se está estabelecendo na nossa natureza um hábito que determinará as nossas ações”[16].

Crença, certeza, confiança: a tríade, comandada pelo primeiro termo, liberta-nos da “irritação da dúvida”, já que o regime da crença “termina com a cessação da dúvida”[17]. Peirce, a esse respeito e em vários outros aspectos, segue as prescrições do psicólogo e filósofo escocês Alexander Bain, que definiu, em seu livro The Emotions and the Will. (1859), a crença como um “hábito de ação” e “como aquilo que constitui a base sobre a qual um homem se dispõe a agir”[18]. Para Alexander Bain, a crença opõe-se à dúvida, e não à descrença. A razão para isso parece ser ostensiva.

Embora Bain não siga tal linha de raciocínio, não nos é difícil considerar a descrença como modalidade de crença; modalidade cuja operação implica crer na falsidade de uma — ou várias — crenças. Com efeito, atos de descrença não são incompatíveis com sentimentos epistêmicos de convicção. Já a oposição crença vs. dúvida é mais significativa, pois o comparecimento da crença no ato mesmo de duvidar — na sentença de sabor cartesiano “creio que estou a duvidar” além de contraintuitiva, remete a crença a uma dimensão transcendental e, portanto, trivial e genérica. É a serviço da cessação da dúvida que a crença exerce seu domínio: com “the temper of belief” obtém-se “the total exclusion of all this misery”, representada por “uncertainty, ignorance, hesitation, vacillation, […] at all times prone to excite the perturbation of fear”[19].

Há mesmo aqui uma inversão dos termos postos pelos céticos antigos, para os quais o estado de felicidade depende da suspensão das crenças, inapelavelmente fundadas em pressupostos dogmáticos. Para Bain parece haver, também, alguma felicidade na cessação da dúvida, embora isso só se faça possível pela operação de um regime de crença.

A teoria desenvolvida por Alexander Bain tem como ponto fundamental a concepção da crença como “preparedness to act”, como algo essentialy related to the active part of our being”[20]. Na mesma chave, sustenta que a crença é concomitante à ação humana[21]. Ainda que Bain conserve de David Hume a percepção a respeito do papel fulcral cumprido pela crença nos assuntos humanos, há uma distinção clara de ênfases.

Hume, para além de reconhecer a importância das crenças ordinárias em nossos afazeres, ocupou-se de um estrato de crença anterior à faculdade da ação. Um estrato que não se dá à adesão dos humanos, mas impõe-se como marca de sua condição natural. É como se Hume procurasse responder às seguintes indagações: o que fazem os humanos quando sustentam suas crenças; que tipo de crença é condição de possibilidade para as crenças que dizem possuir?

Bain ocupou-se, ao que parece, de uma dimensão de ordem mais prática e experimental. Sua concepção de crença exige a presença da volição. Não se trata mais de indicar estratos de crença de vinculação compulsória, mas de ações humanas cujas direções são determinadas por atos positivos de crença, mobilizados pela vontade(will). De modo mais direto, para Bain a crença desloca-se do âmbito da necessidade psicológica para o da vontade do sujeito: “the essence and the import of it (a crença) is such as to place it under de region of the will”[22]. A ênfase na dimensão da vontade visa dissociar a manifestação da crença de qualquer cenário instintivo. Nesse esforço, Bain enxerga estágios distintos de volição.

Há um “estágio primitivo” da vontade, no qual uma ação iniciada por acidente espontâneo é mantida na medida em que alivia a dor ou proporciona prazer. Não haveria, em tal estágio, lugar para a crença e seus correlatos: “plot-interest, deliberation, resolution, or desire”[23]. Trata-se, em tal esfera primitiva e instintiva, de respostas instantâneas a estados de dor e prazer. Nesse sentido, a teoria de Bain retira do regime da crença situações governadas pelo primado da dor e do prazer, cujas sensações não são mediadas por estratos de crença: tais sensações, simplesmente, dão-se ao sujeito e sob seu intenso e irrecusável domínio não há lugar para a crença[24].

Outro cenário pode ser representado por um estágio no qual há um hiato de tempo (delay) entre a ocorrência do sentimento que configura um motivo para ação e os movimentos que a ele respondem. Tal intervalo é uma “condição de suspensão”, uma ocasião para operação de novas “fases da vontade”, descritas por termos tais como “desejo, deliberação, intenção, resolução, escolha”. Em tal cenário, faz sentido dizer que há sinais de operação da crença: “the very same condition of suspense is necessary to the manifestation of Belief”[25].

Para que uma ação possa ser marcada como “fenômeno da mente humana” ela deve resultar, para Bain, de um ato de deliberação, sustentado em uma crença. A crença é algo que se acrescenta ao instinto, à resposta irrefletida. Sendo assim, a crença é revestida por uma expectativa a respeito de algum futuro contingente, a ser provocado pela ação à qual dá partida. Há, pois, um nexo entre crença e confiança, não apenas sob o regime da afirmação da regularidade do mundo e de nossa mente, mas como projeção hipotética a respeito de cenários abertos e afetáveis pela ação humana.

Ainda que incidam sobre aspectos distintos, as concepções de Hume e Bain a respeito do significado das crenças não são opostas ou incompatíveis. Hume é muito melhor metafísico do que Bain. A ele importa perscrutar a condição humana no que esta encerra de permanente e genérica, mesmo que a serviço de uma forma filosófica que faz da variedade histórica e cultural dos humanos uma cláusula pétrea. Em Bain, trata-se de introduzir o tema da vontade: não há teoria da ação que dispense uma teoria da vontade, e esta só se faz inteligível se acrescenta à experiência algo que ela originariamente não contém. Um composto Hume-Bain poderia sustentar-se na seguinte proposição: o homem é um animal que crê, por força de estratos profundos e inalteráveis pela vontade, e por força da vontade que funda modos de agir e de alterar as circunstâncias. Mas toda a perspicácia desenvolvida para pôr em relevo o tema da vontade colapsa se não reconhecer a precedência epistêmica da crença do sujeito em si mesmo.

Para finalizar esta sessão, desejo enfatizar o tema das crenças do sujeito em si mesmo, em sua consistência interna para dizer coisas sobre o mundo. Em outros termos, trata-se de crenças que evocam o que poderíamos designar como o modo da primeira pessoa, que se exprimem por meio de verbos psicológicos: sentir, pensar e, fundamentalmente, crer[26]. A experiência epistêmica da crença é constituída por atos expressivos, fundados em juízos na primeira pessoa. Juízos sobre o mundo, ao contrário, são expressos no modo da 3ª pessoa, mesmo quando manifestam uma crença — tal como em “creio que ocorrerá a reunião”. Aqui o juízo da primeira pessoa — “creio” — estabelece a condição de ostensão do juízo na terceira pessoa — “haverá a reunião”. A demonstração gramatical indica que juízos na terceira pessoa são marcadores de exterioridade. A experiência da exterioridade, no entanto, exige a operação da interioridade. É nesse sentido que Wittgenstein dizia que pressupunha a existência de um interior quando pressupunha um ser humano[27].

Juízos na primeira pessoa são expressões de estados psicológicos, expressões de crenças[28]. Crenças epistêmicas são por definição crenças interiores, ou crenças de uma primeira pessoa. Dessa forma, agem como condições necessárias para o conhecimento: podem ser definidos como crenças que sustentam a própria possibilidade da crença em objetos externos, que incluem o próprio sujeito quando este pensa sobre si mesmo. Tal dimensão epistêmica opera antes da experiência, o que faz com que o sentimento de falha epistêmica seja uma das mais radicais formas de vivência da falibilidade humana. Em outros termos, tal falhanço arruína nossas mais fundas e estabelecidas crenças a respeito de nossa identidade pessoal. Ou melhor, a falha epistêmica releva-se da aniquilação do sujeito na mente humana.

