2002

Indeterminação e conflito

por Fernando César Teixeira França

Resumo

Enquanto na teoria do duplo corpo do rei, no Antigo Regime, a sociedade era representada num único corpo, a revolução democrática faz desaparecer o fundamento da hierarquia natural. As desigualdades tornam-se “sociais”. Sendo o poder um lugar “vazio”, o conflito (de partidos, de classes) substitui a imagem de uma sociedade orgânica. Em todos os níveis se instala a indeterminação (da autoridade paterna às relações homem/mulher e professor aluno, por exemplo). Mas também a ameaça do totalitarismo, que não é um simples horror do passado e sim um fantasma a rondar suas instituições. A ambiguidade da democracia foi o que Tocqueville viu na sociedade americana do século XIX. Ao novo indivíduo prometia-se liberdade, com a contrapartida do isolamento, do anonimato e da perniciosa influência da opinião pública. Mas, segundo Claude Lefort, Tocqueville não soube valorizar aspectos positivos da democracia como a possibilidade de novos modos de expressão e de pensamento, e o surgimento de movimentos sociais por novos direitos. Sociedades históricas, como a democracia, precisam conviver com as ideologias que discursam dentro dela. O móvel da ideologia, porém, é o mesmo do pensamento criativo que pensa sobre a política mantendo a necessária indeterminação do pensamento, ou ainda o do intérprete de uma obra que tempera sua leitura com o acréscimo de outras ao longo do tempo. O anseio de universalidade que move o político e o intérprete não pode banir o espaço que permitiu a emergência dessas atividades.


A teoria política do duplo corpo do rei, forjada pelo clero e pelos juristas anglo-saxões, fornecia a imagem acabada de um corpo ao mesmo tempo mortal e imortal que encarnava o princípio da geração e da ordem do reino e da própria sociabilidade humanas.[1] A pessoa do monarca garantia a unidade do reino, ao mesmo tempo que seu poder apontava para a região incondicionada do extramundano, de um além do mundo e do homem, local de seu fundamento. A sociedade via-se representada num único corpo, de onde retirava a certeza de uma unidade substancial, daí porque a hierarquia que distinguia seus membros e os organizava em ordens e classes aparecia como natural, pois repousava sobre um fundamento incondicionado. O poder que estruturava a sociedade durante o Antigo Regime encontrava-se incorporado ao monarca, e, por toda a extensão social, sentia-se a presença de um saber latente que dizia quem era cada um frente ao outro: os membros da comunidade entre si, a comunidade e o monarca, o monarca e a ordenação celeste, o Mundo e Deus.

O nascimento da democracia moderna, na esteira das revoluções burguesas do século XVIII, assinala uma mutação de ordem simbólica sem precedentes, na qual a nova posição do poder ocupa o centro. Não se pode deixar de examinar o tipo de sociedade da qual ela emergiu, em outras palavras, se, por um lado, as ambiguidades do regime democrático se destacam sob o fundo do totalitarismo, por outro, a sua singularidade histórica torna-se tanto mais clara quanto se recupera o sistema monárquico sob o Antigo Regime.

Os traços do Estado e da Nação, e a separação entre a esfera identificada com a sociedade civil e outra com o Estado, se delinearam no seio de uma monarquia cujo desenvolvimento ocorreu a partir de uma matriz teológico-política. Esta sociedade era regida por uma autoridade — o monarca —, que sem ser necessariamente um déspota (embora em alguns momentos tenha adquirido ares de absoluto) supunha-se ser o possuidor do sentido da lei e o depositário do fim último da ordem social. Durante muito tempo, o príncipe foi considerado um substituto, um mediador, entre Deus e o mundo. Era sobre esta representação que a sociedade fazia repousar sua ordem. Ao lado desta primeira imagem de mediador, de vigário do Cristo, posteriormente apareceu outra: a de um mediador entre os homens e as instâncias transcendentes, figuradas na soberana justiça e na soberana razão. Como mediador, o príncipe — monarca de raízes medievais que adentra e conforma os inícios da modernidade — se submetia às leis; como soberano, se localizava acima delas.

Ora, qual a grande mutação introduzida pela modernidade com a revolução democrática? Em primeiro lugar, desaparece o fundamento da hierarquia natural, ou seja, de uma ordem social classificada, organizada em estamentos, em estados. O que não significa que tenham desaparecido as desigualdades, por exemplo, entre os que detêm a cultura e os que dela estão privados, ou entre os que detêm o capital e os que estão limitados à sua força de trabalho. Ao contrário, o que acontece é que as desigualdades deixam de ser atribuídas à natureza ou a um direito providencial, tornando-se propriamente “sociais”. De direito os homens nascem iguais. Para além da crítica marxista que enxerga nesta fórmula a expressão própria à ideologia burguesa em prol da alienação social, interessa-nos a profunda alteração simbólica provocada pelo fim da hierarquização natural ou de direito divino diante de um regime de matriz teológico-política; fundo a partir do qual o princípio da isonomia deve ser pensado.

