2011

Crer é não crer: as crenças religiosas, a violência e o sagrado

por Jean-Pierre Dupuy

Resumo

No livro, As formas elementares da vida religiosa, o pai da sociologia francesa, Emile Durkheim, enuncia uma tese que a antropologia de sua época havia quase que tornado banal. Ele escreve, concluindo sua obra: “Estabelecemos que as categorias fundamentais do pensamento e, em consequência, a ciência, têm origens religiosas. Vimos que acontece o mesmo com a magia e, na sequência, com as diversas técnicas derivadas. De outra parte, sabe-se há muito tempo que, até a um momento relativamente avançado da evolução, as regras da moral e do direito foram indistintas das prescrições rituais. Pode-se dizer, em resumo, que quase todas as instituições sociais nasceram da religião”. Uma nota de pé de página dá a significação: Uma forma apenas da atividade social não foi ainda expressamente ligada à religião: é a atividade econômica.

Entretanto, o valor econômico é uma espécie de poder, e conhece-se muito bem as origens religiosas da ideia de poder. Daí, deve-se ver que a ideia de valor econômico e a de valor religioso não devem ser vistas sem relações. Mas a questão de saber qual é a natureza destas relações não foi estudada ainda.

Pode-se ligar a economia à religião se se quiser compreender como a economia ocupou o lugar deixado vazio pelo processo, de natureza eminentemente religiosa, de dessacralização do mundo que caracteriza a modernidade. É nesta longa perspectiva que se deve inscrever a crise atual.

A antropologia fundamental do pensador francês René Girard retoma uma longa tradição de antropologia religiosa interrompida pela Segunda Guerra mundial e pelas décadas de estruturalismo e pós-estruturalismo “desconstrucionista” que se seguiram. Girard pôs em novos moldes a questão da origem da cultura que, para ele é a mesma questão da origem do sagrado. A “hipótese” gerardiana, amplamente discutida, consiste em postular que o sagrado resulta de um mecanismo de autoexteriorização da violência dos homens a qual, projetando-se fora sob forma de sistemas de crenças (mitos), práticas rituais, sistemas de regras, interditos e obrigações, consegue conter-se a si mesma nos limites viáveis. O sagrado é a “boa” violência institucionalizada que regula a “má violência” anárquica, seu contrário em aparência. O movimento de dessacralização do mundo que constitui aquilo que designamos a modernidade é trabalhado por um saber que se insinua progressivamente na história humana: e se a boa e a má violências não fossem apenas uma? Foi o cristianismo que teria instalado esta dúvida em nosso espírito.

A antropologia girardiana levanta uma questão que ela não soluciona. O trabalho do cristianismo destrói progressivamente a eficácia dos sistemas sacrificiais desmistificando-os e nós nos encontramos sós diante de nossa própria violência. Este é o circuito no qual nos enreda o cristianismo. Eis porque pareceu perigoso a espíritos como o de Maquiavel. Como explicar então que a humanidade não tenha ainda conhecido inteiramente o destino do qual, provavelmente, inúmeros coletivos humanos, ao longo da história da espécie, fizeram a experiência infeliz: a autoaniquilação pela violência intestina?

A reposta é: a economia é a continuação do sagrado por outros meios. Como o sagrado, ela barrou a violência através da violência. Para a economia, como para o sagrado, a violência dos homens se põe à distância dela mesma para se autorregular. Eis porque, como escreveu Hegel, a economia é “a forma essencial do mundo moderno”, isto é, de um mundo posto em perigo extremo pelo crepúsculo dos deuses. É neste quadro que se deve pensar a presente crise para poder dar-se um sentido. Como o sagrado antes dela, a economia está em vias de perder hoje sua capacidade de ela mesma produzir regras que a limitem, digamos de auto-transcendência. Este é o sentido profundo da crise. A mitologia grega deu um nome ao que advém de uma estrutura hierárquica (no sentido etimológico de ordem sagrada) logo que ela se precipitou sobre si mesma: é o pânico. Em um pânico, não há mais exterior. A economia, por sua arrogância, privou-se do que poderia servir-lhe de transcendência, o domínio político, que ela absorveu quase que inteiramente. Ocupando todo o espaço, a economia condenou-se a si mesma.


Existe crer e crer, e esta diferença aparece nas palavras crença e fé. A diferença pode chegar até a oposição porque, de acordo com a linguagem comum e na vida cotidiana, quando dizemos que um homem é crédulo queremos dizer que ele pensa qualquer coisa, que ele se submete à aparência, se submete à opinião, que ele é indeciso. Mas quando se diz a respeito de um homem de negócios que ele tem fé, o que se quer dizer é justamente o contrário.

Alain, Propos

Depois Jesus diz a Tomé “não sejas mais incrédulo, sê crédulo (…). Porque tu me viste, tu acreditaste? Felizes daqueles que acreditaram sem terem visto”.

Evangelho segundo São João, 20:26-27

O dicionário Aurélio define o substantivo crente assim: “Aquele que acredita, que tem fé religiosa”. Na verdade, toda reflexão sobre as crenças dificilmente pode evitar começar pelo caso original das crenças religiosas. E não será como crente que vou fazê-lo aqui, e sim praticando antropologia filosófica e religiosa, que é verdadeiramente meu ofício. Por esta denominação eu compreendo uma reflexão sobre o ser humano, reflexão que coloca as duas seguintes questões: “O que é um homem para que ele possa formar crenças religiosas? O que é uma crença religiosa, para que um homem possa formá-la?”.

Vou aproveitar a ocasião que me foi oferecida uma vez mais pelo caro Adauto Novaes de participar do ciclo de conferências Artepensamento para falar de um pensador francês que se tornou norte-americano e cuja obra está começando a ser conhecida no Brasil — graças aos esforços de dois amigos, o teólogo inglês James Alison e o teórico brasileiro de literatura João Cézar de Castro Rocha —, neste momento em que ela é considerada por muitas pessoas no mundo inteiro uma das mais fortes teorias das ciências humanas existentes: trata-se de René Girard, nascido em Avignon em 1923, atualmente professor emérito da Universidade de Stanford na Califórnia e autor de cerca de trinta livros traduzidos em aproximadamente quarenta línguas[1].

Em completa discordância com as tendências profundas das ciências humanas de sua época, estruturalistas, pós-estruturalistas, desconstrucionistas, Girard ousou colocar questões tão fundamentais como: pode haver uma ciência humana se ela renuncia a colocar a questão da origem do religioso, ou se ela julga ser um problema mal colocado o problema de saber o que faz com que em todas as sociedades não modernas o laço social esteja referido a uma entidade radicalmente exterior ao mundo dos homens, o sagrado? Pode existir uma ciência econômica se ela não se interroga inicialmente sobre a coincidência histórica maior que caracteriza o mundo moderno, coincidência que une a saída do religioso e o reino do Mercado? Colocando estas questões, Girard nada mais fez que se juntar à grande tradição da antropologia religiosa inglesa, francesa e alemã, que foi brutalmente interrompida em 1939, com a morte de Freud. Nenhuma reflexão atual sobre o papel universal do religioso nas sociedades humanas pode desconhecer o pensamento de Girard. Em tudo o que se segue aqui, mesmo quando eu não pronunciar seu nome, podem estar seguros de que o que eu digo tem relação com a sua teoria.