Mas que ideia podemos ter de nossas mentes? Se consultado, David Hume diria: não é possível ter uma ideia de mente, já que não há impressão de tal natureza[29]. Com efeito, aquilo que chamamos uma mente não é senão um feixe ou coleção de diferentes percepções unidas por certas relações, e as quais supomos, embora falsamente, serem dotadas de uma perfeita simplicidade e identidade[30]“.

Tais percepções “se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e [. ..] estão em perpétuo fluxo e movimento”[31]. O “eu” não passa de uma “sucessão de ideias e impressões relacionadas, de que temos uma memória e consciência íntima”[32]. E mais: a “alma humana” não é mais do que “um agregado de diversas faculdades, paixões, sentimentos, ideias, unidos, sem dúvida, numa identidade, ou pessoa, mas ainda assim distintas umas das outras”[33].

No entanto, no que diz respeito a possuir uma mente, o próprio Hume assevera: “não há nada de que possamos estar certos se duvidarmos disso”[34]. A impossibilidade dessa dúvida conduz-nos à mãe de todas as ficções: identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, e de um tipo semelhante à que atribuímos a vegetais e corpos animais”[35].

Na verdade, “fantasiamos a existência de um princípio de união como suporte dessa simplicidade (da mente, RL) e centro de todas as diferentes partes e qualidades do objeto”[36].

Chegamos, pois, ao fundo do humano: a sustentação tácita de que somos portadores de uma mente. Dela não temos impressões diretas e muito menos ideia clara e distinta. Resta a ficção a respeito da sua existência. Em outros termos, resta a crença a respeito da sua presença. E como a crença é passagem para a ação, simulamos em nossas ações no mundo os efeitos da mente. Damos azo constante, dessa forma, à ficção que a constituiu. Além desse limite estabelecido pela mais básica das crenças, há o abismo do desfazimento do sujeito, submetido a processos de descrença de si, a mecanismos de deflação epistêmica. Examinemos, a seguir, um experimento dessa natureza — um verdadeiro exemplo de autodestruição de crenças básicas a respeito de si mesmo, a mais pura expressão do anti-Descartes.

INEVIDÊNCIA DO EU: UNO, NESSUNO E CENTOMILA, DE LUIGI PIRANDELLO

Vitangelo Moscarda, aos 28 anos, recebeu de Dida, sua mulher, súbita e brutal revelação. Ao vê-lo a demorar-se no espelho, em busca de uma razão para a pequena dor que sentia na narina, a jovem moça proferiu o seguinte comentário: “Pensei que estivesse olhando para que lado ele cai”[37]. Estupefato, Vitangelo ouviu ainda a confirmação: “Repare bem: ele cai para a direita”. Havia mais: além do nariz torto, suas sobrancelhas assemelhavam-se a dois acentos circunflexos, suas orelhas eram mal grudadas, uma mais saliente do que a outra; algo incomum, ainda, com seu dedo mínimo e com a perna direita mais arqueada do que a esquerda, na altura do joelho. Tal revelação desencadeou um terrível processo de desconstrução identitária, pois não era essa a experiência que Vitangelo tinha de si mesmo.

Visto sob outro ângulo, o cenário revela o que poderia ser designado como o primeiro problema filosófico do infeliz personagem de Pirandello ou, de modo mais solene, sua entrada no domínio da filosofia:

[…] mergulhei por inteiro na ideia de que, então — mas seria possível? —, eu não conhecia bem nem mesmo meu próprio corpo, as coisas que mais intimamente me pertenciam: o nariz, as orelhas, as mãos, as pernas.

[…] Assim começou o meu mal[38].

As desventuras de Vitangelo Moscarda — o Gengê, para sua esposa — são apresentadas por Luigi Pirandello, em seu livro Uno, nessuno e centomila (Um, nenhum, cem mil). Escrito “penosamente”, tal como afirma Alfredo Bosi na apresentação à edição brasileira, entre 1916 e 1929, o texto alterna momentos abertamente metafísicos com passagens poéticas tocantes. A narrativa acompanha o processo de autodesconstrução identitária do personagem principal, a partir do episódio aparentemente banal já referido. Trata-se, contudo, de um episódio capaz de revelar a Vitangelo o hiato intransponível entre suas autorrepresentações e as que sobre ele faziamos que com ele interagiam. Achado trivial e não despercebido pela experiência ordinária dos humanos, a desse abismo. Mas o que fez com que a descoberta de Vitangelo produzisse efeitos não triviais foi a sua decisão de levá-la filosoficamente a sério.

Do primeiro episódio de ceticismo a respeito de sua capacidade de reconhecer seu próprio corpo, seguiu-se desdobramento mais fundo: “(…) fixou-se em meu pensamento a ideia de que eu não era para os outros aquilo que até agora, dentro de mim, havia imaginado que fosse”[39].

Em encontros casuais com amigos, Vitangelo afeta um ânimo socrático e indaga em busca de confirmação dos sinais revelados por sua esposa. Os efeitos das perguntas a respeito do nariz, do dedo mínimo, das sobrancelhas circunflexas e das pernas arqueadas sobre a conversação ordinária é, no mínimo, disfuncional. Seus interlocutores não apenas estranham os termos da conversa, como acrescentam ainda mais razões para alarme: Vitangelo, sem que jamais tenha se dado conta, possui um rabicho na nuca, traço que teria feito com que sua mãe, se tivesse reincidido na maternidade, desse à luz um segundo filho homem. Tais encontros estabelecem e aprofundam o inapelável divórcio entre o conhecimento de si — na primeira pessoa — e os depoimentos externos, dos outros sujeitos.

A fratura traz consigo o desejo de solidão. Vitangelo deseja estar só, e de um modo radical: sem si mesmo, “sem aquele ‘mim’ que eu já conhecia ou pensava conhecer”: “a verdadeira solidão está em um lugar que vive por si e que para você não tem nem voz nem feição, onde o estranho é você”. A pergunta que deflagra o desejo de solidão é pura demanda por sentido de si: “Se para os outros eu não era o que agora havia pensado que era para mim, quem eu era?”. O trajeto busca amparo em uma evidência de si, distinta da percepção dos outros, para os quais as ideias e os sentimentos de Vitangelo “têm um nariz”[40].

No entanto, o sucesso no empreendimento da solidão exige a presença de dois requisitos indisponíveis: (i) encontrar um eu, claro e distinto, e (ii) a possibilidade de ver-se vivendo. Os jogos diante do espelho — recurso clássico da busca de si — barravam o acesso a esse eu intocado e não nomeado pelos outros: “cada gesto meu parecia fictício ou postiço”[41]. A esta altura, os infortúnios de Vitangelo encontram na seguinte passagem um resumo apropriado:

A ideia de que os outros viam em mim alguém que não era eu tal como eu me conhecia, alguém que só eles podiam conhecer olhando-me de fora, com olhos que não eram os meus e que me davam um aspecto fadado a ser sempre estranho a mim, mesmo estando em mim, mesmo sendo o meu para eles (um “meu” que, portanto, não era para mim!), uma vida na qual, mesmo sendo a minha para eles, eu não podia penetrar, essa ideia não me deu mais descanso[42].

