2005

Importação e assimilação: rock, soul, discotheque

por Ana Maria Bahiana

Resumo

Na década de 70, dois movimentos de importação-consumo-diluição deixaram marcas na música brasileira, em níveis bem diferentes. Primeiro, o rock e, num momento posterior, a soul music e a música de discotheque.

O rock consumido, copiado, assimilado e praticado no Brasil nos anos 70 – com força e contorno definidos nos primeiros anos do período, até 1975/76 – vem diretamente da matriz, da fonte exportadora. E, se vende poucas unidades fonográficas, consegue impressionar de tal forma uma geração de músicos e compositores que acaba permanecendo, mesmo quando suas formas externas mais evidentes já se dissolveram.

É preciso distinguir duas etapas do processo. Numa, a mais aparente, há o que se chamou de “movimento rock” no Brasil, ou a tentativa de um “rock brasileiro”. Não era apenas a música – era a carga com que ela era vestida, as possibilidades de ruptura e restauração que ela anunciava. Na esteira do rock, os cabelos crescem, os contornos de uma “cultura marginal”, “subterrânea”, aparecem. Os grupos que proliferam às dezenas dentro desse formato de adesão fiel ao modelo rock, importado principalmente dos Estados Unidos da América – falam dessa assimilação na postura existencial.

Numa segunda etapa do processo de assimilação nos anos 70, compositores e músicos reconhecidamente influenciados pelas formas musicais importadas, procuram digeri-las, entendê-las, e não apenas cultuá-las. Daí surge um esforço de síntese, que acabará formando um dos veios principais de toda a música brasileira na década. À medida que o público se cansa de consumir a cópia pálida e passa a preferir a criação original de outro tipo de compositores, e à medida que se desgasta o apelo do rock como forma alternativa de viver e ver o mundo, os grupos vão se extinguindo e o “movimento rock”se esvaziando.

Enquanto o rock perdia o encanto no Brasil, novas formas de música passaram a ser exportadas para os mercados periféricos da indústria de discos centrada nos Estados Unidos. O produto opcional mais importante que surgiu para dividir o mercado de música de massa, na América e fora dela, foi a música de origem negra: a discotheque, a funky music.

Na segunda metade dos anos 60 e primeiros anos 70, na América, enquanto o mercado jovem e branco de rock se expandia e se tomava cada vez mais branco, a música negra — soul music em suas diversas variantes — recuou novamente, como já havia feito nos anos 50, para seus consumidores habituais na comunidade negra. Mais adiante, com o esgotamento progressivo das fórmulas brancas de fazer música, a música negra ressurge no cenário fonográfico. Assim, a partir de meados dos anos 70, duas linhas de produção emergem na América: uma mantém-se mais fiel aos padrões de gosto das populações jovens e negras das cidades, é a mais nova vestimenta da soul music,a funky music; outra aproveita apenas os padrões rítmicos, o pulso dançante, e dilui em formas mais comedidas e apropriadas para consumo em larga escala — é a discotheque.

As duas formas abrigam-se sem esforço, ao lado do rock, no vasto mercado americano. Mas, uma vez exportadas, assumem contornos novos, de modismo substitutivo. Para a nova camada emergente de jovens brasileiros, brancos, de classe média, a discotheque apresenta-se como a “nova moda”. Para as populações jovens e negras dos grandes centros brasileiros — principalmente São Paulo e Rio — a soul music com suas variantes apresenta-se como uma opção digna diante do interesse cada vez maior da classe média branca por sua produção usual, o samba. Como o rock fizera nos primeiros anos da década, a soul music vai acenar aos jovens negros como uma alternativa viável de busca de identidade, reação, resistência, contestação aos padrões vigentes, dentro e fora da comunidade negra.

Com uma indústria fonográfica mais articulada em termos de marketing, as duas novas formas importadas — soul e discotheque — tornaram-se alvo de maciças produções. Curiosamente, o rastro que ambas deixaram no modo de fazer música no Brasil, nesta década, foi muito menor que o do rock, menos favorecido pelas companhias de disco.