AS CRENÇAS RELIGIOSAS PODEM EXPLICAR A BARBÁRIE MODERNA?

Os terroristas do 11 de setembro de 2001 conseguiram derrubar as torres que simbolizavam a força do capitalismo mundial, mas não conseguiram abalar a maneira pela qual nós explicamos as ações humanas, mesmo aquelas que nos parecem as mais loucas.

O modelo individualista e racionalista que domina hoje as ciências humanas, mas que já fazia parte do senso comum, nos leva a explicar as ações dos outros — mas também nossas próprias ações — procurando as causas dessas ações, tomando então as causas por razões[2]. Se João fez x, é porque ele desejava obter y e porque acreditava que obteria y fazendo x. A filosofia americana de tipo analítico denomina este tipo de explicação belief-desire model, quer dizer, o modelo crença-desejo. Mas nós já encontramos este modelo de explicação em Aristóteles sob o nome de silogismo prático. Toda ação, mesmo a mais aparentemente insana, está dotada de uma racionalidade mínima, se a concebemos como movida por desejos e crenças. É suficiente encontrar os bons desejos e as boas crenças que permitem decifrar o enigma que constitui toda a ação humana. É assim que nós, pessoas razoáveis, não hesitamos em atribuir aos terroristas as crenças mais improváveis (crenças que nós mesmos seríamos incapazes de formar), fingindo acreditar na realidade delas e cobrindo-as com o rótulo de “religiosas”! Para guardar o esquema explicativo que assimila as razões e as causas da ação, frente a uma ação insana, nós fingimos acreditar que os terroristas acreditam de modo insano — que, por exemplo, eles iam subir ao céu para lá encontrar 36 virgens que os esperavam com impaciência (em outra versão elas eram 72!).

Quanta pobreza de análise e quanta falta de imaginação!

Como se crenças religiosas pudessem ter força suficiente para causar tais atos!

Lembremo-nos das análises brilhantes de Jean-Paul Sartre no capítulo de O ser e o nada consagrado à “má-fé”. Lá lemos: “a crença é um ser que se coloca em questão no seu próprio ser, que só pode se realizar na sua destruição, que só pode manifestar-se a si mesmo negando-se, é um ser para o qual ser é parecer, e parecer é negar-se. Crer é não crer”. Ou ainda: “Crer é saber que se crê, e saber que se crê é não mais crer. Assim crer é não mais crer, porque isto é apenas crer…”[3]. Dizer que “a crença torna-se não crença” é, para Sartre, dizer que “a consciência é perpetuamente fuga de si” e que a crença é “evanescente”[4].

Assim, é pela alteridade das crenças religiosas loucas que se buscou dar sentido aos atos insanos. O paradoxo merece ser meditado. É para salvar a racionalidade de um ato desconhecido de violência e de loucura que se atribui aos seus autores crenças (ou, em outros casos, desejos) que qualquer pessoa sadia rejeitaria com horror, ridículo ou comiseração. Na verdade, este modelo de interpretação das ações humanas não realça a racionalidade ou sabedoria das crenças e dos desejos, ele os toma por dados de fato. De acordo com as famosas palavras de David Hume, “a razão é, e deve ser, a escrava das paixões”. Se existe horror ou demência em um ato, toda a repulsa que ele inspira se voltará para as crenças e para os desejos que a ele se imputa como causas, mas o ato, ele mesmo, se encontrará explicado por estas mesmas causas que se tornaram razões. A universalidade do julgamento prático — este famoso modelo de crenças-desejos — só é possível porque se atribui ao outro atitudes ou estados mentais que pertencem apenas a ele, e cuja singularidade e caráter privado chegam em certos casos a fazer dele o estrangeiro absoluto. É na alteridade radical dos criminosos que buscamos principalmente as razões do desconhecido e do insano, tornando-se assim possível uma autossatisfação fácil. O que há de mais estranho às nossas sociedades democráticas, liberais e laicas que um bando de muçulmanos integristas dispostos a sacrificar suas vidas para maximizar a extensão dos estragos que eles cometem? Raras são as análises que compreenderam que a chave para entender estes atos estava não em uma lógica da diferença, mas, ao contrário, em uma lógica da identidade, da similaridade, da imitação e da fascinação.

A VIOLÊNCIA E O SAGRADO

Refleti muito sobre os atentados do 11 de setembro, escrevi muito sobre o assunto, e à explicação pelas crenças religiosas eu oponho outro tipo de explicação. Maxime Rodinson, um dos pais fundadores da reflexão francesa sobre o Islã contemporâneo, interrogado pouco tempo depois dos atentados por um jornal diário[5]sobre a tese do “choque de civilizações” de Samuel Huntington, começa por lembrar que “a religião muçulmana é uma ramificação da árvore judaico-cristã”. “Eu estaria, assim”, acrescenta ele, “menos seguro do que Huntington de que ela seja, nas suas fundações, uma civilização radicalmente oposta ao Ocidente.” Ao que o jornalista replica: “Neste caso, como explicar a virulência do antagonismo?”, mostrando que ele nada guardou da tese que devemos a Alexis de Tocqueville segundo a qual é a identidade, e não a alteridade, que cria os mais violentos conflitos. Rodinson responde: “Porque, surgido de uma fonte comum com o monoteísmo bíblico, o Islã cresceu em uma ambivalência invejosa com relação à influência exercida pelo Ocidente. Grande parte do fanatismo atual é a tentativa desesperada de responder a esta questão eminentemente política: ‘Por que os europeus progridem enquanto nós acumulamos atrasos?’”.

Por seu lado, em um livro escrito logo antes do 11 de setembro de 2001[6], René Girard escrevia, falando do face a face entre o Ocidente e as “multidões miseráveis do Terceiro Mundo”:

Dos dois lados pretende-se explicar pelas tradições ancestrais fenômenos que obviamente tem suas raízes, ao contrário, na perda destas tradições, e esta perda permanece, até agora, sem nenhuma contrapartida. O ódio pelo Ocidente e por tudo o que ele representa não vem de que seu espírito seja verdadeiramente estrangeiro a estes povos, não vem do fato de que eles se oponham realmente ao ‘progresso’ que, ao contrário, nós encarnaríamos, mas de que o espírito competitivo é tão familiar a eles como é a nós mesmos. Longe de se afastar do Ocidente, eles não podem deixar de imitá-lo, de adotar seus valores sem admitir a si mesmos, e eles estão tão devorados como nós pela ideologia do sucesso individual ou coletivo.

Quando a febre competitiva se estende ao planeta todo e alguns, neste jogo, perdem sistematicamente, é inevitável que este mal que é o ressentimento — seja qual for o nome que se dê a ele: orgulho, amor-próprio ferido, inveja, ciúme, paixão raivosa etc. produza devastações. A filosofia política contemporânea parece completamente desarmada com relação a esta simples verdade.

