2007

Fatos, argumentos,versões: a política da notícia

por Marcelo Coelho

Resumo

Quais devem ser as relações da imprensa com a política, do jornalismo com a atividade política?

O poder do discurso político tradicional tornou-se secundário diante da eficácia da imagem publicitária como mecanismo de “convencimento”. A política, ao contrário da ciência, age no âmbito das versões, mais do que dos fatos. Aqui entra o trabalho do jornalismo que, nesse sentido, vai contra o marketing politico. Enquanto o marketing político se tornou o ramo profissional especializado em “criar versões para os fatos” onde lideranças políticas e partidos competem pela versão mais conveniente aos seus propósitos, o jornalismo tomou como missão agir como “sabotador dos fatos” através de uma apresentação/ostentação dos fatos que contestam a versão política em curso.

O resultado, muitas vezes, é uma hiperfactualidade, em que dados, versões e contraversões se chocam sem produzir uma narrativa coerente. O efeito pode ser antipolítico ou até despolitizador.

Assim, como a esfera do convencimento na sociedade contemporânea ganha características de imagem publicitária, também no jornalismo o discurso argumentativo se enfraquece sendo substituído pelo desempenho noticioso enquanto iconoclastia. Não é por outra razão que a busca de “irregularidades” surge como principal atividade de crítica a determinados programas governamentais. Por vezes, não somente a preferência ideológica dos principais órgãos de comunicação cedeu diante do impulso “iconoclasta” da notícia, como também algumas prioridades mais amplas, que se poderia designar pelo rótulo de “interesse público”, tendem a ser deixadas de lado quando determinada verdade factual pode ser invocada para o descrédito de alguma versão oficial.

Por tudo isso, é importante recompor o debate político republicano. A disputa republicana pela opinião majoritarian a ser expressa em leis aceitas pelo conjunto da sociedade, depende da capacidade que o poder estatal detenha no sentido de fazê­ las respeitadas. A decisão legislativa, ainda que legítima, tende a ser inócua num ambiente em que predominam as atividades informais, clandestinas e à margem da lei.

O fortalecimento da política depende, nesse sentido, de uma recuperação do próprio poder do Estado e de suas relações com a sociedade.


Um texto de Roland Barthes (“Structure du fait divers”) foi há tempos traduzido para o português com o título de “Estrutura da notícia”.[1] Sabemos, entretanto – e os tradutores da edição brasileira explicam isso em nota de rodapé -, que há uma diferença entre o que é entendido como notícia, no seu sentido amplo, e o que se chama, mesmo em português, de fait divers.

Esse último termo designa as pequenas notícias curiosas que ocupam, frequentemente, as colunas de notas soltas nas páginas do noticiário local ou internacional. É, tipicamente, a história do mendigo que, quando morre, deixa milhões de dólares num banco; ou a de um pianista atropelado por um caminhão de mudanças que, justamente, transportava um piano… Há sempre um componente de ironia, de inversão de expectativas ou de coincidência inacreditável nessas histórias, que as torna dignas de publicação.

Barthes observa que o fait divers tende a esgotar-se em si mesmo. Situa-se à margem do fluxo histórico; poderia ter acontecido hoje como há dez ou vinte anos, e não pressupõe antecedentes nem continuação. É dessa perspectiva que podemos dizer que tais acontecimentos podem ser curiosos, ou engraçados, mas não têm relevância, não têm sentido. Mais exatamente, não têm lugar dentro de um contexto maior, de uma evolução histórica mais ampla.

Quando se fala no “esquecimento da política”, tal como ele acontece ou estaria acontecendo no jornalismo brasileiro, minha primeira sugestão, ao aceitar o convite para o ciclo de palestras que deu origem a este livro, foi observar que o mundo dos fatos políticos, da disputa partidária e ideológica, dos movimentos sociais, dos enfrentamentos de poder, talvez esteja sendo tratado na imprensa sob a ótica do fait divers, do episódio isolado, que se esgota em si mesmo e que se esquece logo depois.

O embate político assume, não raro, a forma do escândalo, que é investigado até certo ponto, e como que desaparece sem deixar rastros. Logo outro escândalo ocupa seu lugar, envolvendo novos personagens, muitas vezes tão exóticos quanto os do episódio anterior, e uma sensação de equivalência entre os heróis da véspera e os vilões do dia seguinte termina por predominar. Enquanto isso, eleições começam e acabam, ondas de renovação e esperança se esgotam com a mesma rapidez dos slogans de cada campanha publicitária, e o que se noticia com mais frequência, durante o auge do confronto eleitoral, é o crescimento ou o declínio de um candidato nas pesquisas, entremeado com as operações de marketing que se conhecem: o passeio de um candidato no lombo de um jegue, o pastel de feira que outro comeu; segue-se a troca de declarações vazias que cada um deles faz a respeito das próprias pesquisas, ou sobre as alianças partidárias “espúrias”, absolutamente equivalentes umas às outras, que cada concorrente pode identificar na chapa de seu adversário. Resulta uma impressão geral de inanidade, de insignificância, no que se passa na esfera eleitoral, administrativa e partidária; nada foge da mesma rotina política, que se associa à tentativa incansável, por parte da imprensa e dos próprios técnicos de marketing político, de encontrar coisas que fujam dessa rotina – a saber, o fait divers. Basicamente, perde-se assim a noção de processo histórico, de um sentido mais amplo, de uma direção que os fatos estejam a tomar.

