2017

Fim da guerra clássica: novos estados de violência

por Frédéric Gros

Resumo

Atentados terroristas que atingem o coração das grandes cidades do mundo ocidental, “intervenções” militares de alta tecnologia, massacres praticados nos países dilacerados à beira do Golfo – a guerra hoje mudou de aspecto. Novos personagens também surgiram, como, por exemplo, a criança-soldado, o terrorista, o engenheiro que calcula o trajeto de mísseis teleguiados. As grandes violências coletivas são irredutíveis ao modelo clássico da guerra. Fala-se constantemente de reviravoltas políticas e econômicas resultantes da “mundialização”. Mas pode-se questionar também a profunda mudança dos regimes de violência em nosso mundo “global”. Para dar conta da mutação nesse âmbito, é preciso voltar, num primeiro momento, ao que a civilização ocidental chamou de “guerra”, como forma ética, política e jurídica da violência, como invenção cultural.

A filosofia moral extraiu da guerra muitos exemplos. De Platão a Hegel, a figura do guerreiro deu origem a virtudes éticas, já que o modelo clássico de guerra pressupunha um confronto com o inimigo em que se teria de manter-se firme diante de uma ameaça de morte. Ora, a ética foi definida por muito tempo como a capacidade de afirmar valores superiores à vida simplesmente imanente. A Europa moderna, por outro lado, foi construída, depois do fim da Idade Média e do desaparecimento do sonho do Império, como um espaço político composto por uma pluralidade de Estados soberanos. Cada Estado devia definir seu lugar numa relação de forças permanentemente em movimento. A guerra foi então amplamente definida na filosofia política como uma necessidade, já que era ela que garantiria a unidade e a paz civil internas; a sobrevivência do Estado, enfim. Arcaicamente, como julgamento de Deus, ao separar vencedor e vencido, a guerra ditava o direito. Enfim, os teóricos dos direitos humanos definiram, em nome dos Estados, regras a serem respeitadas em conflitos.

Mas hoje tudo mudou. Se a Guerra Fria favoreceu os conflitos de baixa intensidade, a queda do Muro de Berlim transformou a própria violência. Daí ser quase impossível falar, hoje, de “guerra” para designar as novas formas que não se enquadram mais no conceito clássico. O que é de fato uma guerra quando o comando de mísseis teleguiados é feito desde uma tela de computador? Onde o homem se faz explodir no meio de uma multidão de passantes desarmados? Mais: o que é uma guerra sem exércitos confrontando-se para batalhas decisivas, sem vitória nem derrota, sem começo nem fim, sem separação entre o criminoso e o inimigo, o interior e o exterior?


Nossos encontros situam-se sob o signo das grandes “mutações” contemporâneas. De fato, há várias décadas os progressos tecnológicos e genéticos, a multiplicação dos meios de comunicação, a globalização da economia, a crescente uniformização das referências culturais vêm alterando a face do mundo. Essas gigantescas modificações são, sem dú- vida, aliadas a mutações antropológicas decisivas: a nossa relação com o tempo, com o espaço, com a Natureza, com o mundo e com os outros foi profundamente alterada. No entanto, no decorrer dessas transformações, consta que algo persiste no coração do homem: um núcleo irredutível de violência. Assim, no contexto desses progressos – e vale notar desde já que, apesar de afetarem todos, beneficiam apenas uma minoria – persistem ainda e sempre os mesmos dramas e as mesmas tragédias. Seria a violência em nós essa parte sombria, essa porção selvagem e rebelde em face de qualquer progresso, aquilo que no homem, escapando à história, sempre nela ressurge – sua natureza incontornável, sua trágica finitude? Pois, em todos os tempos e lugares, quando tudo à nossa volta se transforma, permanece o mal que o homem faz ao homem.

Trata-se de uma convicção amplamente compartilhada e que se manifesta espontaneamente por ocasião das notícias – que não são poucas – de mais um ato terrorista, de um novo massacre, de novas matanças ou de mais um genocídio. Os políticos e os editorialistas se apressam em manifestar horror e indignação e em denunciar em uníssono a “barbárie” e, mais uma vez, a “selvageria” desses atos. O bárbaro é aquilo que ressurge da natureza arcaica do homem sob o frágil verniz da cultura. O selvagem é uma bestialidade antinatural, uma alteridade monstruosa por vezes encarnada pelo homem. Assim, a violência é simultaneamente repelida aos confins da humanidade e inscrita em seu núcleo mais inerradicável. Aquilo que no homem seria, ao mesmo tempo, o mais essencial e o mais remoto.

Essas grandes declarações são bem conhecidas. Têm como principal consequência impedir o esforço do pensamento em reconhecer nas violências parte de nossa identidade. Fatalidade antropológica ou monstruosidade antinatural, a violência não teria história. Diante das violências armadas que conseguiram dilacerar o nosso novo século – do drama iugoslavo ao genocídio em Ruanda, da intervenção norte-americana no Iraque aos atos terroristas de nn de Setembro – eu, ao contrário, gostaria de ousar uma pergunta: será possível, no meio desse caos e desse fogo, entre mortes e lágrimas, encontrar o trêmulo traçado do esboço de nossa atual identidade? E se é verdade que vivemos em uma época de mutações, a pergunta então deve ser: que mutações afetam o regime de distribuição das grandes violências contemporâneas? Farei referência, sobretudo, aos grandes conflitos internacionais, mas deve ser exequível seguir a mesma análise no contexto das violências privadas e dos crimes, das guerrilhas urbanas e das repressões policiais.