Eis um problema sobre o qual, que eu saiba, a filosofia política contemporânea não tem nada ou quase nada a dizer. O modo de desenvolvimento científico, técnico, econômico e político do mundo moderno sofre de uma contradição viciosa de origem. Ele se quer, ele se pensa como universal, e nem mesmo concebe que poderia não sê-lo. Assim, a história da humanidade não podia deixar de levar a ele mesmo. Ele constitui o fim da história, um fim que redime todas as indagações que dolorosamente o precederam e que, por isso mesmo, lhes dá sentido. Entretanto, como nós sabemos, doravante sua universalização enfrenta obstáculos internos e externos incontornáveis, antes de tudo porque a atmosfera de nosso globo não o suportaria mais. Desde então, é preciso que a modernidade escolha o que lhe é o mais essencial: sua exigência ética de igualdade, que conduz aos princípios de universalização, ou o modo de desenvolvimento que se deu até aqui. Ou bem o mundo atualmente desenvolvido se isola, o que significa que cada vez mais ele se proteja com escudos de todos os tipos contra as agressões que o ressentimento dos que foram deixados para trás imaginará sempre mais cruéis e mais abomináveis; ou bem se inventa um outro modo de relação com o mundo, com a natureza, com as coisas e com os seres, que terá a propriedade de poder ser universalizado para toda a humanidade.

O ressentimento conserva indissoluvelmente juntos aqueles que se excomungam mutuamente. É agora em todo o planeta que se jogará o jogo da rivalidade mimética que une os rivais uns aos outros tanto mais compulsivamente quanto eles pretendam não ter nada em comum. A imagem que invocam os discípulos de Huntington — que parece impor-se em lugar deste “choque de civilizações” — é a de uma guerra civil dentro de uma mesma civilização global que está nascendo na dor e nas lágrimas.

Eu até mesmo avancei a seguinte tese que pode chocar: o terrorismo islâmico é o reflexo monstruoso do Ocidente cristão que ele abomina. Isto está claro na sua retórica de vitimização. Basta ler os escritos de Bin Laden: é em nome das vítimas japonesas das bombas atômicas americanas que os kamikaze islâmicos atacaram os Estados Unidos. Alguns meses antes dos atentados do 11 de setembro, o chefe da Al-Qaeda enviou uma comunicação às suas tropas para anunciar que ele preparava uma “Hiroshima contra a América”. Em todas as partes é em nome das vítimas que os outros fizeram que se persegue, que se mata, que se massacra ou mutila. A universalização da preocupação pelas vítimas revela de modo mais visível que a civilização tornou-se apenas uma para todo o planeta.

No Oriente Médio, os israelenses e os palestinos, oh paradoxo! “lutam para serem a vítima, segundo o título de um artigo do Newsweek. Eis aí uma perversão abominável deste cuidado com as vítimas que, segundo Nietzsche, o mais anticristão dos filósofos, é a marca do cristianismo e da moral de escravos que ele gerou. Ao que podemos replicar com as palavras do escritor inglês católico G. K. Chesterton, para quem efetivamente, “o mundo moderno está cheio de ideias cristãs … que se tornaram ideias loucas”.

A influência de um cristianismo corrompido é também evidente no fato notável de que a palavra “sacrifício” passou a significar exclusivamente o sacrifício de si. Tanto que não foi preciso nem uma semana após o 11 de setembro para que o antiamericanismo natural de certa França intelectual ousasse se mostrar tal como é e se recusasse a condenar os criminosos sob o argumento de que eles haviam sacrificado suas vidas. Foi alucinante ver que, a partir deste momento, a palavra “vítima” passou a ser utilizada não para designar os infelizes ocupantes das torres, sim os terroristas, considerados duplamente vítimas, da injustiça do mundo e da necessidade de se fazerem mártires.

Comecei minha conferência pondo bastante em dúvida a hipótese de que as crenças religiosas, no caso aquelas de fanáticos, podiam ter uma força causal suficiente para explicar os atos terroristas do 11 de setembro. Eu propus recorrer a outro princípio explicativo, a violência do ressentimento. Escrevi um livro cujo primeiro capítulo se intitulava “Rousseau em Manhattan”[7]. É em Jean-Jacques Rousseau, com efeito, e mais especialmente em um livro tardio que se intitula Dialogues, que eu encontrei a melhor análise, premonitória certamente, do espírito terrorista. Eis aqui a passagem-chave, onde o autor de O contrato social retoma, como ele fez ao longo de toda a sua obra, a oposição entre dois tipos de paixões fundamentais, que dão origem a todos os males: o amor de si, que é a fonte do bem, e o amor-próprio, que é a origem do mal. Estas duas expressões em francês, amor de si e amor-próprio, significam a mesma coisa, mas Rousseau lhes dá sentidos opostos. Eis como ele as opõe:

As paixões primitivas, que tendem diretamente à nossa felicidade e nos ocupam apenas com os objetos que a elas remetem, tendo apenas o amor de si por princípio, são, pela essência delas mesmas, todas amorosas e doces; mas quando desviadas de seu objeto por obstáculos, elas se ocupam mais de afastar o obstáculo do que de alcançar o objeto, elas então mudam de natureza e se tornam irascíveis e odiosas. Eis como o amor de si, que é um sentimento bom e único, se torna amor-próprio, quer dizer, um sentimento relativo pelo qual nós nos comparamos, um sentimento que demanda preferências, cujo gozo é puramente negativo e que não busca mais se satisfazer pelo nosso próprio bem mas somente pelo mal dos outros[8].

Os observadores se interrogaram, e continuam ainda a fazê-lo, sobre os objetivos perseguidos pelos que comandaram os atentados do 11 de setembro e sobre a estratégia deles. Não se compreendeu que as torres gêmeas de Manhattan não eram o objetivo sobre o qual jogaram os aviões desviados, mas o obstáculo fascinante que os atraiu como a luz de uma lâmpada atrai as mariposas para melhor carbonizá-las.

Este desvio em relação à linha direta entre o sujeito e o objeto se chama em latim clinamen, de onde declinação, inclinação, diz-se também in-vidia, de in-videre, o olhar atravessado: a inveja. Este desvio é a forma própria à inveja e ao ressentimento.

Então eu explico o 11 de setembro pelo ressentimento. Isto quer dizer que o religioso não está presente neste assunto? Antes de tentar responder a esta questão no plano teórico eu gostaria de dar testemunho de uma experiência pessoal que fiz visitando o lugar do atentado, o famoso “Ground Zero”, ou, melhor dizendo, numa peregrinação à sua cabeceira. Estávamos no início de dezembro de 2001. O que me deu nó na garganta foi uma coisa da qual nenhuma fotografia, nenhum filme pôde dar testemunho. Quero dizer a enormidade do desastre, a começar pelo tamanho das torres ausentes, que a imaginação amplificava, e cuja ausência mesma evocava a presença fantasmática. Um conjunto de arranha-céus que outrora pareciam anões aos pés das torres gêmeas montava guarda, coberto de lonas pretas, como se fossem gigantes de luto reunidos em volta de um tremendo buraco. Falando e pensando em inglês, a única palavra que me veio à cabeça para dizer o que eu então sentia foi awe. Este termo, que designa uma emoção na qual se misturam o tipo de terror, de veneração e de admiração que pode suscitar o sagrado ou o sublime, não encontra equivalente simples nas nossas línguas latinas. A tradução que eu prefiro é esta de “terror sagrado”. Sim, o sagrado, na sua ambivalência fundamental, ao mesmo tempo veneração e terror, estava bem presente no lugar.

