Do desejo à violência e reciprocidade
Resumo
Os dois fidalgos de Verona, primeira peça de Shakespeare, descreve de início um ambiente cordato, quase idílico da relação de amizade entre dois jovens aristocratas. Eles se imitam mutuamente nas mais variadas experiências e gostos. Esse mimetismo gera e aumenta os laços que os unem, até que, tragicamente, brota um desejo nos dois amigos que não pode ser compartilhado: o do amor de uma mesma mulher. Esse é o ponto de ruptura da amizade, uma disputa que se origina na imitação, ou como René Girard denominou, uma rivalidade mimética. Nem sempre é o amor que está em jogo, o objeto muitas vezes é um fetiche. Em O vermelho e o negro, ambientado no tempo da Restauração da monarquia na França, Stendhal retrata o fascínio que a burguesia nutre pelos símbolos de prestígio da nobreza, ao passo que esta, despojada e decadente, mira-se nos valores burgueses em ascensão. O romancista habilmente revela quão ilusório é esse desejo; ele faz jus à origem latina da palavra praestigium: ilusão, confusão. Logo o objeto torna-se secundário, dando lugar à máxima: “desejar o desejo do outro”. Até mesmo o narcisista só sustenta o desejo de si mesmo a partir do olhar do outro. É o que acontece com as coquetes que “fingem indiferença para melhor atrair seu olhar”; assim, narcisistas que são, necessitam do desejo do outro, dele se alimentam. Mas quando se trata das multidões, tema que muito interessou a Freud, ocorre um sacrifício paradoxal do amor de si do indivíduo em prol da figura do chefe, este sim, narcisista e antissocial. Mas como essa figura é criada pela massa, cabe a ele imitar o amor da multidão e, para tanto, precisa anular sua própria personalidade. No terreno da rivalidade, temos ainda o ciúme, paixão perversa profundamente explorada por Molière e Proust. Para Proust o ciúme não procede do amor, mas o persegue. Isso quer dizer que o amante ciumento desfruta menos da presença que irradia do amado ou do prazer que ele proporciona; ele, perversamente, exige a presença do amado para não ter que se angustiar com os fantasmas que sua ausência produz. O ciúme é da ordem do sofrimento, no que difere da inveja, que é da ordem do desejo. Contudo, sem ciúme, não há amor. Portanto, o homem é violento porque é um ser de desejo.
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Valentim e Proteu são dois jovens unidos por uma amizade profunda. Desde a mais tenra infância eles desenvolveram os mesmos gostos, as mesmas preferências e sempre convergem em seus julgamentos. Eles imitam um ao outro em todos os aspectos da vida. Um só encontra uma maneira desejável de fazer ou de ser se o outro aprovar, e assim reciprocamente. Eles parecem ilustrar com perfeição o adágio popular: quem se assemelha se une. Entretanto, Valentim apresenta ao seu amigo a jovem pela qual se apaixonou, Silvia. Mais uma vez ele quer que seu amigo Proteu confirme o valor de sua escolha.
O que aconteceu ultrapassa suas esperanças porque Proteu, por sua vez, se apaixona por Silvia. Aqui as coisas se desarranjam, porque o amigo se torna seu rival. Contrariamente à maneira de se vestir ou aos gostos musicais, não se partilha o objeto de desejo amoroso. Proteu torna-se um obstáculo ao desejo de seu amigo Valentim. A amizade se transforma em ódio seguindo o mesmo mecanismo que antes fazia convergirem seus desejos. Proteu não hesita em caluniar Valentim para o pai de Silvia, que é um poderoso magistrado, e Valentim se vê banido da cidade onde se desenvolve a ação.
Vocês talvez tenham reconhecido nesse breve resumo a primeira peça de William Shakespeare, Os dois fidalgos de Verona, que mostra a ambivalência radical da imitação. Fator de concórdia social, ela também pode acabar em rivalidade, em conflito e em violência. A imitação é o cimento social por excelência. É através da imitação que a criança aprende as regras e os símbolos de sua sociedade, a começar pela linguagem. Mas, quando a imitação recai sobre o desejo por um objeto exclusivo, não partilhável, ela engendra automaticamente a rivalidade. A essa rivalidade, René Girard chamou rivalidade mimética.
Já apresentei a obra antropológica do filósofo franco-americano René Girard sobre as relações entre a violência e o sagrado por ocasião do ciclo Mutações de 2010, dedicado ao tema A invenção das crenças[2]. Naquela ocasião, assinalei que a teoria da origem violenta da cultura humana apoiava-se, por sua vez, numa teoria do desejo humano como desejo mimético. Para Girard, a origem do sagrado está na violência, e a origem da violência está no desejo. É esse primeiro fundamento que eu gostaria de discutir agora, o que me parece apropriado ao tema geral deste ano: Fontes passionais da violência.
Da ideia bastante simples do desejo mimético, Girard tira consequências de uma riqueza incrível. A forma mais simples do desejo é o triângulo, composto de um sujeito, um objeto e um terceiro termo, o modelo. Esse modelo é o mediador do desejo, no sentido de que o sujeito deseja segundo ele: o desejo do sujeito pelo objeto não é espontâneo, é um desejo imitado do desejo de seu modelo. Se a posse do objeto não pode ser partilhada, é mecanicamente, sem que haja a menor intenção nisso, que o modelo, carregado de um sinal positivo, se transforma em rival, carregado então de um sinal negativo, sem que por isso seu estatuto de modelo seja alterado. Ao contrário: quanto mais a rivalidade se acentua, mais o modelo se torna um obstáculo fascinante no caminho do objeto. Os papéis de modelo e de obstáculo reforçam um ao outro, enquanto o objeto adquire cada vez mais valor.
A rivalidade mimética é a figura de base que engendra todas aquelas outras que recobrem o conjunto das paixões ruins que agitam a humanidade desde o início dos tempos – inveja, ciúme, ressentimento, orgulho, individualismo desenfreado, ódio de si e dos outros –, mas que ameaçam hoje até mesmo a sobrevivência da espécie, porque se aliam a uma força tecnológica sem precedente.
A teoria de Girard se apresenta como explicação universal tanto para as querelas dos pátios escolares como para a rivalidade entre potências nucleares. Vou examinar algumas facetas dessa teoria, ilustrando com exemplos da atualidade, da literatura e do cinema.
O OBJETO DO DESEJO
Como tantos outros antes, Girard se esforçou para escapar à alternativa estéril entre realismo e idealismo. Um dia, ele reagiu a uma reflexão de Sartre, que tentava salvar a objetividade do objeto – etimologicamente, o que está colocado diante de si, exterior à mente – fazendo referência à fenomenologia de Husserl. Sartre escreveu: “[Husserl] limpou o terreno para um novo tratado das paixões que se inspiraria desta verdade tão simples e tão profundamente desconhecida por nossos refinados: se amamos uma mulher é porque ela é amável. Eis-nos libertados de Proust”[3].