A história do mundo e dos povos é pontuada pelas guerras: foram elas que fizeram e desfizeram impérios, que traçaram as atuais fronteiras dos Estados. As grandes datas da história política são datas de batalhas, como tantas testemunhas de rupturas: o encerramento de uma época ou o surgimento de uma nova era.

As guerras proveram um certo molde cultural e histórico à violência, uma maneira de regulamentar, entre os povos, a troca da morte. É essa forma que os filósofos, de Maquiavel a Hegel, de Hobbes a Schmitt, problematizaram. Abordarei, portanto, de início, o conceito clássico de guerra elaborado pela filosofia clássica antes de, em um segundo momento, analisar, pautando-me pelas diferenças, as grandes violências ar- madas contemporâneas. Tratar-se-ia, assim, de estudar um processo de mutação no cerne do que, há muito, surgiu como o mais imemorial e o mais a-histórico: o empreendimento de destruição de seu semelhante, urdido pelo homem.

Meu ponto de partida será uma das mais antigas definições de guerra, a que Alberico Gentili dá, em seu tratado De Jure Belli, de 1598. Ele escreve, em uma exposição surpreendente: “a guerra é um conflito armado público e justo”.

Dizer da guerra que é um conflito armado permite, de início, traçar uma linha de distinção entre a guerra e os conflitos de outra natureza: esportivos, jurídicos, econômicos, psicológicos, nos quais o objetivo é obter uma vitória em relação ao adversário e até mesmo aniquilá-lo, mas sem propriamente visar a sua destruição física. Em uma guerra, arrisca-se diretamente a própria vida ameaçando a vida de outrem, pois a guerra põe em confronto dois adversários armados. Arrisca-se a vida diante de um inimigo que também está expondo sua própria vida ao perigo. Esse duplo elemento de exposição à morte, em primeiro lugar, e de reciprocidade do perigo mortal, em segundo, define a identidade conceitual de guerra.

A guerra, em sua determinação clássica, era entendida como o confronto de dois exércitos identificáveis em um campo de batalha. Isso pressupõe a constituição de castas ou de grupos de indivíduos especialmente dedicados ao exercício das armas. Assim, os exércitos eram compostos de combatentes revestidos de armamento específico ou trajando uniformes. Mas esses homens estavam unidos por muito mais do que um simples uniforme. Estruturados por treinamentos e exercícios comuns, amalgamados por experiências ou lembranças de batalhas, eles compartilhavam, como qualquer grupo constituído, um código ético de comportamento. Esse código compreende, entre soldados de um mesmo campo de luta, requisitos substanciais de fraternidade e de socorro. Mas mesmo em relação aos soldados do campo adversário é possível encontrar regras de respeito, como se a destruição do outro só pudesse ser perpetrada segundo princípios estabelecidos (donde a noção jurídica de “crime de guerra”), como se a troca da morte acabasse formando uma comunidade de violência com seus ritos de reconhecimentos.

Esses elementos gerais são bem conhecidos. Gostaria de realçar agora que a guerra, estruturada segundo tal dispositivo, representou um reduto de experiência, longa e amplamente usado pela filosofia (pelo menos até o surgimento das armas nucleares) para fomentar sua filosofia moral. Darei apenas alguns exemplos.

Nietzsche, que parece se inspirar especialmente no modelo mítico de cavalaria, vê no combate o elemento decisivo de autoconstrução ética. Encontramos nesse filósofo a ideia de que é na luta e na resistência que cada indivíduo se constitui e se afirma. Afirmar-se não é desenvolver a própria identidade ou realizar-se, mas ganhar uma singular consistência através de provas, superar-se, em contraposição a acomodar-se em uma identidade dada. E, para tal, é preciso encontrar um inimigo digno e disposto a travar um combate leal que proporcionará a ambos uma oportunidade de crescimento. É uma ética da energia heroica.

A coragem, por outro lado, desde Platão, faz parte das virtudes cardeais, assim como a justiça, a temperança e a sabedoria. Ora, a valorização da coragem na cultura filosófica se compreende a partir da primeira grande revolução militar do Ocidente, e me refiro à invenção do sistema hoplítico, ele próprio fortemente ligado à instituição da cidadania. Essa revolução militar enfatizava o sentido de coesão e de disciplina, pois con- sistia em contrapor ao inimigo fileiras ordenadas de soldados de infantaria em cerrada formação, avançando a passos coordenados, cada qual protegendo com o escudo a parte esquerda do corpo do vizinho e pronto para tomar o lugar do companheiro da frente, caso este viesse a tombar sob os ataques do inimigo. Não era mais o caso de enobrecer-se pelo combate singular, mas de manter o seu posto com firmeza máxima. Daí essa nova definição de coragem que a filosofia irá retomar, não mais como ardor, mas como constância.