Em segundo lugar, desaparece a figura de uma autoridade incontestável, fiadora da ordem social. Se antes, no Antigo Regime, o poder encontrava-se incorporado na pessoa do monarca — simultaneamente corpo natural e vértice do corpo político —, com a democracia, o poder não é mais apropriável por ninguém, vale dizer, não é mais corporificável. Inútil insistir nos detalhes institucionais encontrados em cada época e locais. Interessa, nos limites deste texto, muito mais a proibição aos governantes de incorporar o poder ou de nele fazer-se incorporar. O poder se torna um lugar, de certo modo, vazio, pois quem o exerce — o governante — só o faz temporariamente e em virtude de uma competição entre grupos e partidos (ela própria legalmente regulamentada e, portanto, permanente, institucionalizada) que supõe o exercício de certa liberdade de opinião e associação. Este fenômeno implica a institucionalização do conflito e a proibição do preenchimento perene de seus conteúdos.

Vazio, inocupável — de modo que nenhum indivíduo nem nenhum grupo podem lhe ser consubstancial — o lugar do poder mostra-se irrepresentável. Apenas os mecanismos de seu exercício são visíveis, ou então os homens, simples mortais, que detêm a autoridade política. Entretanto, nos enganaríamos se julgássemos que o poder de ora em diante se aloja na sociedade, pelo fato de emanar do sufrágio popular. Ele continua a instância em virtude da qual esta se apreende em sua unidade, se refere a si mesma no espaço e no tempo. Mas esta instância não é mais referida a um pólo incondicionado, neste sentido, marca uma clivagem entre o dentro e o fora do social, que institui seu relacionamento, ela se faz tacitamente reconhecer como puramente simbólica.[2]

A democracia é esse regime que, pela primeira vez na história, não possui uma definição acabada de seus conteúdos, pois está em constante demanda de sua própria definição. Em certo sentido, ela é a forma que garante a permanência de uma busca continuada de conteúdos, evitando toda tentativa de exclusão da indeterminação. A indeterminação de que se fala não é da ordem dos fatos empíricos, destes fatos a partir dos quais se vislumbram outros fatos, tal como quando se lê o caráter econômico, ou social, ou mesmo cultural, sob a igualdade progressiva de condições. A indeterminação de que se cuida não provém da parcialidade dos nossos instrumentos teóricos, não é mero índice do perspectivismo inerente ao etnocentrismo e historicismo próprias das nossas análises, é antes índice de nosso estar no mundo, o que, de certo modo, foi também acolhido por nossas instituições sociais, pois segue gerando contínuos debates em busca de suas próprias definições.

Com a democracia desaparece a imagem de uma sociedade orgânica, pois a unidade do grupo social passa a se associar ao exercício do conflito. Na primeira metade do século XIX, este conflito se traduzia em linguagem política visando à competição pelo poder, no qual a burguesia procurava circunscrever o seu acesso a determinadas camadas da população, a um grupo de notáveis, excluindo os demais. Entretanto, o conflito se generalizou, difundiu-se por toda a sociedade. Esta expansão não é só quantitativa, mas principalmente qualitativa, já que não se trata apenas do conflito de classes, mas de valores, de opiniões. Assim, a sociedade passou a se expor a uma constante indeterminação, impossível definir segura e perenemente o que é o bem e o que é o mal, o que se considera legítimo e o que se afasta como ilegítimo, quais os critérios do verdadeiro e do falso, do proibido e do permitido etc. Até mesmo a divisão social de papéis torna-se movediça, na medida em que os referenciais que situam uns em relação aos outros demandam uma batalha quotidiana para ser aceitos e respeitados. É o caso da autoridade paterna no interior da família, das relações homem/mulher, professor/aluno, enfim, da posição dos que mandam e dos que obedecem. Não existe mais um fundamento seguro para definir o lugar de cada um em todas estas formas de relacionamento, ou melhor, cada relação cria momentaneamente referenciais que demandam legitimação constante para se desenrolarem, para sobreviverem. Há um debate contínuo que se manifesta em todos os setores, da pedagogia à diferença entre os sexos, passando pelas relações trabalhistas e de consumo. O regime democrático gera uma sociedade em constante busca de seus critérios, que só se mantém coesa na aceitação desta inventividade de valores e papéis.

Na origem desta dinâmica está o fenômeno da desincolporação pelo qual passou a sociedade do Antigo Regime (iniciado no século XVII, e que se acentuou ao longo do século XVIII), ou seja, ocorreu na história da Europa daquele período uma separação nos fundamentos e, consequentemente, nas práticas institucionais por trás das esferas do poder, da lei e do saber; algo sem precedentes e que se difundiria pelo globo junto com o projeto colonialista. Na medida em que o poder foi deixando de se apre sentar como o princípio único de geração e de organização da comunidade, também perdeu a capacidade de se apresentar como portador da razão e da justiça, cujos fundamentos estavam situados, até aí, fora do espaço e do tempo sociais. Ora, desde então a ciência e o direito passaram a se afirmar como realidades novas, exteriores e irredutíveis ao fundamento do poder. Daí porque, cada vez mais, o poder é apreendido em seu exercício circunscrito a um espaço e tempo delimitados; mostra-se subordinado ao conflito de vontades coletivas que a ele conseguem se fazer presentes.

A autonomia que se reconhece no saber provoca um processo análogo, isto é, a cada instante o que se conhece e como se torna conhecido é submetido a uma interrogação sobre os fundamentos da verdade; a própria verdade tornou-se uma realidade cambiante, muito mais um ideal cuja estabilidade é efêmera e circunscrita a grupós do que a inatingível universalidade estável de outrora.

Também o direito, em sua autonomia perante o poder e o saber, não consegue fixar sua essência; submetido ao debate sobre o que está estabelecido e sobre o que deve ser, vê-se enredado numa trama que demanda abertura, abre-se a um devir, necessitando a cada momento, a cada caso concreto, ser demonstrado a partir do embate que aponta, por vezes, para fundamentos diversos.

