Intelectual engajado: uma figura em extinção?
por Marilena Chaui
Resumo
A autonomia racional moderna das ações (artes, ética, direito e técnica) e do pensamento (ciência, filosofia) conferiu a seus sujeitos autoridade teórica e prática para criticar as instituições e permitiu o surgimento da figura do intelectual, defensor de causas universais e transgressor da ordem vigente.
O melhor exemplo da dificuldade de síntese entre recolhimento e exposição pública, sinalizada por Pierre Bourdieu, é a divergência entre Sartre e Merleau-Ponty, em 1953. Por meio de uma série de artigos publicados na revista Les Temps Modernes, Sartre e Merleau-Ponty divergem sobre o engajamento do intelectual moderno.
Na tese desenvolvida no Ser e o Nada, Sartre trata da diferença entre o mundo das coisas – o Ser – e a consciência – o Nada. Para Sartre, como a consciência é leve e insubstancial, o filósofo não deve se deixar impregnar pelos acontecimentos e deve conservar a soberania. Em Merleau-Ponty, o filósofo não pode “dar o assentimento imediato e direto a todas as coisas, sem considerandos”. Para se ter um engajamento verdadeiro, é preciso distanciamento para análise dos fatos. Para Sartre, o distanciamento e a exigência de análise da totalidade dos fatos pretendido por Merleau-Ponty tornam a atitude política do filósofo impossível.
O intelectual engajado sartriano é o escritor de atualidades que opina e intervém em todos os acontecimentos à medida que vão se sucedendo uns aos outros. É um estado de vigília permanente. Merleau-Ponty afirma que, ao escrever sobre cada acontecimento isoladamente, o escritor induz o leitor a aceitar ou recusar fatos que aceitaria ou recusaria se pudesse ter uma visão mais abrangente.
Se nos anos 60, o engajamento político do intelectual mostrava vigor, hoje intelectuais retraíram-se da vida pública. Por quê? A ausência de um pensamento capaz de interpretar as contradicões atuais, o encolhimento do espaço público, o alargamento do espaço privado e a substituição do intelectual engajado pelo especialista competente seriam algumas das causas.
No Brasil, a figura do intelectual como letrado-especialista encontrou um novo lugar: os meios de comunicação de massa. O silêncio dos intelectuais tem como origem a mudança na forma de inserção das artes e do saber no modo de produção capitalista. O saber e a arte como críticas do presente e expressões do novo, a política como ação que se inventa a si mesma e a história como campo do possível parecem sufocados pelo conformismo.
O conhecimento não tem nenhuma luz senão a que brilha sobre o mundo a partir da redenção.
Adorno, Minima Moralia
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Ao interpretar o projeto histórico moderno, Boaventura dos Santos[1] assinala os dois pilares sobre os quais se assentou a modernidade: o da regulação e o da emancipação. O pilar da regulação, por sua vez, apoiou-se sobre três princípios: o Estado (ou a soberania indivisa, que impõe a obrigação política vertical entre os cidadãos), o mercado (que impõe a obrigação política horizontal individualista e antagônica) e a comunidade (ou a obrigação política horizontal solidária entre seus membros). O pilar da emancipação, por seu turno, foi constituído por três lógicas de autonomia racional: a racionalidade expressiva das artes, a racionalidade cognitiva e instrumental da ciência e da técnica, e a racionalidade prática da ética e do direito. O projeto da modernidade julgava possível o desenvolvimento harmonioso da regulação e da emancipação e a racionalização completa da vida individual e coletiva. Todavia, o caráter abstrato dos princípios dos pilares levou cada um deles à tendência a maximizarse com a exclusão do outro; além disso, a articulação entre o projeto moderno e o surgimento do capitalismo assegurou a vitória do pilar da regulação contra o da emancipação.
Mantendo a terminologia de Boaventura dos Santos, podemos dizer que o pilar da emancipação, ou a lógica da autonomia racional das artes, ciências, técnicas, ética e direito, foi determinante para o surgimento da figura moderna do pensador e do artista não submetidos às instituições eclesiástica, estatal e acadêmico-universitária. A autonomia racional moderna das ações (artes, ética, direito e técnica) e do pensamento (ciências e filosofia) conferiu a seus sujeitos algo mais do que a independência: conferiu-lhes autoridade teórica e prática para criticar as instituições religiosas, políticas e acadêmicas, como fizeram os philosophes da Ilustração francesa, e, no século XIX, para criticar a economia, as relações sociais e os valores, como fizeram os socialistas utópicos, os anarquistas e os marxistas. O pilar da autonomia racional tornou possível o surgimento daqueles que, durante o Caso Dreyfus, Zola convocou à cena pública com um nome novo: os intelectuais.
Sob essa perspectiva, vale a pena reproduzir um trecho de um ensaio de Pierre Bourdieu sobre o papel dos intelectuais no mundo moderno:
Os intelectuais surgiram historicamente no e pelo ultrapassamento da oposição entre a cultura pura e o engajamento. São por isso seres bidimensionais. Para invocar o título de intelectual, os produtores culturais precisam preencher duas condições: de um lado, pertencer a um campo intelectualmente autônomo, independente do poder religioso, político, econômico e outros, e precisam respeitar as leis particulares desse campo; de outro lado, precisam manifestar sua perícia e autoridade específicas numa atividade política exterior ao campo particular de sua atividade intelectual. Precisam permanecer produtores culturais em tempo integral sem se tornar políticos. Apesar da antinomia entre autonomia e engajamento, é possível mantê-los simultaneamente. Quanto maior a independência do intelectual com relação a interesses mundanos, advinda de sua mestria, tanto maior sua inclinação a asseverar essa independência, criticando os poderes existentes, e tanto maior a efetividade simbólica de qualquer posição política que possam tomar.[2]
A fala pública e a ação pública dos intelectuais, justamente porque balizadas pela afirmação da autonomia, assumem dois traços principais: a defesa de causas universais, isto é, distantes de interesses particulares e a transgressão com referência à ordem vigente. Essas características nos dão uma pista para compreender a tese instigante de Antonio Candido sobre os intelectuais brasileiros como aqueles que formam o partido do contra”.