A terceira grande virtude, que possibilita a distinção imediata na experiência da guerra: o senso do sacrifício. Desde a batalha de Maratona, no século v a.C., até o desembarque na Normandia de 1944, vemos incessantemente exaltada essa capacidade do soldado de morrer por sua pátria, pela liberdade ou por ideais políticos. É assim que Hegel, na Filosofia do Direito, não hesita em proclamar a superioridade ética das guerras: ao aceitar expor sua vida pela pátria, o cidadão aprende a ultrapassar a consideração por seus interesses privados, elevando-se à consideração pelo interesse geral. É como se a autêntica razão de viver sempre fosse, simultaneamente, uma razão para morrer.

Poderíamos ainda evocar, como quarta grande virtude marcial, a obediência. No despertar da era moderna, Maquiavel, em sua Arte da guerra, de 1521, impregnado pela gloriosa lembrança da legião romana, ou ainda Charron, em seu Pequeno tratado da sabedoria, em 1601, insistiram no valor ético da condição militar, na medida em que o soldado, na vida militar, realiza o seu aprendizado de obediência ao superior, com tudo o que ela pode representar de autoanulação. Essa obediência militar faz eco, em sua dimensão de completa abnegação, à obediência exigida na cultura monástica cristã. A grande reviravolta na história da moral foi constituída, sem dúvida, por essa passagem de uma ética antiga da construção positiva e da autoafirmação imanente para uma moral moderna da obediência à lei. Para problematizar e proclamar essa nova moral fundamentada na obediência e na autorrenúncia, a referência à obediência militar, cega e total, foi capital.

Ao lembrar a importância da experiência da guerra para a filosofia ocidental, evidentemente, isto não significa, no meu caso, fazer a sua apologia e denunciar, no estado de paz, o elemento de incúria moral. Seria, aliás, extraordinariamente paradoxal defender a guerra em nome da moral e da ética. Portanto, deve-se ter sempre em mente que a guerra, ao longo dos anos, constituiu um empreendimento destruidor que arruinou civilizações inteiras e fomentou paixões nefastas, como o ódio e o furor de destruição. Os grandes confrontos travados entre os exércitos foram, com frequência, verdadeiras carnificinas, por vezes seguidas de pilhagens ou massacres das populações civis. Ademais, quando a filosofia moral descreve e exalta virtudes, cuja realização ela identifica na guerra, ela o faz considerando apenas um nível de realidade, ou seja, a experiência subjetiva daquele que luta. De fato, encontramos no conflito armado uma intensidade de coragem, de sacrifício, de obediência e de superação de si sem dúvida mais ostensiva do que na experiência civil. Porém, esta força ética do soldado que arrisca sua vida pode coincidir, por parte dos líderes políticos ou dos generais, com motivações totalmente sórdidas e interesseiras. Vale lembrar, nesse momento, a famosa máxima de Vauvenargues: “o vício fomenta as guerras, a virtude luta nas guerras”. Tento apenas encontrar a resposta para um enigma: como explicar que a guerra, apesar de sua evidente negatividade destrutiva, tenha podido estimular a tal ponto a filosofia moral? Bem, creio que foi a partir destes dois elementos: a exposição deliberada da vida e a reciprocidade na troca da morte. Deveríamos nos perguntar se, nas novas formas de violência, esses dois elementos subsistem.

Alberico Gentili definia a guerra como um conflito “público”. Essa segunda caracterização é importante e permeia uma parte considerável da filosofia ocidental. São Tomás define em sua Suma teológica a ideia da guerra como um conflito conduzido por uma autoridade política legíti- ma. Rousseau escreveu em O contrato social que “a guerra é uma relação entre Estados”. Carl Schmitt, por fim, define o político a partir da relação amigo/inimigo. Essa caracterização da guerra como um “conflito público” é essencial. Permite, de fato, distinguir, por um lado, as figuras do inimigo exterior e do criminoso interior, mas também reservar ao Estado o monopólio das grandes violências coletivas. Em realidade, trata-se de proibir toda e qualquer forma de rixa privada no interior de um Estado e, ao mesmo tempo, legitimar a priori qualquer engajamento militar no exterior. O Estado se define, desde sua fundação, por um dever absoluto de paz civil em seu interior e um direito de guerra ilimitado no exterior. O Estado, em sua definição clássica, deve realmente assegurar aos seus sujeitos a mais plena segurança no espaço público. Porém, em suas fronteiras e no que diz respeito aos seus vizinhos, não lhe cabe nenhum dever de paz absoluta. Pois o que vigora entre os Estados é uma situação de guerra permanente em meio à qual a paz, dessa vez entendida como paz exterior e não mais a paz civil, se reduz a um tratado provisório e precário. A própria guerra adquire, também, dois sentidos: em primeiro lugar, é a guerra no seu sentido fundamental de um “estado de guerra”. Trata-se, portanto, de uma possibilidade permanente e estrutural que rege indefinidamente a relação entre os Estados. No sentido mais estrito, a guerra pode ser também compreendida como um conflito efetivo que opõe, em determinado momento, duas potências e cujo desfecho será decidido nas batalhas e o término, na assinatura oficial de um tratado.