Sem dúvida, isso se dá dentro de um contexto mais amplo, que tem duas faces. A primeira diz respeito à própria imprensa, e a segunda diz respeito ao papel assumido pela política, pelos partidos, pelas ideologias no cenário contemporâneo.

No que se refere à mídia, basta um rápido olhar nas capas das revistas semanais para se perceber o que acontece. Talvez metade das edições destaque assuntos relativos à vida privada dos leitores de classe média: saúde, em primeiro lugar. Obesidade, coração, rugas, dietas, novos remédios ocupam as revistas com regularidade impressionante.

Merece igual destaque, nas revistas de grande circulação, uma outra forma de ocupar privadamente o espaço público, que é a do chamado jornalismo de celebridades: uma pessoa qualquer, desfrutando de algum tipo de reconhecimento público, expõe a sua vida privada nas revistas, nos jornais, nos sites noticiosos. Confundindo-se com isso, há também o caso das telenovelas, que se apresentam como encenações da vida privada, e ganham destaque como se fossem assunto de interesse público. Obviamente, o desfecho de uma novela pode ser de interesse para grandes parcelas da população; mas o que é tema de interesse geral se torna tema de interesse público, no sentido em que o desfecho de uma novela se torna quase assunto de Estado.

Uma diferença importante de notar, aqui, é que enquanto algo de “interesse geral” pode perfeitamente escapar à intervenção política dos cidadãos (a morte, a existência de Deus, o fim de uma novela), um assunto de “interesse público” é, por definição, algo que está sujeito ao entrechoque das opiniões políticas e das alternativas de governo.

Seja como for, o ponto de vista das “celebridades”, da “vida privada”, contamina há muito tempo a vida política. Para tomar de um exemplo recente, basta ver como se deu a propaganda eleitoral dos candidatos à presidência em 2006. No caso de Geraldo Alckmin, candidato oposicionista, a preocupação em “apresentar” o candidato ao eleitor se fez por meio de uma espécie de biografia de sucesso pessoal – Alckmin, declarava o locutor, tornou-se prefeito aos 23 anos. Seria o caso de perguntar: contra quem? Em nome de quê? Em que partido? Tais questões não tiveram destaque no marketing eleitoral, todavia, e dificilmente o tema do “esquecimento da política” encontraria melhor tradução do que nesse exemplo de omissão propagandística. No campo adversário, também a trajetória do presidente Lula foi apresentada, nessa campanha de 2006, como um exemplo de história de sucesso individual. Não estava certamente no plano dos especialistas de marketing dizer que Lula fora preso como líder de uma greve sob a ditadura, quando se podia contar que o candidato fora um menino pobre, vindo do Nordeste, que vendia picolés e se tornou presidente da República.

Há desse modo uma “sentimentalização” da vida política, reduzida no período eleitoral – e fora dela – a uma exposição alternativa de sucessos e fracassos individuais. Oscila-se entre uma espécie de conto de fadas, com o presidente e a primeira-dama cumprindo a agenda oficial, de preferência nas suas viagens ao exterior, e uma crônica sinistra, ou filme noir sobre os bastidores do poder, com espiões, dossiês misteriosos e personagens imprevistos – um ou outro mordomo, motorista ou mulher fatal.

Sem dúvida, o mundo privado e o público não se misturam apenas na abordagem da mídia, mas estão de fato ligados na administração estatal e na política. Podemos dizer que isso não vem de hoje: episódios célebres na política internacional, como o caso Profumo, na Inglaterra dos anos 1960, ou ainda a clássica história de Mata Hari envolviam simultaneamente a vida privada e a vida pública, na medida em que determinados personagens, detentores de segredos de Estado, mantinham relações amorosas que colocavam a segurança nacional em risco. O mundo do segredo, do impublicável, e portanto do “antiético”, nunca deixou de fazer parte do campo da política; de resto, qualquer monarquia no século XVI, XVII ou XVIII estruturalmente se constituía como uma mistura de interesses privados e públicos, o que não passa, talvez, de uma consequência da concentração de poder em pessoas humanas.

Aqui chegamos a um ponto em que o tema do “esquecimento da política” deixa de estar relacionado com uma atitude específica da “mídia” e passa a corresponder a uma mudança histórica mais profunda, que diz respeito ao próprio lugar do poder político na sociedade. Vem a propósito, nesse sentido, a alusão algo remota aos regimes monárquicos feita no parágrafo anterior. O que estaria sendo “esquecido”, ou obliterado, não é a política estrito senso, mas a política como atividade republicana: algo que teve início no século XVIII, com a lenta substituição do poder pessoal dos reis pelo jogo parlamentar, que supunha partidos representando interesses e visões de mundo diversas, e no qual uma eleição significa mudança palpável de rumos na condução dos negócios do Estado, que passam a ser controlados pela imprensa e pela opinião pública.

Se, nas revelações de sucessivos casos de irregularidade no trato das finanças do Estado, podemos dizer que esse controle público continua a ser exercido, é entretanto inegável a sensação de que o papel de intervenção republicana – e democrática – nos rumos de um governo diminuiu imensamente. Que mudança palpável seria possível num mundo absolutamente dominado pelas forças do mercado, em que interesses empresariais se vêem representados, de forma equivalente, por todos os partidos e candidatos em disputa? Uma pesquisa sobre as fontes de financiamento das diversas campanhas eleitorais no Brasil revelaria, tanto ou mais do que qualquer semelhança nas estratégias de marketing adotadas a cada eleição, a equivalência objetiva dos diversos concorrentes ao poder.