A narrativa ficcional de Pirandello, no livro em questão, por vezes é abertamente filosófica, acrescentando beleza de estilo à clareza na argumentação. Não me ocorre recurso melhor do que o da paráfrase. Nesse sentido, vale a transcrição da súmula das descobertas de Vitangelo Moscarda, nos primeiros movimentos de esvaziamento epistêmico:

  1. que eu não era para os outros o que até agora pensara que era para mim;
  2. que eu não podia me ver vivendo;
  3. que, não podendo me ver vivendo, ficava alheio a mim mesmo, isto é, como alguém que os outros podiam ver e conhecer, cada um a seu modo, mas eu não;
  4. que era impossível colocar-me diante desse estranho para vê-lo e conhecê-lo, pois eu podia me ver, mas já não o via;
  5. que o meu corpo, se o considerasse desde fora, era para mim como uma aparição de sonho, uma coisa que não sabia que vivia e que ficava ali, à espera de que alguém a levasse;
  6. que, assim como eu tomava este meu corpo e fazia dele cada vez o que queria e sentia, assim os outros podiam tomá-lo para lhe dar a realidade que quisessem;
  7. que, enfim, aquele corpo em si mesmo era a tal ponto nada e a tal ponto ninguém, que um fio de ar podia fazê-lo espirrar hoje e, amanhã, levá-lo embora[43].

Esse pesado conjunto de descobertas põe em ação duas ordens de corolário, um de natureza existencial e outro com implicações epistêmicas. São esses últimos que estarão aqui sob inspeção, embora haja afetação recíproca entre as duas ordens. No plano existencial, por exemplo, Vitangelo decide interromper todos os seus cursos habituais de ação, sobretudo no que diz respeito à posição de banqueiro — “usurário” —, herdada do pai, e à cena conjugal. Em ambos os domínios trata-se de “desdenhosamente [. ..] decompor aquilo que eu era para eles”. Vitangelo desfaz-se do banco e, como corolário, é deixado pela esposa, que, na sagaz observação de Alfredo Bosi, associava de modo convicto matrimônio a patrimônio[44].

No que diz respeito aos corolários epistêmicos, Vitangelo ocupa-se do tema da consciência, a partir da seguinte pergunta: “é ela algo absoluto, que possa bastar-se a si mesma?”. A inclinação não cartesiana é clara: o “penso, logo existo” não parece sustentável, assim como qualquer fixação genuína na própria consciência como ato de autonomia. Esse parece ser o sentido da interpelação de Moscardo:

Para que lhes serve, então, a consciência? Para se sentirem sozinhos? Não, por favor. A solidão os apavora. E o que vocês fazem, então? Imaginam muitas cabeças. Todas iguais à sua. Um monte de cabeças que são, aliás, a sua; as quais, em cada ocasião, puxadas por vocês como por um fio invisível, lhes dizem sim e não, não e sim, como queiram. E isso os conforta e lhes dá segurança[45].

Em outros termos, a consciência é fixada por crenças a respeito de sua presença e dos efeitos de “conforto” que produz. Ademais, ela é refratária a descrições que indicam a sua interioridade indevassável e autonomia. Ao contrário, é de heteronomia e de vulnerabilidade que se está a falar: é algo de ordem mais geral e intersubjetiva que se afirma na crença a respeito da consciência, algo protagonizado por “muitas cabeças” idênticas entre si.

De fato, a consciência em mim só pode ser pensada como efeito de “muitas cabeças”. À pretensão de solipsismo da consciência, Moscardo opõe uma proposição existencial: “Infelizmente eu existo, e vocês existem”[46].

Os termos do impasse estão claros: não há saída na direção de uma consciência na qual o verdadeiro eu está fixado. Qualquer ênfase nessa direção encontrará versões do eu fortemente afetadas pela intersubjetividade das “muitas cabeças”. Trata-se, então, de recusar a consciência e aderir à visão comum do mundo? Mas não é exatamente tal visão que introduziu a fenda entre o “mim” que Moscardo julgava ser e o modo pelo qual era ele configurado pela experiência com os outros?

O caminho da deflação epistêmica está claramente indicado. Não há mesmo como pedir amparo em uma improvável ordem das coisas. Quando olha para o curso do mundo, Vitangelo, para seu maior desamparo, o observa com lentes afetadas por um quê de ceticismo, mesclado com forte componente heraclitiano: “A capacidade de nos iludirmos de que a realidade de hoje é a única verdadeira, se de um lado nos ampara, do outro nos precipita num vazio sem fim, porque a realidade de hoje está fadada a se revelar a ilusão de amanhã. E a vida não se ajusta. Não pode se ajustar. Se amanhã se ajustar, está acabada”[47].

Sem o amparo interno da consciência e o conforto compartilhado do conhecimento comum, o sujeito em Moscardo é testemunha e vítima do fluxo incessante de todas as coisas. Um fluxo de tal monta que os atos de nomeação jamais podem incidir sobre o instante presente: nesse caso, para quê serve um eu que pensa e fala? O ato final de deflação epistêmica se impõe: “sobre aquilo que eu possa ser para mim, não só vocês não podem saber nada, mas tampouco eu mesmo”[48].

Os atos finais da narrativa de Vitangelo Moscardo descrevem o hospício, distante da cidade de Richieri. Rompido com os programas filosóficos da consciência e do curso ordinário das coisas, Vitangelo parece feliz em sua deflação epistêmica radical. Já não retém os nomes e neles vê apenas o apego ao que já não há, ao que não mais pode haver. Os nomes convêm aos mortos: “Um nome não é mais do que isso: um epitáfio”. Definitivamente afetado por uma sombra heraclitiana, Vitangelo recusa o regime de fixação de nomes a coisas e afirma-se vivo e “sem conclusão”: “A vida não tem conclusão — nem consta que saiba de nomes” (um juízo que sabe a Alberto Caeiro).

Vitangelo, finalmente deflacionado de si, atinge o paroxismo da ataraxia: um vazio absoluto de qualquer pensamento e a recolha calma e feliz dos fragmentos da experiência: o campanário, o som dos sinos, as andorinhas, as planícies desertas atônitas. Seu único esforço é o de impedir que o pensamento se ponha de novo a trabalhar, “reabrindo por dentro o vazio de suas vãs conclusões”. Deflação de si, descoberta do princípio de realidade. Como um sujeito movido por um ânimo de sabor rousseauniano, de encontro com sua autenticidade irredutível, Vitangelo descobre que só é inteiro e idêntico a si na contemplação irreflexiva de objetos externos. Ao fazê-lo, adota o mais puro realismo possível, assentado no princípio da realidade das coisas fragmentárias. jamais dirá que o real não existe. Ao contrário, só ele existe, mas se a ele se impõe o regime do pensamento, ele se desfaz. Penso serem esses os termos inscritos na pungente despedida de Vitangelo Moscardo: “Pensar na morte, rezar. Há ainda os que necessitam disso, e os sinos tocam também por eles. Eu não preciso mais disso, porque morro a cada segundo e renasço novo e sem lembranças: vivo e inteiro, não mais em mim, mas em cada coisa externa”[49].