Ora, reagiu Girard, não é verdade que Proust fosse idealista no sentido de dizer: se amamos uma mulher, é porque a achamos amável; e, se a achamos amável, é porque a amamos. Há um terceiro caso sobre o qual nem a filosofia nem as ciências humanas jamais refletiram verdadeiramente; enquanto a grande literatura, Proust em particular, não cessa de colocar em cena: se amamos uma mulher, é porque ela é amada por um terceiro (desejo mimético).
O que torna desejável o objeto de desejo é o desejo mimético em si e a rivalidade que o acompanha. O objeto não é desejável antes que se dispute sua posse. Eis aqui um exemplo literário que coloca em cena dois sujeitos em situação de rivalidade mimética, cada um constituindo para o outro um modelo a imitar. Trata-se das primeiras páginas do romance de Stendhal, O vermelho e o negro, em que encontramos três dos personagens centrais. Estamos no período da Restauração (da realeza), depois das perturbações da Revolução Francesa e do império de Napoleão. Em princípio, a aristocracia perdeu seus privilégios, mas os burgueses estão mais do que nunca fascinados por ela, enquanto os aristocratas estão fascinados pela burguesia. O prefeito do vilarejo de Verrière, onde se passa a ação, Sr. de Rênal, sonha em conseguir tomar um jovem, Julien Sorel, como preceptor dos seus filhos. Por que Julien, alguém sem qualidades notáveis a não ser o apego obsessivo à imagem de Napoleão? Stendhal nos faz compreender o verdadeiro motivo do projeto: esse cavalheiro-burguês, o Sr. de Rênal, acredita que Valenod tem a mesma ideia na cabeça. Valenod é um burguês-cavalheiro abastado, mas menos influente que o cavalheiro-burguês prefeito. Entretanto, o Sr. de Rênal é obcecado por Valenod que, por sua vez, é obcecado pelo Sr. de Rênal. Eles se imitam mutuamente, ainda que estejam em situação de rivalidade.
Parece que o Sr. de Rênal não se enganou. Com efeito, o romance nos mostra mais adiante Valenod fazendo investidas no pai de Julien. René Girard interroga: “Será que Stendhal confundiria o Valenod sonhado pelo Sr. de Rênal com o Valenod verdadeiro que nem mesmo pensa em Julien?”. O romancista não comete esse erro. É a história do copiador copiado. Valenod é o modelo do Sr. de Rênal, mas, longe de suspeitar, ele imita os desejos do seu discípulo. Falta um dado crucial a duas pessoas que se imitam mutuamente no seu desejo de objeto: a identidade do objeto em questão. Mas isso não importa: eles a imaginam. Sejamos mais precisos: um dos dois é o primeiro a imaginá-lo a respeito do outro. O Sr. de Rênal se pergunta com angústia o que Valenod deseja. Ele inventa a resposta: Julien; e corre para tomar a frente. É o que nos revela Stendhal mais adiante no romance: o Sr. de Rênal foi quem deu o primeiro passo! Ele indicou ao seu alter ego, assim, qual o objeto da rivalidade. Quando este último manifesta, por sua vez, seu desejo imitado, a ilusão inicial torna-se realidade. O primeiro a sonhar, então, não sonhava: ele agora tem a prova. Girard escreveu: “O real brota da ilusão e fornece a esta uma caução enganosa. É por um processo análogo que povos e políticos rejeitam mutuamente, e com a melhor fé do mundo, a responsabilidade dos conflitos que os opõem”[4].
É assim que o insignificante Julien Sorel se torna o herói trágico do romance de Stendhal. Acreditamos ingenuamente que a violência dos conflitos humanos é tanto mais forte quanto mais importante é o que está em jogo. E, entretanto, a história nos mostra que frequentemente é a propósito de objetos irrisórios que as nações e os povos se destroem. Um livro recente mostra muito bem que foi como sonâmbulas que as potências europeias entraram na Primeira Guerra Mundial[5]. Nada de objetivo as opunha entre si a não ser o ódio e o ressentimento que as motivavam. Ninguém queria a guerra. Contudo, foi suficiente um incidente local – o assassinato em Sarajevo do herdeiro do império austro-húngaro – para desencadear uma guerra mundial que acabou por fazer 15 milhões de vítimas, destruiu três impérios e preparou o terreno para uma guerra ainda mais atroz. Hoje, Japão e China se ameaçam de aniquilamento mútuo pela possessão das ilhas Sensaku, que, na verdade, são apenas alguns rochedos despovoados no mar da China oriental que não justificam nenhum interesse estratégico ou econômico. Por que o Irã quer a qualquer preço possuir arma atômica, arriscando-se a desestabilizar completamente o Oriente Próximo e o Oriente Médio e talvez provocar uma nova guerra mundial? Seria mesmo para eliminar Israel do mapa do mundo? Seus governantes dizem: uma grande civilização, saída do império persa, não pode atualmente deixar de ter um símbolo de poder por excelência: a bomba. A questão é o prestígio da nação iraniana. Mas a palavra prestígio revela a verdade daquilo que realmente está em jogo: ela provém do latim præstigium, que significa artifício, ilusão. Por questões ilusórias os homens estão dispostos a explodir o planeta. Vejam o comportamento aparentemente aberrante de Putin com relação à Ucrânia. Tudo se passa como se ele preferisse o caos na sua porta a uma Ucrânia estabilizada, unida à União Europeia. É o comportamento típico do invejoso: ele prefere destruir seu brinquedo a deixá-lo nas mãos do rival. Mas quem, nesse caso, é o rival mimético de Putin? Não é o presidente da Ucrânia, evidentemente. Trata-se de Obama que, ele sim, não teme estender a influência do império americano aos quatro cantos do globo.
A teoria de René Girard permite compreender esses comportamentos que se mostram profundamente irracionais. Mas é preciso ver e analisar bem o paradoxo que a constitui. Seu ponto de partida, repito, é a ambivalência da imitação: indispensável à constituição das relações humanas e do cimento social, a imitação pode também destruí-los quando se trata do desejo de apropriação de um objeto não partilhável. É isso que as teorias anteriores sobre a imitação – em grego mimesis –, a começar pelas de Platão e Aristóteles, não tinham visto, e é nesse ponto que reside a novidade radical da teoria do desejo mimético. Ora, acabo de dizer e ilustrar com exemplos que, quando a intensidade do conflito que a rivalidade mimética engendra chega a ultrapassar certos limites críticos, tudo acontece como se o objeto desaparecesse do campo de visão dos protagonistas. Eles passam a só se interessar por seu rival, este que eles odeiam e secretamente veneram. É absolutamente necessário que levem a melhor sobre ele, ainda que à custa de seu próprio interesse.