O Estado soberano, na definição europeia, nasce da experiência, por um lado, das guerras religiosas e, por outro, do desaparecimento do sonho medieval da formação de um Império cristão unificado. O projeto político consistia em formar unidades políticas autônomas, entidades centralizadas, homogêneas, impondo a um povo as mesmas leis em todo um determinado território. É nesse contexto que a guerra adquire seu sentido clássico. Na Antiguidade, os filósofos gregos atribuíam à guerra uma explicação psicológica: ambição, desejo de glória, cobiça. No fundo, considerava-se que uma cidade entrava em guerra porque ela despertava a cobiça ou a inveja de seus vizinhos. Na filosofia política moderna não é nos anseios das paixões que a guerra se fundamenta, pois é a própria substância política dos Estados que a reivindica. A guerra é, então, definida como o que confere ao Estado soberano sua consistência. A construção teórica desta síntese entre guerra e Estado compreende várias versões. Pode ser o conceito de estado de natureza ou da lei natural: comparamos, assim, as relações entre Estados com as que vigoram entre predadores, em que cada qual espreita o menor sinal de fraqueza do outro para atacá-lo. Os Estados se comportariam entre si de modo semelhante às feras selvagens que só conhecem a força e a astúcia e entre os quais as convenções e os acordos não têm nenhum valor. Ou, então, comparamos uma Nação a um animal gigantesco que, para crescer e se desenvolver, tem necessidade de conquistar a fim de expandir o seu espaço vital. Essa necessidade de guerra também pode ser depreendida de um princípio de equilíbrio político. O Estado, em sua definição clássica, se apresenta essencialmente como uma unidade instável, e a guerra é entendida, então, como o que permite a estabilização do Estado. Ela o estabiliza em diversos sentidos: por um lado, permite uma purificação das violências internas. De fato, a guerra oferece, segundo Bodin em sua República, para toda uma parcela da população indigente e violenta, um poderoso derivativo: a cidade, mediante a guerra, fica livre dos elementos mais agitados para os quais esta se torna um instrumento que lhes permite canalizar sua cólera social. Além de se livrar dos cidadãos mais perturbadores, o Estado encontra na guerra um princípio de congregação. Quero dizer, então, que o ódio ao inimigo comum é suficiente para cerrar fileiras e atenuar antigas divisões. A guerra, ao suscitar um inimigo exterior, permite, na realidade, que sejam esquecidas as diferenças entre ricos e pobres, entre dirigentes e dirigidos. Ela constrói, sobrepondo-se às divisões sociais, uma unidade em torno do ódio.

Podemos demonstrar, por fim, que o medo do inimigo e a ameaça de uma invasão estrangeira conferem mais legitimidade à autoridade do Estado e promovem a obediência entre os cidadãos. É assim que identificamos um terceiro sentido de “guerra” em Hobbes, que é o da “guerra primitiva” ou da guerra de todos contra todos, algo como uma anarquia primordial que teria precedido o estado social. O Estado soberano se inventa no Ocidente moderno como uma conjuração contra essa violência primitiva. Encontramos, portanto, em Hobbes a ideia de que os indivíduos, para escaparem dessa guerra destrutiva de todos contra todos, instituíram o Estado e abriram mão, em nome deste, de seu direito natural, sob a condição de receber proteção. O sujeito político moderno paga, então, por sua segurança, o preço da obediência. Compromete-se a obedecer à autoridade política para não recair nesta famosa “guerra primitiva” cuja dura realidade ele pode constatar observando as relações internacionais. Assim, o estado de guerra permanente entre os Estados soberanos permite reviver, secretamente, em cada indivíduo, esse medo de morrer que seria a chave da nossa obediência política.

Entretanto, a guerra não é apenas o que permite ao Estado aumentar o seu domínio ou manter o seu poder. Além disso, é ela que lhe permite projetar a sua força. Trata-se do famoso princípio do “equilíbrio europeu” que encontramos nas obras de Hume ou Leibniz. A diplomacia, mediante um jogo de alianças, e a guerra, através da redefinição das fronteiras, são, então, definidas como o que permite reajustar o equilíbrio entre as potências e harmonizar o conjunto das nações. Ou, simplesmente, a guerra, mediante o posicionamento dos exércitos, constitui uma demonstração de força que deve servir de exemplo aos demais.

Quer seja para aumentar seu domínio, consolidar seu poder ou demonstrar força, o Estado soberano encontra na guerra um vetor de afirmação. E vale sempre lembrar que nos textos de filosofia política a guerra e a paz não se opõem, uma vez que é a situação permanente de guerra entre os Estados que permite a cada um deles construir a paz interior.

Assinalo, mais uma vez, que não é minha intenção fazer apologia da guerra em termos de seus efeitos políticos. Quero apenas lembrar como os filósofos clássicos se empenharam para depreender a necessidade da guerra da própria definição do Estado soberano. Entretanto, o progresso das técnicas de destruição foi tal que a guerra acabou se tornando, para os Estados, um elemento de ruína, e para a humanidade inteira, um risco de extinção. Foi assim que, depois das experiências das guerras mundiais, as grandes potências aceitaram, oficialmente e nas declarações de princípio que só comprometem aqueles que nelas creem, decretar a ilegitimidade das guerras de agressão. É a história das organizações internacionais, da Liga das Nações à ONU.