Não parece ser difícil reconhecer por que o texto de Pirandello é tão perturbador. O processo de Moscardo agride uma de nossas crenças naturais mais fundamentais, a de que possuímos uma mente, de que somos um eu, aberto à autoinspeção e refúgio reflexivo para a confusão e o movimento incessantes do mundo. O paroxismo de Moscardo reside na decisão sobre-humana de desembarcar dessas crenças básicas. Não é surpreendente que o cancelamento desse estrato fundo tenha como consequência a dissolução do sujeito.

A leitura e a interpretação feitas por Fernando Gil, em seu belo texto “As inevidências do eu”, a respeito do poeta Sá de Miranda, podem vir em nosso socorro para entender as implicações filosóficas do “caso Moscardo”. Fernando Gil refere-se a Sá de Miranda como, mais do que um “autor difícil”, alguém marcado pela “experiência da incomodidade”, que “não vive bem consigo” e precipitado no “abismo do eu”[50]. Tal “incomodidade” — que podemos estender ao “caso Moscardo” segundo Fernando Gil, releva de uma “perda do amor por si”, algo que Rousseau opunha ao “amor-próprio” — egoísta associado à “aceitação da vida que se me apresenta, sem que a tenha escolhido”. Com efeito, na autoconstrução do sujeito — na afirmação da crença em si —, a aceitação da existência é “a primeira expressão humana da vida”[51].

A perda desse “amor por si” indica uma “enfermidade do ego puro”, a afetar tanto as “estruturas da temporalidade” como a própria identidade. Os termos de Fernando Gil, como de hábito, são precisos: “Perda do amor de si é o nome genérico de uma série de desregulações dos a priori que enformam e dão sentido à experiência”[52]. Em outros termos, o eu deixa de se reconhecer como polo ordenador da experiência, isto é, como sujeito”. Há, ainda, aqui uma perda de confiança, na abdicação do sujeito de si mesmo: “Já não confio nem creo, / já confiei e já cri: / mal assi, e mal assi”[53].

Da crise de confiança, passa-se ao “sentimento-de-estar-cortado-do-futuro”. Sá de Miranda desiste do futuro, pois, segundo ele, “é escusado cansar mais”. Fernando Gil acrescenta: “o futuro não satisfará a esperança que o poeta já não tem”[54]. No “caso Moscardo”, Gengê desiste de seu futuro, tal como este havia sido configurado pelos outros e por si mesmo, por um “mim” não mais reconhecido pelo seu portador, incapaz de a ele apresentar qualquer substituto nítido. Em ambos os casos, o sentimento de desterro interno “representa uma ruptura face à experiência externa”[55]. A negação dessa exterioridade é complemento necessário da negação de si, posto que o eu — o “continuum da biografia interna” — é a condição mesma de possibilidade de toda experiência.

Nos termos de Ludwig Binswanger, a perda da “confiança transcedental, produzida pela descrença absoluta nas condições fundantes de todos os atos de crença, priva a consciência de “um texto da experiência legível e contínuo”, um “texto” pelo qual ela poderia “ler o mundo, as articulações do mundo, e ler-se a si mesma”[56]. Foi esse o estado final de Moscardo, incapaz de ler-se a si mesmo. Nem os espelhos o puderam socorrer. Já não havia texto disponível para a decifração da imagem, para dizer do que se vê.

MODOS DE FIXAR A VERDADE, OU ALGUNS ANTÍDOTOS PARA A INEVIDÊNCIA DO EU

A patologia do espírito, materializada na inevidência do eu, manifesta-se, nos termos da linguagem terapêutica de Ludwig Binswanger, por meio de um “texto […] totalmente ilegível, fantástico e perturbado”, calcado em uma lógica delirante[57]. Pode-se acrescentar que, sob tal domínio, colapsa qualquer modo de fixação da verdade. Terapias à parte, importa refletir sobre condições de fixação da verdade e indagar a respeito do papel que a crença joga no empreendimento.

O uso do termo “verdade” não deve assustar. A crise do espírito, presente em Moscardo e em Sá de Miranda, pode ser vista como uma recusa à predicação. Com o termo “verdade” repõem-se as condições de predicação, sempre sustentadas sobre crenças de referencialidade, sem as quais nenhuma predicação é sustentável. Em outros termos, creio que há algo sobre o qual “algo” pode ser dito. Se eu predico, estabeleço um regime que, pela prática da linguagem, conecta pensamento e algo com o qual ele se ocupa. Chamemos tais regimes de modos de fixação da verdade. Nenhum deles poderá dispensar modalidades apropriadas de crença e formas particulares de alucinação.

Há um discurso da verdade que, ao supor nossa presença indisputada em um mundo constituído por objetos, adota o que poderíamos designar como o modo da referencialidade[58]Penso, por exemplo, no que disse Willard Quine a respeito de estarmos sempre propensos a pensar e falar de objetos[59]. Tal propensão pode ser tomada como condição de consistência tanto epistêmica como epistemológica. Mesmo que não falemos dos mesmos objetos, ou que digamos coisas distintas a respeito deles, isso não cancela a crença de que para atestarmos as pretensões de um discurso a respeito da verdade de suas proposições, tenhamos que ocupar um ponto de observação capaz de contemplar e cotejar os enunciados e os objetos que eles pretendem representar.

Delícia dos céticos, que aí podem ver a porta de entrada para o abismo da regressão ao infinito, pois cada um daqueles pontos de observação exige a anterioridade de uma série de pontos, em uma série regressiva sem fim. A recusa à regressão virá sempre acompanhada, na história da filosofia, pela fixação de um primeiro argumento — ou de primeiros princípios — que se quer primordial e não redutível a nada que o anteceda. Tal é a pretensão do fundamento, princípio de tudo e índice de si mesmo e que não depende de qualquer nexo de anterioridade[60]. Ele resulta de um ato arbitrário do espírito na fixação da primeira verdade. Friedrich Nietzsche, em seu belo percurso sobre a filosofia na época da tragédia, indicou com rara beleza esse ato inaugural, em seu comentário a respeito de Tales de Mileto: “a filosofia começa por legislar sobre a grandeza, a ela se prende uma doação de nomes”[61].

Por mais que tal fixação da grandeza tenha tido os seus pés alçados pela potência ilógica da fantasia, trata-se de uma decisão dotada de consequências práticas a respeito do que vale a pena ser pensado e dito. Como tal, mesmo fantasiosa, não pode se eximir de indicar modos discursivos capazes de revelar de forma verdadeira aquilo que deve ser pensado e dito. Com efeito, coube ao regime filosófico da fantasia inaugurar a reflexão sistemática a respeito da verdade e de suas condições de ostensão e fundamentação.

Os primeiros céticos trataram de indicar a natureza inapelavelmente dogmática da pretensão ao fundamento. A própria postulação de objetos dignos de ser submetidos à observação não estaria, ela mesma, a exigir a vigência prévia de certezas a respeito de seus significados? Na linguagem especial dos céticos, os dogmáticos, mesmo quando falam de objetos visíveis, partem de premissas e considerações sobre coisas invisíveis. Por isso, os céticos, quando fazem juízos a respeito de coisas que julgam existentes, atêm-se aos fenômenos — àquilo que aparece a todos de modo não problemático e comum. Ainda assim, jamais se exprimem de um modo que ateste propriedades absolutas; preferem o uso epistemologicamente cauteloso da expressão “isto parece ser”, no lugar de “isto é“. Ou, entao, o recurso epistêmico contido do “a mim parece que”. É o que se depreende do comentário de Timon, discípulo de Pirro de Elis (c. século III a.C.), que dizia não poder sustentar que o mel fosse doce em si mesmo, embora garantisse que ele assim parecia ser à degustação dos humanos.