A notável expansão da indústria internacional do disco fez do Brasil – assim como de outros mercados, como a Europa, o Japão e a Austrália – uma praça importante para o consumo de padrões musicais produzidos no exterior, principalmente nos Estados Unidos. Na década de 70, dois movimentos de importação-consumo-diluição deixaram marcas na música brasileira, em níveis bem diferentes. Primeiro, o rock – com um consumo numericamente baixo (os grandes vendedores estrangeiros do gênero, como os grupos Rolling Stones e Led Zeppelin, atingiram, no Brasil, marcas medíocres de vendagem, entre as 10 e as 30 mil cópias, no máximo, com uma saída média, mensal, entre 2 e 5 mil unidades vendidas) -, que acabou por conseguir passar de forma indelével e indiscutível elementos de sua linguagem para a fala musical brasileira: o uso generalizado da eletricidade, de instrumentos eletrificados, a síntese entre suas estruturas rítmicas e as do baião, do samba e até mesmo do choro. Num momento posterior, a soul music e a música de discotheque – onde se deu o processo inverso, já que, consumidas em escala alta (principalmente a discotheque, cujos exemplares atingiram piques de venda muitas vezes superiores à casa das 100 mil cópias), mantiveram-se restritas aos padrões usuais de consumo, ou seja, foram esquecidas após o impulso inicial, sem deixar traço marcante no modo de fazer música, no Brasil.

Cada um desses gêneros de importação obedece a um ciclo próprio de chegada, consumo e assimilação, paralelos, às vezes, mas nunca convergentes.

A passagem do rock pelo Brasil segue duas linhas: a primeira, que poderíamos chamar de ingênua, perde-se originalmente nos últimos anos da década de 50, hiberna nos primeiros anos 60 e vem eclodir, de forma definitiva e em nível de massa, em 1965, com o programa de TV Jovem Guarda e o trio de artistas encabeçado por Roberto Carlos, que incluía ainda Erasmo Carlos e Wanderléa. A linha seguinte – que é a que nos interessa mais de perto, já que se dá em plena década de 70 – não se origina desta primeira: muito pelo contrário, a repudia. Os frutos desse rock’n’roll ingênuo serão, numa escala, Roberto Carlos e a canção de massa, pop, dos anos seguintes; em outra, uma parcela considerável da Tropicália, no momento em que esta cita e digere os dados do consumo de massa (Caetano Veloso: “Eu fui alertado para o Roberto Carlos por Maria Bethânia. Ela me dizia: Vocês ficam nesse papo furado e o que interessa mesmo é Roberto Carlos. Vocês já viram o programa Jovem Guarda na televisão? É genial, tem força, não é essa coisa furada aí. Eu senti aquela coisa brutal pelo modo como ela estava falando e, quando fui olhar, desbundei.”[1]).

O rock consumido, copiado, assimilado e praticado no Brasil na década de 70 – com força e contorno definidos nos primeiros anos do período, até 1975/76 – vem, portanto, diretamente da matriz, da fonte exportadora. E, se vende poucas unidades fonográficas, consegue impressionar de tal forma uma geração de músicos e compositores que acaba permanecendo, mesmo quando suas formas externas mais evidentes já se dissolveram.

Neste ponto é de novo preciso distinguir duas etapas do processo. Numa, a mais aparente, há o que se chamou de “movimento rock” no Brasil, ou a tentativa de um “rock brasileiro”. Começa imediatamente após o fim da Tropicália, com o exílio e o afastamento das figuras motrizes mais importantes da música brasileira. Nos grandes centros – Rio e São Paulo principalmente, mas Porto Alegre, Recife, Salvador e Curitiba também – o vazio de ideias, de movimentação e de debate provocado por essa ausência, pelo clima repressivo reinante, pelo esvaziamento da fórmula dos festivais conduz a uma geração emergente, com, na época, 17 a 22 anos, a admirar e, consequentemente, tentar imitar com fidelidade a música que vinha de fora – e que era, nessa época, vigorosa, incisiva, criativa e com propostas de modo de vida, de visão de mundo. Ouvir rock, informar-se sobre as ideias e atitudes de seus músicos e tentar tocar e ser como eles passa a ser uma forma fácil de sonho, de fuga, um novo objetivo, um ideal. Não era apenas a música – era a carga com que ela era vestida, as possibilidades de ruptura e restauração que ela anunciava. Na esteira do rock, os cabelos crescem, os contornos de uma “cultura marginal”, “subterrânea”, se anunciam, com jornais (Flor do Mal, Presença, Rolling Stone) e poesia mimeografada.