Acompanhando o percurso histórico dos intelectuais, Bourdieu fala em “situação paradoxal” e em “síntese difícil” da cultura pura e do engajamento, pois os intelectuais oscilam entre o recolhimento e a exposição pública, o silêncio e a intervenção em público, oscilação que decorre das circunstâncias nas quais a demanda de autonomia racional é respeitada ou ameaçada pelos poderes instituídos. Nada melhor para ilustrar a dificuldade dessa síntese que as divergências entre Sartre e Merleau-Ponty sobre a figura do intelectual engajado, surgida na França após a Segunda Guerra, e cuja forma visível foi a criação, pelos dois filósofos, de uma revista de intervenção política e cultural, Les Temps Modernes. A divergência entre ambos ocorre em 1953, por ocasião da defesa do Partido Comunista Francês por Sartre, que até então fora anticomunista.
Em 28 de abril de 1953, o PCF convocou os operários franceses para uma manifestação contra a Guerra da Coreia e, para 4 de maio, uma greve geral de repúdio à prisão do secretário-geral do partido, Jacques Duclos, ocorrida durante a manifestação de abril. Nas duas ocasiões, os operários não responderam em massa à convocação.
Sartre publica em Les Temps Modernes o primeiro artigo da série Os comunistas e a paz, contra a prisão de Duclos, o anticomunismo e a fraca resposta operária ao chamamento do PCF. Com relação ao anticomunismo, declara que, quando atacado, um partido comunista deve ser incondicionalmente defendido por todas as esquerdas. Quanto à fraca resposta do operariado francês ao PCF, a crítica sartriana apóia-se na afirmação de Marx, no Manifesto comunista, da necessidade de o proletariado organizar-se num partido revolucionário para concluir que, sendo o Partido Comunista tal partido, sem ele os operários não existirão como classe, mas apenas como massa passiva e alienada.
Merleau-Ponty reage e recusa a posição de Sartre. Publica, na revista, um artigo sobre a relação entre filosofia e política e a crise atual da ideia de revolução, porque a ideia de Marx do desenvolvimento da consciência de classe foi substituída pela ideia bolchevique de “interesses do partido”. Assim, à maneira bolchevique, Sartre identifica a história do proletariado com a ação dos partidos comunistas, esquecendo a longa e difícil história dos movimentos operários para ficar com a autoimagem revolucionária de uma burocracia partidária, que se coloca como representante exclusiva da classe. Merleau-Ponty enfatiza a diferença entre Marx e os PCs: enquanto o primeiro exigia uma práxis tecida nas mediações entre a subjetividade proletária e a objetividade das condições materiais históricas, os segundos praticam, a partir do bolchevismo, uma ação identificadora entre ambas, sem mediações.
A questão, atada à figura do intelectual engajado, coloca um dos temas fundamentais que Sartre e Merleau-Ponty desenvolveram em suas obras: o da relação entre filosofia e política ou, na expressão de Merleau-Ponty, “as difíceis relações entre o filósofo e a Cidade” e, na de Sartre, “uma filosofia que se interesse pelos homens reais, com seus trabalhos e suas penas”. Sob o impacto do marxismo e da revolução proletária, ambos conceberam a filosofia como recusa de um pensamento separado do mundo tal como era realizada pela filosofia universitária francesa, espiritualista e idealista; mas também a conceberam como crítica da filosofia da história elaborada pelo Partido Comunista Francês, esclerosado pela cisão entre uma teoria idealista e uma práxis empirista, solidária com o stalinismo e com a visão burocrática do pensamento e da ação. Nas “Questões de método”, Sartre escreve:
Havíamos sido educados no humanismo burguês e esse humanismo otimista se esfacelava porque adivinhávamos, nos arredores de nossa cidade, a imensa massa de “sub-homens conscientes de sua sub-humanidade”, mas ainda sentíamos o esfacelamento de maneira idealista e individualista: os autores que amávamos, naquela época, nos diziam que a existência é um escândalo. Todavia, o que nos interessava eram os homens reais, com seus trabalhos e suas penas; exigíamos uma filosofia que desse conta de tudo sem nos apercebermos de que ela já existia e que era ela, justamente, que procurava em nós essa exigência.[3]
De modo semelhante, em “A guerra aconteceu”,[4] Merleau-Ponty descreve o esfacelamento do otimismo humanista universitário e da boa consciência francesa, sob os efeitos da guerra, que trouxe a evidência bruta e irrecusável do peso da história, da opacidade das relações sociais, porque estas não são relações imediatas entre consciências, mas relações mediatizadas pelas coisas e pelas instituições.