Espero que compreendam que aqui não há nenhuma contradição, porque o objeto de desejo, desde o início, não está apenas colocado diante dos sujeitos desejantes; ele é construído pela rivalidade mimética. Ele é de imediato transfigurado. (Pensem na insignificância de Julian Sorel no início.) O que a rivalidade mimética criou a partir do nada, por assim dizer, ela pode sempre destruir. É então o rival que, na atenção do sujeito, toma o lugar do objeto.
A geopolítica, esse ramo da ciência política que estuda as relações entre os Estados-nação, parece conhecer apenas um determinante das ações humanas que, em inglês, se chama self-interest e que traduzimos por interesse egoísta. Ora, inicialmente a palavra interesse significa outra coisa, como nos lembra Hannah Arendt. O interesse é aquilo que, colocando-se entre os seres (inter-esse), “reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer”. Ela acrescenta, recorrendo a uma metáfora que nos oferece muito para pensar: “Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas em comum interposto entre os que nele habitam, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e une os homens”[6].
A violência é precisamente quando nada, nenhum interesse pelo mundo capaz de impedi-los de colidirem uns com os outros, se sustenta entre os homens. Sem mediação, é então a luta da pura violência, na qual os seres se afrontam diretamente, perdendo toda noção do seu interesse comum e até mesmo do seu interesse próprio. Como o mundo seria um lugar melhor para viver se os homens fossem verdadeiramente guiados pelos seus interesses bem compreendidos! Muitas vezes, os homens são movidos pelo ódio que os torna cegos e pelo ressentimento que retorna o ódio contra si mesmo.
O narcisismo e a violência das multidões
Girard não poderia deixar de encontrar Freud no seu caminho. É a propósito do comportamento das multidões que vou confrontá-los. O fundador da psicanálise se interessava muito pelos fenômenos coletivos. Ele reconheceu que a invenção da psicanálise havia sido, para ele, um desvio que lhe permitiria abordar melhor o estudo desses fenômenos, estudo que realizou em seus últimos trabalhos. Ainda que isso possa parecer estranho a priori, o conceito psicanalítico central aqui é o de narcisismo. O livro no qual Freud coloca em relação o conceito de narcisismo com os fenômenos da multidão se intitula, de modo característico, Massen Psychologie und Ich Analysis[7] (Psicologia das massas e análise do eu). É esse livro que vou agora criticar à luz da teoria do desejo mimético de René Girard.
Comecemos pelo narcisismo. Fiel ao seu hábito (pensem no complexo de Édipo), Freud recorreu à mitologia grega para dar conta de uma deficiência psíquica que ele acreditava ter descoberto nos bebês, nos gatos e, sobretudo, nas mulheres[8]. Freud acreditava de verdade na existência de personalidades narcísicas, cheias de amor por si mesmas, inteiramente absorvidas por si mesmas, como as belas coquetes que passeavam na avenida principal de Viena, o Graben, sem que lhe lançassem nem sequer um olhar! Ora, a teoria do desejo mimético nos diz que o amor de si mesmo não pode existir, porque só se deseja pela mediação de um outro. O que Freud não viu, segundo Girard, mas que, entretanto, qualquer novato no domínio do amor sabe, é que essas coquetes jogam com um truque: elas fingem indiferença para melhor atrair seu olhar. Em um texto cruel para Freud, Girard escreveu:
A coquete sabe mais sobre o desejo do que Freud. Ela sabe que o desejo atrai o desejo. Para se fazer desejar, então, é preciso convencer os outros que se deseja a si mesmo. É assim que Freud definiu o desejo narcísico, o desejo de si para si. Se a mulher narcisista excita o desejo é porque, fingindo desejar-se, propondo a Freud esse desejo circular que jamais sai de si mesmo, ela apresenta [ao desejo mimético] dos outros uma tentação irresistível. Freud toma como uma descrição objetiva a armadilha na qual ele cai. Aquilo que ele chama de autossuficiência da coquete, seu estado psicológico feliz, sua posição libidinal inexpugnável, é, na realidade, a transfiguração metafísica do modelo rival.
Se a coquete procura se fazer desejar, é porque ela precisa desses desejos masculinos, dirigidos a ela, para alimentar sua própria coqueteria, para comportar-se como coquete. Ela não tem mais autossuficiência do que tem o homem que a deseja, em outras palavras, mas o sucesso de sua estratégia lhe permite assim sustentar a aparência ao oferecer, também a ela, um desejo que ela pode copiar. Se o desejo dirigido a ela é precioso, é porque é ele que lhe fornece o alimento necessário à autossuficiência que desmoronaria se ela fosse totalmente privada de admiração. Em resumo, do mesmo modo que o admirador preso na armadilha da coqueteria imita o desejo que ele acredita ser realmente narcísico, a chama da coqueteria, para brilhar, precisa do combustível que lhe fornecem os desejos do outro[9].
O aparente amor de si da coquete é uma ilusão produzida pelo próprio desejo mimético. Como com a dupla Rênal-Valenod, mas segundo uma configuração diferente, dois desejos concorrentes se imitam e se excitam mutuamente. O amante imita o desejo da coquete desejando-a, pois a coquete dá a impressão de desejar a si mesma; a coquete imita o desejo de seu amante desejando a si mesma, pois seu amante a deseja. O amor de si só pode existir por imitação dos desejos que despertamos nos outros. Só amamos a nós mesmos se os outros nos amam. Esse pseudonarcisismo, como Girard o denomina, permite, por um tempo, ao que dele se beneficia, escapar ao domínio do desejo mimético, mas é ainda o desejo mimético que é a causa.
Em que essa discussão pode ter relação com a questão da violência das multidões? Na teoria freudiana dos fenômenos coletivos, a questão do narcisismo desempenha um papel essencial no que diz respeito a dois elementos-chave: a figura do chefe e a figura do pânico. De modo aparentemente estranho, a multidão, para Freud, é o modelo da ordem social. A desordem advém quando a multidão se decompõe em pânico. Ainda mais surpreendente, os dois exemplos de multidão que Freud considera são a Igreja e o Exército. Estes são, segundo a expressão de Freud, multidões artificiais, construídas em torno de e pela pessoa de um chefe. Entretanto, vamos ver que a relação entre a multidão e o pânico, quer dizer, entre a ordem e a desordem, não se faz sem paradoxos. É esclarecendo esses paradoxos que vamos encontrar a teoria girardiana.
Lembro, inicialmente, que Freud tomou emprestada a palavra latina libido, que significa desejo, para designar a energia geral dos instintos sexuais investida sobre o eu (narcisismo) ou sobre um objeto exterior, pessoa ou coisa (desejo do objeto).