É como se o interesse da mídia pelas “celebridades”, sejam elas artistas de novela ou políticos bem-sucedidos, fosse proporcional a uma “despersonalização” jamais vista nos negócios reais do Estado e da economia, em que o poder de forças anônimas, invisíveis, ligadas aos comportamentos “do mercado”, tornou-se mais intenso do que nunca. A cobertura do dia-a-dia acaba se transformando, assim, numa mistura de mexericos e números; as atenções se dividem entre o divórcio de fulaninha, de um lado, e a subida dos juros, do dólar, do risco-Brasil ou de tal candidatura na última pesquisa de opinião.

Projetos em crise, política em toda parte

Se o fenômeno acontece, é porque de fato as eleições, a vitória de um partido ou de outro, deixaram de ter o significado histórico que antes lhes atribuíamos. Esse significado histórico era dado, se quisermos adotar um termo caro aos pós-modernos, a partir de uma determinada “metanarrativa”. Quando interpretamos a história humana como uma luta na construção do socialismo – a “metanarrativa” marxista -, naturalmente todo acontecimento no mundo econômico ou eleitoral pode se inscrever como “positivo” ou “negativo” diante dessa perspectiva, ganhando seu sentido a partir daí; a menor eleição de vereador passa a ser um pequeno tijolo na história da humanidade, e não aparece mais como um fato isolado, que se esgota em si mesmo, e cujo único interesse se resume ao que de bizarro e fora da rotina possa trazer consigo. Sem dúvida, o ponto de vista oferecido por uma “metanarrativa” histórica, marxista ou revolucionária num sentido mais amplo, caiu em descrédito, e creio não estar falseando as opiniões de Francisco de Oliveira sobre a “irrelevância da política” [2] ao relacioná­las a esse processo.

Nessa interpretação, o fato decisivo a considerar é que os Estados nacionais seriam hoje incapazes de empreender ações autônomas na área da política econômica, dada a subordinação das suas finanças ao sistema mundial. Em cada país, a arena dos conflitos locais enfraqueceu-se, e com ela o papel dos sindicatos e dos partidos. No caso brasileiro, podemos notar, nessa avaliação, a percepção de um colapso, ou de um bloqueio, em duas “narrativas” distintas: tanto a que tinha como desfecho a vitória socialista quanto a que tinha como objetivo a emancipação nacional. Ao longo da história brasileira do século XX, esses dois caminhos às vezes se confundiram, outras vezes se apartaram, mas foram sempre debatidos. Em especial entre as décadas de 1950 e 1960, a esquerda discutia se estava em pauta no Brasil uma “revolução burguesa” ou uma “revolução proletária”. Alguns textos clássicos dessa época falavam na “Revolução Brasileira”, no mesmo sentido em que se pode falar de “Revolução Russa”, “Revolução Francesa”, “Revolução Americana”. Qualquer que fosse o seu caráter, burguês ou proletário, industrializante ou socialista, a questão é que ela estava em curso. E um evento político como o golpe de 64 ganha sentido, evidentemente, porque se fez contra essa revolução.

A partir de finais da década de 1970, se combinaram duas novas “narrativas”, por assim dizer, que davam sentido aos fatos políticos do cotidiano: estavam em pauta uma perspectiva que privilegiava o processo da redemocratização e da retomada do desenvolvimento, identificada grosso modo com as posições do PMDB, e a perspectiva, ligada ao projeto do PT, que, sem negar esses dois objetivos, formulava-os dentro de um programa mais ambicioso: não apenas a adoção de procedimentos democráticos no Estado brasileiro, mas a reformulação deste, e da sociedade, a partir de um influxo “de baixo para cima”, enraizado nos movimentos populares de base, com vistas a uma radicalização da democracia e da igualdade social. Enquanto o projeto do PMDB buscava, tipicamente, dar voz e força à “sociedade civil”, sem mais qualificativos, o PT orientava sua linha política com um foco mais específico, em que as “organizações de base” e os “movimentos sociais” tinham a primazia do processo. Nos dois casos, de qualquer modo, concebia-se um processo suficientemente nítido e amplo para que todos os fatos políticos ganhassem significado, seja como “avanço”, seja como “recuo” em relação a esses objetivos.

Ora, a prática dos governos brasileiros depois da redemocratização, de Sarney a Lula, significou um abalo nesses dois projetos. Em parte porque o objetivo da redemocratização foi de fato atingido, não havendo nas últimas duas décadas – conjuntura, aliás, inédita no Brasil desde os anos 1920 – nenhuma ameaça de intervenção militar visível no horizonte. O projeto de uma retomada do desenvolvimento com emancipação nacional, do antigo PMDB, foi entretanto por água abaixo no processo de globalização. Quanto ao governo Lula, embora possa apresentar números ligeiramente melhores no tocante à redução das desigualdades de renda – o que no Brasil já é um fato notável -, a perspectiva de uma auto-organização das classes populares, de uma radicalização da democracia, de um papel crescente de sindicatos, organizações de base, movimentos sociais como forma de pressão sobre o establishment, foi substituída, mesmo antes das eleições de 2002, pela perspectiva bem mais tímida de manutenção da estabilidade econômica e política, entendendo-se aqui a sobrevivência da própria máquina partidária no aparelho de Estado.

Cabe perguntar, entretanto, se o colapso desses dois projetos pode ser entendido como um sinônimo da irrelevância ou do esquecimento da política. Ainda que tomemos como muito provável, e mesmo irreversível, o bloqueio de ambas as perspectivas – a do socialismo e a de uma revolução nacional -, não vejo como deduzir daí a ideia de que a política esteja esquecida ou se tenha tornado irrelevante no mundo contemporâneo.