Os franceses foram surpreendidos com a guerra, no verão de 1939, porque “não nos guiávamos pelos fatos” e “havíamos secretamente decidido ignorar a violência e a infelicidade como elementos da história”. Na universidade, professores ensinavam que guerras nascem de mal-entendidos que podem ser dissipados ou de acasos que podem ser conjurados pela paciência e pela coragem. Por seu turno, os intelectuais do Partido Comunista Francês, certos de possuir o segredo da história e da luta de classes, consideraram o nazi-fascismo uma crise do capitalismo e a guerra apenas uma aparência que não tocaria na solidariedade internacional do proletariado; em suma, elaboraram uma ideologia da guerra e da luta de classes que lhes permitia, pela aplicação mecânica da relação capital-trabalho, evitar uma análise materialista e histórica da guerra e da luta de classes.
A tese nuclear da primeira obra filosófica de Sartre — O ser e o nada — é a diferença de essência entre o mundo das coisas — o ser — e a consciência — o nada. O ser é resistente, opaco e viscoso; é o em-si, a objetividade nua e bruta. O nada é a consciência que, ao contrário, é insubstancial, pura atividade e espontaneidade; é o para-si, a subjetividade plena. Para ela, os outros, embora presumidos como humanos, são mundo, portanto, seres ou coisas. Donde a célebre expressão de Entre quatro paredes: “o inferno são os outros”, pois cada um, enquanto consciência ou sujeito, reduz os demais à condição de mera coisa e é reduzido pelos outros à condição de coisa. Embora situada no mundo, a consciência, por ser nada, não é condicionada por ele, não podendo ser determinada pelas coisas nem pelos fatos, e, pelo contrário, tem o poder de nadificá-los, fazendo-os existir como ideias, imagens, sentimentos e ações — a consciência, sem amarras, é liberdade pura. Donde a conhecida fórmula sartriana: “estamos condenados à liberdade”. Para Sartre, a liberdade dá sentido ao engajamento: “O homem constrói signos porque ele é significante em sua própria realidade e é significante porque é o ultrapassamento dialético de tudo o que é simplesmente dado. O que chamamos de liberdade é a irredutibilidade da ordem cultural à ordem natural”.[5]
Para Merleau-Ponty, o nada sartriano é a nova versão idealista e intelectualista da consciência de si reflexiva, portanto, soberana, fundadora, constituidora do sentido do Ser. Ao contrário, desde as suas primeiras obras, a filosofia merleau-pontiana acentua o mundo pré-reflexivo no qual vivemos e de onde emergimos como intercorporeidade e intersubjetividade, portanto, atados ao tecido do mundo e aos outros, sem o poder para constituí-los. A filosofia de Merleau-Ponty ergue-se contra o intelectualismo, isto é, a suposição da soberania da consciência como doadora de sentido e fundadora do mundo enquanto significação. Contra a herança intelectualista, afirma a encarnação da consciência num corpo cognoscente e reflexionante, dotado de interioridade e de sentido, relacionando-se com as coisas como corpos sensíveis, também dotados de interioridade e de sentido, e com os outros, os quais não são coisas nem partes da paisagem, mas nossos semelhantes. Se a consciência não é pura espontaneidade desencarnada e soberana, compreende-se que a liberdade seja “o poder para transcender a situação de fato, que não escolhemos, dando-lhe um sentido novo”.
O filósofo não pode, de modo algum, separar-se e afastar-se do mundo, pois não estamos no mundo (como queria Sartre ao falar em situação), mas somos do e com o mundo. Para Merleau-Ponty, o engajamento dá sentido à liberdade:
Estamos misturados com o mundo e com os outros de maneira indeslindável. A ideia de situação exclui a liberdade absoluta na origem de nossos engajamentos. E a exclui igualmente no ponto de chegada. Nenhum engajamento pode fazer-me ultrapassar todas as diferenças e tornar-se livre para tudo […]. Sou uma estrutura psicológica e histórica. […]. Todas as minhas ações e meus pensamentos estão em relação com essa estrutura e até mesmo o pensamento de um filósofo nada mais é do que uma maneira de explicitar sua pegada sobre o mundo. E, no entanto, sou livre. Não a despeito ou aquém dessas motivações, mas por meio delas […]. Essa vida significante, essa certa significação da natureza e da história que sou não limitam meu acesso ao mundo; pelo contrário, são meu meio de comunicar-me com ele.[6]
Quais as consequências políticas dessas duas concepções divergentes da filosofia? Para Sartre, visto que a consciência é leve e insubstancial, o filósofo pode aceitar o apelo de todos os fatos e de todos os acontecimentos, não se deixando impregnar por eles, conservando a soberania. Para Merleau-Ponty, porque a consciência é encarnada num corpo e situada na intercorporeidade e na intersubjetividade, o filósofo não pode, para usarmos a expressão que emprega no Elogio da filosofia, “dar o assentimento imediato e direto a todas as coisas, sem considerandos”. Isso significa, como escreve, que “é preciso ser capaz de tomar distância para ser capaz de um engajamento verdadeiro, o qual é sempre também um engajamento na verdade”.
Sartre, porém, afirma que Merleau-Ponty possui uma concepção da filosofia que só aparentemente permitiria conciliá-la com a política, e que, realmente, ambas são inconciliáveis. A política, escreve ele, é ação fundada numa escolha objetiva, a partir dos dados e fatos disponíveis. Se a filosofia for, como pretende Merleau-Ponty, a exigência de, antes de escolher, colocar-se num distanciamento que permita apreender totalidades parciais e não os fatos isolados que formam nossa experiência cotidiana, então, escreve Sartre, “um filósofo de hoje não pode tomar uma atitude política”.