Uma vez separados e impossibilitados de fixar um fundamento exterior que garanta a certeza de suas práticas, o poder, o saber e a lei se abrem para a interrogação de seus pressupostos, o que os torna propriamente históricos, revelam seu caráter intrinsecamente cambiante ao longo do tempo. Estas transformações geram uma série de outras, das quais não poderíamos simplesmente precisar as consequências, pois são irredutíveis ao esquema causa/efeito, ultrapassando o reducionismo das explicações historicistas.

A desincorporação mútua entre as esferas do poder, do saber e da lei instaura uma nova relação no real, na medida em que a socialização no interior do regime democrático passa a criar redes e domínios de atividades específicos, e assim como o fato técnico, o fato político e o fato econômico, por exemplo, adquirem autonomia, os discursos científico, político e pedagógico tendem a se afirmar com suas normas e conhecimentos próprios.[3] Resumindo, diante do modelo monárquico do Antigo Regime, o regime democrático instaurou uma verdadeira revolução, cujos principais traços característicos são: a) a divisão torna-se constitutiva da própria unidade social; b) perde-se o princípio transcendente de legitimação da ordem social tal como esta se apresenta, eliminando a representação de uma entidade substancial, o que traz tremendas consequências à reflexão filosófica, c) a comunidade não se reconhece mais na imagem do corpo, desaparecendo a determinação natural de uma hierarquia, outrora ligada à pessoa do monarca. Enfim, a despeito do pleonasmo, é preciso afirmar que a sociedade emerge como puramente social as novas entidades universais que referenciam e identificam a vida dos indivíduos, como o Povo, a Nação e o Estado, jamais se revelam entidades substanciais, daí todo o esforço de elaboração sociológica e, sobretudo, histórica, a fim de doar-lhes um conteúdo. Esforço este sempre próximo do debate ideológico; d) por tudo isso, a democracia se institui e se mantém por meio da dissolução dos sinais fundamentais de certeza, ela inaugura o questionamento constante do fundamento do poder, da lei e do saber; em última instância, questiona o fundamento da relação de um diante de seu outro em todas as esferas da vida social, pois tudo o que outrora parecia inscrito na ordem das coisas passa pela provação de uma indeterminação última.

É preciso insistir que não se trata da ideia de um “modelo democrático” aplicável às instituições e Estados, muito menos de conceber um movimento da história rumo a uma maior “democratização”. Este raciocínio opera com a democracia como conceito através do qual submetemos a história a uma avaliação. Democracia não é modelo, nem é té/os revelado pela história universal. Democracia é o regime social instaurado por uma mutação simbólica no interior do Antigo Regime e que gerou uma dinâmica peculiar nas relações de um com o outro. Esta dinâmica revela uma sociedade sempre disposta a confrontar suas contradições, a enfrentar a sua própria criação, mas que, por outro lado, corre sempre o perigo de uma petrificação das opiniões, das crenças, das condutas, enfim, de uma estabilização definitiva de seus conteúdos últimos. Daí toda a pertinência do tema do totalitarismo, como bem ressalta Claude Lefort.

Como tema e horizonte da democracia, o totalitarismo localizado historicamente não demanda meras “explicações”. Importa, sim, indagar as condições de sua formação e desenvolvimento. A experiência democrática nos impõe incertezas. Em tudo o que se adquire, nunca há a legitimidade plena; do mesmo modo, o que é de direito se mostra suspenso ao discurso que o enuncia, afinal a certeza do direito adquirido é mera quimera jurídica sempre ameaçada por mudanças e retrocessos, e o exercício do poder se faz no seio do conflito. Por outro lado, a nostalgia pelo fundamento e pelo repouso nas certezas substanciais ameaça constantemente desvirtuar a dinâmica democrática. Toda vez que a insegurança individual não suporta mais o conflito entre as classes e grupos — diante, por exemplo, de uma crise econômica aguda, de uma guerra ou ameaça de aniquilamento –  e a indeterminação e o vazio constitutivos da democracia perdem a capacidade de se resolverem na esfera política, desaparecendo sua eficácia simbólica, o poder revela-se como agente de interesses particulares, ou seja, mostra-se na sociedade que se descobre como realidade fragmentada, surge, então, a imagem do povo-uno.

É quando se desencadeia a busca de um corpo social coeso, de um poder encarnador, de um Estado sem divisões porque expressão de uma identidade substancial. A dinâmica democrática é tanto condição para o exercício da liberdade quanto enunciadora das condições de surgimento do horror totalitário.

O nascimento do totalitarismo desafia qualquer explicação que o circunscreva exclusivamente ao acontecimento no âmbito da história empírica. Ou seja, não é simples horror sepultado no passado, nos primórdios do século XX, mas é fantasma perene a rondar as instituições e o mundo contemporâneo. Do mesmo modo, o nascimento da democracia assinala uma mutação de ordem simbólica, da qual a nova posição do poder é testemunha.