Para recorrer, ainda uma vez, ao termo algo antipático “metanarrativas”, certamente essas existem no campo conservador: o embate entre as “forças do atraso” e as da “modernização”, no caso brasileiro, e o “choque das civilizações” e a “guerra contra o terrorismo”, no âmbito internacional, não deixaram de ser formas de organizar, ideologicamente, os eventos da esfera pública com vistas a lhes atribuir sentido e relevância. Nem tudo, dessa perspectiva, reduziu-se ao fait divers.

Tampouco de uma ótica de esquerda, de resto, a crise dos projetos socialista e nacional-desenvolvimentista se traduz em irrelevância ou esquecimento da política. Bem ao contrário, vejo a política em toda parte, como sempre, embora seus protagonistas, seus agentes, e arenas de confronto, não sejam mais os mesmos.

Mesmo se quisermos partir de uma ótica “economicista”, por exemplo, a própria disputa política em torno da propriedade privada corre a pleno vapor – só que sobre outros trilhos. A questão da propriedade intelectual é hoje em dia candente, e não é supérfluo lembrar que o homem mais rico do mundo, hoje, é Bill Gates, que detém os direitos de propriedade de um programa de computador… e contra quem se insurgem os partidários de software livremente compartilhados. Das patentes farmacêuticas dos remédios contra Aids à criação de um sistema alternativo de divulgação da produção artística – o creative commons -, a disputa política e ideológica envolve bastante mobilização, num âmbito de tecnologia, entretenimento e consumo que não estamos acostumados a considerar.

De uma perspectiva totalmente distinta, a questão das relações entre dogma religioso e autonomia individual, entre fé e ciência, atravessa todos os campos da sociedade e os mais variados países do mundo. Se líderes católicos condenam o aborto, e grupos pró-aborto se mobilizam – nada impede que o façam -, não há como não considerar que a política é o meio em que decisões a esse respeito são tomadas. Onde houver um lugar em que alguém possa ser preso por trabalhar numa clínica de aborto, há pressões a favor ou contra a lei que justifica sua prisão. Numa síntese brutal, onde há leis – e cadeias -, há política.

E onde há guerras, há a possibilidade da política também. É de Clausewitz, como se sabe, a frase segundo a qual a guerra é o prolongamento da política por outros meios. Mas Clausewitz era, ele próprio, um militar, e a frase sem dúvida justifica, ou pelo normaliza, a prática da guerra. Podemos optar por uma formulação contrária, e não menos verdadeira que a de Clausewitz, se quisermos definir o político. A guerra é também o fracasso da política, a morte da política. Pois há política enquanto existe a tentativa de evitar que a vontade de um grupo seja imposta pela pura violência física: qualquer acordo capaz de extinguir uma situação de guerra civil, e qualquer vitória de uma maioria na obtenção de uma lei, tende a legitimar, ainda que prevaleçam descontentes e desiguais, determinada ordem política – desde que, evidentemente, com isso não se extingam as possibilidades de novas dissensões e disputas no futuro. Quando cessa a disputa pelo consenso político, pelo estabelecimento de normas legítimas de coexistência social – seja pela guerra, seja pela eliminação dos direitos civis dos adversários -, cessa a diferença entre lei e barbárie, entre poder e usurpação, entre cidadania e escravidão.

Convencimento e objetividade

O campo do “político” está, desse modo, tão presente como nunca, enquanto houver ameaça de violência e possibilidade de convencimento – embora sejam extremamente reduzidas, sem dúvida, as possibilidades de mobilização e conscientização das massas no sentido de contestar em bloco o modelo neoliberal. Neste ponto chegamos ao assunto central deste ensaio, porque é no mundo do “convencimento”, das opiniões, que o poder da imprensa, do jornalismo, se coloca. Quais as relações da imprensa com a política, do jornalismo com a atividade política hoje em dia, ou melhor, quais devem ser essas relações?

Parto de uma distinção que nem sempre é observada no discurso da esquerda, que habitualmente identifica jornalismo, imprensa, televisão, rádio, publicidade, marketing e Internet sob o mesmo conceito crítico de “mídia”. Minha hipótese supõe uma distinção marcada entre pelo menos dois desses campos, o do jornalismo, de um lado, e o da publicidade e do marketing, do outro, uma vez que, a meu ver, o processo pelo qual se deu a vitória ideológica do neoliberalismo não passa pelos canais habituais do convencimento político republicano – a imprensa partidária, o debate parlamentar, o manifesto político-, mas sim pelos canais da publicidade e do marketing. Quando um líder neoliberal repete, pela enésima vez, que a globalização é irreversível, que a esquerda se contrapõe à modernidade, ou que o “muro de Berlim já caiu”, é como se traduzisse, numa linguagem ainda ideológica e partidária, um fenômeno que, num nível importante, a rigor dispensa qualquer justificação de caráter histórico, narrativo, discursivo, argumentativo no seu senso estrito. A rejeição ao socialismo real, com tudo o que obviamente a justificava em termos de aspiração à liberdade política, artística, religiosa e individual, não veio acompanhada necessariamente de uma adesão aos princípios da livre empresa, do monetarismo e da desregulamentação das leis trabalhistas; a adesão se deu, desde as primeiras butiques e lanchonetes que se instalaram no Leste europeu, em função dos atrativos oferecidos pelos bens de consumo, e pela capacidade técnica da publicidade e do marketing no sentido de torná-los desejáveis.