Que pretende Merleau-Ponty em julho de 1953? “Que é preciso saber o que é o regime soviético para escolher” a favor ou contra. Ora, retruca Sartre, essa exigência, que parece ser meramente empírica — isto é, a necessidade de possuir mais dados —, é, na verdade, uma dificuldade de princípio, pois nunca possuímos um saber total sobre as condições históricas. Escolhemos sempre sem pleno conhecimento e, sobretudo, não podemos invocar a reflexão filosófica quando somos chamados a reagir ao que é urgente. A concepção merleau-pontiana está equivocada. Com ela, conclui Sartre, dirigindo-se ao amigo, renuncias à política. Não renuncio à política, retruca Merleau-Ponty, apenas recuso-me a conceber o engajamento nos mesmos termos em que tu concebes.
Como Sartre concebe o engajamento? O intelectual engajado é o escritor de atualidades que opina e intervém em todos os acontecimentos relevantes, à medida que vão se sucedendo uns aos outros. É um estado de vigília permanente. Merleau-Ponty recusa esse tipo de engajamento por dois motivos. Primeiro porque, ao escrever com contagotas sobre cada acontecimento, o escritor induz o leitor a aceitar fatos isolados que recusaria se pudesse ter uma visão mais abrangente, ou, ao contrário, o induz a recusar como odiosos fatos isolados que, se percebesse de maneira mais abrangente, aceitaria. Essa vigília engajada é, afinal, má-fé. Não informa, não analisa, não reflete, corre e muda ao sabor dos eventos, de tal modo que se fosse dado ao leitor, um dia, reunir o conjunto de manifestos e pequenos artigos diários ou mensais de um intelectual engajado ou de um comentarista político, perceberia a incoerência, a leviandade, a irresponsabilidade daquele que escreve.
O segundo motivo é, à primeira vista, paradoxal. Com efeito, tendo apresentado o primeiro, seria de supor que Merleau-Ponty houvesse atacado Sartre por agir às cegas, manifestando-se em toda parte sobre todos os acontecimentos sem jamais possuir um conhecimento aproximado do todo ou, pelo menos, das linhas de força e vetores dos eventos, não lhes alcançando a significação. Ora, dá-se exatamente o contrário. É que, graças à soberania da consciência sobre o ser, Sartre construiu, em pensamento e em imaginação, um futuro fixo, mantido em segredo, que regula clandestinamente o curso dos acontecimentos. Aconteça o que acontecer, Sartre possui o futuro e a história em pensamento e em imaginação, sendo-lhe fácil opinar sobre tudo e tomar posição em tudo. Em outras palavras, os acontecimentos são apenas a superfície de um sentido secreto conhecido somente pelo filósofo, que, por isso, de modo soberano, opina politicamente.
Espectador absoluto, soberano e transcendente, o filósofo julga ter a chave do tempo, da história e do mundo. Sob a aparente modéstia daquele que, dissera Sartre, sabe que a condição humana é a da escolha na ambiguidade, às cegas, na ignorância do todo, esconde-se a presunção de ser Espírito Absoluto.
Se o filósofo julga poder dizer não importa o quê a cada dia, é por julgar-se na posse do sentido total da história. Sua irresponsabilidade cotidiana tem como pressuposto uma história completa (já realizada em pensamento), que apagará da memória os passos empíricos por ela realizados, porque os absorve num sentido único que os tornará irrelevantes quando a pena de tê-los feito também tiver se tornado irrelevante. Por isso mesmo, em julho de 1953, Sartre podia escrever que “todo anticomunista é uma criatura desprezível, nada me fará mudar de opinião”, mas, três anos depois, sob o impacto da invasão soviética em Budapeste, não hesitou em escrever: “Jamais será possível reatar relações com as atuais dirigentes do PCF […] resultado de trinta anos de mentiras e esclerose […]. Hoje, volto à oposição”.
Com Sartre e Merleau-Ponty, duas concepções da filosofia e do engajamento intelectual estão em choque. Estamos perante a oposição entre a concepção da filosofia como consciência soberana clandestina, que manobra as posições e as opiniões políticas (sabendo, de antemão, que não são decisivas nem importantes, porque o curso da história se realiza secretamente com ou sem elas), e aquela que percebe a consciência mergulhada no mundo, fazendo-se na relação com ele e que, portanto, não dispõe da chave da história e da política.
A história não é uma lógica da necessidade absoluta, nem a política, a álgebra da história: o revolucionário, escreve Merleau-Ponty nas Aventuras da dialética, navega sem mapas. Por isso mesmo, cada ato, cada gesto, cada palavra, cada pensamento contam na determinação do curso da história e da política, pois está sob nossa responsabilidade compreender as mediações subjetivas e objetivas que orientarão o rumo dos acontecimentos. Manifestar-se sobre tudo, assumir posição e ter opinião sobre tudo, mudar de atitude conforme mudem os ventos, abandonar a obra já escrita, desdizendo-a e desdizendo-se, é irresponsabilidade, não é liberdade. Isso significa que, muitas vezes, o verdadeiro engajamento exige que fiquemos em silêncio e que não cedamos às exigências cegas da sociedade. As relações do filósofo com a Cidade são difíceis, diz Merleau-Ponty, porque ela lhe pede exatamente o que ele não lhe pode dar: o assentimento imediato, sem maiores considerações.
As divergências entre Sartre e Merleau-Ponty nos colocam diante dos impasses e das aporias da autonomia racional. A defesa da autonomia racional por Merleau-Ponty é vista por Sartre como álibi para que uma filosofia impotente aceite um engajamento fraco. A suspensão provisória da autonomia racional por Sartre é vista por Merleau-Ponty como álibi para o uso instrumental do engajamento por uma filosofia onipotente.