Os grupos que proliferam às dezenas dentro desse formato de adesão fiel ao modelo rock – importado principalmente da América pós-San Francisco, pós-Woodstock – falam claramente dessa assimilação, nem tanto na música, mas na postura existencial. Paulinho Machado, líder, em 1972, do grupo Sociedade Anônima – assíduo em concertos no Rio e em Niterói -, dizia, na época: “Nosso interesse em fazer rock não é restrito aos sons, maneiras, palavrinhas, bandeiras que faziam a moçada se sacudir. A gente sabe que há toda uma mentalidade a ser recriada, e é através do rock que isso vem se processando pelo mundo.”[2] Arnaldo Baptista, então líder do grupo mais famoso dessa etapa, os Mutantes – egressos de um estágio fecundo na Tropicália, onde eram material de trabalho e síntese para Caetano e Gil -, escrevia no jornalRolling Stone, meses depois: “Um dia, todo mundo vai ser cabeludo. Não haverá países nem religiões, como disse John Lennon.”[3]

Radical em sua idolatria pelo modelo importado, fechado num grupo reduzido de consumidores – como atestam as vendagens dos maiores nomes do setor, os Mutantes, que nunca ultrapassaram a casa das 20 mil cópias -, esse “movimento” se manteria vivo por aproximadamente três anos mais, a partir de seu auge, em 1972. De 75 em diante, de modo lento mais decisivo, os grupos começam a se dissolver – por dissensões internas, muitas causadas por choque de ideias, de rumos a seguir, autocríticas, por problemas financeiros, também, já que um grupo de rock exige uma aparelhagem caríssima, importada, e as gravadoras se mostravam insensíveis ao rock feito no Brasil, como produto; e o público, que chegara a formar pequenas multidões de 2 mil espectadores em festivais ao ar livre como o Dia da Criação, em Caxias, em outubro de 1972, começa a desertar.

Para onde ele vai indica exatamente o ponto fraco de toda a tendência rock; quem absorve esse público e atrai novas plateias é o que se poderia chamar a segunda etapa dessa assimilação do rock no Brasil, nos anos 70 — compositores e músicos que, reconhecidamente influenciados pelas formas musicais importadas, procuram digeri-las, entendê-las, e não apenas cultuá-las. Daí surge um esforço de síntese, que acabará formando um dos veios principais de toda a música brasileira na década.

As raízes, obviamente, estão na Tropicália — mas Caetano e Gil fizeram o movimento inverso, de fora para dentro. Os primeiros sinais da síntese de dentro para fora vêm justamente em 1972, e passam quase despercebidos. Primeiro, há o encontro, aparentemente improvável, entre João Gilberto e o grupo Novos Baianos — que, desde sua criação, em 1969, tinha se dedicado exclusivamente a formas musicais elétricas, pesadas, até propositalmente distantes dos padrões vigentes na música brasileira (Galvão, poeta e mentor intelectual do grupo: “Samba naquela época era coisa só de universitário. Muito ruim, porque universitário não sabe fazer samba mesmo. Aí a gente nasceu anti-samba.”)[4]. O fruto dessa união está no LP Acabou chorare, onde cavaquinhos e guitarras elétricas convivem pacificamente e que, apesar da boa repercussão de vendas e do sucesso da canção Preta pretinha (Morais e Galvão), não recebe da crítica a atenção devida, como arauto das primeiras mudanças e tentativas de digestão das informações estrangeiras.