Nesse sentido, o poder do discurso político tradicional tornou-se relativamente secundário diante da eficácia da imagem publicitária como mecanismo de “convencimento” – o próprio termo sofre uma alteração de significado – da população. O célebre colapso das “narrativas” a que nos referíamos inicialmente pode ser entendido, desse modo, quase como o enfraquecimento da própria “forma literária” da narração, com começo, meio e fim, ou do próprio discurso argumentativo, com suas premissas e conclusões. O predomínio do fait divers na vida política contemporânea pode também ser explicado, dessa perspectiva, como consequência da necessidade de uma incessante produção de “imagens” para o consumo público.

Se a imprensa se vê, na maior parte do tempo, no papel de reproduzir e divulgar as imagens produzidas pelo “marketing” político, sejam quais forem as sutis diferenças de coloração ideológica entre um e outro candidato ou governante, sem dúvida não se reduz a isso o seu papel, nem sua prática cotidiana.

Para desenvolver esse ponto, vale a pena recorrer com certo detalhe a um ensaio de Hannah Arendt, publicado na década de 1950, mas de atualidade inquestionável num cenário em que se tornou clichê o questionamento de toda pretensão à objetividade, seja no jornalismo, seja na ciência, e em que se reage com naturalidade – e poucos instrumentos intelectuais válidos – ao uso sistemático da mentira pelos ocupantes do poder.

Em “Verdade e política”[3] Hannah Arendt fala de uma “curiosa paixão”, a seu ver típica da sociedade ocidental, que é a “paixão pela integridade intelectual a qualquer preço”. O nome dessa paixão, afirma, é objetividade. A filósofa remonta a origem dessa “paixão” a Homero, no momento em que ele decidiu cantar os feitos dos troianos não menos que os dos aqueus, e louvar a glória de Heitor, o inimigo e homem derrotado, não menos do que a glória de Aquiles, o herói de seu povo. Isso jamais aconteceu em parte alguma antes: nenhuma outra civilização, por mais esplêndida que fosse, fora capaz de olhar com olhos iguais o amigo e o adversário, a vitória e a derrota (…) a imparcialidade homérica ecoa através de toda a história grega, e inspirou o primeiro grande contador da verdade factual, o qual se tornou o pai da História: Heródoto (p. 324).

Um espírito mais cético lembraria, por certo, que Homero não estava escrevendo sua epopeia no momento em que a guerra se travava; e que, mesmo depois de encerrado o conflito, sua imparcialidade e generosidade com Heitor teriam sido menores se Homero não estivesse do lado vitorioso. O raciocínio não é suficiente, entretanto, para negar valor à imparcialidade enquanto tal, como tende a ser voga no discurso contemporâneo.

Ao defender a verdade factual e a imparcialidade, Hannah Arendt não ignora, é claro, que – para usar um irritante lugar-comum – nenhum relato dá conta de “toda a realidade”. A realidade, diz Arendt, é diferente da “totalidade dos fatos”. E mesmo essa “totalidade” é inaveriguável. A mais precisa análise de uma batalha não poderia calcular o número exato de moléculas de sangue derramado – nem teria motivos para fazê-lo. O que não é argumento para dizer que qualquer relato, falso ou verdadeiro, daquela batalha tenha idêntico valor.

Para a autora, “aquele que diz a verdade, aquele que ‘diz o que é’, sempre narra uma estória, e nessa estória os fatos particulares perdem sua contingência e adquirem algum sentido humanamente compreensível” (p. 323).

O problema da objetividade não está, portanto, na atribuição de um sentido à narração; não está na necessidade indispensável de se interpretar os fatos relatados. O problema está na veracidade, ou não, dos fatos que se relatam. Hannah Arendt cita a conversa entre Clemenceau, principal arquiteto da vitória francesa na Primeira Guerra Mundial, e um diplomata alemão. A guerra tinha acabado, e os dois discutiam as responsabilidades alemãs no desencadeamento do conflito. O diplomata perguntou a Clemenceau: “O que, em sua opinião, pensarão os historiadores futuros desse tema espinhoso e controverso?” Clemenceau replicou: “Isso não sei. Mas tenho certeza de que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha” (ap. p. 296).

Para Hannah Arendt, enquanto nos regimes teocráticos e absolutistas o poder se preocupa especialmente em reprimir as verdades filosóficas, as heresias, as teorizações subversivas, o que se reprime nas sociedades modernas não é mais a verdade filosófica, e sim a verdade factual.

Na União Soviética, como observa Arendt, fizeram-se os mais sistemáticos esforços no sentido de reescrever a história. É sabido que no regime stalinista apagaram-se as imagens de Trotsky das fotos oficiais da Revolução; artigos inteiros de enciclopédias foram reescritos, para eliminar da narrativa os atos dos líderes bolcheviques que se opunham ao poder de Stalin. O exemplo utilizado pela autora provém de um regime totalitário. Arendt considera, entretanto, que, depois da Segunda Guerra, confrontamo-nos com estadistas altamente respeitáveis, como De Gaulle e Adenauer, que conseguiram erigir sua política básica sobre pseudofatos evidentes, tais como estar a França incluída entre os vitoriosos da guerra e ser, portanto, uma das grandes potências; e como “a barbárie do nacional-socialismo afetou apenas uma fração relativamente diminuta do país” (p. 312).