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Sob o poder do modo de produção capitalista, fracassa o projeto moderno de harmonia entre o pilar da regulação e o da emancipação (para continuarmos a usar a terminologia de Boaventura dos Santos). A vitória do pilar da regulação sobre o da emancipação conferiu hegemonia à identidade entre a ordem vigente e a racionalidade, esta não mais autônoma e sim repressiva e instrumental, para usarmos a expressão cunhada pela Escola de Frankfurt.
Uma vez que o fracasso do projeto moderno decorre da forma de inserção da racionalidade no modo de produção capitalista, torna-se indispensável pensar a autonomia racional em outra chave. Lembremos que a vitória da regulação sobre a emancipação — ou da ordem sobre a transformação — recebeu, com Marx, um nome preciso: chama-se ideologia burguesa. Em outras palavras, a autonomia racional das artes, ciências, técnicas, filosofia, ética e direito não poderia escapar de ser determinada pela forma histórica da divisão social das classes, com a forma peculiar da separação entre trabalho manual e trabalho intelectual no modo de produção capitalista. Essa separação levou ao ocultamento da determinação material da racionalidade, invertendo a relação real entre a materialidade socioeconômica e o espírito, e, por isso mesmo, conferiu a este último o poder de produzir o real e a marcha da história. A independência conquistada a duras penas pela racionalidade moderna transformou-se em um fantasma poderoso: a crença de que as ideias determinam o movimento da história ou são o motor da história.
Ocultando a determinação histórica do saber, a divisão social das classes, a exploração econômica e a dominação política, as ideias se tornaram representações universais abstratas, imagens que a classe dominante possui de si mesma e que se estendem para todas as classes sociais e para todas as épocas. Em uma palavra, a ideologia integra a lógica da luta de classes em favor da classe dominante. Isso significa, como explicou Gramsci, que a classe dominante possui “intelectuais orgânicos”.
Marx dizia que os profissionais modernos, isto é, artistas e intelectuais, são assalariados que “só encontram trabalho enquanto colaboram para incrementar o capital”, são um tipo peculiar de trabalhador e de mercadoria: os que “precisam vender-se peça por peça”, ficando sujeitos a todas as vicissitudes, flutuações e competições do mercado. Farão obras de arte e de pensamento apenas se o capital os remunerar, e a remuneração exige como retorno que suas ações sirvam para “incrementar o capital”.
Vendendo-se peça por peça, vendem não apenas sua energia física, mas também suas mentes, sua sensibilidade, seus sentimentos mais profundos, seus poderes visionários e imaginativos, virtualmente todo o seu ser. O Fausto de Goethe nos fornece o arquétipo do intelectual moderno, forçado a vender-se para tornar o mundo diferente do que é. […] são movidos não apenas pela necessidade de viver, partilhada por todos os homens, mas pelo desejo de se comunicar, de se engajar num diálogo com seus companheiros humanos. Todavia, o mercado de mercadorias culturais provê o único médium através do qual pode ocorrer um diálogo em escala pública.[7]
O desejo de autonomia racional das artes e do pensamento tende, assim, a enredar-se em contradições e ambiguidades, armadilhas de que os intelectuais buscam livrar-se inventando ideias revolucionárias, que brotam de seus anseios e necessidades pessoais.
Contudo, as condições sociais que inspiram seu radicalismo servem também para frustrá-lo. Sabemos que até mesmo as ideias mais subversivas precisam manifestar-se através dos meios disponíveis no mercado. […] teremos todas as razões para acreditar que a sociedade burguesa gerará um mercado para ideias radicais. Este sistema requer constantes perturbações, distúrbios, agitação para manter a própria elasticidade e capacidade de recuperação, para assenhorar-se de novas energias e assimilá-las. […] A sociedade burguesa, por seu insaciável impulso de destruição e desenvolvimento […], produz inevitavelmente ideias e movimentos radicais que almejam destruí-la. Mas sua própria necessidade interna de desenvolvimento habilita-a a negar suas negações: ela se nutre e se revigora com o que se opõe.[8]
Se o conformismo e o radicalismo são os irmãos siameses da vida intelectual moderna, absorvida pela lógica de destruição e desenvolvimento do capital, isso significa que a autonomia racional das artes e do pensamento, entendida como autonomia dos intelectuais e de sua intervenção pública, só pode ser afirmada se estiver fundada no solo de uma negação que não possa ser incorporada no mesmo movimento de negação/afirmação do sistema capitalista. Em outras palavras, somente se for balizada pela tomada de posição no interior da luta de classes contra os dominantes e na redefinição dos universais, compreendendo-os como universais concretos. Essa tomada de posição é exatamente o que procura exprimir a noção de engajamento ou do intelectual como figura que intervém criticamente na esfera pública, trazendo consigo não só a transgressão da ordem (como afirma Bourdieu) e a crítica do existente (como pretende a Escola de Frankfurt), mas também a crítica do modo de sua inserção no modo de produção capitalista e, portanto, a crítica da forma e do conteúdo de sua própria atividade ou das artes, ciências, técnicas, filosofia e direito.