No mesmo ano há uma outra tentativa de síntese mais diluída, mais intermediária — porque parte de músicos que tinham uma formação anterior não-roqueira, que tinham aderido ao rock mais recentemente: é o esforço do trio (Luís Carlos) Sá, (Zé) Rodrix & (Gutemberg) Guarabira de fundir os instrumentos eletrônicos com a viola sertaneja, o rock com o rasqueado e o baião, numa forma que foi chamada, por algum tempo, de rock rural. Da forma como é enunciado, orock rural repercute pouco, deixando como únicos sinais visíveis de sua presença o trabalho futuro da dupla Sá & Guarabira, remanescente do trio original, e o interesse maior dos músicos essencialmente roqueiros do grupo Terço — que trabalhava com o trio e a dupla — em se aproximar de formas mais acústicas e menos copiadas.

Entretanto, por outras vias, diversos músicos e compositores estavam chegando a essa (rock/música sertaneja) e outras sínteses. No Festival Internacional da Canção de 1972 alguns sinais puderam ser distinguidos mas, como o LP Acabou chorare, passaram despercebidos. Presenças de estreantes como Fagner, Walter Franco, Raul Seixas indicam que existe uma geração que, embora influenciada pelo dado de fora, elétrico, estrangeiro, havia digerido a informação e começava a produzir novas formas de música.

Serão essas formas sintéticas que, pouco a pouco, atrairão o público antes voltado exclusivamente ao consumo do rock feito no Brasil e formarão uma plateia nova, na segunda metade da década, mais aberta à experimentação, sem preconceito tanto em relação à guitarra quanto ao uso de frevos, samba e xaxados (repudiados com veemência pela plateia roqueira dos primeiros anos 70). Por obra, em grande parte, dessa geração de universitários marcados pelo rock – onde uma das poucas exceções é o mineiro Beto Guedes, que não chegou a frequentar bancos universitários, passando direto dos grupos de baile para a tentativa da síntese – é que o dado elétrico, importado, será incluído com naturalidade na música brasileira, tornando comuns formas de marcação rítmica, estruturas de arranjo e instrumentação inteiramente repudiadas no início da década.

O rock como cópia exclusiva do modelo importado ainda conhecerá, nesta década, mais alguns anos de sobrevivência. Em 1973, chega a atrair pela primeira – e única – vez uma massa de público de real peso, através do grupo Secos & Molhados. Idealizado pelo ex-jornalista João Ricardo e contando com a privilegiada e agudíssima voz do cantor Ney Matogrosso (Gerson Conrad, músico, completava o trio), o Secos & Molhados se colocava inequivocamente como um grupo de tom rock – embora tentasse, no uso de textos de poesia brasileira, na incorporação da canção, do vira português, alguma forma tímida de síntese. (“Essa é a nossa linguagem: a reinvenção do próprio pop, porque isso é um processo que vem a partir de algum tempo, do underground, dos beatniks, dos hippies, e então talvez seja uma reinvenção disso, mas ainda dentro de uma infra-estrutura progressiva do pop.”… “Eu me inspiro, por exemplo, no folclore, não para definir isso ou aquilo. É porque ele pinta, como pode pintar qualquer outra coisa, e por isso eu acho que ele também é rock, entende?”)[5]

Sua carreira é breve e fulminante – entre ascensão e queda passam-se 12 meses -, tão fulminante que chega a dar a falsa impressão de que o rock havia se instalado mesmo no Brasil. Como legado, após sua extinção em 1974, o Secos & Molhados deixará um cantor extraordinário, um dos raros intérpretes masculinos surgidos numa década povoada de cantoras: Ney Matogrosso.