A guerra, enfim, escreveu Gentili, é um “conflito justo”. Essa ideia da guerra justa, muito antiga na cultura ocidental, deve ser precisada, pois ela compreende três determinações muito diferentes.

De início, trata-se simplesmente de retomar um tema arcaico que compara sistematicamente a guerra a um processo: a batalha estabelece uma divisão entre o vencedor e o vencido com a precisão de uma decisão judicial. A guerra é justa, então, já que, ao designar um vencedor, ela fundamenta seu direito. Pois os deuses, ao fazerem pender para um lado a balança das forças, deram a conhecer a sua preferência. A guerra é justa no sentido em que ela é fonte de legitimidade para um vencedor.

O segundo sentido da guerra justa depende, por sua vez, de grandes construções teológicas, que vão de Santo Agostinho a Francisco de Vitória. Trata-se do sentido mais conhecido. O intuito dos teólogos era o de, com base no pacifismo evangélico, desqualificar todas as guerras travadas que tinham como único motivo a busca da glória ou a cobiça, só autorizando aquelas que visassem reparar uma injustiça ou punir culpados. As condições para travar uma guerra justa eram extremamente restritivas segundo esses teólogos. Poderiam compreender, além da causa justa, um princípio de proporcionalidade (é preciso que a gravidade da falta cometida seja proporcional ao esforço de guerra empreendido), um princípio de último recurso (é preciso que todas as outras possibilidades tenham sido esgotadas) e, às vezes, para alguns, era preciso até ter certeza da vitória. Entretanto, devemos lembrar que, em geral, esses autores faziam distinção entre guerras “justas” e guerras “santas”, sendo que a diferença religiosa não era vista como uma causa justa de guerra. Foi em outras bases doutrinárias que o empreendimento das cruzadas na Terra Santa foi fundamentado. Resta, desses inúmeros discursos teológicos sobre a guerra justa, uma definição da guerra como a busca, entre Estados, de seu direito mediante a força, na ausência de uma jurisdição superior.

O terceiro sentido de “guerra justa” foi definido, dessa vez, pelos juristas do “direito das pessoas” (direito internacional). A estrutura dou- trinal da guerra de causa justa tinha, de fato, esse grande defeito para os juristas, que era o de introduzir entre os beligerantes uma desigualdade moral. No contexto da guerra de causa justa sempre existem um bom e um mau, um justo e um culpado, um defensor do direito e um transgressor. Ora, essa assimetria entrava em contradição com o dogma jurídico da igualdade perfeita entre Estados soberanos e com o tema de que cada Estado soberano tem o monopólio da definição da justiça, não podendo receber lições de justiça de ninguém. A guerra justa muda de sentido com os juristas, significando o respeito, por parte de cada beligerante, pelas regras do direito, como por exemplo: a declaração de guerra, o respeito às tréguas, o respeito ao corpo diplomático, às vezes também a interdição de matar o inimigo desarmado, a obrigação de tratar bem os prisioneiros ou a proteção às populações civis. A justiça da guerra não depende da defesa de uma boa causa, mas do estrito respeito mútuo às regras estabelecidas e reconhecidas entre Estados civilizados. É assim que um teórico do direito internacional como Vattel poderá formar o conceito de uma “guerra justa de ambos os lados”.

Em um primeiro momento, apresentei essa configuração histórica da violência que, em nossa cultura, assumiu o nome de “guerra”. Não foi propriamente uma descrição histórica da guerra, mas um relato de sua problematização pela filosofia ocidental. O dispositivo da guerra, concebida como confronto regido por regras entre dois exércitos constituídos representando unidades políticas, permitiu, assim, defini-la como um conflito estruturado por uma tensão ética do lado dos que combatem; interesses políticos do lado daqueles que a decidem; e um plano jurídico em termos de sua realização.

Fica, aliás, evidente que após a formação das falanges gregas antigas, após o surgimento das primeiras armas de fogo no início da era moderna, e após a constituição dos exércitos cidadãos durante a Revolução Francesa, supondo uma mobilização geral, a arma nuclear terá representado na história a quarta grande revolução militar. A posse, por várias grandes potências, de poderio nuclear tornou o confronto entre elas praticamente impossível. Finalmente foi obtida a paz entre as grandes potências, embora a preço da ameaça de um apocalipse universal, materializada por uma corrida armamentista cada vez mais desenfreada. Essa ameaça, como sabemos, se fez acompanhar durante toda a Guerra Fria por uma proliferação de conflitos de baixa intensidade, através dos quais os blocos americano e soviético continuaram a medir forças, mas em tom menor e sem confronto direto. Posteriormente, a queda do Muro de Berlim em 1989 fez renascer, por um momento, o sonho de uma paz mundial em um contexto de cooperação internacional e de propagação do modelo democrático liberal.

Nem por isso cessaram as grandes violências coletivas, embora tenham mudado singularmente de forma. A filosofia clássica de Platão a Schmitt, de Spinoza a Hegel, problematizou a guerra a partir de uma distribuição historicamente determinada da violência. O desafio que a filosofia contemporânea enfrenta seria de problematizar essa distribuição de violência que se deixa entrever nos atos terroristas, nas guerrilhas urba- nas, nas intervenções de grandes potências respaldadas por tecnologias de destruição altamente sofisticadas, nas violências endêmicas entre bandos armados de Estados desestruturados.