Da leitura de Tocqueville, interessa-nos, entre outras coisas, a elaboração daquilo que Lefort denominou intuição de uma sociedade ambígua, isto é, debruçando-se sobre a sociedade americana, Tocqueville expõe os vários mecanismos pelos quais se resolve a indeterminação radical para a qual fomos lançados desde o desaparecimento da ideia de um fundamento incondicionado da ordem política. A ambiguidade como nota característica da democracia é examinada em diferentes níveis por Tocqueville. O indivíduo, por exemplo, liberta-se das antigas redes de dependência pessoal, das hierarquias algo naturais, expressão de uma ordem que considerava os homens classés, e que, a despeito da mobilidade — evidentemente havia algum grau de mobilidade que se acelera a partir do século XVIII —, cada qual era julgado por pertencer a um local. Ao novo indivíduo promete-se a liberdade de julgar e de agir conforme suas próprias normas, já que sua posição diante da coletividade não é mais definida desde o lugar de seu nascimento. Em contrapartida, o fim da hierarquização natural remetida a um fundamento exterior à sociedade trouxe o isolamento deste mesmo indivíduo que, despreparado e apanhado pela imagem de seus semelhantes, encontrará na aglutinação com estes um meio de escapar à ameaça da dissolução de sua própria identidade. Já o exame da opinião revela-nos de que forma ela foi conquistando seu direito à expressão e á comunicação, contudo, a divulgação e o alargamento do espaço a ela reservado tornaram-na uma força em si capaz de sobrepujar os indivíduos que a veiculam„é o nascimento dessa incapacidade do pensamento denominada “opinião pública”. A liberdade de expressão e o fim da censura desprenderam o discurso do sujeito pensante, transformando o diálogo social em opinião pública, esta potência anônima erigida acima de todos. A lei, por sua vez, foi deslocada a fim de responder aos anseios da vontade coletiva, no entanto, e, em consequência do princípio da isonomia aplicado a uma sociedade de massa, passou também a uniformizar as normas de comportamento, em vez de garantir a livre expressão dos distintos modos de vida. Em relação ao poder, nota-se que o arbítrio da pura discricionariedade do governo pessoal cedeu diante das exigências visando a uma maior garantia para o exercício da cidadania. Mas simultaneamente, até porque ele deve anular os núcleos particulares de autoridade em favor de um governo para a coletividade, adquire a figura de um poder de ninguém — sob a imagem abstrata de um poder do povo este novo poder corre o risco de se tornar ilimitado, resvala a onipotência em face de uma vocação para se encarregar do conjunto da vida social.

Apreender estas ambiguidades — a perda de identidade e de referenciais do novo indivíduo sem face diante da sociedade de massas, a influência perniciosa da opinião pública impondo conteúdos à sensibilidade, o formalismo da lei que se afasta de uma justiça substancial, o crescimento do poder no novo Estado —, a contraface de cada conquista democrática, é o grande mérito das análises de Tocqueville. Por outro lado, aponta também o limite de sua perspectiva:

Tocqueville, com sua preocupação de evidenciar a ambiguidade dos efeitos da igualdade das condições, empenha-se frequentemente em revelar uma inversão do sentido: a nova afirmação do singular apaga-se sob o reinado do anonimato; a afirmação da diferença (das crenças, das opiniões, dos costumes) sob o reinado da uniformidade; o espírito de inovação se esteriliza no gozo dos bens materiais, aqui e agora, e na pulverização do tempo histórico; o reconhecimento do semelhante pelo semelhante se deteriora diante do surgimento da sociedade como entidade abstrata etc. O que ele negligencia, e que nós temos condição de observar, é o trabalho que se faz e refaz, desde o segundo pólo onde a vida social tende a se petrificar.[4]

Não é só a experiência acumulada de um século e meio que indica a limitação das análises de Tocqueville, já que a contrapartida de cada fenômeno característico da nova sociedade democrática acirrou-se no horror totalitário do século XX; há, sobretudo, uma resistência intelectual diante do desconhecido da democracia que faz com que apenas seu pólo negativo e opressor seja realçado. Assim procedendo, desconhece-se o lado propriamente inventivo da democracia, tais como: a) a importância dos esforços por novos modos de expressão e maneiras de pensar que criticam os estereótipos da opinião na tentativa de superar o anonimato das ideias; b) os movimentos sociais por novos direitos que, além de ampliar espectro de garantias ao cidadão e grupos sociais, arruínam uma aplicação meramente formalista do direito; c) uma nova relação com a história, permitindo diferenciadas maneiras de conceber o tempo e sua duração, fruto do abandono de uma perspectiva quase orgânica do tempo referenciada na tradição e nas relações com o sagrado; d) a multiplicação de modos distintos de sociabilidade, que promovem uma heterogeneidade intrínseca ao social, ao lado da crescente dominação exercida pela sociedade e pelo Estado sobre os indivíduos…

Em suma, a interpretação de Tocqueville duplica cada observação feita, de modo que cada mudança surge como problema a revelar uma contrapartida negativa; daí o constante procedimento que desvenda sob cada novo signo da liberdade novas formas de servidão. A Lefort interessa retirar de Tocqueville esta percepção da ambiguidade ínsita ao regime democrático. Muito mais que o acento no aspecto negativo, preocupa-se com a própria dinâmica estabelecida entre signos da liberdade e signos da servidão.