Que eu não tenha sido o único a experimentar este intenso sentimento religioso está suficientemente atestado pelos termos do debate que se deu em Nova York a respeito da reconstrução do lugar. O projeto que obteve a aprovação das autoridades restabelece o traçado de duas ruas, a Greenwich Street e a Fulton Street, que a construção do World Trade Center no fim dos anos 1960 eliminou. No plano em questão, estas duas ruas desenhavam quatro quadrantes, o sudoeste englobando o lugar das torres gêmeas desaparecidas. É neste quadrante que está prevista a edificação de um memorial e o espaço correspondente está designado no plano como “espaço sagrado”. Mas há ainda algo mais surpreendente. Os três outros quadrantes são dedicados, e as necessidades financeiras o obrigam, a espaços comerciais, como era o World Trade Center. Ora, o principal argumento colocado pelos que promovem o projeto para defender o traçado das ruas não é que estas permitirão uma circulação fluida nas direções norte-sul e leste-oeste do sul de Manhattan. Não, o argumento é que estas ruas permitirão separar claramente o memorial do comércio ou, nos próprios termos do projeto, “o sagrado do profano”.

Então, o que tornou o local do atentado sagrado e de que sagrado se trata?

Da religião muçulmana, que era a religião dos terroristas? Ou do cristianismo, julgado o inspirador do “ressentimento vitimário”, no sentido em que Nietzsche compreendia? Estas sugestões são absurdas. Mas, então, o que resta como explicação possível?

Eu acredito que a resposta está no que a antropologia religiosa, quando ainda existia, sustentava como uma de suas mais seguras conclusões.

Na origem do social e do cultural encontra-se o que o fundador da sociologia francesa Émile Durkheim denominava “as formas elementares da vida religiosa” e, entre estas, ocupando lugar privilegiado, os rituais de sacrifício. Acima destes ainda, encontramos o “grupo em efervescência” cuja forma originária é, sem dúvida, o assassinato coletivo cometido por uma multidão em fúria sobre uma vítima inocente. Não foi um autossacrifício que os fanáticos do 11 de setembro cometeram, como faz crer a ideologia do martírio complacentemente exibido por seus patrocinadores e retomado ingenuamente por todos os que se entregam ao “ressentimento vitimário”. Não, é um verdadeiro sacrifício, no sentido antropológico do termo. Se os terroristas, por seu crime ignóbil, tornaram o lugar do atentado sagrado é porque, como a etimologia nos indica, eles sacrificaram vítimas inocentes.

No Essai sur la nature et la fonction du sacrifice[9], Marcel Mauss, o sobrinho de Emile Durkheim, que se considera o fundador da antropologia francesa, e seu colega Henri Hubert tropeçam no seguinte paradoxo: é criminoso matar a vítima porque ela é sagrada, mas a vítima não seria sagrada se não a matassem. Comentando o Essai, René Girard escreveu: “Se o sacrifício aparece como violência criminosa, não existe, em troca, quase nenhuma violência que não possa ser descrita em termos de sacrifício, na tragédia grega, por exemplo… o sacrifício e o assassinato não se prestariam a este jogo de substituições recíprocas se não fossem aparentados”[10].

Se seguirmos esta ideia, a resposta à questão que eu coloquei é simplesmente a seguinte: o que torna o lugar do ato terrorista sagrado é violência mesma da qual ele foi o teatro.

Depois da minha visita ao local nova-iorquino do 11 de setembro, por duas vezes mais eu novamente vivi a experiência muito forte, quase insustentável, do sagrado. Se eu cito hoje estes dois casos juntos, isto não significa, é claro, que eu os assimile um ao outro. Muito recentemente, eu visitei o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Alguns anos antes, eu caminhei durante horas em torno do caixão de concreto e aço que contém o que resta do reator atômico que explodiu em Tchernobyl.

Em ambos os casos, o que os homens podem fazer a outros homens ultrapassa toda possibilidade de compreensão e de imaginação. Como disse um oficial nazista a Primo Levi que chegava ao campo de Birkenau: “Hier ist kein Warum”, aqui não existe por quê. Existem causas, sem dúvida, mas estas causas não são razões. São causas cegas, assimiláveis a um mecanismo, mas é um mecanismo que é capaz de produzir a transcendência: a transcendência do mal. O mal é a máquina que transforma o humano no inumano.

Para avançar nesta reflexão sobre a relação entre a violência e o sagrado, entre o assassinato e o sacrifício, eu lhes proponho refletir sobre um incidente atroz que se produziu no Kosovo, na primavera de 1999. No dia da festa de Aïd, policiais sérvios irromperam numa casa kosovar. Na cerimônia da Aïd os muçulmanos comemoram o não sacrifício do seu filho por Abraão. Degola-se uma ovelha em memória do animal que o anjo, no último momento, fez substituir no lugar da vítima humana. Os policiais perguntaram à família se ela havia realizado o sacrifício. Não, lhes respondeu a família, nós somos muito pobres para isto. Então os policiais se apoderaram do filho da casa, um jovem de 17 anos, dizendo: “Ele é suficientemente gordo para o sacrifício'”, e o degolaram sob os olhos dos pais.

Este gesto é tão mais ignóbil na medida em que ele manipula, cinicamente, o religioso. Certamente não é um gesto religioso, mas um assassinato puro e simples. Só que ele sabe muito sobre o religioso, pelo menos o suficiente para, ironicamente, moldar-se nas suas formas. Aquele gesto traduz a compreensão de que o mecanismo sacrificial se apoia na substituição das vítimas. O não sacrifício de Ismael, para os muçulmanos (ou de Isaac para os judeus e para os cristãos), representa na história das substituições sacrificiais um momento excepcional, a passagem do sacrifício humano ao sacrifício animal. Usurpando os hábitos sangrentos daquele que sacrifica, os policiais sérvios não somente encenaram a regressão bárbara da vítima animal à vítima humana: eles significaram com esta encenação a perturbadora proximidade entre a violência e o sagrado.

Devemos denunciar aqui um duplo erro. O primeiro consiste em não ver que o sacrifício se apoia num assassinato. Todo pensamento religioso pretende dissimular, disfarçar este parentesco. O segundo erro, ao contrário, consiste, a exemplo dos policiais sérvios, em estabelecer, sem qualquer outra formalidade, a identidade entre o sacrifício e o assassinato. Esta desmistificação é demasiado brutal, ela ignora a diferença entre o assassinato e o sacrifício que está na origem da civilização. A história da humanidade é a história da evolução endógena dos sistemas sacrificiais: progressos repentinos quando da substituição da vítima humana por um símbolo (que quer dizer aquilo que toma o lugar de), primeiro um animal, depois vegetais, em seguida entidades simbólicas abstratas. É a história da simbolização.