Mas, a despeito do combate dos céticos à pretensão do fundamento, a verdade parece ser um atrator ao qual estamos linguisticamente vinculados. São as próprias operações ordinárias da linguagem que exigem a referencialidade, e com ela abre-se espaço para distintas formas de fixação da verdade. A linguagem exige a suposição de que fala de algo fora de si, distinto e distinguível, em sua integridade ontológica, do ato de nomear. Quando fala de si mesma, a linguagem faz-se metalinguagem e introduz em seus domínios uma distinção entre o que se diz do que se diz. Tal distinção é condição lógica para a presença da referencialidade.

Discursos a respeito da verdade podem se exprimir por meio de três modos fundamentais e distintos, ainda que, por vezes, possam se apresentar de forma combinada: o modo da prova, modo da demonstração e o modo da persuasão. Todos exigem a presença de modalidades de crença específicas: assim, é necessário crer na verdade de uma proposição científico-experimental (algo que se dá por meio da prova), crer na verdade de uma dedução lógica (algo que se dá pela demonstração) e crer na verdade de uma proposição de natureza moral e política (algo que resulta da argumentação)[62].

modo da prova manifesta-se quando se trata de defender a verdade de uma proposição por meio da apresentação de seu referente factual. Trata-se do modo mais puro e ostensivo da referencialidade. É necessário que algo aconteça fora do discurso para que, a ele justaposto, se produza um efeito prova (ou o seu contrário, a refutação, que não cancela a presença do modo em questão). Provas são, por decorrência, locais e datadas, sujeitas que são a refutações e correções. Penso, por exemplo, nos ganhadores brasileiros do prêmio Ig Nobel de arquitetura, que provaram que a ação de tatus interfere na datação de sítios arqueológicos[63]. Trata-se de resultado refutável e local, posto que insuficiente para uma teoria geral e demonstrativa a respeito dos fatores de desorganização de sítios arqueológicos.

modo da demonstração opera com juízos de validade universal, não sujeitos, portanto, aos limites espaciais e temporais impostos aos praticantes do modo da prova. Trata-se, aqui, de demonstrar a verdade de uma sentença lógica ou a de um axioma. Em tal domínio, estamos a navegar no oceano aristotélico do saber teórico, enquanto que no primeiro dos modos indicados tratava-se de operar com saberes práticos (technoi), com efeitos prováveis e inscritos em circunstâncias particulares. Trata-se, no caso da demonstração, do avesso da contingência e do acidente. Quando tratamos de demonstrações, nada menos do que o universal está em jogo.

Crer na verdade de um juízo moral ou na de um enunciado de conotação política é algo que não pode decorrer dos modos da prova e da demonstração, ainda que muita pretensão neste sentido tenha se apresentado ao longo da história da filosofia política (e. g., a pretensão por uma ciência demonstrativa da moral, pace Hobbes). Mas, mesmo assim, é possível perceber o apelo à linguagem da demonstração — ou da prova — como recurso retórico, voltado para o convencimento público, o que faz com que, mesmo com o emprego de tal recurso, estejamos em pleno domínio do modo da persuasão, ou da argumentação. Tal modo alimenta-se da produção continuada da ilusão da referencialidade, para empregar os termos de Michael Rifaterre. Para tal, modos discursivos associados à prova e à demonstração podem ser inscritos na argumentação, e por ela comandados.

(É possível, ainda, imaginar uma variante do modo da persuasão, pela qual o efeito de verdade não advém tanto do discurso — como o que teria persuadido Helena, em vias de se tornar “de Troia”, segundo a interpretação do sofista Górgias —, mas de uma crença na excelência e no caráter extraordinário do senhor do discurso[64]Não é mais o caso, em tal variante, de falar como Górgias e sustentar que o logos é um poderoso tirano, mas de indicar como potência originária da persuasão o senhor do discurso, aquele que mais do que deter a prerrogativa de proferi-lo é dotado de características extraordinárias. Ninguém como Max Weber, na alvorada do pensamento contemporâneo, deu mais atenção ao fenômeno, quando tratou dos atributos do carisma[65]O carisma se faz marcador da verdade no pelo que diz, mas por que o diz.)

O conjunto composto pelas três modalidades indicadas, embora expressivo, não é exaustivo. De modo mais direto, é possível imaginar outro modo de fixação da verdade, distinto dos aqui mencionados, que se caracteriza pela presença da evidência como atributo fundamental. Trata-se, pois, de pensar em um modo da evidência — ou em modos, como bem sustentou Fernando Gil[66]. Tal modo está, por exemplo, na origem mesma dos principais enunciados e sistemas da filosofia política moderna e tem como principal característica, digamos, estrutural a presença de uma tensão entre um solipsism radical originário, presente no ato de intuição de um fundamento, e uma pretensão de legislar para o conjunto da humanidade, a partir de operadores de generalização.

O pensamento da evidência é tanto uma condição para repor e fixar a crença em si, sendo esta mesma uma evidência originária, como suporte para a configuração do mundo da experiência. Como bem pôs Fernando Gil, não existe a evidência do não ser: “A decepção não é originária, uma decepção realizada significaria a realização de uma expectativa, a crença originária no não ser é um absurdo”[67].

EVIDÊNCIA, ALUCINAÇÃO, EXPERIÊNCIA DO MUNDO

É hora de ouvir Thomas Jefferson: “Consideramos essas verdades autoevidentes: “Consideramos que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre eles estão a Vida, a Liberdade e a busca de Felicidade”[68].

Independentemente do contexto histórico — trata-se de sua versão para a Declaração da Independência norte-americana —, é notável no texto de Jefferson a presença de uma linguagem da evidência. Ao tomar aqueles valores como autoevidentes — tal como o fizera John Locke cerca de um século antes —, Jefferson está a indicar a presença e a força de verdades que escapam à prova, à demonstração e à persuasão.

Com efeito, tais suposições escapam à prova, já que a exigência básica desse modo de fixação da verdade é a possibilidade de ostensão dos seus termos: o ajuste entre juízo experiência — linguagem e mundo; palavra e coisa — deve ser dado pela exibição de ambos, como condição de consistência. No limite, eu teria que testemunhar a ação direta do Criador, para atestar o que dela resultou. David Hume diria que tal ideia — a da ação do Criador — é desprovida de uma impressão originária que lhe teria deflagrado.

A tentativa de aplicação do modo da prova para fixar a existência de Deus caracterizou, na verdade, a bateria de argumentos das chamadas provas a posteriori. Tratava-se, nesse caso, tal como argumenta Cleantes, personagem dos Diálogos sobre a religião natural, de David Hume, de afirmar que os sinais de ordem, engenhosidade e complexidade presentes no mundo natural exigem a antecedência de um desígnio ordenador, posto que não podem ser efeito do acaso[69]. O argumento pretende partir dos efeitos visíveis para a postulação de uma causa originária invisível, estabelecendo, assim, um modo de afirmação da verdade sustentado em uma prova. O opositor de Cleantes — Fílon — dirá que o limite desse enunciado é a analogia, e esta, como tal, é epistemologicamente fraca e insuficiente para sustentar imputações causais.

A inaplicabilidade da demonstração, para fixar a verdade do texto de Jefferson, parece óbvia. Uma demonstração dá-se ou não. Tem que ser dotada de um efeito de apoditicidade tal que, uma vez posta, seus impactos são tais que a imagem de um cenário distinto daquele que ela fixa torna-se impossível. Jefferson pode manifestar sua crença com todo o vigor e atribuir a sua origem ao que desejar, mas, em termos rigorosos, não pode demonstrá-la. Ele não seria capaz de mostrar que o seu oposto é necessariamente impossível.