A democracia revela-se, desse modo, a primeira sociedade histórica, na acepção forte do termo, isto é, uma sociedade que (em sua forma) acolhe e preserva a indeterminação, fazendo da sua origem um problema, o que impede a petrificação da legitimidade de suas instituições e modos de vida. O que, evidentemente, abre espaço também para novas formas de servidão. já o totalitarismo, experiência histórica gerada a partir da dinâmica democrática, pretende deter a lei da organização e do desenvolvimento último da sociedade; almejando a criação de um homem novo, insurge-se contra toda ameaça de indeterminação. Trata-se de uma revolta consciente contra a própria história, e, a despeito dos conteúdos veiculados pelas ideologias particulares — o fascismo italiano, o nazismo alemão e o comunismo stalinista, cada qual a seu modo, se legitimam numa peculiar teoria da história —, o totalitarismo representa no mundo moderno uma versão absolutamente nova de sociedade sem história.[5]

Ou seja, em que consiste a novidade inaugurada pela “revolução democrática”? Não se trata de mera mudança conceitual, mas de uma nova apresentação da origem, dos mecanismos reprodutores e da importância do fenômeno denominado “ideologia” na dinâmica da sociedade moderna. Na verdade, vivemos um tempo em que o problema da História adquire conotações filosóficas e políticas, pois se torna impossível determinar no real um momento, um ponto fixo, a partir do qual pudéssemos enunciar o princípio da organização social. Este inefável momento da origem é também o momento em que começam a atuar seus próprios sujeitos. Mas como fundar esta ação se a única fonte para concebê-los é a própria sociedade dependente de seus autores? A prática instituidora deste espaço visualizado como sociedade (parte de um suposto real já-dado) provém da ação de sujeitos que são instituídos como tais por esse mesmo social. A sociedade moderna torna-se propriamente histórica porque convive com a impossibilidade de determinar o ponto anterior à sua existência, pois se sabe originada da ação dos homens ao mesmo tempo que é condição dessa ação. Assim, ela precisa compreender o processo em que a ação de sujeitos sociais e políticos a constitui e, simultaneamente, deve admitir que ela mesma é a condição para a atuação destes sujeitos.[6]

O ato instituinte e a sociedade instituída se reenviam mutuamente de modo que a ação criadora não é pré-social (ou pré-histórica), mas já é algo social (e histórico). Portanto, desde já surge uma ambiguidade: a sociedade moderna opera com a percepção de sua própria realidade como limitada, como circunscrita no tempo e no espaço. Esta percepção de sua historicidade inviabiliza a posição definitiva de um real pré-ordenado (seja como dado empírico localizado, seja como ideia reguladora). Em suma, ela começa operando com pressupostos — por exemplo, os fatos sociais são coisas, ou, as ideias são representações do real —, os quais, posteriormente, são negados na prática quotidiana de suas instituições.

Nenhuma descrição das mudanças ocorridas na produção, na troca, na propriedade, pode levar a compreender o que se encontra posto em jogo com a formação do Estado moderno. Ali onde o poder político se circunscreve no interior da sociedade como aquele órgão que lhe confere unidade, ali onde é presumido como tirando sua origem do próprio lugar presumido engendrado por sua ação, ali aparece o cenário do social sobre o qual sua instituição é representada e a trama do “real” apreendida nos acontecimentos que ali se desenrolam, nas relações que atam os indivíduos e os grupos. Se, dessa maneira, o poder se acha reconduzido às fronteiras do espaço-tempo onde se articulam as relações sociais e por isso distanciado com respeito à lei de que se faz representante, isto não significa que se torna poder de fato. Se aparecesse como tal, as balizas da identidade social se aboliriam. Porém, é verdade que está exposto a essa ameaça tão logo sua figura esteja implicada na instituição do social; e isto não somente enquanto aparece como engendrado pela sociedade, mas também quando aparece como fundador, pois doravante estará privado dos sinais da fundação, cortado da ordem do mundo de onde tirava a segurança de sua fundação. Assim, o poder só se estabelece sob o signo da lei sob condição de aí sempre se restabelecer, isto é, pelo desdobramento de um discurso no qual a diferença entre o dizer e a coisa dita façam-se mola da identidade do sujeito social.[7]

Em outras formas de sociabilidade, o momento da instituição ou fundação é representado pelos seus membros a partir de um saber e de um poder acima e anteriores à própria comunidade. A explicação mítica ou teológica aí operante parte da exterioridade de um saber que apreende o poder fundador como algo transcendente, o que lhe garante uma intemporalidade soberana a pairar acima das particularidades e contingências quotidianas. Esta intemporalidade emana de um poder fundador e se transmite a tudo, de modo que as instituições se representam como pura identidade, isto é, como intemporais.[8] Nestas sociedades as hierarquias, formas de exercício do poder, expressões culturais, sua economia etc. encontram-se imobilizadas em representações que lhe conferem caráter de essências eternas, são plasmadas acima e fora das práticas isoladas.

Em contrapartida, as sociedades históricas produziram uma ruptura neste mecanismo simbólico instituinte, afastando toda e qualquer garantia externa. Daí porque precisam enfrentar as ambiguidades decorrentes de sua auto-instituição, o que também significa ter de resolver o problema da origem do poder político. Este nasce da própria ação social, mas só adquire alguma estabilidade na medida em que se institui como pólo separado da sociedade. Os seus membros precisam compreender e aceitar como o poder surge em seu seio (de suas relações) e como, em seguida, dele se separa para condensar-se numa instância visível situada acima de todos, o Estado. Não há garantias transcendentes como Deus, a Natureza ou a Razão que dêem conta da Lei fundadora que é, ao mesmo tempo, instituinte do político e instituída pela política.