A mentira moderna, para Hannah Arendt, “envolve negar, reescrever, alterar fatos diante dos próprios olhos daqueles que testemunharam esses fatos”. O que se aplica com clareza ao caso de Stalin. Mas poderíamos chamar de “mentiras modernas” os demais exemplos de Hannah Arendt? Quando Adenauer dizia, no pós-guerra, que “apenas uma fração relativamente diminuta da população alemã foi afetada pela barbárie nazista”, ou quando De Gaulle afirmou que a França foi um país vitorioso na Segunda Guerra, podendo aspirar ao status de potência, há certamente inverdade “ao pé da letra”, mas a própria Hannah Arendt hesita em classificar tais frases como “mentiras”, usando o termo “pseudoverdades”. São frases, com efeito, que variam de sentido conforme a interpretação que se lhes der.

Estamos aqui, a meu ver, diante de uma “maquiagem” da realidade histórica; mas poderíamos entender essas frases não tanto como “mentiras”, mas como “versões” para um mesmo fato. Se, nos regimes totalitários, a possibilidade de uma total eliminação da verdade factual está colocada, a política nas sociedades democráticas se caracteriza por ser, antes de tudo, uma negociação entre diferentes versões da realidade factual. Talvez a frase de Adenauer fosse a melhor versão, naquele momento, para traçar uma estratégia que reunificasse em torno da democracia a população alemã. Versão inexata, por certo, e contrastável com outras, mais verdadeiras; vitoriosa, entretanto, como recurso de convencimento (e autoconvencimento) para a maioria da população.

Jornalismo e iconoclastia

Sem dúvida, a política, ao contrário da ciência, age no âmbito das versões, mais do que no dos fatos. Lideranças políticas e partidos competem pela versão mais conveniente, mais eficaz para seus propósitos. Aqui entra, a meu ver, o papel do jornalismo – que, dessa perspectiva, coloca-se nos antípodas do marketing político. Enquanto este se tornou um ramo profissional extremamente especializado na arte de criar versões para os fatos, substituindo os próprios líderes políticos nesse processo – para nada dizer dos intelectuais, dos ideólogos, dos antigos editores-chefes da imprensa partidária -, o jornalismo contemporâneo tem como missão agir, sobretudo, como adversário, como sabotador de versões. A que são diariamente apresentadas ao público pelos agentes políticos.

Essa sabotagem, essa atividade de contestação, não se faz mais, entretanto, exclusivamente por meio da elaboração de outras versões, de novos discursos políticos, como era o caso do jornalismo partidarizado de antigamente, mas através de uma apresentação, de uma ostentação de fatos que contestam a versão política em curso. Ainda que esta seja razoável, e fundamentada em estatísticas comprovadas, o jornalista sempre irá procurar um fato, ainda que marginal, capaz de contestar essa versão. O resultado, muitas vezes, é uma “hiperfactualidade” no jornalismo, em que dados, versões e contraversões se chocam, sem que seja possível extrair de tudo uma narrativa coerente. O efeito pode ser meramente “antipolítico”, mas também despolitizador.

É, sobretudo, um efeito “antinarrativo”, em que a notícia crua, mais do que sua interpretação ou contextualização, aparece como produto final do trabalho jornalístico. Assim como a esfera do convencimento, na sociedade contemporânea, ganha as características da imagem publicitária, mais do que de um discurso argumentativo, também no jornalismo o discurso argumentativo se enfraquece, sendo substituído pelo desempenho noticioso enquanto iconoclastia. Não é por outra razão que a busca de “irregularidades” surge como principal atividade de crítica a determinados programas governamentais.

O sucesso estatístico de um plano qualquer – de combate ao desmatamento na Amazônia ou de transferência de renda-, naturalmente propagandeado pelas autoridades, não será predominantemente contestado do ponto de vista numérico ou ideológico: a “notícia” terá tanto mais valor quanto mais se constituir num caso (isolado ou não) de fracasso ou de desvirtuamento no plano governamental. Na história recente da imprensa brasileira, essa estratégia foi tão nítida durante o governo FHC (quando irregularidades em torno do processo de privatização foram denunciadas com um espírito muitas vezes tachado de persecutório pelos adversários) quanto durante o governo Lula (quando a versão de que o PT se caracterizava por padrões de ética na política superiores aos de seus adversários veio a ser substituída, depois de uma sequência de revelações, pela tese de que todos os partidos são obrigados, mais ou menos, a fazer “o mesmo tipo de coisa” para viabilizar-se no poder).

Por vezes, não somente a preferência ideológica dos principais órgãos de comunicação (em sua esmagadora maioria a favor da privatização, por exemplo) cedeu diante do impulso “iconoclasta” da notícia. Também algumas prioridades mais amplas, que se poderia designar pelo rótulo de “interesse público”, tendem a ser deixadas de lado quando determinada verdade factual pode ser invocada para o descrédito de alguma versão oficial. Vale dar um exemplo desse último caso.

Em meados de maio de 2006, mais precisamente nas noites de 14 e 15 de maio, São Paulo viveu uma onda de ataques organizados por uma facção criminosa conhecida pela sigla PCC. As notícias apareceram com grande força, nos jornais e especialmente na televisão, no dia 16 de maio, uma segunda-feira, dia normal de trabalho, mas que se transformou no dia de maior pânico para a população. O governador Claudio Lembo e o comandante da PM, coronel Eliseu Eclair, deram diversas entrevistas durante toda aquela tarde, buscando tranquilizar a população. A intenção de todas as suas declarações era dissolver o clima de pânico, afirmar que a situação já estava sob controle, que o Estado estava recuperando o domínio da situação. Enquanto essas entrevistas eram transmitidas pela TV, a cada intervalo apareciam mais e mais imagens de ônibus incendiados, de agências bancárias destruídas, de rebeliões e mortes em presídios, de todos os estragos e assassinatos causados pelo PCC. O coronel Eclair procurava esclarecer: essas imagens que estão sendo transmitidas não se referem ao que está acontecendo agora; neste momento já vivemos um clima de calma, sem notícias de novos ataques; trata-se de imagens gravadas ontem, anteontem.