Se apontássemos o equivalente, nas últimas décadas, às grandes batalhas do passado que estudamos na escola, citaríamos, sem dúvida, sem seguir aqui nenhuma ordem em particular: o genocídio em Ruanda, em 1994; o massacre em Srebrenica, em 1995; a intervenção das forças da Otan em Kosovo, em 1999; a destruição das torres do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001; assim como os atentados em Madri e em Londres, em 2004.

Não que as guerras clássicas tenham cessado totalmente (devemos lembrar da guerra Irã-Iraque, que durou de 1980 a 1988), mas já não constituem a forma predominante de grandes conflitos armados. Razão pela qual proponho distinguir a “guerra”, tal como a filosofia a definiu, do que poderíamos chamar de “estados de violência” contemporâneos, irredutíveis ao modelo da guerra. Mas, aqui, temos de retomar uma or- dem. O elemento ético da guerra sempre foi o mais frágil, pois se nutriu essencialmente de imagens e discursos: o mito do combate leal entre bravos cavaleiros ou o ideal do soldado morto pela pátria, exaltado em ritos fúnebres. Apesar do surgimento das armas de fogo, cujo alcance era cada vez maior, distanciando um pouco mais o momento do choque, e dos progressos da aviação, o elemento ético sobreviveu enquanto subsistia certa reciprocidade na troca de mortes regulada entre dois exércitos constituídos. Hoje, é preciso constatar que os conflitos contemporâneos são amplamente marcados pelo selo da unilateralidade, o que significa, sobretudo, que são as populações civis e desarmadas as mais afetadas, sendo os militares, muitas vezes, os mais protegidos.

Essa negação da reciprocidade é inicialmente encontrada em um certo número de operações militares por parte das grandes potências. Sabemos que, antes de engajar suas tropas em terra, as potências frequentemente realizam pesados e continuados bombardeios, com o objetivo de paralisar o país atacado. Essa estratégia da destruição pelo céu não apresenta nenhum perigo especial para os engenheiros ou pilotos. Exige apenas grande competência técnica para o cálculo das trajetórias dos mísseis e avaliação do impacto das bombas. Por ocasião da intervenção em Kosovo, Bill Clinton havia lançado uma nova doutrina, a da “guerra zero mortos”. Sabemos que não foi nada disso o que aconteceu e que civis inocentes morreram nos bombardeios. É verdade que a intenção era, sobretudo, de não haver baixas nas tropas americanas. Mas é preciso dizer, também, que alvos civis, como mercados e hospitais, nunca foram diretamente visados e que a destruição destes pode ter sido resultado de um erro de cálculo (era a estes que se referiam quando falavam em “efeitos colaterais”). O domínio técnico das potências de destruição, na realidade, permitia esperar uma vitória obtida pela total paralisia dos meios de comunicação, do suprimento de energia e da destruição de alvos como arsenais ou veículos militares. Era preciso obter a rendição do inimigo, não por seu aniquilamento, mas impossibilitando deslocamentos, comunicações, e destruindo toda a sua capacidade militar. Esses conflitos de um novo tipo, que seriam vencidos a partir de uma tela de computador, pertencem ainda em grande parte a uma utopia, pois a tática dos bom- bardeios pesados prepara e facilita a luta em terra, mas não a substitui, e as populações civis continuam pagando um alto preço.

A segunda ilustração desse princípio de unilateralidade é, evidentemente, o ato terrorista. Em atos terroristas, como os cometidos em Nova York, Madri ou Londres, trata-se explicitamente de atingir civis, e até mesmo civis surpreendidos em suas ocupações cotidianas: indo trabalhar, a caminho de um compromisso, tomando um trem, trabalhando no escritório. O massacre de civis já não é, como no caso dos bombardeios, um simples efeito secundário, é o alvo explícito. No ato terrorista, o princípio de unilateralidade se manifesta em seu estágio máximo, pois se trata expressamente de matar pessoas que fundamentalmente não estão naqueles locais, seja uma estação de trem, metrô ou escritório, para morrer. Poder-se-ia dizer, no entanto, que há ainda aí uma dimensão de sacrifício, portanto, um elemento ético no terrorismo camicase, por também configurar uma exposição à morte. Só que, em vez de dar a pró- pria vida, o terrorista multiplica a própria morte: seria, talvez, não tanto ofertar o próprio corpo, mas, sobretudo, transformá-lo em uma terrível máquina da morte.

Darei como último exemplo o caso de alguns países da África, como também do Cáucaso, vítimas de infindáveis convulsões. São situações de caos, em que bandos armados, de opções políticas indefinidas, vagos interesses ideológicos e alianças reversíveis e contraditórias, enfrentam-se basicamente, ao que parece, pelo controle de áreas com riquezas energéticas ou minerais. Esses bandos são comandados por senhores de guerra que não hesitam em recrutar crianças e aterrorizar as populações. É forçoso constatar que são principalmente as populações civis que sofrem com essas lutas incessantes, vítimas de chantagens atrozes de uns e de outros, espoliadas, massacradas, pilhadas, mutiladas, são elas as primeiras a sofrer. Por meio desses três exemplos, entende-se o quanto o princípio da unilateralidade está presente nesses novos dispositivos de violência. Enquanto a guerra clássica opunha dois adversários armados, ambos prontos a morrer e a matar, os estados de violência opõem, na maioria das vezes, agentes de destruição, eles próprios bem protegidos, contra populações civis desarmadas e desmunicionadas.