Do mesmo modo que antes, a origem social desta sociedade que se vê delimitada “no real” é problemática, aqui, para nós, a gênese política do poder político traz ambiguidades. Em ambos, o momento instituinte e a própria instituição estabelecem uma reciprocidade que inviabiliza qualquer determinação, seja de um dado empírico na história, seja de um princípio idealmente sustentado, como elementos exteriores positivados que apontariam para a origem da vida social e do exercício legítimo do poder. O momento fundador priva-se dos sinais da fundação desde que se veja obrigado a legitimar esta sua função. O poder político, portanto, não é capaz de se apresentar acima do social como exclusivo poder de fato, pois não se sustentaria no mero exercício da força. Ele, então, se distancia da Lei, na exata medida em que se faz seu representante. Mas a “sua verdade” jamais pode ser expressa de uma vez por todas, ou seja, acima da sociedade e estabelecido sob o signo da lei, o poder precisa afirmar-se por meio de seu exercício.

A ausência absoluta de qualquer transcendência torna o efetivo exercício cotidiano da autoridade um embate por sua legitimação. Eis que se produz a terceira separação: o discurso adquire autonomia diante da lei e do Estado, e com isso surge como instância autônoma através da qual se elabora a legitimação de cada ato (da lei e do Estado). Ora, em sua busca reiterada de legitimidade, o discurso do poder transforma-se paulatinamente em poder do discurso. Isso tudo porque, pela primeira vez na história., uma forma de sociedade retira do sistema simbólico a equivalência, a correspondência biunívoca, entre seus significantes da lei, do poder e do saber. A articulação entre significantes postos na origem da sociedade torna-se um problema a exigir soluções que se mostram transitórias, já que não mais podem remeter a um ponto material ou ideal situado fora da práxis social. A legitimação torna-se um exercício cotidiano auto-referenciado.

Esta tremenda ruptura abalou a articulação até então estabelecida entre a lei e o real. Na ausência de garantias extrínsecas o poder tornou-se um local inlocalizável, isto é, engendrando-se da sociedade que ele engendra, mas necessariamente localizado no Estado como calcado sobre o campo social. Daí por que o Estado parece pairar acima da sociedade, mas jamais poderá garantir a posse definitiva do poder a um grupo determinado. Se o fizer, se lograr identificar o poder com os ocupantes de seus cargos, surgirá como pura força, como poder de fato, incapaz de qualquer outra legitimação, e estará aberta a via para a eclosão de todas as diferenças sociais (recentemente a guerra civil na ex-Iugoslávia mostra o horror e a violência que isto pode gerar). A sociedade se auto-aniquilará através do embate entre grupos particulares que se querem fazer passar por portadores da universalidade.

Com efeito, com a crise do Antigo Regime instaurou-se um processo de longa duração, o qual Lefort denomina “Revolução Democrática”. Em seu bojo, uma forma nova de práxis social criou condições para o surgimento de um sistema simbólico que opera a partir da separação entre as instâncias da lei, do poder e do saber (uma cisão entre aquilo que é de direito, aquilo que é de fato e aquilo sobre o qual algo pode ser dito). A “Revolução Democrática”, segundo Lefort, produziu uma série de separações ou “desintrincamentos”: em primeiro lugar a ordem social destacou-se da ordem do mundo (a comunidade orgânica passa a se nomear sociedade), o político se afasta do mítico-religioso (as relações de mando-obediência não mais se referenciam em elementos situados fora das próprias instituições, perdendo qualquer referência transcendente), o político se cinde do não-político no interior da ordem social (a economia, a pedagogia, a ciência, a arte etc. se organizam não mais como práticas de fato, mas como práticas autônomas em que a realidade do social como tal é questionada).

A partir de cada um desses deslindamentos opera-se uma mutação no regime simbólico pelo qual a sociedade se organiza e organiza o próprio real. A diferenciação de cada setor da vida social é acompanhada de uma diferença entre os discursos sociais. Cada ator em cada prática social delimitada (prática econômica, jurídica, pedagógica, científica, estética etc.) elabora discursos “particulares”, mas que se empenham por uma verdade universal, almejam instalar-se em posição que lhes permitiria enunciar proposições dirigidas à totalidade. Ademais, a disjunção apontada entre o discurso do poder e o poder do discurso traz a possibilidade de uma efetiva separação entre poder e discurso.

A ideologia emerge no momento em que os sujeitos sociais e políticos (em sentido amplo) não mais conseguem referir a sua práxis a um saber e a um poder anteriores a ela e ao próprio espaço social. Assim, cada discurso subjacente a esta práxis se efetiva em busca de seu próprio fundamento, pois precisa provar o seu poder e verdade longe do poder político institucionalizado (já que este tornou-se índice de um poder de fato inlocalizável). O que estabelece uma contradição entre a determinação do poder por ele veiculada e a sua prática singular e localizada que o inscreve na divisão social. Na ausência de um saber geral sobre a ordem do mundo e sobre a ordem social conjugado com o poder no Estado, cada discurso difunde-se a partir de uma relação com o próprio saber nele figurado, de tal modo que seus limites jamais estarão fixados de fato. Ora, o móvel que origina a ideologia é o mesmo que abre as potencialidades para o pensamento criativo. Seja na expressão artística, seja nas formulações científicas, a inexistência de limites aos discursos particulares permite o surgimento de um discurso impessoal sobre a sociedade e sobre a política (primeiro passo para a elaboração da ideologia), mas também solta as amarras do pensamento e da criatividade.