Segundo Freud, a multidão se caracteriza por três traços.
a) Seu princípio de coesão, de natureza libidinal. “Para que a multidão preserve sua consistência”, escreve Freud, “é preciso que ela seja mantida por uma força qualquer. E que força pode ser esta, senão Eros que assegura a unidade e a coesão de tudo que existe no mundo?”[10] O egoísmo – o narcisismo – é, para o pai da psicanálise, uma tendência fortemente antissocial. Ora, observa ele, “quando a vantagem pessoal constitui para o indivíduo isolado mais ou menos a única razão da ação, raramente determina a conduta das multidões”. No interior destas não é raro ver os indivíduos sacrificarem seu interesse pessoal e seu amor de si em favor de um ideal coletivo que os ultrapassa. “Tal limitação do narcisismo”, ele conclui, “só pode resultar da ação de um só fator: do laço libidinal a outras pessoas. O egoísmo só encontra limite no amor pelos outros, no amor pelos objetos”.
b) O ponto focal desses laços libidinais, a pedra angular da multidão, a saber, a figura do chefe. A comunidade afetiva que caracteriza a multidão, escreve Freud, “é constituída pela natureza do laço que une cada indivíduo ao chefe”. E mais adiante: “Cada indivíduo está, de uma parte, ligado por laços libidinais ao chefe […] e, de outra parte, está ligado a todos os outros indivíduos que compõem a multidão”; e “é incontestável que o laço que une cada indivíduo (ao chefe) é a causa do laço que une cada indivíduo a todos os outros”[11]. Ora, o laço que liga cada indivíduo ao chefe participa dessa força afetiva que é a libido sob a forma de um amor do objeto, e é porque cada um assim renunciou ao seu narcisismo em proveito de um mesmo objeto libidinal que os membros da multidão podem identificar-
-se uns aos outros.
c) Daí a terceira grande característica da multidão: a multidão é, por excelência, o suporte de fenômenos de contágio. É o contágio que dá à multidão seus traços mais distintos: exagero da afetividade, exacerbação das paixões, ciclotimia, movimentos irracionais; é o contágio que torna os membros da multidão sempre mais semelhantes uns aos outros, que sacia sua sede de igualdade e de uniformidade; é também o contágio que, por vezes, funda a estabilidade da multidão, até mesmo a estimula e a totaliza até o totalitarismo, cada um encontrando seu caminho no passo decidido do líder. Antes do que a uma enigmática sugestão hipnótica, foi evidentemente à energia da libido que Freud recorreu para explicar esse contágio afetivo que faz com que “a carga afetiva dos indivíduos se intensifique por indução recíproca: encontramo-nos como levados e constrangidos a imitar os outros, a nos colocarmos em uníssono com os outros”[12].
Freud expôs muito claramente sua teoria da multidão, e é essa teoria que serve ainda hoje de base à psicossociologia dos fenômenos coletivos. Ora, ele vê em sua teoria dois enormes paradoxos com os quais não sabe o que fazer: o paradoxo do chefe e o paradoxo do pânico. Seus seguidores igualmente não o esclareceram mais.
Sobre o chefe citarei um dos fundadores da psicossociologia francesa, Serge Moscovici:
As multidões são compostas, em princípio, por indivíduos que, para participar delas, venceram suas tendências antissociais ou sacrificaram seu amor de si. E, entretanto, no seu centro se encontra um personagem que é o único a ter conservado essas tendências, até mesmo exagerando-as. Por um efeito, estranho mas explicável, do laço que as une, as massas não estão dispostas a reconhecer que elas renunciaram ao que o líder conservou intacto e que se torna seu foco: justamente o amor de si […]. Todos os líderes simbolizam esse paradoxo da presença de um indivíduo antissocial no topo da sociedade[13].
Moscovici acrescenta, e isto é muito importante: “Porque a quem falta narcisismo falta também poder”[14].
Em outros termos, o chefe é chefe porque ele permaneceu narcísico: ele se ama. Todos os outros conseguiram ultrapassar seu narcisismo; sua libido está centrada em um objeto e este objeto é o mesmo para todos: é precisamente o chefe. O paradoxo seria que a pedra angular da multidão, logo, da sociedade, seu ponto fixo, não pertence de fato à sociedade. É um ponto singular na estrutura, em que somente ele permaneceu no narcisismo dos bebês, dos gatos e das coquetes.
Espero que tenham compreendido que esse paradoxo desaparece completamente e num só golpe se substituímos o conceito freudiano de narcisismo pelo de pseudonarcisismo de René Girard. Tudo aquilo que o chefe parece ter de particular vem da multidão que o ama. E se a multidão o ama, é pelo que ele tem de particular. O círculo está fechado. Para dizer de outro modo, se o chefe pode amar a si mesmo, é porque ele imita o amor que os outros têm por ele. Inversamente, os outros o amam porque imitam o amor que o chefe tem por si mesmo.
O pseudonarcisismo é produzido por aquilo mesmo que ele produz: o amor dos outros. Vê-se aqui como a substituição da oposição amor do objeto/narcisismo por um único princípio mimético faz emergir a distinção entre o chefe e a massa. A singularidade do chefe não se sustenta nas suas características individuais intrínsecas; não é uma causa, é um efeito. Historicamente, poderíamos multiplicar os exemplos em que, para o melhor ou para o pior, as circunstâncias transformaram em chefe um homem que não tinha de início carisma particular, para retomar a palavra do sociólogo alemão Max Weber.
Na teoria de Freud, o chefe aparece como um ponto fixo exógeno, no sentido de que são suas propriedades intrínsecas que o predestinam ao papel de chefe. Na reconstrução da teoria da multidão que acabo de apresentar, diremos que o chefe é um ponto fixo endógeno, quer dizer, que o coletivo humano toma por ponto de referência exterior uma coisa que provém de fato dele mesmo, pela composição das ações interdependentes dos seus membros. Em filosofia, essa figura recebeu o nome de autoexteriorização ou autotranscendência[15].
Ora, o mesmo mecanismo de formação de um ponto fixo endógeno está presente no pânico. Este só se opõe incompreensivelmente à multidão da qual se origina se considerarmos a multidão do modo artificialista de Freud.
Para Freud, a multidão se decompõe em pânico quando perde seu ponto fixo exógeno, chefe, general do exército, líder messiânico, dirigente fascista etc. É a um verdadeiro ressurgimento forte do narcisismo, do amor de si e dos interesses egoístas que se assiste, “cada um só se preocupa consigo mesmo, sem nenhum cuidado com os outros”[16]. Os laços afetivos que asseguravam a coesão da multidão se rompem. “Com os laços afetivos que lhes uniam ao chefe, desaparecem geralmente aqueles que uniam os indivíduos da multidão uns aos outros”. Cada um “tem agora a sensação de encontrar-se sozinho diante do perigo”. Freud insiste: “Não há nenhuma dúvida de que o pânico significa a desagregação da multidão e que tem por consequência o desaparecimento de toda ligação entre os seus membros”. Sem centro regulador, composição anárquica de átomos que só olham sua vantagem privada, o pânico, por esses dois traços, aparece como a negação da multidão. E, entretanto, reconhece Freud – nós todos sabemos, evidentemente –, é nesse exato momento, quando tudo o que faz com que a multidão seja multidão desapareceu – o chefe, os laços afetivos –, é nesse momento que a multidão nos parece mais multidão. Chegamos assim a “este resultado paradoxal onde a alma coletiva se dissolve no momento em que ela manifesta sua propriedade mais característica e a favor mesmo desta manifestação”[17].