Então não é falso colocar em relação à violência desencadeada e intrinsecamente destrutiva dos massacres da nossa história esta outra violência — controlada, canalizada, domesticada, ritualizada — que preside, no seio do religioso, as cerimônias sacrificais. Pode-se afirmar que não se pode compreender a barbárie dos tempos modernos se nos omitimos de detectar o que nela há de sagrado.

Parece-me ser essencial fazer tudo para evitar um grave mal-entendido. Não se trata, de modo algum, de dizer que a violência moderna é produzida pelo religioso instituído, sobre este que, além de tudo, não cessam de nos dizer que brevemente terá desaparecido completamente da cena pública. O que se trata de designar pelo termo “sagrado” é a dimensão inumana, ou antes, não humana, porque mecânica, na gênese violenta do religioso.

O sacrifício é um ritual, quer dizer, uma representação, uma encenação, perfeitamente codificada.

O que é assim representado é o mecanismo pelo qual uma multidão tomada por um frenesi assassino se junta e se une em torno de uma vítima julgada evidentemente culpada por todos os males que a oprimem. Os gestos dos que participam do assassinato coletivo, seus sentimentos, podem assemelhar-se aos daqueles que praticam ou que experimentam os oficiantes de um ritual sacrificial. Mas seria grotesco concluir que eles imitam uma prática religiosa, como se a história pudesse imitar a arte, como os policiais sérvios que, estes sim, sabiam o que faziam.

O lugar sagrado de Jerusalém, que os judeus denominam Monte do Templo e os muçulmanos denominam Esplanada das Mesquitas, é objeto de uma disputa que parece jamais ter fim, apesar de acreditarem, tanto uns como outros, que foi nesse preciso lugar que Abraão renunciou a imolar seu filho. Numerosos comentadores deduziram que o conflito israelo-palestino era uma guerra de religiões. Outros rejeitaram esta interpretação. Eles estavam certos em fazê-lo, mas nem por isto deve-se perder de vista a dimensão sagrada, porque sacrificial, dos acontecimentos. Os senhores, sem dúvida, devem se lembrar da morte horrível de dois soldados israelitas por uma multidão descontrolada num posto de polícia de Ramallah, que marcou tragicamente o conflito do Oriente Médio no ano 2000. A fotografia abominável que fez a volta ao planeta inteiro — estas mãos manchadas de sangue erguidas em direção a não se sabe que deus vingador, este corpo defenestrado, desarticulado, desmembrado do qual se arrancam os pedaços —, tudo aquilo evocava com uma força inacreditável os ritos mais sangrentos do sagrado primitivo. Os furiosos de Ramallah evidentemente não suspeitavam de que reproduziam os atos do diasparagmos, ritual próprio ao culto dionisíaco o homem que mergulhou as mãos no sangue de sua vítima não sabia que repetia, assim, o gesto do sacerdote asteca no topo de sua pirâmide. Os ecos religiosos estavam bem presentes, mas seria odioso dizer que eles remetiam às religiões dos protagonistas, o islã e o judaísmo. O eco é enganador e é preciso inverter a sua fonte e a sua destinação aparentes. O que vem primeiro, este universal verdadeiro da violência fundadora, é a dinâmica espontânea da multidão perseguidora. É sobre esta base que o religioso, em seguida, realiza seu trabalho de interpretação, de simbolização e de ritualização. A violência precede o sagrado porque ela é a fonte do sagrado.

DO SACRIFÍCIO AO RELIGIOSO

Passo agora para a exposição, explícita, mas muito resumida, da teoria de René Girard.

No pequeno século que assistiu ao florescimento da antropologia religiosa, hipóteses múltiplas foram formuladas para dar conta deste fato de observação inegável: em todas as sociedades humanas conhecidas existe alguma coisa como a religião ou o sagrado, definido por um sistema triplo — as crenças: os mitos, as práticas: os rituais, e as regras morais: as proibições e as obrigações. Parece que apenas as sociedades modernas escapam, ao menos em parte, desta presença universal do sagrado. Pouco a pouco, uma forma de consenso emergiu com proposições muito fortes que podemos enunciar assim: todas as instituições humanas decorrem do sagrado — o poder, o sistema de trocas e a moeda, a economia, a técnica, o direito penal e a instituição judiciária, o Estado etc. As pesquisas arqueológicas mais recentes, em particular aquelas feitas na Turquia em Göbekli Tepe e Çatalhöyük, confirmam esta hipótese. O velho modelo explicativo está prestes a ser abandonado. Segundo ele, após 140 mil anos de nomadismo, de caça e de colheita, os homens teriam inventado a criação e a agricultura — a famosa “revolução neolítica”, há dez ou 12 mil anos —, logo teriam se fixado, criando então as cidades, a divisão do trabalho, a realeza, a escritura e a arte e finalmente, para de algum modo consolidar tudo, as religiões organizadas — a famosa “superestrutura” no sentido marxista. Confirmando o que a antropologia religiosa já havia suposto, em certos quartéis influentes da arqueologia hoje se considera que a religião surgiu muito cedo na história das civilizações, tão cedo que se deve considerar que a religião é anterior à civilização e que ela é até mesmo a causa da civilização. Os homens se reuniram inicialmente em um mesmo lugar para cumprir rituais e não por razões econômicas. E, porque era necessário encontrar os meios para viver e para sobreviver em torno do espaço sagrado, eles inventaram as cidades, o poder e a economia. Foi o Templo que engendrou a Cidade e não o contrário.

Outra hipótese essencial é a de que os ritos originários, estes de onde todos os outros resultaram, eram rituais de sacrifício organizados em torno de uma vítima humana. A história da civilização, como eu disse anteriormente, é a história das substituições sacrificiais, a vítima humana sendo substituída pela vítima animal (de onde decorre a domesticação), depois por vegetais ou por símbolos abstratos.

Vejamos como o poder emerge deste processo, seguindo as intuições geniais do antropólogo belgo-inglês Arthur Hocart, autor de um livro fundamental, Social Origins[11]. Do mesmo modo que a primeira casa do homem foi um lugar de preces, de adoração e de sacrifício, podemos dizer que o primeiro rei foi um rei morto, mais precisamente um rei condenado à morte. O esquema seria o seguinte: à vítima humana que se destinava ao sacrifício, todos os poderes eram dados durante o período de preparação do ritual — inclusive o poder supremo, este de violar sistematicamente, portanto ritualmente, todos os interditos da vida cotidiana: incesto, alimentos proibidos, assassinatos. Suponhamos em seguida que o período de preparação se prolongue indefinidamente: a instituição da realeza nasceu. Mesmo se o método é perigoso, somos tentados a encontrar analogias nos acontecimentos da época moderna. Se presidentes como John Fitzgerald Kennedy e Tancredo Neves tiveram (e ainda têm) tal papel na coesão de seus respectivos países, não é porque a morte deu a eles este papel, de modo criminoso em um caso, natural no outro, no início de seus mandatos, mesmo antes que começassem? Mais geralmente, toda pessoa que tem poder, em qualquer nível, sabe bem que ela corre o risco de se tornar vítima do grupo, o bode expiatório da multidão.