A história da arte moderna, por exemplo, poderia ser concebida desde estas duas perspectivas, ou seja, ora como expressão de rupturas e revoluções nas formas e nos conteúdos, ora como reiteração de um discurso que se oferece como ideologia. Em suma, a passagem de um discurso particular e localizado (um discurso do social e da política, inerente a uma práxis) para um discurso universal e inlocalizável (um discurso sobre o social e sobre a política, que pretende conformar a prática social) é o primeiro passo para a constituição da ideologia, e atesta a inexistência de um ponto a partir do qual se expressaria a ordem do mundo (garantia transcendente que amalgamaria a lei, o poder e o saber).

Diante de tal quadro, é preciso evitar toda explicação do tipo causal, isto é, não se trata de buscar a causa desse processo em elementos que contivessem o privilégio de condensar o princípio ativo da transformação e de transmiti-lo para os demais setores da vida social. Se assim procedêssemos, estaríamos imputando à história moderna uma feição, uma tessitura, que ela só adquiriria posteriormente. Estaríamos considerando como “natural” e “objetivo” certas características que nos esforçamos para compreender como enraizadas historicamente apenas em um dado momento. Tomaríamos como próprio da “realidade histórica geral” uma particular articulação circunscrita a uma formação social localizada. Aliás, a elaboração da ideologia como fenômeno ligado à ruptura no sistema simbólico social a partir do século xvii nos impede de pensar em termos de um “real histórico” preordenado e já-dado diante dos olhos do intérprete. Esta noção é em si fruto de uma criação operada na história, e como tal dela não poderia se destacar a fim de se tornar um princípio explicativo universal.

Assim, é preciso evitar passar de uma explicação de cunho econômico e histórico para outra que transfere ao nível do Estado e da política stricto sensu o determinismo que outrora se buscou nas relações sociais de produção. Pois o Estado moderno possui traços que só se efetivam a partir de uma experiência do deslindamento entre a lei e o saber. Colocar no fato da política a causa das transformações aqui discutidas implicaria a fundamentação de um processo que apontamos possuir a característica da imanência entre ato fundador e coisa fundada, entre instituinte e instituição. Trocaríamos seis por meia dúzia, e o que é pior, após procurar o movimento de constituição da ideologia forneceríamos uma explicação de cunho ideológico para sua causação.[9]

Ora, a ideologia exige uma nova interpretação tão logo recusemos defini-la por referência a um suposto real. Não podemos cercá-la a não ser que reconheçamos a tentativa, pertencente propriamente à sociedade moderna, de encobrir o enigma de sua forma política, de anular os efeitos da divisão social e da divisão temporal que aí se engendram, de restaurar o “real”. Nesse sentido, não vamos apreendê-la como “reflexo” e a partir da prática que refletiria. Desvenda-se por sua obra (“ouvrage”): obra para responder à “instituição” e com a finalidade de reconduzir a indeterminação do social determinação.[10]

Como único antídoto à ameaça totalitária, seja na instituição do social, seja no próprio esforço de elucidação do mundo, há que se enfatizar a todo instante a necessária indeterminação do e no pensamento. Não há como evitar o caminho agonístico, desde que se pretenda resguardar o espaço público do diálogo. O que não significa valorizar a finalidade da derrota dos adversários como único meio de assegurar a justeza de nossas próprias certezas.

Este é o paradoxo inerente à atividade política nos regimes democráticos: cada agente surge na cena pública reivindicando para si privilégio de ser o portador do universal — isto confere força a seus posicionamentos, tanto quanto ânimo psicológico a seus adeptos e à militância em geral –, contudo, a sua eventual vitória jamais poderá ser apreendida e exercida como universalidade efetiva, sob pena de completa exclusão do espaço público. O regime democrático oferece a oportunidade histórica única de interrogação de seus conteúdos e fundamentos, nada se encontra em posição privilegiada que não necessite de um esforço para se auto-legitimar. Entretanto, a luta cotidiana dos mais variados agentes políticos nos aponta tanto para a necessidade de uma fundamentação de caráter universalizante de seus conteúdos, quanta para a impossibilidade de preenchimento efetivo de todos os conteúdos. A um anseio de universalidade inerente à ação política consciente de si vem se acrescentar a total impossibilidade de efetivação deste ideal, sob pena de aniquilação da prática democrática sob os escombros da fundamentação integral das instituições, do fechamento social perante a historicidade, da exclusão de toda alteridade, enfim, dos horrores totalitários.

Ora, algo semelhante ocorre com o intérprete. Diante de uma obra de pensamento que lhe toca, e, portanto, gera indagações sobre si e sobre o mundo, aquele que interroga e reflete se apresenta diante dos demais leitores como tendo encontrado, se não todas as respostas, ao menos ague-las em torno das quais espera alojar o núcleo do pensamento de um autor e da expressão do real que lhe é particular. O intérprete tende inexoravelmente a se apresentar como portador da chave que permitiria a compreensão mais justa da obra, o que implicaria, em última instância, a exclusão das demais leituras. Ora, se esta postura define a inevitável condição da interpretação, por outro lado ela jamais poderá se converter em escopo do intérprete, sob pena de banir de seu próprio texto o que era indagação, o que era esforço de reflexão no texto do autor examinado.

A interpretação também se perfaz no limite definido entre a exclusão ortodoxa das leituras dissonantes e a necessária constância do diálogo e da indagação. O ideal da leitura definitiva é temperado pela indeterminação reiterada pelo acréscimo de leituras e de leitores ao longo do tempo.