Resta-nos o modo de fixação da verdade via argumentação. Essa é a forma disponível e usual de decantação de enunciados políticos e morais. Com efeito, a afirmação de verdades autoevidentes só passa ao ato se esforços de argumentação dela decorrem. Tal aspecto, porém, diz da relação desse discurso com o mundo para o qual ele se dirige, mas oblitera uma questão grave: como Jefferson sabe disso? Em outra linguagem, como passar dos enunciados na terceira pessoa — há direitos universais — para o da primeira — eu sei que há direitos universais?

Thomas Jefferson, por certo, nunca foi filósofo. Escolhi-o como exemplo filosófico exatamente por esta razão. Com ele dá-se uma passagem possível da evidência para a experiência. Vejamos o ponto. Jefferson poderia ter apresentado, com os mesmos propósitos prosélitos, a mesma proposição de modo deflacionado em termos epistêmicos, a saber:

  1. nós acreditamos que há um Criador do qual decorrem os seres humanos como iguais, com direito à vida, à felicidade e à liberdade;
  2. nossa revolução tem como pontos programáticos a defesa do direito do povo americano à vida, à felicidade e à liberdade.

Em ambos os enunciados hipotéticos não se vê a operação de princípios da evidência. O primeiro deles caracteriza-se pela afirmação de uma crença, com a indicação do caminho de suas consequências, nos termos exatos de Alexander Bain, que associa o tema da crença à intenção, vontade e ação. No segundo, trata-se de enunciado que enfatiza a dimensão histórica e local do movimento que afirmou aqueles valores. Em ambos os casos, não há operadores de universalização.

Pelo contraste, pode se ter uma ideia da potência do pensamento da evidência, mobilizado por operadores de universalização. No texto de Jefferson e no vocabulário dos Direitos do Homem, emanados da Revolução Francesa, os operadores são claros: “homem”, “qualquer homem”, “todos os homens” etc. Há, pois, uma correspondência entre o caráter de verdade necessária revelado pela evidência e seu corolário de universalização prática[70].

Se as operações da crença em contextos de provas, demonstrações e argumentos não se apresentam como especialmente problemáticas, ao contrário, parece ser o caso de indagar: qual a natureza das crenças envolvidas no ato de crer em uma evidência? Embora gente como Charles Saunders Peirce tenha genialmente desqualificado a questão – ao sustentar que cria em tudo aquilo em que acreditava -, creio ser necessário levá-la a sério.

O tema da evidência ocupou o proscênio filosófico do século XVII. É certo que tais datações são sempre sujeitas a reparos. É possível, com efeito, detectar sinais de operações de princípios de evidência na filosofia grega – quer pela recusa da doxa como critério de verdade, quer pela fixação de primeiros princípios como condição necessária para o conhecimento verdadeiro – e no pensamento medieval – sobretudo nos esforços de Anselmo para a produção de uma prova da existência de Deus que, de forma engenhosa, buscava combinar demonstração e evidência. Trata-se, ainda, de um tema forte nas filosofias de Duns Escoto e Guilherme de Ockham, o primeiro em torno da ideia de cognitio intuitiva e o segundo com o tema da notitia evidens. Ambos andavam às voltas com formas de falar da realidade, sem que para tal fosse necessário sair do espírito[71].

No entanto, a filosofia do século XVII pode ser definida como marcada pela busca de evidências capazes de fornecer ao sujeito uma certeza epistêmica. Descartes e Hobbes são os principais operadores dessa mutação filosófica. O estatuto da verdade não mais depende de algo associado à tradição ou à revelação, mas exige o preenchimento do sujeito – antes mesmo que ele diga algo a respeito do mundo – por uma certeza que, quando lhe aparece, o faz sob a forma de algo que exige não menos do que um assentimento completo, tal como a ideia de cogito ou a de direitos naturais como fatos de razão. Da mesma forma que marcado pelo tema da evidência, o século xvii foi atravessado por esforços de refutação dessa busca, tal como pode ser detectado na variante cética que teria, segundo olhares pouco generosos, infestado os espíritos[72].

Uma história da evidência seria, por certo, de grande interesse. Não é o caso de empreendê-la aqui, mas pode ser dito que há uma ordem de argumentos e indagações que deve precedê-la. Diante do enunciado de Jefferson, posso, de modo legítimo, perguntar: como vocês sabem disso? O que é isto que vocês veem e que eu não consigo ver? Há o suposto de uma opacidade, a par de uma incapacidade minha de ver o fundamento. Uma alternativa apaziguadora poderia dizer: essa visão que no alcanço resulta de uma percepção de coisas que se dão no mundo, e não de caprichos de homens doidos. Tornaram-se possíveis pela prática militante de maior atenção, quer ao detalhe — uma sensibilidade fenomenológica incomum —, quer à espessura do mundo — uma capacidade de ir ao fundo das coisas e ver lá o que não se revela a olho nu.

Mas não seria o caso de supor que os que afirmam a evidência do fundamento — para além de toda experiência — têm, com sinais trocados, alguma parte com os infortúnios de Vitangelo Moscardo? Ali, como vimos, as inevidências do eu conduziram à recusa da predicação e do pensamento. Agora, se está diante de uma autoposição e afirmação de si pelo privilégio do vislumbre de uma evidência. Em outros termos, ao esvaziamento pirandelliano opõe-se o autopreenchimento do sujeito, pela afirmação de seu acesso privado e solipsista a verdades invisíveis, posto que evidentes. Em ambos os casos praticam-se formas de alucinação. A primeira poderia ser designada por uma alucinação negativa que suspende o pensamento e a nomeação. A segunda é eminentemente positiva e ativa. A primeira aniquila o sujeito, a segunda inventa mundos.

Fernando Gil, em seu Tratado da evidência, afirmou que a evidência é uma alucinação. Trata-se de um “excesso”[73], uma espécie de “curto-circuito”[74] pelo qual a representação toma o lugar do mundo exterior ao pensamento:

A evidência alucinada permanece o modelo da máxima inteligibilidade, de uma “inteligibilidade viva”, que não deixa margem para dúvidas e que, sobretudo, nos conduz a uma crença absoluta na existência e ao contentamento do conhecimento […] ao preenchimento da expectativa[75].

A alucinação da evidência traz consigo um operador invisível. O argumento decorre da ideia de Edmond Husserl, a respeito do que seria uma evidência perfeita. Husserl, em uma nota de sua Lógica formal e lógica transcendental, menciona o “caráter regulador, em sentido kantiano, de uma evidência perfeita[76]. Trata-se de pura passagem da evidência ao ato. Fundada em um solipsismo radical, a evidência passa à vida como princípio regulador da experiência. O argumento de Husserl é essencial para o entendimento desse passo da evidência à experiência:

A experiência externa nunca é a priori uma experiência que dê a coisa ela própria de maneira perfeita mas, enquanto se escoa numa concordância consequente, ela traz consigo, a título de implicação intencional, a ideia de um sistema infinito […] de experiências possíveis[77].