Sobre a exceção, pelo menos aparente, em que se constitui a sociedade moderna a respeito da universalidade do fato religioso, numerosos e diversos são os autores que conjecturaram que o cristianismo, ou melhor, o “judaico-cristianismo” era o responsável. Nietzsche, o mais anticristão dos filósofos, juntamente com o sociólogo alemão Max Weber, para quem o cristianismo é responsável pelo “desencantamento” do mundo, fizeram muito para que esta tese pudesse merecer crédito. A palavra “desencantamento” aqui pode ser vantajosamente substituída por dessacralização. Muitos pensadores importantes formularam a coisa assim: o cristianismo é a religião que põe fim às religiões. Até aqui eu evitei marcar a diferença entre o sagrado e a religião. Com o nascimento do cristianismo, torna-se necessário fazê-lo, pois que eis aqui uma religião que destrói o sagrado, quer dizer, que priva o ritual sacrificial de toda eficácia. Nesta interpretação, o cristianismo só pôde ter este papel de dessacralização porque durante mais de dois mil anos os profetas bíblicos repetiram a mesma mensagem: Deus não quer sacrifícios.

A antropologia religiosa não soube propor uma explicação geral capaz de unificar e de sistematizar as hipóteses que ela formulava. É, em parte, a razão pela qual ela desapareceu da cena intelectual. Em particular, ela nunca conseguiu dar uma explicação satisfatória para a contradição que está no coração de todo sistema sacrificial: a oposição radical entre as proibições e as obrigações da vida comum, quer dizer, do tempo e do espaço profanos de um lado, e de outro lado as obrigações do tempo e do espaço sagrados, onde o ritual impõe violar sistematicamente as regras profanas. Para um público brasileiro, é suficiente dizer: pensem no que representa o parêntese do Carnaval no correr do ano.

Para apresentar a obra de René Girard, é suficiente dizer que ela retoma sistematicamente todos os pontos deixados em suspenso pela antropologia religiosa e que ela fornece uma explicação geral, ao mesmo tempo extraordinariamente simples e inacreditavelmente poderosa. O que não quer dizer que Girard tenha razão em todos os pontos e que a Verdade que os homens buscam tenha sido finalmente revelada!

Como tudo o que eu expliquei na primeira parte de minha exposição e que deixa a entender, é no esclarecimento da relação estreita que une a violência e o sagrado que se enraíza a teoria de René Girard. O que é o sagrado? O sagrado nada mais é do que a violência dos homens expulsa, exteriorizada, hipostasiada. A máquina de fazer deuses tem como motor a violência contagiante — Girard emprega a palavra mimética — dos coletivos humanos. No paroxismo de uma crise, quando a fúria assassina faz explodir o sistema das diferenças que constitui a ordem social e quando todos estão em guerra com todos, o caráter contagiante da violência provoca uma inflexão catastrófica, fazendo convergir todos os ódios sobre um membro arbitrário da coletividade. Seu assassinato restabelece a paz. Disto resulta o sagrado nas suas três dimensões. Primeiro os mitos: a interpretação do acontecimento fundador faz da vítima um ser sobrenatural, capaz de, a um só tempo, introduzir a desordem e criar a ordem. Em seguida, os ritos: estes, de início, sempre sacrificiais, num primeiro tempo mimetizam a decomposição violenta do grupo para, num segundo tempo, melhor encenar o restabelecimento da ordem através de uma vítima de substituição. E finalmente o sistema de interditos e de obrigações, cuja finalidade é impedir que se desencadeem os conflitos que irritaram a comunidade da primeira vez.

Compreende-se por que o rito faz o contrário dos interditos: ele deve inicialmente representar a transgressão e a desordem para poder encenar melhor o mecanismo sacrificial que vai reproduzir a ordem. O sacrifício e os interditos têm o mesmo efeito, a consolidação da ordem, mas eles procedem de caminhos opostos.

Quanto mais um ritual está próximo do acontecimento originário mais ele se estrutura nestes dois tempos que reproduzem, mimetizando, a dinâmica da crise que ameaçou fazer desaparecer a comunidade: primeiro a desordem, quer dizer, a guerra de todos contra todos, depois o retorno à ordem, onde todos (menos um, evidentemente) se voltam contra um dos seus, a vítima, que é, deste modo, divinizada. Uma vez mais pensem no Carnaval, nas suas formas originais: num primeiro tempo todos mimetizam juntos, mas uns contra outros, a decomposição violenta da comunidade; num segundo tempo destrói-se o rei do Carnaval — felizmente um simples fantoche! Se eu tivesse mais tempo analisaria, nos mesmos termos, este ritual do Dia de Reis que ainda se comemora no Nordeste, no Recife e em Olinda em particular: a queima da lapinha, que marca precisamente o início do Carnaval.

O sagrado é fundamentalmente ambivalente: impede a violência através da violência. Isto está claro no caso do gesto sacrificial que restaura a ordem: é um puro assassinato coletivo, mas ele se dá por último, ele é o gesto violento que vai acabar com toda violência. Isto também é verdade para o sistema de interditos e de obrigações: as estruturas sociais que promovem a solidariedade na comunidade em tempos normais são as mesmas que a paralisam em tempos de crise. Quando um interdito é transgredido, as obrigações de solidariedade atravessam as barreiras do tempo e do espaço (pensemos no mecanismo da vingança) e integram em um conflito sempre maior pessoas que não estavam absolutamente implicadas no confronto original.

Estas “coisas escondidas desde a fundação do mundo”[12], nós as conhecemos: tornaram-se um segredo de Polichinelo. Aquele em que não há segredo, pois todos já sabem tudo a seu respeito. Basta abrir os jornais: a expressão “bode expiatório” é utilizada em qualquer contexto. Ora, pensemos nisto: esta expressão fala da inocência da vítima, ela revela o mecanismo de exteriorização da violência. A expressão é frequentemente utilizada de maneira errada. Tal qual o homem político dirá: “querem me fazer passar por bode expiatório, mas eu não permitirei que isto aconteça!”. Entretanto, o que ele queria dizer era: “querem me transformar no culpado, mas eu sou inocente!”; no entanto, diz o contrário: “querem me fazer passar por uma vítima inocente”. E ninguém ri porque todos já corrigiram a inversão de sentido.

O mecanismo do bode expiatório, através do qual um coletivo humano faz recair seus próprios erros e pecados sobre um indivíduo ou grupo inocente ou, pelo menos, que não é mais culpado do que outros, só funciona com eficácia se não for um ato intencional. Os verdadeiros perseguidores não sabem o que fazem. Eis por que talvez seja preciso perdoá-los. É a própria perseguição que produz neles, segundo um processo inconsciente, a representação de sua vítima como culpada. Os perseguidores “inocentes”, se assim ousarmos dizer ou escrever, estão convencidos da justeza de sua violência. Isto é tão verdadeiro que no mundo da perseguição pura nem a noção nem a expressão “bode expiatório” existem.