Em suma, agir na esfera política, assim como interpretar uma obra de pensamento, são atividades que nascem de um ânimo universal, ou seja, ambas se desenvolvem no espaço do confronto (de opiniões ou de ideias) almejando estabilizar posições de verdade válidas a todos (nas instituições que exercem o poder, ou nas instituições que regulam a produção e a circulação do discurso verdadeiro). Entretanto, esta origem jamais poderá se realizar plenamente, o que acarretaria o fim do exercício democrático do poder, e o fechamento do diálogo inerente à reflexão. Paradoxo inevitável, pois o anseio de universalidade é o que move originalmente tanto o político como o intérprete, já a persecução deste anseio até suas últimas consequências acarretaria o banimento do espaço que permitiu a emergência destas mesmas atividades.

 

[1] No caso Willion versus Berkley o juiz Southcote, secundado pelo juiz Harper, proferiu a sentença na qual se lêem os notáveis argumentos: “0 Rei possui duas Capacidades, possui dois Corpos, sendo um deles um Corpo Natural, constituído de Membros naturais como qualquer outro Homem possui e, neste, ele está sujeito a Paixões e Morte como os outros Homens; o outro é um Corpo Político, e seus respectivos Membros são seus Súditos, e ele e seus Súditos em conjunto compõem a Corporação, e ele é incorporado com eles, e eles com ele, e ele é a Cabeça, e eles os Membros, e ele detém o Governo exclusivo deles; e este Corpo não está sujeito a Paixões como o outro, nem à Morte, pois, quanto a este Corpo, Rei nunca morre, e sua Morte natural não é chamada em nossa Lei a Morte do Rei, mas a Transmissão do Rei, sem que a Palavra (Transmissão) signifique que o Corpo Político é transferido e transmitido do Corpo natural agora morto, ou agora removido da Dignidade real, para outro Corpo natural. De sorte que significa uma Remoção do Corpo político do Rei deste Reino de um Corpo natural para outro”. Citado por E. Kantorowicz em Os dois corpos do rei— um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras,1988. Ao longo do século xvi, o judiciário inglês, provavelmente o mais bem estruturado e independente na Europa do período, elaborou uma sofisticada teoria sobre o duplo corpo do Rei com vistas a resolver disputas em torno da legitimidade dos títulos de terra, e das deliberações em geral, proferidas pelos monarcas. Ou seja, até onde o sucessor da Coroa Real poderia reformá-las, cassando os privilégios e doações anteriormente concedidos. A disputa se resolvia com os juízes argumentando se se tratava de uma decisão concedida pelo antigo monarca como corpo natural, pessoa física dotada de paixões, e, portanto, facilmente reformável, ou como cabeça do corpo político, o que lhe garantia certa imutabilidade. Como nos mostrou Kantorowicz, esta teoria ultrapassa os limites do debate judiciário, revelando a simbologia profunda a sustentar a própria instituição monárquica.

[2] C. Lefort, “A filosofia política diante da democracia moderna”, em Revista de Filosofia, re- 1, p. 139. Porto Alegre: LPM, 1984.

[3] Esta dialética da exteriorização de cada atividade e de cada forma diferenciada de saber é tema central nos textos do jovem Marx. Contudo, é preciso evitar uma leitura que tenda a reduzir cada uma dessas mutações a uma dialética da alienação, pois a autonomia relativa adquirida em cada esfera da atividade social denota uma nova constituição simbólica do real — o fim da sociedade orgânica que, por sua vez, demanda uma interrogação não submetida integral e coerentemente a uma lógica das relações de classe. Cf. C. Lefort, “Marx: de uma visão de história a outra”, As formas da história. São Paulo: Brasiliense, 1989

[4] C. Lefort, “A filosofia política diante da democracia moderna”, em Revista de Filosofia, n” 1, p. 137. Porto Alegre: LPM, 1984.

[5] Eis por que é no contraste com o totalitarismo que Lefort nota a importância de evitar a perspectiva de Tocqueville, apesar da imensa contribuição à sua própria concepção, a fim de que se ultrapasse a intuição da ambiguidade no sentido da afirmação efetiva do caráter intrinsecamente histórico da democracia

[6] Os pensadores que no início da modernidade formularam a hipótese do contrato social partiam, de certo modo, da perplexidade gerada por tais indagações em torno da dinâmica entre o momento instituinte e a comunidade instituída

[7] C. Lefort, As formas da história, op. cit., pp. 300-1.

[8] É evidente que estas sociedades são históricas, porque se transformam, entram em crise e desaparecem. Contudo, toda sua produção simbólica está a serviço da eliminação da alteridade gerada internamente, isto é, suas instituições estão no tempo, mas operam de forma a anulá-lo como índice da transitoriedade. “Temporal em si, mas intemporal para si, essa sociedade é histórica apenas para nós.” Marilena Chaui, “Crítica e ideologia”, em Cultura e democracia. São Paulo: Cortez, 1989, p. 16

[9] No belo ensaio, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo:Fun-dação Perseu Abramo, 2000, a professora Marilena Chaui, evitando as armadilhas do historicismo e da mera crítica cultural, realiza instigante estudo dos mecanismos simbólicos que operam sob a ideia de nacionalidade e identidade brasileiras.

[10] C. Lefort, As formas da história, op. cit., p. 302.

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