No que tinha tudo para parecer uma clara manipulação no sentido de obter audiência, algumas emissoras colocavam o título “ao vivo” sob as imagens de acontecimentos gravados na véspera. No que também pode parecer uma manipulação política, os jornais destacaram declarações das autoridades de que “tudo estava sob controle”, ao lado de estatísticas mostrando a continuação de revoltas numa série de presídios no interior do Estado, e de fotos dramáticas dos tumultos ocorridos.

Era, sem dúvida, do interesse das autoridades, e era também do interesse público – e, podemos dizer ainda, era também do interesse do candidato à presidência da República do PSDB, Geraldo Alckmin, que até há pouco era governador do Estado -, a versão segundo a qual “tudo já estava sob controle.” Versão verdadeira ou falsa? Verdadeira, no que se refere a um ponto essencial: não tinham ocorrido ataques significativos do PCC naquele dia. Era falsa, entretanto, num outro ponto essencial: não se pode dizer que está “sob controle” um Estado em que tumultos daquela dimensão ocorrem da noite para o dia, nem se pode dizer que está “sob controle” um Estado sem nenhuma estratégia clara para lidar com rebeliões periódicas do PCC, e contando, naquele momento, com dezenas de presídios ainda amotinados – embora a todo momento declinasse o número de rebeliões.

O papel da imprensa foi destacar os pronunciamentos das autoridades e – ao mesmo tempo – ostentar fatos que desmentissem esses pronunciamentos. O governador e o comandante da PM, se não estivessem enfraquecidos e atônitos demais, poderiam, se quisessem, dizer que a imprensa “estava fazendo o jogo do PCC”. A própria rede Globo, pensando no “interesse público” e não na verdade dos fatos, preferiu depois de um tempo omitir a sigla, para não dar destaque político ao grupo, referindo-se apenas a “organizações criminosas”. Mas o que cumpre destacar nesse episódio é que predominou não simplesmente um embate entre diferentes versões do que estava acontecendo, mas um embate entre a versão oficial, a formulação oficial da verdade, e a ostentação de fatos que a a boicotavam, que a desmentiam. Claro que, no plano do discurso argumentativo, um editorial poderia dizer, por exemplo, que “nada está sob controle, e as autoridades estaduais se mostram incapazes de atender às responsabilidades que recaem sobre seus ombros neste momento”; ou, inversamente, que “é necessário dar um voto de confiança ao governo estadual, que com equilíbrio recupera o controle da situação”. No plano dos artigos assinados e dos editoriais, um raciocínio mais estratégico, mais cioso do “interesse público”, poderia ser formulado. No plano do noticiário, entretanto, vigoraram as cenas de terror. Podemos atribuir isso à concorrência sensacionalista entre órgãos de TV e da imprensa, ou ao gosto pelo espetáculo, pelo impactante, pelo televisivo, pelo que é capaz de atrair a atenção do público. Tanto ou mais do que “espetáculo”, contudo, estava ali em jogo uma particularidade da linguagem jornalística com relação à linguagem da política: contra determinada versão, trata-se de ostentar fatos. Menos espetacularização do que ostentação, “mostra”, “amostragem” de fatos. Notícia, nesse caso, é o fato que tem a capacidade de se contrapor a determinada versão.

Dessa perspectiva, parece claro que a excessiva atenção a celebridades, a escândalos sexuais e políticos, a números do Ibope ou da Bolsa de Valores, que é inegável na imprensa, ocorre devido ao vazio criado pelas antigas “metanarrativas”; mas isso não esgota o campo das notícias. Essas, entretanto, perdem também o seu antigo caráter de narrativa com começo, meio e fim, antecedentes e consequências, contextualizações e significados históricos, reforçando sua tendência (que sempre existiu, por certo) para assumir um papel mais reativo e instantâneo, na busca de falhas, brechas e deslizes no discurso oficial.

Ao ser exercida dentro desse modelo “reativo”, a função crítica e apartidária do jornalismo, mesmo quando seguida à risca, deixa entretanto lacunas extremamente sérias no que diz respeito à contextualização dos fatos, à lógica das ações individuais e à inteligibilidade dos processos em curso. O jogo mecânico entre a declaração de uma autoridade e o escândalo que a contesta, com direito ao espaço regularmente previsto para que se ouça “o outro lado”, assume na maioria das vezes o aspecto de um fogo cruzado factual, raras vezes organizado de modo a oferecer uma narrativa (por mais partidarizada que fosse) acessível ao leitor. À luz de um sistemático esforço de descrédito, o campo do convencimento político se renova, nas mãos dos marqueteiros, na medida mesma em que esses produzem algum tipo de imagem coerente para consumo do público, recompondo virtuosisticamente, a cada eleição, os cacos que restaram de cada escândalo, de cada catástrofe administrativa.

Novas questões, velhas narrativas

A recomposição que importa fazer, entretanto, é a do debate político republicano. Argumentei, no começo deste ensaio, que o campo da política, da disputa pelo consenso, está tão vivo como sempre esteve, embora girando em torno de outras questões, e em outros âmbitos, que não aqueles presentes no Brasil durante as décadas de 1950 ou 1970.