Até, aproximadamente, 1975/76, alguns grupos voltados exclusivamente para o modelo fechado do rock permanecem em atividade; o maior é o Mutante, de formação variada, sempre capitaneado pelo guitarrista Sérgio Dias Baptista, e que consegue o feito de uma discografia razoavelmente grande (seis LPs) e com um índice de vendas também razoável (20 mil cópias no disco Tudo foi feito pelo sol, de 1974). Mas já em 76 Sérgio parecia estar verbalizando as dúvidas que acabariam por dissolver o grupo, um ano depois – a exemplo do que já se dava, e continuaria ocorrendo, com praticamente todas as formações surgidas no período 1969/72: “É que nós chegamos a um tal nível cultural, musical, que começamos a nos perguntar profundamente sobre o que fazíamos, sobre o sentido mesmo do que a gente tocava, da música que a gente fazia. Nós sabíamos que tocávamos bem aquela música, aquele rock. Mas seria só isso? Bastaria só tocar bem?

Aí a gente foi vendo que não fazia sentido. Que bastava colocar um disco do Yes ou da Mahavishnu Orquestra do nosso lado que eles davam banhos na gente.”[6]

Mas à medida que o público se cansa de consumir essa cópia pálida e passa a preferir a criação original de outro tipo de compositores, e à medida que se desgasta o apelo do rock como forma alternativa de viver e ver o mundo, os grupos vão se extinguindo e o “movimento rock” se esvaziando.

Como heranças imediatas ele deixará uma leva considerável de músicos e arranjadores que passarão a trabalhar com artistas e cantores variados, sem vínculo necessário com o rock: Arnaldo Brandão, ex-Bolha, toca com Caetano Veloso e Luiz Melodia; Túlio Mourão, ex-Mutantes, com Ney Matogrosso e Maria Bethânia; Candinho, ex-Módulo Mil, com o trompetista Márcio Montarroyos; Paulinho Machado, ex-Sociedade Anônima e Flato, com Zé Ramalho e Walter Franco — todos, só para exemplificar.

E também uma única figura de alcance extra-rock: Rita Lee, que se desliga dos Mutantes originais (ela mais os irmãos Sérgio e Arnaldo Dias Baptista) em 1972 e que atinge, em 1975, com o LP Fruto proibido, a marca das 180 mil cópias vendidas, índice jamais sonhado por artista algum de rock no Brasil. Nos anos seguintes continuaria mantendo essas marcas, o que garante uma existência segura, autônoma, mesmo depois que o rock como forma fechada desaparece do cenário brasileiro. Escrevendo músicas para Gal Costa e Zezé Motta, retomando o contato com Gilberto Gil (na excursão e disco Refestança, de 1977), Rita, apesar de sua raiz sem dúvida americana, se desliga formalmente do compromisso com o rock: “Sabe que eu não gosto de ficar dizendo que faço rock? Sabe que isso não quer dizer nada pra mim? Aí eu já pego e escrevo r-o-q-u-e, com q mesmo, já é uma outra coisa, não é ficar fazendo rock, radicalmente. Isso é impossível, gente. A gente vive aqui, no Brasil, tem que se ligar nisso. Falar das coisas daqui. Eu sou uma pessoa que anda na rua, ouve rádio, vê TV, conversa com as pessoas. Eu componho assim como eu vivo, como eu falo, como as pessoas falam à minha volta. Não curto roqueiro radical. É uma gente muito fechada, muito preconceituosa.”[7]

Também, é claro, permanecem os Novos Baianos como uma das forças motrizes da síntese da segunda metade da década. Como grupo e também como matriz geradora de diversas carreiras: do compositor Morais Moreira, do grupo Cor do Som, do guitarrista Pepeu, da cantora Baby Consuelo.

É interessante notar que, quando o rock perdia o encanto no Brasil, novas formas de música passaram a ser exportadas para os mercados periféricos da indústria de discos centrada nos Estados Unidos — que, desde os primeiros anos da década, crescera enormemente, impulsionada, em sua maior parte, justamente pelo rock. Lá, a “velha” forma de música (o rock), embora já destituída de seu apelo inicial como opção de vida e contestação, mantinha-se viva e em circulação, mas o mercado crescera de tal forma que novos produtos eram necessários para preenchê-lo. O produto opcional mais importante que surgiu para dividir o mercado de música de massa, na América e fora dela, foi a música de dança, de origem negra: a discotheque, a funky music.