Acrescentarei uma última razão, mais geral, para demonstrar o esvanecimento do elemento ético. Devemos, de fato, lembrar que por muito tempo a ética se construiu como “estética da existência”, retomando a expressão cara a Michel Foucault. Significa que o esforço ético consistia em dar forma à própria existência, em considerar a própria vida um material a ser trabalhado. Mas, no âmbito dessa estética, tratava-se também de dar forma à própria morte, e por muito tempo foi colocado o problema do bem morrer. Ora, a guerra oferecia a esse bem morrer um esquema cultural poderoso, ao propor uma forma de morte socialmente valorizada. Ao longo dos séculos, no entanto, nossas civilizações ocidentais cada vez mais mascararam e rejeitaram a morte, construindo uma tal ética da realização vital que o projeto ético do “bem morrer”, sob qualquer forma, foi lentamente desaparecendo.

Parece-me, em segundo lugar, que a guerra como vetor de afirmação de um Estado soberano também tende a desaparecer, mesmo que a posse de armas nucleares, por um lado, e a escassez de recursos energéticos, por outro, prometam ainda belos dias ao realismo político no sentido de Maquiavel ou de Hobbes. No dispositivo clássico, o Estado soberano construía seu poder segundo um duplo processo de acumulação e proteção. A guerra, então, servia ao Estado para que este se expandisse por meio de conquistas, ou, ao contrário, para assegurar a sua integridade territorial, fortalecendo suas fronteiras. O processo acelerado de globalização, como sabemos, desencadeou uma intensificação dos fluxos transnacionais: multiplicação do intercâmbio de mercadorias, mas também a circulação acelerada e contínua de pessoas, informações e imagens. Todos constatam a crescente importância dos atores transnacionais: máfias, ONGs, multinacionais… Essas novas lógicas levaram a uma nova definição de potência, como capacidade de gerar e controlar os fluxos. Ora, a violência pode sempre ser entendida como um acelerador de potência. O antigo princípio de conservação e acumulação impunha, então, uma declinação das violências em termos de guerras e de paz. E é segundo uma lógica de segurança e intervenção que se estruturam os atuais estados de intervenção. A principal garantia de paz consistia, no passado, na estanquidade das fronteiras, uma vez identificado um inimigo exterior. Os processos de segurança funcionam de outra forma: eles se dotam de meios para controlar os indivíduos durante todos os seus deslocamentos, fazendo assim surgir uma multidão de potenciais suspeitos, em lugar dos antigos inimigos. A segurança como processo generalizado de controle de fluxos de indivíduos e riquezas tende, assim, a substituir cada vez mais a paz entendida como uma proteção estática dos bens e das pessoas no interior de um território. De outro lado, o emprego das forças armadas contra um Estado soberano permite, hoje, a designação de “intervenção” em vez de guerra. Por isso falamos da intervenção americana no Iraque. As potência ocidentais não fazem mais a guerra, elas “intervêm”.

Esta mudança de terminologia é capital. Ela revela não apenas a hipocrisia diplomática mas também traduz bem um desvio em relação à cultura clássica da guerra. O emprego sistemático deste termo “intervenção” é mais marcante ainda quando pensamos que durante muito tempo esse vocábulo serviu essencialmente para desqualificar uma operação de guerra: falar em intervenção segundo o antigo léxico do direito internacional era denunciar uma ingerência abusiva e um insulto ao princípio de soberania dos Estados. Ora, é esse o termo prevalente, hoje, para qualificar o emprego de forças armadas em frontes externas, como se a violação do princípio de soberania representada pela intervenção nada significasse diante de uma dimensão mais fundamental, que seria a restauração ou o retorno do equilíbrio global dos fluxos. Isso porque o termo “intervenção” remete primeiramente a um vocabulário técnico (intervir para reparar uma máquina), médico (intervir para curar os feridos) ou policial (intervir para restabelecer a ordem pública). A intervenção recompõe o intercâmbio de fluxos, restaura os equilíbrios vitais e restabelece uma ordem dinâmica. Se o emprego das forças armadas pelas grandes potên- cias ocidentais se apresenta, atualmente, como “intervenção”, é porque postulamos que o engajamento dos meios de destruição contra um outro país é, no fundo, da mesma natureza que uma assistência médica, um reparo técnico ou uma operação policial. Igualmente, o atual conceito da ONU de “segurança humana” coloca no mesmo plano os problemas do terrorismo e da mudança climática, do genocídio e da pobreza, da guerrilha urbana e da epidemia. O campo cultural próprio à guerra (os exércitos inimigos constituídos e hierarquizados, representando nações ou príncipes, a batalha decisiva que decide a vitória ou a derrota) cede, portanto, lentamente, espaço a outros esquemas culturais: os suspeitos são detidos, interrompem-se os tráfegos, os fluxos de intercâmbio são restabelecidos e os soldados enviados em missões humanitárias.