Como bem observou José Reis, em comentário ao Tratado da evidência, trata-se, no argumento de Husserl, de “tomar o não dado como presente”[78]. Há alguns anos supus e escrevi que a filosofia política caracteriza-se pela imitação de coisas não existentes[79]. Hoje penso saber melhor a respeito do que se imita e dos requisitos epistêmicos envolvidos no empreendimento. Sem os operadores da crença e da alucinação e, sobretudo, sem o recurso à ficção da evidência, o discurso sobre a política jamais poderá considerá-la sob a ótica de um “sistema infinito […] de experiências possíveis”. Em seu lugar, continuaremos imersos em um sistema finito de coisas tal como se mostram.

* * *

O rebatimento do tema da evidência sobre a filosofia política é, para dizer o mínimo, significativo. A linguagem dos direitos — tidos como fatos de razão e não como efeitos de acumulações históricas particulares — muito devém das operações da evidência. Por suas características intrínsecas, a experiência da verdade, proporcionada pela evidência, é de natureza solipsista e não compartilhada. Qualquer esforço que eu venha a fazer para compartilhar com outrem algo que advém de uma evidência que acaba de me assaltar implicará praticar algum dos modos anteriormente indicados. É possível, pois, imaginar esforços de persuasão baseados em uma evidência originária. Mas isto não elide o fato de que, na origem de tudo — e como condição de tudo —, ocorre um experimento de intuição filosófica, por definição solipsista.

Crer na verdade de uma intuição, anterior a toda experiência e a operar como condição de consistência epistêmica do sujeito. Tal é a modalidade de crença a ser exigida pelo modo da evidência. Importa, pois, investigar por que meios uma experiência originariamente solipsista dá passagem à configuração do espaço público.

O debate sobre o significado e o papel da crença na configuração do experimento humano, com efeito, é milenar. Desde a crítica platônica às possibilidades de uma polis ser sustentada no jogo das opiniões imperitas e o reconhecimento, por parte do cético grego Sexto Empírico, do papel inerradicável jogado pelas mitiké pisteis na configuração da experiência social, o tema da crença tem se apresentado como crucial.

Há muitas formas possíveis de incredulidade. O eminente pensador brasileiro Nelson Rodrigues não acreditava no que mostrava aquilo que então era designado pelo termo “videoteipe”, sobretudo quando “comprovava algo contrário às suas paixões clubísticas: dizia que “videoteipe” era uma coisa “burra”. Já o irmão de Freud, diante da Acrópole, dizia: “não acredito que estou aqui”, o que levou o exemplar mais célebre da família a escrever uma bela nota na qual refletia sobre o significado de tal incredulidade[80]. O personagem Vitangelo Moscardo, de Luigi Pirandello, passa a

duvidar de sua existência como sujeito, em um exemplo notável de desvestimento da crença.

Mas Descartes, nas Meditações metafísicas, fez da experiência da maior incredulidade possível — a dúvida hiperbólica —, a base de um trajeto solipsisita na direção de uma inabalável crença a respeito da existência de um sujeito que pensa e é habitado por ideias claras e distintas[81]. Este é o lugar da evidência, base para esforços de reinvenção do mundo. A filosofia política muito devém da ação desse operador alucinado.