A utilização errada da expressão revela que o mecanismo do bode expiatório está agora totalmente desvelado, que ele é manipulado com cinismo, e que nem os perseguidores, eles mesmos, acreditam na culpabilidade da sua vítima, no máximo eles fazem crer, inclusive a eles mesmos, que acreditam. Os perseguidores modernos têm má-fé, eles precisam apresentar sua vítima como um perseguidor para melhor persegui-la. Os papéis se invertem enquanto as acusações chovem de todos os lados. Neste universo turvo, pode-se dizer o contrário do que se quer dizer sem que ninguém note. Todo mundo já compreendeu do que se trata, o que quer que se diga.

Uma olhada no dicionário, entretanto, nos lembra que falta ao bode expiatório temperado com o molho político um aspecto essencial: a dimensão do sagrado. O “bode expiatório” é inicialmente um ritual de tipo sacrificial, cujo exemplo mais conhecido está descrito no Levítico. No dia da Festa da Expiação o padre responsabiliza um bode por todos os pecados de Israel que em seguida será caçado no deserto e destinado ao demônio Azazel. O antropólogo inglês James Frazer acreditou reconhecer os ritos do mesmo gênero nos quatro cantos do planeta, a começar pelo rito de destruição do pharmakos na Grécia antiga. Ele os agrupou sob a etiqueta geral de rituais de bode expiatório. Deste ponto de vista é muito paradoxal, mas finalmente muito revelador, que na maior parte dos nossos dicionários ocidentais a entrada “bode expiatório” dê como primeiro ou próprio sentido o ritual, e como sentido figurado, derivado ou metafórico, o sentido psicossociológico. É provavelmente a única entrada do dicionário em que a cópia vem antes do original e o ato de representação ritual ou teatral precede a coisa representada. Quando o livro de René Girard intitulado Le bouc émissaire (O bode expiatório) foi editado em japonês, recebeu como título uma palavra que se refere a um dos rituais pertencentes à categoria definida por Frazer. Evidentemente era um contrassenso, porque Girard entendia estar designando o mecanismo e não sua representação. Mas parece que não havia como fazer melhor na língua japonesa: o mecanismo não é nomeado porque talvez não seja reconhecido. Tudo se passa como se o ritual que disfarça o mecanismo sob o véu cerimonial fosse mais universal, mais transcultural do que a clareza sobre o mecanismo que, em todos os lugares e sempre, transforma, pela perseguição, as vítimas em culpados.

Segundo Girard tudo isto prova que a mensagem do Evangelho trabalha o mundo em profundidade, mas de maneira incompleta. Neste sentido, e apesar de todas as estatísticas sobre o declínio da prática religiosa, é necessário falar da vitória do cristianismo no mundo moderno. Essa vitória, entretanto, não é do tipo que se pode desejar, tão temíveis são seus efeitos.

A narrativa sobre a morte de Jesus na cruz é semelhante àquelas que encontramos no coração de tantas religiões, como bem observou a antropologia religiosa do século XIX. Se nos restringirmos aos fatos, não há diferença maior entre o cristianismo e uma religião primitiva. Mas esta semelhança é enganadora. Com efeito, a interpretação que o cristianismo faz destes fatos é, por força de suas raízes judaicas, radicalmente nova. Paradoxalmente aqui Girard deve render homenagem a Nietzsche. A narrativa evangélica inova na medida em que não é contada pelos perseguidores, ela toma partido da vítima clamando por sua absoluta inocência. Eis por que Nietzsche acreditou estar autorizado a acusar o cristianismo de ser uma moral de escravos.

A máquina de fabricar o sagrado, devido a este saber que a bloqueia, está irremediavelmente travada. Conseguindo sacralizar menos, ela produz cada vez mais violência, mas uma violência que perdeu o poder de se polarizar, quer dizer, de convergir sobre uma vítima única. Assim adquire sentido a palavra do Evangelho: “Não acreditem que eu tenha vindo trazer a paz sobre a terra; eu não vim vos trazer a paz e sim a espada” [Mt 10:34]. Nada se pode compreender sobre a questão da religião no mundo de hoje se não se tentou, inicialmente, elucidar esta frase terrível.

O cristianismo foi vitorioso em todos os lugares, mas, muito ao contrário da mensagem evangélica, seus efeitos são assustadores. Frequentemente o cristianismo se introduz no mundo moderno sob a forma de seu duplo monstruoso. Já evoquei esta reversão pela qual o cuidado com as vítimas se torna um motivo de perseguição. A lição do cristianismo só pode ser verdadeiramente compreendida se o for completamente, cem por cento, o que implica que os homens renunciem de uma vez por todas à sua violência. O Reino do Amor é como o olho do ciclone. Os senhores conhecem esta metáfora que frequentemente tem sido compreendida ao contrário. No olho reina não a agitação máxima, e sim o repouso absoluto. Porém, quanto mais nos aproximamos do olho, mais rápido giramos, tal como uma palha, tornando-se mais difícil ainda alcançá-lo. Do mesmo modo, se tentamos alcançar pelos meios habituais o Reino do Amor — este que Cristo foi o primeiro a dizer que não pertence a este mundo —, quer dizer, se nos esforçamos sempre em aumentar mais a eficácia dos meios violentos para conter a violência, mais ele fica inatingível. O exemplo mais marcante desta proposição é evidentemente esta paz paradoxal adornada pelo nome de “Guerra Fria”: a paz nuclear. Segundo a lenda, o holocausto nuclear não se produziu porque as potências atômicas estavam permanentemente ameaçando uma a outra de destruição mútua! Discuti e desconstruí esta lenda, aqui mesmo, no ano passado, no ciclo precedente do “Mutações”, onde tratei da questão do mal.

Quem quiser entrar no Reino do Amor, que pule com os dois pés, ou pode morrer. Nenhuma aproximação é permitida.

OS MODERNOS REALMENTE ACREDITAM NO QUE ELES PENSAM ACREDITAR?

Eu gostaria de concluir esta conferência focando na questão das crenças, tal como eu a introduzi no começo.