Na outra visão que proponho, inspirada em Girard, a decomposição em pânico da multidão não causa nenhum paradoxo, porque ela se acompanha simplesmente da substituição de uma forma de ponto fixo endógeno por outra. No pânico, quando o líder foge, emerge no seu lugar outro representante da coletividade, aparentemente transcendente com relação aos seus membros. Não se trata de outra coisa senão do próprio movimento coletivo que se destaca, toma distância, toma autonomia com relação aos movimentos individuais, sem por isso deixar de ser a simples composição de ações e reações individuais. Como bem o percebeu o fundador da sociologia francesa, Émile Durkheim, a totalidade social apresenta, nesses momentos que ele dizia serem de efervescência, “todos os traços que os homens atribuem à divindade: exterioridade, transcendência, imprevisibilidade, inacessibilidade”[18]. No seu grande livro Massa e poder, o Prêmio Nobel de literatura de origem búlgara, Elias Canetti, observa que “a massa precisa de uma direção”, de um objetivo que seja dado “fora de cada indivíduo”, “idêntico para todos”, pouco importa qual seja, desde que ele não tenha sido ainda alcançado[19]. Na fuga do pânico, é exatamente isso que realiza o processo de totalização.
Essa análise permite compreender e eliminar o que há de paradoxal na fenomenologia dos pânicos. Lembro que a palavra pânico é derivada de Pã, o deus grego dos pastores. Pã habitava a Arcádia, o país da felicidade calma e serena. Meio homem, meio cabra, ao mesmo tempo monstro e sedutor, virtuoso da flauta e insaciável amante de ninfas, ele possuía traços mais inquietantes: podia aparecer de repente atrás de um arvoredo e despertar um terror súbito, o pânico. Como escreveu o grande historiador das religiões Philippe Borgeaud nas suas belas Recherches sur le dieu Pan (Investigações sobre o Deus Pã):
Herdeiro direto da noite original, o arcadiano tem o privilégio de poder, a todo instante, reviver seu nascimento como ser humano. Ele está, culturalmente, no limiar. Um passo adiante, ei-lo de fato grego e até mesmo, o que é importante aos olhos da história, democrata; um passo atrás eis que retorna selvagem. Essa posição limite lhe confere certo prestígio[20].
O filósofo Maurice Olender comenta:
A Arcádia parece então este centro nevrálgico de onde, e a todo instante, pode ressurgir a selvageria contida no seio da cidade. Também a “terra de Pã” evoca essa fragilidade inerente às instituições humanas, esta precariedade de toda ordem política, dos usos e das convenções que ela estabelece[21].
O mito grego nada nos diz sobre os mecanismos pelos quais essa “selvageria contida no seio da cidade” retorna. Ele nos apresenta um Pã cujas ações ou manifestações são enigmáticas – por exemplo, uma música de fonte desconhecida, como a de Eco; a ninfa que Pã persegue assiduamente e que, ela também, repete um som vindo não se sabe de onde; Eco que repudia Pã porque ela ama Narciso, que, por sua vez, ama sua imagem. Em suma, Pã é tão invisível quanto o laço social que ele destrói.
Os gregos faziam de Pã a causa presente-ausente de tudo aquilo que, aparentemente, não tem causa; a razão daquilo que não tem razão – em particular, das totalizações paradoxais nas quais uma coletividade de arcadianos pacíficos se transforma subitamente em horda selvagem, como aconteceu tantas vezes no curso da história humana. Pã, como se sabe, é, nas nossas línguas, o prefixo que designa uma totalidade (como em pan-americano). Não acreditamos mais nos deuses – ao menos nas nossas explicações científicas. O que propus aqui é uma tentativa de dar conta analiticamente da coexistência no pânico de traços completamente opostos.
De um lado, o pânico aparece como a formação de um novo ser, de natureza coletiva, quase um sujeito, dotado de autonomia, de personalidade, de vontade, até de desejos próprios, transcendendo as consciências individuais, e que nada parece conseguir parar na sua marcha cega. Do outro lado, o pânico se apresenta como um processo de individualização violenta no qual tudo o que faz do indivíduo um ser social, com estatuto, filiações, papéis, ligado aos outros por múltiplos laços de conflitos e de cooperação socialmente regulados, tudo isso está rompido, aniquilado. Lá há um processo de desindividualização extremo; aqui há um processo de dessocialização não menos radical. A confusão das categorias analíticas usuais pode-se dizer de maneira inversa: lá se apresenta uma figura holística (quer dizer, onde o todo prevalece sobre os seus constituintes) inédita; aqui, um individualismo máximo.
Como estamos no Brasil, não posso deixar de dizer uma palavra sobre o Carnaval. O Carnaval é uma festa pânica, em três sentidos dessa palavra. Primeiro, ele imita o pânico; em seguida, é uma festa da totalidade social; enfim, descende das Lupercais romanas, que celebravam Luperco, o equivalente latino de Pã. No seu notável livro Carnavais, malandros e heróis, o antropólogo brasileiro Roberto da Matta descreve o Carnaval como “um processo violento de individualização”. Entretanto, ele afirma simultaneamente que o Carnaval é um dos momentos em que o brasileiro sente mais profundamente o peso e a força da totalidade social. O Carnaval é uma cerimônia na qual todos comungam e se fundem em um caminho único, como se cada um quisesse dissolver sua individualidade na massa carnavalesca. No Carnaval, como no pânico, individualismo e holismo, esses dois contrários, tornam-se um.
Para terminar esta parte da minha exposição dedicada ao tema do pânico e ao conceito que introduzi de ponto fixo endógeno, produzido pela multidão quando a multidão o toma como guia ou referência, quero introduzir outra forma de tal ponto fixo, ao lado do chefe e do pânico. Isso vai me permitir fazer uma ligação com a primeira exposição sobre René Girard que fiz em Mutações: A invenção das crenças, de 2010.
Vou apresentar a vocês um extrato do primeiro filme que Fritz Lang realizou nos Estados Unidos depois de fugir da Alemanha nazista. Esse filme, intitulado Fúria, data do ano de 1936. Sua fonte imediata foi um caso de linchamento que aconteceu na Califórnia pouco antes da chegada de Lang, mas é claro que seu verdadeiro objeto foi o papel das massas alemãs na ascensão do nazismo. O trecho que vou projetar se situa exatamente na metade do filme. Para compreender a ação, basta saber o seguinte. Joe Wilson, interpretado de maneira esplêndida por Spencer Tracy, é um trabalhador americano honesto, noivo da linda Katherine. Seu objetivo é juntar dinheiro suficiente para poder se casar com ela. Para tal ele deve continuar a trabalhar na Califórnia, deixando Katherine retomar seu trabalho como professora numa cidade do Norte. Chega o momento em que Joe pode enfim juntar-se a sua amada. Ele consegue comprar um carro e lança-se na estrada americana. A tragédia acontece quando Joe atravessa uma pequena cidade, Strand, onde uma jovem havia sido raptada. Joe é preso pela polícia e, por infelicidade, encontraram com ele notas que eram parte do resgate. Sem dúvida, ele as recebera de troco ao pagar uma compra qualquer, mas não pode provar sua inocência e o xerife o coloca na prisão enquanto espera o julgamento.