Assim concebida, a noção de engajamento é inseparável da compreensão de que as artes e o saber são instituições sociais no sentido forte do termo, ou seja, não apenas porque estão determinadas pelas condições sociais que definem, historicamente, sua produção, circulação e conservação, mas sobretudo porque exprimem as relações sociais, políticas e culturais em que são produzidas, distribuídas e conservadas. Enraizadas em seu tempo, é essa dimensão expressiva das obras de arte e de pensamento que permite falar em sua autonomia, entendida como trabalho para transformar as experiências dadas em experiências compreendidas. As obras autônomas são aquelas que transfiguram e ultrapassam a experiência imediata porque realizam um trabalho, isto é, negam os dados imediatos da experiência pela mediação de um sentido novo, que se encontrava oculto ou dissimulado nas dobras da experiência imediata. Não são autônomas porque sem determinações históricas, mas, ao contrário, porque assumem essas determinações para compreendê-las, criticá-las e ultrapassá-las.
Com a noção de engajamento como tomada de posição no interior da luta de classes, como negação interna das formas de exploração e dominação vigentes em nome da emancipação ou da autonomia em todas as esferas da vida econômica, social, política e cultural, podemos diferenciar o intelectual e o ideólogo. Este, inserido no mercado, fala a favor da ordem vigente, justificando-a e legitimando-a. Aquele fala contra. Donde o problema que sempre espreita o intelectual ao engajar-se nos partidos políticos de esquerda, isto é, nos partidos do contra, quando estes deslizam para a condição de partidos da ordem. Se sempre falar a favor, tornar-se-á ideólogo; se sempre falar contra, será execrado como traidor.
3
Se a diferença entre o intelectual e artistas, cientistas, técnicos, filósofos, juristas encontra-se no fato de que o primeiro é o artista ou o cientista, o técnico, o filósofo, o jurista quando intervêm criticamente no espaço público, falando em público, então a expressão “o silêncio dos intelectuais” pareceria contraditória.
Quando em silêncio, um artista ou um pensador deixam de ser intelectuais. Mas, se há silêncio, convém indagar quais poderiam ser suas causas. Delas falarão os demais conferencistas. Aqui, nos limitaremos a indicar apenas aquelas que nos parecem mais relevantes para propor nossa questão, isto é, se o intelectual engajado é uma figura em via de extinguir-se.
A primeira dessas causas, certamente, é o “amargo abandono das utopias revolucionárias […] a rejeição da política […] e um ceticismo desencantado”,[9] sob os efeitos do totalitarismo nos países ditos comunistas, do fracasso da glasnost na União Soviética e do recuo da socialdemocracia, com a adoção da chamada “terceira via” ou do “capitalismo acrescido de valores socialistas”, como diz o Partido Trabalhista inglês. Assim, desaparece o horizonte histórico do futuro. O presente, desprovido de força negativa, se fecha sobre si mesmo, a ordem vigente aparece autolegitimada e justificada porque nada parece contradizê-la nem a ela se opor, e os ideólogos podem comprazer-se falando do “fim da história” ou afirmando o capitalismo como destino final da humanidade. O retraimento do engajamento ou o silêncio dos intelectuais é, aqui, signo de uma ausência mais profunda: a ausência de um pensamento capaz de desvendar e interpretar as contradições que movem o presente. Não se trata de uma recusa a proferir um discurso público, e sim da impossibilidade de formulá-lo.
A segunda causa é o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado sob os imperativos da nova forma de acumulação do capital, conhecida como neoliberalismo. Um dos efeitos dessa situação é a transformação de direitos econômicos e sociais em serviços definidos pela lógica de mercado e a transformação do cidadão em consumidor. Ora, a democracia institui a cidadania como ação de contrapoderes sociais para a criação e garantia de direitos, graças à participação nas lutas políticas. Se os direitos, conquistados nos embates do espaço público e na luta de classes, são privatizados ao se transformar em serviços vendidos e comprados como mercadorias, o cerne da democracia é ferido mortalmente e a despolitização da sociedade é uma decorrência necessária.
O recuo da cidadania e a despolitização produzem a substituição do intelectual engajado pela figura do especialista competente, cujo suposto saber lhe confere o poder para, em todas as esferas da vida social, dizer aos demais o que devem pensar, sentir, fazer e esperar. A crítica ao existente é silenciada pela proliferação ideológica dos receituários para viver bem.
A terceira é a nova forma de inserção do saber e da tecnologia no modo de produção capitalista: tornaram-se forças produtivas, deixando de ser mero suporte do capital para se converter em agentes de sua acumulação. Consequentemente, mudou o modo de inserção dos pensadores e técnicos na sociedade porque se tornaram agentes econômicos diretos, e a força e o poder capitalistas encontram-se, hoje, no monopólio dos conhecimentos e da informação.
O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação, mas sua aplicação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso. […] As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. […] Há, por conseguinte, uma relação muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação de símbolos (a cultura da sociedade) e a capacidade de produzir e distribuir bens e serviços (as forças produtivas). Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo.[10]
Com a expressão “sociedade do conhecimento” procura-se indicar que a economia contemporânea se funda sobre a ciência e a informação, graças ao uso competitivo do conhecimento, da inovação tecnológica e da informação nos processos produtivos. Chega-se mesmo a falar em “capital intelectual”, considerado por muitos o principal princípio ativo das empresas.[11]
A produtividade e a competitividade na produção informacional baseiam-se na geração de conhecimentos e no processamento de dados. A geração do conhecimento e a capacidade tecnológica são ferramentas fundamentais para a concorrência entre empresas, organizações de todos os tipos e, por fim, países. […] O desenvolvimento econômico e o desempenho competitivo não se baseiam na pesquisa fundamental, mas na ligação entre a pesquisa elementar e a pesquisa aplicada e sua difusão entre organizações e indivíduos. A pesquisa acadêmica avançada e um bom sistema educacional são condições necessárias, mas não suficientes para que os países, as empresas e os indivíduos ingressem no paradigma informacional […]. O desenvolvimento tecnológico global precisa da conexão com a ciência, a tecnologia e o setor empresarial, bem como com as políticas nacionais e internacionais.[12]
Afirma-se que, hoje, o conhecimento não se define mais por disciplinas específicas, e sim por problemas e por sua aplicação nos setores empresariais. A pesquisa é pensada como uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado. Em outras palavras, é um survey de problemas, dificuldades e obstáculos para a realização do objetivo, e um cálculo de meios para soluções parciais e locais para problemas e obstáculos locais. Emprega intensamente redes eletrônicas para se produzir e se transformar em tecnologia, e submete-se a controles de qualidade segundo os quais deve mostrar sua pertinência social mostrando sua eficácia econômica. Fala-se em “explosão do conhecimento”[13] para indicar o aumento vertiginoso dos saberes quando, na verdade, indica o modo da determinação econômica do conhecimento, pois, no jogo estratégico da competição no mercado, uma organização de pesquisa se mantém e se firma se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades, obstáculos sempre novos. O conhecimento contemporâneo se caracteriza pelo crescimento acelerado e pela tendência a uma rápida obsolescência.