Antes de passar ao processo de exportação desse produto para o Brasil, é preciso delinear o que sejam essas formas, para entender como elas serão (ou não) absorvidas aqui. A música das populações negras urbanas, nos Estados Unidos, sempre existiu como um mercado uno, típico, de contornos definidos; é uma matriz forte e fecunda, que, por diversas vezes, ultrapassou as barreiras do mercado branco, penetrando em geral nas jovens classes médias e produzindo, entre outras coisas, o produto rock’n’roll. O que se passou na segunda metade dos anos 60 e primeiros anos 70, na América, foi mais um recuo dessa onda de produção negra: enquanto o mercado jovem e branco de rock se expandia e se tomava cada vez mais branco, a música negra — soul music em suas diversas variantes — recuou novamente, como já havia feito nos anos 50, para seus consumidores habituais. Com o esgotamento progressivo das fórmulas brancas de fazer música — principalmente as que bebiam nas fontes europeias, chamadas clássicas — um novo crossover se anunciou. Assim, a partir de meados dos anos 70, duas linhas de produção emergem na América, partindo do dado negro: uma mantém-se mais fiel aos padrões de gosto das populações jovens e negras das cidades — é a mais nova vestimenta da soul music, a funky music; outra aproveita apenas os padrões rítmicos, o pulso dançante, e dilui em formas mais comedidas e apropriadas para consumo em larga escala — é a discotheque.

As duas formas abrigam-se sem esforço, ao lado do rock, no vasto mercado americano. Mas, uma vez exportadas, assumem contornos novos, de modismo substitutivo. Assim, para a nova camada emergente de jovens brasileiros, brancos, de classe média, a discotheque apresenta-se como a “nova moda” — destituída dos apelos existenciais e até políticos da “moda anterior”, o rock, ela oferece, contudo, os atrativos da novidade, do que “está em uso lá fora”, a possibilidade da evasão pelo dispêndio da energia física e pelo atordoamento sistemático dos sentidos, via tecnologia sonora e aparato visual. E para as populações jovens e negras dos grandes centros brasileiros — principalmente São Paulo e Rio — a soul music com suas variantes apresenta-se como uma opção digna diante do interesse cada vez maior da classe média branca por sua produção usual, o samba; como o rock fizera nos primeiros anos da década, a soul music vai acenar aos jovens negros como uma alternativa viável de busca de identidade, reação, resistência, contestação aos padrões vigentes, dentro e fora da comunidade negra.

É curioso lembrar que os bailes de soul music — que, pela assiduidade e maciça frequência, chegaram a assumir contornos de movimento, recebendo, de fora para dentro, a denominação de Black Rio, a que se seguiram Black São Paulo, Black Pertinho (Porto Alegre) etc.[8] — surgiram exatamente dos bailes de rock, prática comum nos subúrbios cariocas e paulistas no início da década. Com grupos ao vivo e depois, cada vez mais, com música em fita, esses bailes misturavam, inicialmente, rock e soul, escolhidos pelos padrões mais dançáveis. À medida que o rock foi se afastando da forma dançável, e que sua plateia passou a se interessar mais por ouvir, considerando-o uma linguagem musical séria, capaz de transformações mentais, políticas e existenciais, o repertório dos bailes foi ficando cada vez mais negro — assim como seus frequentadores.

Com uma indústria fonográfica mais articulada em termos de marketing, as duas novas formas importadas — soul e discotheque — tornaram-se alvo de maciças produções. Curiosamente, contudo, o rastro que ambas deixaram no modo de fazer música no Brasil, nesta década, foi bastante menor que o do rock, menos favorecido pelas companhias de disco.