Notas

  1. Cf Fernando Gil, ‘As inevidências do eu”. In: Fernando Gil; Helder Macedo, Viagens do olhar, Porto: Círculo das Letras, 1998, pp. 229-269. 
  2. Cf. Ludwig Binswanger, Mélancolie et Manie (1960), Paris: PUF, 1987, P. 49. 
  3. Para uma belíssima e genial apresentação da cosmologia dos atomistas gregos, ver Charles Mugler, Deux thèmes de la cosmologie grecque: devenir cyclique et pluralité des mondes, Paris: Librairie C. Klincksieck, 1953, especialmente o capítulo IV, “La pluralité des mondes: substitution d’une représentation cosmologique nouvelle au mythe du retour éterner, pp. 145-185. 
  4. Cf. E. E. Evans-Pritchard, Bruxaria, oráculos e magia entre os azande, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. 
  5. Cf. Jorge Luis Borges, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, Obras completas v. I: Ficciones, Buenos Aires: Émecé,1974, pp. 431-432. 
  6. Remeto o leitor a alguns textos incontornáveis para o tratamento da questão da experiência estética, especialmente a Arthur Danto, A transfiguração do lugar-comum (1981), São Paulo: Cosac Naify, 2005; Roger Fry, Visão e forma (1981), São Paulo: Cosac Naify, 2002; e Nelson Goodman, Linguagens da arte: uma abordagem a uma teoria dos símbolos (1976), Lisboa: Gradiva, 2006. Para uma utilíssima recolha do debate a respeito, no século xx, ver Carmo D’Orey (org.), O que •é• a arte? A perspectiva analítica, Lisboa: Dinalivro, 2007. 0 filósofo português Paulo Tunhas tratou da questão em excelente ensaio, intitulado “Três atos de crença. In: Fernando Gil; Pierre Livet; João Pina Cabral (eds.), O processo da crença, Lisboa: Gradiva, 2004. 
  7. Cf. Sextus Empiricus, Outlines of Pyhrronism 1. In: R. G. Bury (ed.), Sextus Empiricus, Cambridge/Londres: Harvard University Press/William Heinemann, 1976, P. 3. 
  8. Tratei do regime de crenças dos céticos nos seguintes ensaios: “Vox Sextus: dimensões da sociabilidade em um mundo possível cético”, Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998, pp. 113-168; “Ceticismo, crença e filosofia política”. In: Fernando Gil; João Pina Cabral; Pierre Livet (orgs.), O processo da crença, op. cit., pp. 2949; e “La fabbrica delle credenze. Lo scetticismo come filosofia del mondo umano”, Iride: Filosofia e Discussione Pubblica, Bolonha, dez. 1998, n. 55, pp. 689-703. 
  9. David Hume, Tratado da natureza humana, São Paulo: Unesp, 2000, livro I, parte IV, seção I, p. 216. 
  10. Idem, seção vi,, p. 301. Referência importante para o tratamento do tema da crença em Hume é a do livro de Anthony Flew, Home’s Philosophy of Belief a Study of his First Enquiry, Londres: Routledge and Kegan Paul Ltd., 1961. 
  11. Para discussão pormenorizada das implicações dessa antropologia, ver Fréderic Brahami, Le Travail du Scepticisme, Paris: PUF, 2001. 
  12. Cf. David Hume, The history of England, Indianápolis: The Liberty Fund, 1983. 
  13. Cf. Roy Wagner, A invenção da culturá, São Paulo: Cosac Naify, 2010. 
  14. David Hume, Investigação acerca do entendimento humano, São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1972, p. 48. 
  15. Fernando Gil, “As inevidências do eu”. In: Fernando Gil; Helder Macedo, op. cit.,p.244. 
  16. Charles Sanders Peirce, Afixação da crença. In Antologia filosófica, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988, p. 64. 
  17. Idem, p. 65. 
  18. Alexander Bain, The Emotions and the Will, Londres: Longmans Green and Co., 1875. 
  19. Alexander Bain, op. cit., pp. 530-531. 
  20. Idem, p. VI. 
  21. Idem, p. 524. 
  22. Idem, ibidem. 
  23. Idem, ibidem. 
  24. Elaine Scarry, em seu livro The Body in Pain: The Making and the Unmaking of the World (Nova York/ Oxford: Oxford University Press, 1985), tratou da relação entre dor e certeza, do ponto de vista do sujeito que sofre, e da mediação da crença no relato da dor a um observador externo. A dor, nesse caso, é o lugar da maior certeza possível; a escuta a quem sofre, o lugar do ceticismo e da incerteza. As implicações desse ponto para o tema do compartilhamento da dor são mais do que evidentes. 
  25. Alexander Bain, op. cit., p. 525. 
  26. Cf. António Marques, O interior: linguagem e mente em Wittgenstein, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2903. 
  27. Cf. Ludwig Wittgenstein, Últimos escritos sobre a filosofia da psicologia, ii, 84, apud António Marques, op.cit., p. 7. 
  28. Aqui é mesmo possível um nexo com a perspectiva freudiana. A ideia de um interior em associação a operações do inconsciente não se reduz necessariamente à ação pulsional de caráter a-simbólico. É esta, com certeza, a dinâmica do trauma, que emerge sem mediação simbólica. Fora do campo do trauma, contudo, as emergências pulsionais dão-se em uma linguagem que expressa conteúdo e, portanto, crenças. É mesmo possível — e desejável — uma teoria do inconsciente que o represente mais do que como linguagem, mas como algo no qual crenças estão fixadas e que se apresentam como condição originária da própria expressão. É mesmo o caso de imaginar a fusão da ideia de linguagem como forma de vida com o suposto do inconsciente como linguagem. 
  29. Cf. David Hume, Tratado da natureza humana, livro Iparte IV, seção VIp. 284. 
  30. Idem, seção II, p. 240. 
  31. Idem, seção VII, p. 285. 
  32. Idem, livro II, parte I, seção II, p. 311. 
  33. David Hume, Diálogos sobre a religião natural. In: Obras sobre religião, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 47. 
  34. David Hume, Tratado da natureza humana, livro I, parte iv, seção vi, p. 283. 
  35. Idem, p. 291. 
  36. Idem, p.295. 
  37. Luigi Pirandello, Um, nenhum e cem mil, São Paulo: Cosac Naify, 2001, p. 19. 
  38. Idem, P. 22. 
  39. Idem, p. 24. 
  40. Idem, p. 40. 
  41. Idem, p. 31. 
  42. Idem, p. 34. 
  43. Hem, p. 41. 
  44. Cf. Alfredo Bosi, “Apresentação”. In: Luigi Pirandello, op. cit., p. 12. 
  45. Cf. Luigi Pirandello, op. cit., p. 47. 
  46. Idem, p. 46. 
  47. Idem, p. 91. 
  48. Idem, p. 95. 
  49. Luigi Pirandello, op. cit., p. 216. 
  50. Fernando Gil, “As inevidências do eu”, op. cit., p. 229. 
  51. Idem, p. 230. 
  52. Idem, p. 230. 
  53. Sá de Miranda, “Que mal avindos cuidados”, § 13, p. ii, apud Fernando Gil, op. cit., p. 244. 
  54. Fernando Gil, op. cit., p. 243. 
  55. Idem, p. 244. 
  56. Ludwig Binswanger, Délire, Grenoble: Jérome Millon, 1993, p. 72. 
  57. Idem, p. 60. 
  58. Fernando Gil, em La Logique du Nom (Paris: L’Herne, 1972), tratou dessa questão por meio da expressão “pressuposição da referencialidade”. Ver também o ensaio de Michael Riffaterre, “A ilusão referencial”. In: Michael Riffaterre et al., Literatura e realidade (que é realismo?), Lisboa: Dom Quixote, 1984, pp. 99-128. 
  59. Cf. Willard Van Orman Quine, Relatividade ontológica e outros ensaios. In: Gilbert Ryle; John Austin; Willard Quine; Peter Strawson, Ensaios, São Paulo: Abril, 1980, p. 118. (Col. Os Pensadores). 
  60. Sobre o tema do fundamento – e sua distinção para com a ideia de fundação -, ver Fernando Gil, A convicção, Porto: Círculo das Letras, 2002. Eu mesmo tratei do problema, inspirado no argumento original de Fernando Gil, em “Pensamento soberano, abismo do fundamento e formas da irresolução. In: Renato Lessa et al., A razão apaixonada: homenagem a Fernando Gil, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2008, pp. 239-290. 
  61. Friedrich Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos. In: José Cavalcante de Souza (sel.), Os pré-socráticos, São Paulo: Abril, 5978, p. 12. (Col. Os Pensadores) 
  62. Esse ponto é tratado com brilho e clareza singulares por Paulo Tunhas, em ensaio já aqui mencionado: “Três tipos de crença”. In: Fernando Gil; Pierre Livet; João Pina Cabral (orgs.), op. cit., pp. 119-134. 
  63. Ver Astolfo G. Mello Araújo e José Carlos Marcelino, “O papel dos tatus no movimento dos materiais arqueológicos: uma abordagem experimental”, Geoarchaeology, abr. 2003. 
  64. Cf. Górgias, L’Éloge d’Hélène. In: Jean-François Pradeau (ed.), Les Sophistes, v. I, Paris: Gamier Flammarion, 2009. 
  65. Cf. Max Weber, “A política como vocação”, Ciência e política: duas vocações, São Paulo: Cultrix, 2000. 
  66. Cf. Fernando Gil, Tratado da evidência, Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1996; e Modos da evidência, Lisboa: Imprensa Nacional, 1998. 
  67. Fernando Gil, Tratado da evidência, Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1996, p. 261. 
  68. Julien P. Boyd (ed.), The Papers of ThomasJefferson, Princeton: Princeton University Press, 1950, v. I (1760-66), p. 423. 
  69. . Cf. David Hume, Diálogos sobre a religião natural. In: Obras sobre religião, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. 
  70. É esse o sentido da caracterização feita por Alexis de Tocqueville, da Revolução Francesa como “revolução religiosa”. Ela não era nacional ou resultado de dinâmicas históricas e sociais particulares, mas manifestação de argumentos racionais evidentes e universais. Cf. Alexis de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, Brasília: Ed. UnB, 1979. Ver, em especial, o capítulo 3 do livros, pp. 57-59. 
  71. Cf. Fernando Gil, Tratado da evidência, op. cit., pp. 170-181. 
  72. Referência obrigatória para o tratamento das refutações céticas ao racionalismo, no século XVII, é o livro clássico de Richard Popkin, The History of Scepticism: from Savonarola to Bayle, Oxford: Oxford University Press, 2003. Ver ainda o excelente livro de Gianni Paganini, Skepsis: Le Débat des Modernes ser Le Scepticisme, Paris: J. Vrin, 2008. 
  73. O argumento do “excesso” aparece em várias passagens do Tratado da evidência, tal como pode ser visto nas páginas 14, 17, 43-44, 96, 108, 109, 132 e 253. 
  74. Cf. Fernando Gil, Tratado da evidência, op. cit., p. 117. 
  75. Idem, p. 17. 
  76. Edmond Husserl, Lógica formal e lógica transcendental, apud Fernando Gil, Tratado da evidência, op. cit., 33. 
  77. Edmond Husserl, op. cit., apud José Reis, “Sobre o Tratado da evidência de Fernando Gil”, Revista Filosófica de Coimbra, Coimbra, 1996, nº. 10, pp. 415-416. 
  78. Idem, p. 416. 
  79. Renato Lessa, “Por que rir da filosofia política?”, Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia política, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. 
  80. Cf. Sigmund Freud, Un transtorno de la memoria en la Acrópolis: carta abierta a Romain Rolland en ocasión de su septuagésimo aniversario. In: Obras completas, Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 1968, v. III, pp. 352-359. 
  81. Cf. René Descartes, Meditações metafísicas, São Paulo: Martins Fontes, 2005. 

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