Nesse novo contexto, como falar em autonomia racional? Se as artes já haviam sido devoradas pela indústria cultural, agora são as ciências e as técnicas que se encontram submetidas à lógica empresarial. Não só a pesquisa se transformou em survey e posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa, mas também depende diretamente dos investimentos empresariais, os quais são determinados pelo jogo estratégico da competição no mercado, de maneira que os pesquisadores são mantidos e se firmam se forem capazes de propor áreas de problemas, dificuldades, obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos microproblemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. Os produtores de conhecimentos e tecnologias absorvem a lógica da competição empresarial e dão a ela sua adesão, negando, portanto, a autonomia racional, que dava autoridade à intervenção crítica dos intelectuais.
Esse fenômeno não atinge apenas as chamadas ciências duras e as ciências aplicadas, mas também as ciências humanas. Se até há pouco economistas, cientistas sociais e psicólogos entravam nas empresas pela porta do departamento de recursos humanos, na condição de assalariados, hoje são estimulados a se tornar capitalistas, criando empresas de consultoria e de assessoria para grandes empresas e instituições públicas.[14]
Além da dependência das universidades e centros de pesquisa em relação ao poder econômico, é preciso lembrar que esse poder se baseia na propriedade privada dos conhecimentos e das informações, de sorte que estes se tornam secretos e constituem um campo de competição econômica e militar sem precedentes. Em outras palavras, uma vez que o saber dos especialistas é o “capital intelectual” das empresas e que o jogo estratégico da competição econômica e militar impõe, de um lado, o segredo, e, de outro, a aceleração e obsolescência vertiginosas dos conhecimentos, tanto a produção como a circulação das informações estão submetidas a imperativos que escapam ao controle dos produtores do saber e ao controle social e político dos cidadãos. Ao contrário, o social e o político são controlados por um saber ou por uma competência cujo sentido lhes escapa inteiramente. Contrariando um dos princípios fundamentais da democracia, qual seja, a competência política de todos os cidadãos, não só a economia, mas também a política, são consideradas assuntos de especialistas cujas decisões parecem ser de natureza técnica, via de regra secretas ou, quando publicadas, o são em linguagem perfeitamente incompreensível para a maioria dos cidadãos.
A autonomia racional era a independência com que a racionalidade científica definia seus objetos, métodos, resultados e aplicação, segundo critérios imanentes ao próprio conhecimento. A nova situação do saber como força produtiva determina a heteronomia da ciência e da técnica, que passa a ser determinada por imperativos exteriores ao saber, bem como a heteronomia dos cientistas e dos técnicos, cujas pesquisas dependem do investimento empresarial. Ora, a autonomia racional era a condição tanto da qualidade do saber como da autoridade do intelectual engajado. Perdida a autonomia, que resta a este último senão o silêncio?
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Se os intelectuais estão em silêncio, em contrapartida os ideólogos estão cada vez mais tagarelas. Sua tagarelice recebeu o nome de pós-modernismo — definido por Frederic Jameson como “lógica cultural do capitalismo tardio”.
Em sua forma contemporânea, a sociedade capitalista se caracteriza pela fragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da dispersão espacial e temporal do trabalho, do desemprego estrutural e da destruição dos referenciais que balizavam a identidade de classe e as formas da luta de classes. A sociedade aparece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares e programas particulares, competindo entre si. Sociedade e natureza são reabsorvidas uma na outra e uma pela outra, porque ambas deixaram de ser um princípio interno de estruturação e diferenciação das ações naturais e humanas para se tornarem, abstratamente, “meio ambiente” instável, fluido, permeado por um espaço e um tempo virtuais que nos afastam de qualquer densidade material; “meio ambiente” perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido, programado, planejado e controlado por estratégias de intervenção tecnológica e jogos de poder.[15]
A materialidade econômica e social da nova forma do capital é inseparável de uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo, designada por David Harvey[16] como a “compressão espaço-temporal”, ou seja, o fato de que a fragmentação e a globalização da produção econômica engendram dois fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e a dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias eletrônicas e de informação, a compressão do espaço — tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças nem fronteiras — e a compressão do tempo — tudo se passa agora, sem passado e sem futuro. Na verdade, fragmentação e dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço indiferenciado e um tempo efêmero, ou sob um espaço que se reduz a uma superfície plana de imagens e sob um tempo que perdeu a profundidade e se reduz ao movimento de imagens velozes e fugazes.