Dois exemplos podem ser citados, entre vários, no cenário recente brasileiro: se o debate entre projetos de política econômica praticamente se tornou, como diz Francisco de Oliveira, irrelevante, registrou-se em 2005 um debate muito intenso, talvez dos mais intensos de que se tenha tomado conhecimento desde a redemocratização: refiro-me às discussões por ocasião do referendo sobre a comercialização de armas de fogo. Intelectuais das mais diversas tendências se pronunciaram a respeito; uma revista como Veja deixou de lado o aspecto puramente informativo do noticiário para militar claramente em favor do direito da população de possuir armas dentro de casa; a imprensa publicou uma considerável quantidade de artigos sobre o tema, sem contar, o que é outro aspecto a ser mencionado, a furiosa atividade que tomou conta da internet em torno da questão. Mais do que um debate superficial e vazio, o assunto ganhou as conversas do cotidiano, e foi possível notar, ao longo das semanas em que esteve em pauta, um fenômeno relativamente raro na economia das convicções humanas: o da mudança de opiniões, resultado do convencimento, da informação e do diálogo. Ainda que a decisão final, do meu ponto de vista, tenha sido equivocada, parece-me claro que o grau de persuasão íntima com que se votou nesse referendo foi, sem dúvida, maior do que o habitualmente registrado em eleições legislativas.

Outra questão de óbvia dimensão política, em que opções de Estado e diferentes concepções sobre o que é a sociedade brasileira e o que é a igualdade humana estão em jogo, é a que se refere às cotas para descendentes de índios e negros nas universidades. Trata-se de questão política capaz de mobilizar as opiniões mais diversas, de cindir interesses e grupos de forma bastante nítida e mesmo apaixonada.

São questões que a imprensa tem tratado com intensidade, mas que parecem submergir, ainda, no vazio deixado pelo fim das “metanarrativas”. São também questões evidentemente políticas: cotas, armamentos, envolvem concepções de mundo distintas, entendimentos distintos sobre o que deva ser o futuro de uma sociedade, e traduzem­ se em leis específicas a serem seguidas por todos; não é pequeno o número dos cidadãos prontos a considerar tais assuntos como nada irrelevantes.

Um aspecto crucial deve, entretanto, matizar o tom otimista dessas últimas considerações. A disputa republicana pela opinião majoritária, a ser expressa em leis aceitas pelo conjunto da sociedade, depende da capacidade que o poder estatal detenha no sentido de fazê­ las respeitadas. A decisão legislativa, ainda que legítima, tende a ser inócua num ambiente em que predominam as atividades informais, clandestinas e à margem da lei.

O fortalecimento da política depende, nesse sentido, de uma recuperação do próprio poder do Estado e de suas relações com a sociedade. Também nesse campo, propostas alternativas estão em discussão: o discurso da desregulamentação, no plano econômico, tanto quanto o prestígio crescente de atitudes autoritárias, no campo da segurança pública, para citar novamente apenas dois exemplos, exigem respostas políticas concretas, por parte da esquerda, que não se limitem ao pessimismo e à lamentação.

Talvez, ao contrário das famosas “metanarrativas” com que estamos acostumados a tratar, estejam atualmente em jogo questões que se unificam numa visão de mundo geral, do tipo “socialismo” versus “capitalismo”. Embora dentro de cada uma dessas questões continuem a existir posições de esquerda e de direita, as divergências políticas parecem agora criar grupos distintos, conforme divisões de interesses, identidades socioculturais e modos de vida muito mais complexos do que a antiga divisão entre “burguesia” e “proletariado”, ou entre “desenvolvimentistas” e “monetaristas”, ou “nacionalistas” e “entreguistas”. São grupos de opinião mais ou menos móveis, sem enraizamento de classe e, conforme a questão em pauta (ecologia, por exemplo), sequer sem enraizamento territorial definido, que se formam e dissolvem conforme o assunto em debate.

Resta saber se todas as questões que emergem na discussão cotidiana, do aborto às cotas raciais, do aquecimento global aos ataques do PCC, do fanatismo religioso aos direitos autorais na criação artística, não são capazes de se articularem numa nova “metanarrativa” única, que lhes dê um significado comum. Se é que isso é necessário; podemos considerar que essas questões têm uma importância nelas mesmas, que independe de uma totalização. É possível, em todo caso, ver algumas possibilidades de “metanarrativa” por trás de todos esses assuntos. A primeira possibilidade é de se entender cada questão dessas como uma frente na luta contra o imperialismo – o termo é antiquado, mas continua sendo utilizado. Com duas diferenças: ao contrário da concepção marxista clássica, está aqui menos em jogo um sentido da história, a passagem para um outro estado de organização social, e sim uma espécie de imperativo moral: é uma luta contra o imperialismo em diversas frentes, mas curiosamente sem foco central, porque a destruição do capitalismo, o fim da propriedade privada dos meios de produção, não está mais formulado e parece pertencer ao passado. Outra metanarrativa possível, que talvez unifique essas lutas, seria mais antiga ainda: em todos esses campos, trata-se da velha luta entre ciência e fanatismo, entre liberdade individual e tirania, entre desigualdade e igualdade de direitos, entre a barbárie e a razão. Eu diria que essa “metanarrativa” não é das piores que temos no mercado.

Notas

  1. Em Roland Barthes, Crítica e verdade. 3ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2003. 
  2. Ver, nessa mesma coletânea, o ensaio do autor: “Capitalismo e política: um paradoxo letal”. 
  3. Em Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1979. Os números entre parênteses, nas citações seguintes, referem-se às páginas dessa edição. 

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