A discotheque, que vendeu grandes quantidades de discos (e matrizes importadas) principalmente em 1978 (na esteira do filme Embalos de sábado à noite e da novela de TV Dancin’Days), não conseguiu forjar no Brasil sequer um copista digno de ser lembrado. Alguns criadores, com menor ou maior felicidade, se aproximaram de sua fórmula com intenções de sátira (Gonzaguinha — O preto que satisfaz), citação (Belchior — Corpos terrestres, Como se fosse pecado; Gilberto Gil — Realce) ou incorporação (Frenéticas — Dancin’Days, A felicidade bate à sua porta; Rita Lee — Corre corre, Chega mais). Mas disso não passou.

Com a soul music — e, de um modo mais abrangente, com os modos negros e americanos de fazer música — já se deu um processo parecido com o do rock. Surgiu, num primeiro momento, uma leva de compositores, cantores e grupos votados à cópia dos cânones exatos da soul music americana — alguns, como Tim Maia e Cassiano, vindos de uma reverência mais antiga ao gênero, já nos anos 60. E, com exceção quase única destes dois, este bloco de artistas foi rapidamente esquecido — tanto pelo público aficionado de soul, que confinou preferindo a música original, quanto por outras plateias em potencial.[9]

Mas, da mesma forma como o rock havia sido desmontado e reinterpretado por músicos alheios ao culto da forma fechada, a soul music veio marcar e interessar muitos trabalhos, sendo citada por Caetano Veloso no LP Bicho (1977), incorporando-se totalmente às novas produções de Gilberto Gil (Refavela, 1977, Nightingale, 1978, Realce, 1979) e forjando uma linha de criação única em sua síntese, a de Luiz Melodia — que, criado no rico ambiente de samba do Morro de São Carlos, teve sua adolescência marcada por soul e blues, surgindo daí uma música naturalmente sintética e de formato marcantemente pessoal.

Notas

  1. “O rock e eu”, entrevista de Caetano Veloso a Ana Maria Bahiana, revista Rock, setembro de 1975.
  2. Entrevista de Paulinho Machado e Carlos Alberto Sion, jornal Rolling Stone, 16/5/197
  3. Texto de Arnaldo Baptista, jornal Rolling Stone,novembro, 1972.
  4. “Os Novos Baianos vão para o mundo”, entrevista de Galvão a Ana Maria Bahiana, Jornal de Música, outubro de 1975.
  5. “Entrevista antes da separação”, entrevista do grupo a Antônio Carlos Moran, livro Secos & Molhados, Ed. Nórdica, 1974.
  6. “A nova mudança dos Mutantes”, entrevista a Ana Maria Bahiana, O Globo, 3/8/1976.
  7. “Essa tal de Rita Lee”, entrevista a Ana Maria Bahiana, Jornal de Música, setembro de 1977
  8. O marco dessa denominação é a extensa matéria “Black Rio”, da repórter Lena Frias para o Jornal do Brasil de 17/7/1976.
  9. Na matéria “Enlatando Black Rio”, redigida por Ana Maria Bahiana e apurada por Aloysio Reis, Antônio Carlos Miguel, Gabriel O’Meara, Guerra, Liana Fortes e Paulo Macedo (Jornal de Música, fevereiro de 1977), as gravadoras anunciavam uma grande ofensiva no mercado black, muitas antevendo, já, um novo “movimento”. “Sem afirmar nada, apenas guiado por sua intuição e experiência, André Midani, da WEA, acredita que possa surgir do Black Rio o primeiro movimento musical inteiramente negro a produzir um tipo de música que não seja o samba”, Nelson Motta afirmou em sua coluna no Globo de 2/1/1977. Ao Jornal de Música, Roberto Menescal, da Polygram, disse: “Parodiando o Midani, que disse que a saída era o rock, eu diria que a saída é o soul.” No entanto, a maioria dos nomes mencionados pelos executivos do disco na matéria ou estão hoje esquecidos, ou abandonaram a carreira ou mudaram radicalmente a orientação de seu trabalho, optando, como o cantor Carlos Dafé e a Banda Black Rio, por um formato mais nitidamente de samba. Inclusive porque, no nível superficial do consumo de modismos, a volta da gafieira com seu elenco de sambas (e também boleros e sambas-canção) encerrou a década de 70.

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