Entretanto, a pequena cidade está inquieta, Durkheim diria em efer- vescência, e falta a ela ter um culpado. Joe Wilson, sendo suspeito, só pode ser culpado.
O que desempenha aqui o papel de ponto fixo endógeno, que permite à multidão alcançar a unidade? Existem, certamente, os líderes da multidão, mas eles são rapidamente engolidos na fúria dela. Há o xerife que representa a autoridade, mas ele é logo neutralizado. Não, é a vítima inocente (e, aparentemente, linchada) o bode expiatório da coletividade, que se torna a pedra angular da massa. As faces, típicas do expressionismo alemão, refletem um terror sagrado. Assistimos ao início da sacralização da vítima. Essa é a teoria girardiana da violência e do sagrado, a qual relatei em 2010.
O MASOQUISMO E O INFERNO DO CIÚME
O ciúme é uma das principais causas de homicídios no mundo inteiro, particularmente no Brasil. Como a teoria do desejo mimético pode explicar essa paixão universal?
Sempre que os homens tentam analisar suas paixões e emoções, eles se perguntam sobre a diferença entre a inveja e o ciúme. No quadro girardiano, a inveja não coloca nenhum problema: é a relação com o modelo que ao mesmo tempo nos designa o objeto desejável, aquele que deseja ou possui ele próprio, e nos barra o caminho. O ciúme é outra coisa.
É em Proust que Girard vai buscar a descrição mais profunda e mais rigorosa. O ciúme não se resume ao ciúme amoroso, mas ele se apresenta aí da forma mais pura, mais potente e mais dolorosa. Costumamos dizer que o ciúme é uma perversão do amor do qual ele deriva. Falso, nos diz Proust; a causalidade anda no sentido inverso: o ciúme precede o amor. Eis o que diz o filósofo Nicolas Grimaldi:
Quase sempre o ciúme é como a sombra do amor. Ele o dobra, ele o acompanha, ele o segue. É por isso que se acredita que não pode haver ciúme sem amor. Proust foi o único que inverteu essa relação e fez do amor o duplo do ciúme. O amor, em Proust, não precede o ciúme, ele o segue. Isso porque o amor se caracteriza muito menos pelo prazer que nos proporciona a presença de uma pessoa do que pela dor que nos dá a sua ausência. É essa dor que faz então de sua presença uma necessidade, como do único analgésico que pode aplacar a angústia de não saber o que ela faz. Se não se pode sentir a violência do amor a não ser sentindo-se esmaga- do pela violência do ciúme, então é claro que tendo deixado de ter ciúmes se terá deixado de amar. Esse ciúme que vai suscitar o amor, mas que nenhum amor fez nascer, é uma psicopatologia do imaginário[22].
Do sofrimento produzido pelo ciúme, Nicolas Grimaldi ainda diz:
Que tenhamos necessidade de estar sempre junto de uma pessoa, não pelo encanto que ela irradia ou pelo prazer que ela nos proporciona, mas unicamente para não ter que nos angustiar pela sua ausência sem saber o que ela está fazendo, é tudo o que faz, em Proust, o sentido do amor. É menos o amor que nos liga a uma pessoa do que o ciúme que a torna indispensável para nós. Nós desejamos bem menos o prazer que ela nos dá do que sofremos por imaginar o que outros poderiam lhe dar[23].
O ciúme não é da ordem do desejo como a inveja; ele é puro sofrimento. Entretanto, Nicolas Grimaldi se engana em um aspecto. Proust não foi o primeiro nem o único a ter invertido a relação entre amor e ciúme. No seu Don Juan, Molière o precedeu em dois séculos e meio. Refiro-me à fala da cena 2 do ato i, em que Don Juan confidencia ao seu servo Sganarelle:
Ah! Não pensemos no mal que pode nos atingir, pensemos somente naquilo que pode nos dar prazer. A pessoa de quem eu falo é uma jovem noiva, a mais agradável do mundo, que foi trazida aqui por aquele com quem ela vai se casar, e o acaso me fez ver esse casal de amantes três ou quatro dias antes de sua viagem. Eu nunca vi duas pessoas estarem tão contentes uma com a outra e manifestarem mais amor. A ternura visível dos seus mútuos entusiasmos me deu emoção; fui atin- gido no coração e meu amor começou pelo ciúme. Sim, de início eu não aguentei vê-los tão bem juntos; o despeito despertou meus desejos e eu senti um prazer extremo em poder perturbar a boa harmonia entre eles e romper essa relação, com a qual a delicadeza do meu coração se ofendeu; mas até aqui todos os meus esforços foram inúteis e eu vou buscar então recurso no último remédio.
Don Juan se sente afetado, depois ofendido, por um amor recíproco. Ele está mal, sofre, seu estômago se fecha: temos aqui, enfim, aquilo que tem efeito sobre ele, ele que produz tanto efeito nos outros. Do que ele sofre? De ser excluído de uma totalidade autônoma e fechada: porque nada pode dar-nos uma imagem melhor de autonomia e de autossuficiência do que a visão de um amor partilhado.
Don Juan só é atraído por mulheres que estão envolvidas em uma relação desse tipo: noivas prometidas, freiras unidas a Deus (Dona Elvira), mulheres casadas. É preciso admitir que aquilo que Don Juan busca é a totalidade que o exclui, pois ela o exclui. Toda uma tradição de comentários inspirados em Freud afirma que é o masoquismo, a pulsão de morte, que leva Don Juan a agir. E é verdade que tudo se passa como se ele corresse atrás da morte, que, com efeito, o acolhe em condições atrozes no fim da peça.
Que pode nos dizer sobre esse tema a teoria do desejo mimético? Uma armadilha se apresenta aqui sob os passos do aprendiz girardiano. Na ópera Don Giovanni que Mozart e seu libretista Da Ponte tiraram da peça de Molière, há a cena da sedução da camponesa Zerlina, sob os olhos do homem com que ela está para se casar, Masetto[24]. Essa cena é o equivalente da cena da peça de Molière que acabei de comentar.