O último grande princípio que atua nos estados de violência é o de mediatização. Gostaria de ressaltar, por meio deste princípio, a importância conferida à informação e, sobretudo, à imagem. A guerra vista como “conflito justo” obtinha legitimidade pela causa justa ou pelo respeito às regras da guerra, configurando-se nas narrativas. As novas violências encontram uma nova fonte de legitimidade na imagem, particularmente na imagem televisiva. Os americanos, lembramo-nos bem, tiveram uma amarga experiência durante a guerra no Vietnã devido à desastrosa repercussão de certas imagens junto à opinião pública. Mas aprenderam a lição, e certamente nos lembramos dos cuidados que cercaram a apresentação de imagens na primeira intervenção no Iraque.

Por outro lado, não podemos deixar de levar em conta os efeitos deliberados da representação mediática do atentado de nn de setembro de 200n em Nova York. Os estados de violência descobrem nas imagens não apenas um elemento de estruturação e uma fonte de legitimidade, mas também um instrumento de transmissão. O problema não reside tanto em promover uma causa justa para a guerra, mas em passar uma boa ima- gem do engajamento armado. Poderíamos, por exemplo, observar que é muito mais a repetição de imagens de atentados no Iraque, o espetáculo dos corpos mutilados e das famílias em lágrimas, que desqualificam hoje a intervenção americana, do que a mentira ou a impostura em relação à causa justa que havia sido apresentada como motivo para a decisão da ação militar, ou seja, a presença de armas de destruição em massa em solo iraquiano e as conexões entre o regime e o terrorismo islâmico. A imagem, de fato, é capaz de desencadear imediatamente um escândalo, ela sensibiliza a opinião pública e pode, às vezes, desmentir flagrantemente os discursos oficiais. Ao mesmo tempo, porém, ela fascina e paralisa a cons- ciência crítica, pois privilegia o registro da emoção e da compaixão. É por meio da imagem que se decide e se constrói o sentido dos estados de vio- lência contemporâneos. Vale lembrarmo-nos de que as grandes greves do outono de 2005 na França tiveram na mediação televisiva um elemento de propulsão ilimitado, pois cada bairro tentava se sair melhor do que o bairro vizinho, de modo a oferecer um espetáculo de violência que merecesse a honra de figurar no noticiário da Tv. Sabemos, por outro lado, que as câmeras dos telefones celulares deram margem, entre os adolescentes, a um novo estilo de agressão, que consiste em atacar e agredir para filmar a cena e poder dizer, “esse aqui sou eu”. Já faz tempo que o ideólogo McLuhan escreveu: “A guerra na televisão significa o fim da dicotomia entre o civil e o militar”. A violência na imagem e pela imagem rompe com as antigas divisões entre o inimigo e o criminoso, entre o soldado e o assassino, entre o interior e o exterior, já que, em qualquer lugar, os rostos banhados em lágrimas e olhos repletos de ódio são os mesmos. A violência, na imagem, fica ela própria fascinada, no terror, na emoção e na vertigem.

As novas grandes violências parecem se estruturar segundo estes três grandes princípios: unilateralidade, seguridade, mediatização. Longe de exprimir um retorno a uma natureza selvagem ou o perpétuo voltear de um mal metafísico, essas violências manifestam as grandes linhas de força de nossa identidade contemporânea.

Primeiramente, o princípio da unilateralidade opõe forças puras de destruição a populações civis desarmadas. Esta linha de abismo reproduz outra, sempre mais forte e transnacional, traçada entre a minoria dos bem aquinhoados e uma grande maioria dos excluídos. Pois hoje, mais do que as identidades simbólicas ou as comunidades éticas, o que aproxima ou afasta são as capacidades técnicas. Assim, os estados de violência trazem à tona novas fronteiras que residem no âmago do mundo contemporâneo. Por outro lado, o princípio de seguridade dos fluxos testemunha a obsessão contemporânea com o movimento e o consumo. Atualmente, medimos nossa importância social em termos de nossa capacidade de gerar movimento: quantas transações bancárias, quantos carros ou aparelhos novos, quantas comunicações foram recebidos ou enviados. Não é mais no entesouramento, mas na gestão dos fluxos que a potência é medida. Enfim, é quase inútil insistir sobre a importância da imagem em nossas sociedades contemporâneas, imagens também submetidas a um fluxo contínuo. Pois é por via de tais imagens que se decide a realidade do mundo: o que existe, o que é verdade, o que é real, é ao que assistimos na Tv. São elas ainda que subsidiam os comportamentos: só existimos aos olhos dos outros na medida em que tentamos nos parecer com as imagens dominantes.

É dessa forma que os atos terroristas, as grandes guerrilhas urbanas, as intervenções da alta tecnologia destrutiva, como os massacres cegos, dão testemunhos de nossa identidade contemporânea. Se essas violências remetessem a uma natureza selvagem ou a um mal metafísico, poderíamos ser inocentados. Mas, na realidade, elas fazem parte da mesma trama que nossos hábitos e nossos desejos. Ostentam, irremediavelmente, a marca de nossa época, testemunham essas formidáveis mutações, elas se parecem conosco, elas são o nosso espelho.

Tradução de Ana Maria Lyra

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