Eu evoquei a posição de Sartre e a versão existencialista da fenomenologia: as crenças são débeis, no sentido latino do termo, quer dizer, fracas, sem vigor, “evanescentes”. Facilmente podem se tornar o seu contrário. “Crer é não crer, porque é apenas crer.” Mas é preciso lembrar que existe outra filosofia da mente, a filosofia analítica, hoje escrita principalmente em inglês e que tende a se tornar a teoria dominante. Para ela é sinônimo dizer: “Pierre crê que p” e “Pierre crê que é verdade”, onde p é uma proposição qualquer relativa ao mundo. Qualquer um que afirmasse “Deus existe, mas eu não acredito que Deus existe” não cometeria um sofisma lógico, mas seria acusado de uma incongruência pragmática. Nós devemos esta observação a Ludwig Wittgenstein, um dos grandes fundadores da filosofia analítica. O outro fundador, Bertrand Russell, caracterizou as crenças como sendo “atitudes proposicionais”. O que isto quer dizer? Verbos como “crer”, “desejar”, “temer”, “esperar” descrevem uma atitude em relação ao mundo. A proposição p, o complemento gramatical do verbo, serve de interface entre o sujeito e o mundo. Muito cedo a filosofia analítica da mente se aliou às ciências cognitivas e ao seu materialismo[13]. O resultado foi esta teoria de que as crenças são estados mentais que se referem ao mundo exterior por meio de uma proposição no sentido linguístico do termo, com uma encarnação material necessariamente — por exemplo, sob a forma de uma atividade neuronal específica. Se os senhores me dissessem “Eu creio que Deus é mau”, escaneando seus cérebros, cedo ou tarde eu deveria ser capaz de identificar a dinâmica elétrica que materializa a proposição “Deus é mau”. Mas se os senhores me dissessem “Eu não acredito que Deus seja mau”, em vão eu me esforçarei em examinar seus cérebros por completo e não encontrarei neles esta encarnação material da proposição Deus é mau.”

Em outros termos, o que separa radicalmente a versão sartriana e a versão analítica da filosofia da mente, é que, para a segunda, as crenças são coisas, como um microfone ou uma mesa. Sendo coisas, elas são o que são. É precisamente contra esta identificação entre crenças e coisas que Sartre se levanta. As crenças participam da consciência, do que Sartre denomina, depois de Hegel, o “para-si”. Elas não têm esta propriedade que as coisas têm de coincidir com elas mesmas. Crer é não crer etc.

Se fosse necessário escolher entre estas duas filosofias eu, sem hesitar, tomaria partido de Sartre. A gramática, pelo menos a gramática francesa e, mais ainda, a gramática portuguesa, cuja riqueza e sutileza são admiráveis, nos dão a este respeito um índice precioso. Em francês, o verbo “croire” requer o uso do modo indicativo. Mas a negação, quer dizer, a forma gramatical “ne pas croire” requer, ou mais precisamente, pode requerer, o subjuntivo — quer dizer, o modo que corresponde ao incerto, ao indeterminado, ao não existente. Salvo erro, em português, mesmo a forma positiva pode acarretar o subjuntivo: “Eu acredito que Pedro seja meu amigo”. Como diz Sartre: “Pierre é meu amigo? Sim, eu o creio”, porque eu decido acreditar nisto. Estamos muito longe do positivismo ingênuo da filosofia analítica. Porém, tanto a versão sartriana como a analítica são construções filosóficas — o que significa-que elas pretendem falar sobre a essência da crença. Ora, eu acredito que nós, os modernos, não acreditamos da mesma maneira com que o faziam gregos ou astecas. A fraqueza das nossas crenças, tão bem analisada por Sartre — o fato de que, corroídas pela dúvida, elas facilmente se transformam no seu contrário —, é resultado de uma situação histórica e antropológica particular. Um dos pensadores que melhor compreenderam isto foi Benjamin Constant (1767-1830), um dos maiores escritores do romantismo europeu. Também conhecido como homem político durante o período pós-revolucionário, o liberal Constant realizou uma crítica radical ao espírito revolucionário encarnado por Robespierre e Saint-Just, e inspirado no pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Como podemos construir a Cidade humana a partir da vontade geral, perguntava Constant, se o indivíduo moderno não sabe o que quer e não acredita no que ele pensa acreditar? Constantemente ocupado em observar-se, mesmo quando tomado pela mais violenta paixão, ele tem medo de parecer ridículo mostrando convicções fortes que, no fundo, sabe que não possui. É assim que Constant explicava a loucura furiosa, a selvageria dos Revolucionários. O Terror não foi obra de pessoas acreditando no que faziam, ao contrário, foi obra de indivíduos corroídos pela dúvida a que adicionavam a violência para melhor se convencerem do valor daquilo que estavam fazendo.

Se Girard tem razão, nós conhecemos a origem do caráter débil de nossas crenças: é que verdadeiramente nós não acreditamos mais que nossos bodes expiatórios são culpados dos crimes ou dos danos que a eles imputamos. Resulta disto uma progressiva erosão da capacidade do mecanismo sacrificial em estabelecer a paz. Isto não produz menos violência, produz sempre mais violência, uma violência que se alimenta de convicções hipócritas e de má-fé.

Se Girard tem razão, o ponto de inflexão na história da humanidade que transformou radicalmente a natureza de nossas crenças encontrou sua expressão no Evangelho, na simples exclamação do centurião romano quando Cristo expirou: “Este homem era inocente!”.

Tradução de Ana Maria Szapiro, professora associada da UFRJ.

Notas

  1. Dentre os livros mais importantes de René Girard, podemos mencionar: Mensonge romantique et vérité romanesque, Grasset, 1961; La violence et le sacré, Grasset, 1972; Des chases cachées depuis la fondation du monde, Gras-set, 1978; Le Bouc émissaire, Grasset, 1982; Shakespeare: Les feux de l’envie, Grasset, 1990; Achever Clausewitz, Carnets Nord, 2007. Dentre as traduções que já existem no Brasil destacamos: A violência e o sagrado, Paz e Terra: 2008; Coisas ocultas desde a fundação do Mundo, Paz e Terra, 2009; 0 bode expiatório, Paulus, 2004; Mentira romântica e verdade romanesca, É Realizações, 2009;Shakespeare, teatro e inveja, É Realizações, 2010. 
  2. É na obra do filósofo americano Donald Davidson que encontramos hoje a mais rigorosa expresso deste modelo. 
  3. Jean-Paul Sartre, L’Etre et le néant, Paris: Gallimard, 1943; repris coll. Tel, 1992, P. 106. Em português, O ser e o nada, Rio de Janeiro: Vozes, 2005. (N.T.) 
  4. Ibidem., P. 85. 
  5. “Islam et communisme, une resemblance frapparte”, Le Figaro (28 de setembro de 2001). 
  6. René Girard, Celui par qui le scandale arrive, Paris: Desclée de Brouwer, 2001, pp. 23-24. 
  7. Jean-Pierre Dupuy, Avions-nous oublié le mal? Penser la politique après le 11 Septembre, Paris: Bayard, 2002. 
  8. Rousseau, juge de Jean-Jacques, premier dialogue. NT.: Tradução livre para o português. 
  9. Marcel Mauss e Henri Hubert, Essai sur la nature et la fonction du sacrifice. In: Année sociologique, 2, 1899. NT: em português, M. Mauss e H. Hubert, Ensaio sobre o sacrifício, São Paulo: Cosac Naify, 2005. 
  10. René Girard, La violence et le sacré, Paris: Grasset, 1972, pp. 13-14. Em português: A violência e o sagrado, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. (N.T.) 
  11. Arthur Hocart, Social Origins, Londres: Watts, 1954 
  12. Este título, de um dos livros de René Girard, é uma citação de Mateus (13:35). 
  13. Sobre a história deste casamento, que era desnecessário, pode-se consultar meu livro On the Origins of Cognitive Science, Cambridge/Londres: The MIT Press, 2010. 

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