Para quem guardou na memória a primeira figura do desejo mimético, o triângulo formado pelo sujeito, seu modelo – o mediador do desejo – e o objeto desejado, a tentação é grande de dizer que aqui temos esse triângulo, cujos vértices são Don Giovanni, Masetto e Zerlina. Um pouco de reflexão mostra, entretanto, que seria um absurdo raciocinar assim. Quem seria tão ingênuo a ponto de acreditar que Masetto é o mediador do desejo que Don Giovanni experimenta por Zerlina? Don Giovanni nutre apenas desprezo – um desprezo de classe – pelo camponês Masetto:
Don Giovanni: Enfim, livres deste imbecil, bela Zerlina. Que acha você, minha querida, eu consegui despachá-lo?
Zerlina: Senhor, é meu esposo!…
Don Giovanni: Quem? Ele? Você acha que um homem honrado, um nobre cavalheiro, como eu me orgulho de ser, pode aceitar que este lindo rosto dourado, este rostinho de açúcar, seja maltratado por um camponês?
Zerlina: Mas, senhor, eu dei a ele minha palavra.
Don Giovanni: Tal palavra vale menos que zero.[25]
Não, o desejo triangular, como Girard às vezes denomina o desejo mimético, não nos ajuda a compreender Don Giovanni, ou Don Juan. Será preciso voltar à crítica que faz Girard dos conceitos freudianos de masoquismo e de pulsão de morte e à teoria do ciúme que se possa daí deduzir.
O problema de uma interpretação baseada na pulsão de morte é o estado muito insatisfatório no qual Freud deixou essa noção, tardia na sua obra. O texto em que ela aparece, Para além do princípio do prazer (1920), apresenta uma estranha tensão. Freud insiste aí, com certa obstinação, na necessidade de colocar, ao lado do princípio do prazer (e das pulsões sexuais, ou pulsões de vida, que a ele se ligam), uma pulsão de morte. Esta se manifesta por uma Wiederholungszwang, ou compulsão à repetição, que faz com que o sujeito se coloque sistematicamente em situações que ele sabe que o conduzirão à derrota ou humilhação, como se ele buscasse na verdade o fracasso e o sofrimento pelo sofrimento. Ora, no texto de Freud, tudo se passa como se esse dualismo estivesse minado por uma força irresistível que o contradiz, levando Freud finalmente a concluir: “O princípio do prazer parece estar de fato a serviço das pulsões de morte”[26]. Apesar de si mesmo, Freud se aproxima de uma verdade desconcertante: as pulsões libidinais e as pulsões de morte são uma só. O desejo leva inevitavelmente à violência contra si mesmo. Em vez de pulsão de morte, é melhor utilizar um termo nietzscheano de origem francesa para designar essa violência: o ressentimento. Seja nos assuntos privados, seja nas relações internacionais, é o ressentimento que hoje conduz o mundo.
Com o conceito de pseudomasoquismo, Girard desconstruiu a teoria freudiana da pulsão de morte, da mesma maneira que, como vimos, desconstruiu com seu pseudonarcisismo a noção de narcisismo. Não é verdade, de modo algum, que o sujeito deseja o fracasso ou o sofrimento nem mesmo de maneira inconsciente. Trata-se aqui, ao contrário, de uma das mais extremas manifestações de orgulho, um amor-próprio exacerbado que vem a se confundir com um ódio a si mesmo.
Se o sujeito se despreza por sua insuficiência radical é porque acredita que a autossuficiência, quer dizer, a saída do inferno mimético, é acessível, pelo menos a certos outros seres que não ele. É a esperança vã de alcançar esse estado que o leva irresistivelmente em direção a esses outros, como que para absorver sua substância, precipitando-o no escândalo do modelo-rival. O mecanismo que faz aumentar sua fascinação pelo modelo confirma a inferioridade do sujeito a seus próprios olhos. Ele é então incitado, cada vez mais, a buscar fora dele aquilo que possa preencher a falta atroz que sente. O círculo se fecha; o desejo de chamar tudo para si e a fuga em direção ao outro se alimentam mutuamente.
Nesse jogo, toda vitória está destinada a se transformar em fracasso. Só a distância que separa o sujeito do modelo e do objeto é capaz de dar valor a esse modelo e a esse objeto. Ora, a vitória significa a anulação da distância. O sujeito consegue possuir o objeto, ser ou coisa – o rival se submete fascinado. Os olhares que convergem então para o sujeito e, por sua vez, o designam como modelo ou objeto desejável perdem imediatamente, a seus olhos, o valor de referência. E, nesse mundo sem referências, só há uma coisa da qual ele está seguro: sua própria nulidade. Ele se odeia demais para não desprezar aquele que o admira ou que simplesmente lhe quer bem. Tal é a psicologia do subterrâneo que Dostoievski colocou em cena impiedosamente nas suas Memórias do subsolo (1864).
O sujeito percebe essa invariante do desejo que quer que todo modelo se transforme em obstáculo e que todo obstáculo vencido deixe um sentimento de fracasso. Decepcionado, ele muda de objeto, depois muda de modelo, em vão. Por uma lógica implacável, mas absurda, ele infere de seus fracassos que só poderá encontrar a plenitude avaliando-se através de um obstáculo invencível. O desejo mimético começa transformando os modelos em obstáculos, e ele acaba escolhendo, como modelos, obstáculos intransponíveis. Como Denis de Rougement descreveu magnificamente no seu História do amor no Ocidente (1939), livro que serviu de educação sentimental a muitas gerações de europeus, o amor-paixão, essa invenção do Ocidente, escolhe sempre objetos impossíveis de atingir. Rougement organiza sua análise em torno do mito de Tristão e Isolda, que não é menos constitutivo da cultura ocidental do que aquele de Don Juan. A versão que Richard Wagner deu, neste apogeu da música que é a ópera do mesmo nome, mostra maravilhosamente bem que o amor-
-paixão está destinado à morte e à paz que ela traz: a paz, quer dizer, a
saída do inferno que chamamos de ciúme.
O sujeito deseja o fracasso? O que o sujeito deseja é a prova e o signo de autossuficiência divina do mediador. Ele deseja, então, seu sucesso. Não porque o sucesso marque seu próprio fracasso, mas, ao contrário, para dele se apropriar, para fazê-lo seu. O desgosto de si se confunde inextrincavelmente com um orgulho desmesurado, o sujeito irremediavelmente despedaçando-se entre o eu e o outro. Seria preciso ser o outro para sair do inferno. Não podendo sê-lo, é no desprezo que o mediador traz consigo, até no obstáculo do mecânico e do inanimado, que o sujeito vai buscar apropriar-se do divino. A vontade de autodivinização não se traduz mais, como no individualismo comum – essa mentira do pseudonarcisismo –, pela busca da admiração e da autoveneração; ela se manifesta na busca da humilhação e da autodestruição. A simetria é perfeita; a progressão, rigorosa: a procura da vida leva diretamente à morte. Não chegamos todos até aí, mas, segundo Girard, tudo o que denominamos o gosto pelo risco, a sede pelo infinito, o desejo de se superar, o sempre mais, o tema da fronteira, o infinito do desejo, tudo isso é a manifestação, sob diferentes formas socialmente aceitas, dessa mesma busca sempre destinada ao fracasso.
Voltemos a Don Juan. Evidentemente, não é a exclusão que ele busca ao confrontar-se de maneira sistemática com totalidades autônomas que o excluem. É porque o excluem que elas parecem a ele dignas de seu desejo. Lembremo-nos da piada de Groucho Marx: “Nunca aceitarei fazer parte de um clube que me aceite como membro”. Sua infelicidade, seu sofrimento é que ele nunca consegue possuir uma mulher, no sentido de formar com ela o gênero de união que ele cobiça nos outros. Ele precisa então possuir todas, confundindo o que Hegel chamava de falso infinito, o infinito aritmético, e a plenitude do ser. Para isso, precisa destruir os laços que essas mulheres mantêm com os outros. Pascal denominava esse erro trágico concupiscência, que ele considerava levar inevitavelmente à morte – seja a mais indiferenciada totalidade, a mais incontrolável, da qual temos certeza de jamais sermos capazes de nos apropriar. É muito significativo que o guia que Don Juan tenha escolhido na sua última busca seja o Commendatore ressuscitado sob a forma de uma estátua animada, “móvel e falante”, como o descreve Molière, um autômato – ou seja, a forma mais insignificante de autonomia, aquela que convém à idade racionalista. (Pensemos nas narrativas do nosso tempo, em que o herói, trágico e patético, morre de amor-paixão por uma boneca inflável.)
* * *
Como já mencionei no início, um dos dois cavalheiros de Verona se chama Proteu. Não por acaso. Para os gregos, Proteu era o deus das formas: ele era potencialmente todas as formas, mesmo que a cada momento tomasse apenas uma forma. Ele era proteiforme. Ora, esse é o caso do desejo mimético: ele pode se manifestar sob um grande número de formas diferentes, segundo as circunstâncias. Em filosofia das ciências, diríamos que ele é um princípio morfogenético. Descrevi algumas dessas formas. Para concluir, colocarei como questão saber o que essas diferentes formas têm em comum, além de sua origem. Nós as reencontramos uma após a outra: o mecanismo pelo qual os homens chegam a combater até a morte por nada, apenas por prestígio, o que dá no mesmo; as razões que os levam a fazer tudo para tomar o poder e que se resumem a uma só, ou seja, escapar aos tormentos do desejo mimético; a lógica do pânico, que rompe os laços afetivos e sociais para melhor levar os indivíduos desenraizados ao abismo; o inferno do ciúme, que conduz os sujeitos a buscar sua salvação nas condutas de fracasso que os levam diretamente à morte.
Duas citações que Girard gosta de fazer indicam o que essas figuras têm em comum. A primeira, do filósofo alemão Max Scheler, autor da obra O homem do ressentimento (1919), diz o seguinte: “O homem possui um Deus ou um ídolo”. A segunda é de Dostoiévski, em Os irmãos Karamazov: “Se Deus está morto, então os homens serão deuses uns para os outros”. Em termos girardianos, isso quer dizer: na ausência de transcendência, os homens caem em todas as armadilhas do desejo mimético, o que os leva a divinizar os modelos humanos que eles escolhem e que se tornam automaticamente obstáculos. O homem não é violento por natureza (como Konrad Lorentz pensava); ele não é violento porque deve lutar para ter acesso a recursos escassos (como Thomas Hobbes acreditava). Ele é violento porque é um ser de desejo.
- A tradução do presente ensaio é de Ana Maria Szapiro. ↑
- Publicado pelas Edições Sesc em 2011. ↑
- Jean-Paul Sartre, “Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade”, em: Situ- ações i, São Paulo: Cosac Naify, 2005. ↑
- René Girard, Mensonge romantique et vérité romanesque, Paris: Grasset, 1961, p. 63. Edição brasileira: Mentira romântica e verdade romanesca, São Paulo: Realizações, 2009. [A tradução desse trecho e de outros citados ao longo do texto, extraídos de diferentes obras, foi feita pela tradutora do artigo.] ↑
- Cf. Christopher Clark, The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914, London: Harper, 2013. Edição brasileira: Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra Mundial, São Paulo: Companhia das Letras, 2014. ↑
- Hannah Arendt, A condição humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 62. ↑
- Publicado originalmente em 1921. Edição brasileira: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923), São Paulo: Companhia das Letras, 2011 (Obras completas, vol. 15). ↑
- Não estou inventando nada. Veja seu livro Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916), São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (Obras completas, vol. 12). ↑
- René Girard, Des Choses cachées depuis la fondation du monde, Paris: Grasset, 1979. Edição brasileira:
Coisas ocultas desde a fundação do mundo, São Paulo: Paz e Terra, 2009. ↑
- Sigmund Freud, Psychologie collective et analyse du moi, Paris: puf, 2010. [Original em alemão de 1921.] ↑
- Ibidem. ↑
- Ibidem. ↑
- Serge Moscovici, L’Age des foules (A era das multidões), Paris: Fayard, 1981. ↑
- Ibidem. ↑
- Ver Jean-Pierre Dupuy, Introduction aux sciences sociales: Logique des phénomènes collectifs, Paris: Ellipses, 1995. Edição em português: Introdução às ciências sociais, Lisboa: Instituto Piaget, 1992. ↑
- Sigmund Freud, op. cit., 2010. ↑
- Ibidem. ↑
- Émile Durkheim, Les Formes élémentaires de la vie religieuse, Paris: puf, 1979. Edição brasileira: As formas elementares da vida religiosa, São Paulo: Martins Fontes, 2003. ↑
- Elias Canetti, Masse et puissance, Paris: Gallimard, 1966. Edição brasileira: Massa e poder, São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ↑
- Philippe Borgeaud, Recherches sur le dieu Pan, Genebra: Droz, 1982. ↑
- Maurice Olender, “Compte-rendu de l’ouvrage de P. Borgeaud: Recherches sur le dieu Pan” (Resenha da obra de P. Borgeaud: Investigações sobre o deus Pã), Le Nouvel Observateur, Paris, 25 set. 1982. ↑
- Nicolas Grimaldi, Essai sur la jalousie: L’enfer proustien, Paris: puf, 2010, p. 8. Edição brasileira: Ciúme: estudo sobre o imaginário proustiano, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. ↑
- Ibidem, p. 23. ↑
- O autor recomenda o trecho da adaptação da obra de Mozart que Joseph Losey fez para o cinema. Don Giovanni, Joseph Losey, eua: Columbia Tristar, 1979. [n.e.] ↑
- Ato i, cena 9, recitativo. ↑
- Sigmund Freud, Au-delà du Principe de plaisir, Paris: Payot, 2010. Edição brasileira: Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922), vol. 18, Rio de Janeiro: Imago, 2006. ↑