A naturalização e a valorização positiva da fragmentação e dispersão socioeconômica estimulam o individualismo agressivo e a busca do sucesso a qualquer preço, ao mesmo tempo em que dão lugar a uma forma de vida determinada pela insegurança e pela violência, institucionalizadas pela volatilidade do mercado. Insegurança e medo levam ao gosto pela intimidade, ao reforço de antigas instituições, sobretudo a família e o clã como refúgios contra um mundo hostil, ao retorno das formas místicas e autoritárias ou fundamentalistas de religião e à adesão à imagem da autoridade política forte ou despótica.
Se, sob os imperativos da sociedade de consumo e do espetáculo, as artes foram submetidas à lógica da indústria cultural, agora, com aqueles imperativos acrescidos do fortalecimento da figura pessoal do governante, a política se torna indústria política. Por isso dá ao marketing a tarefa de vender a imagem do político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor. Para obter a identificação deste último com o “produto”, o marketing produz a imagem do político enquanto pessoa privada: características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichos de estimação. A privatização das figuras do político e do cidadão privatiza o espaço público. Por isso a avaliação ética dos governos não possui critérios próprios a uma ética pública e se torna avaliação das virtudes e vícios dos governantes, e a corrupção é atribuída ao mau caráter dos dirigentes e não às instituições públicas.
Do ponto de vista da experiência cognitiva contemporânea, Paul Virilio[17] fala em acronia e atopia, ou a desaparição das unidades sensíveis do tempo e do espaço topológico da percepção sob os efeitos da revolução eletrônica e informática. A profundidade do tempo e seu poder diferenciador desaparecem sob o poder do instantâneo. Por seu turno, a profundidade de campo, que define o espaço topológico, desaparece sob o poder de uma localidade sem lugar e das tecnologias de sobrevoo. Vivemos sob o signo da telepresença e da teleobservação, que impossibilitam diferenciar entre a aparência e o sentido, o virtual e o real, pois tudo nos é imediatamente dado sob a forma da transparência temporal e espacial das aparências, apresentadas como evidências. Nossa experiência e nosso pensamento se efetuam na perigosa fratura entre o sensível e o inteligível, a experiência do corpo como corpo próprio é desmentida pela experiência da ausência de distâncias e horizontes, somos convidados a um pensamento sedentário e ao esquecimento.
Nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente vivido como instante fugaz. Essa situação, longe de suscitar uma interrogação sobre o presente e o porvir, leva ao abandono de qualquer laço com o possível e ao elogio da contingência bruta e de sua incerteza essencial. O contingente não é percebido como uma indeterminação que a ação humana pode determinar, mas como o modo de ser dos homens, das coisas e dos acontecimentos, levando à adesão à descontinuidade, pois, ao perdermos a diferenciação temporal, não só perdemos a profundidade do passado, mas também a do futuro como possibilidade inscrita na ação humana enquanto poder para determinar o indeterminado e para ultrapassar situações dadas, compreendendo e transformando o sentido delas.
A essa nova forma da experiência corresponde a formulação ideológica do pós-modernismo, comemoração entusiasmada da dispersão e fragmentação do espaço e do tempo, da impossibilidade de distinguir entre aparência e sentido, imagem e realidade. Em outras palavras, essa ideologia toma a fragmentação econômica e social como um dado positivo e último; toma a ausência de sentido temporal como elogio da contingência e do acaso.
Num pequeno livro publicado em 1996, O fim das certezas. Tempo, caos e as leis da natureza, o físico Ilya Prigogine apresentou algumas conclusões e indagações resultantes de várias décadas de investigação nas ciências da natureza, conduzindo à superação da mecânica clássica e a reformulações da mecânica quântica. Fundamentalmente, a nova ciência da natureza abandona, de um lado, a ideia clássica de causalidade necessária ou determinismo, passando a empregar os conceitos de probabilidade, possibilidade e simetria; e, de outro, a ideia de reversibilidade temporal (que reduzia o tempo a uma dimensão do espaço geometricamente concebido), introduzindo o conceito de flecha do tempo ou irreversibilidade temporal, que permite dar nova significação ao conceito de entropia e responder à pergunta formulada por Prigogine: “Qual o papel do tempo, enquanto vetor de irreversibilidade, na física?”. Essas mudanças, ou o abandono das teses deterministas, conferem inteligibilidade a uma ideia, até então inconcebível, qual seja, a da historicidade da natureza, ou, nas palavras de Prigogine, “o caráter evolutivo de nosso universo”.
Pensamos situar-nos hoje num ponto crucial dessa aventura, ponto de partida de uma nova racionalidade que não mais identifica ciência e certeza, probabilidade e ignorância. […] Hoje, não temos mais medo da “hipótese indeterminista”. Ela é consequência da teoria moderna da instabilidade e do caos. […] Vinculamos a irreversibilidade a uma nova formulação, probabilista, das leis da natureza. Esta formulação fornece-nos os princípios que permitem decifrar a construção do universo de amanhã, mas é de um universo em construção que se trata. O futuro não é dado. Vivemos o fim das certezas. […] Vivemos um momento privilegiado da história das ciências.[18]
Ora, em 1979, Jean-François Lyotard,[19] examinando essa mutação conceitual das ciências da natureza, estendia a mudança às ciências sociais e à filosofia e contrapunha o pensamento moderno (surgido no século XVII) a essas transformações, que constituem o que ele, então, designou como a condição pós-moderna. A ideologia pós-moderna nasce, assim, da transposição das categorias das ciências naturais para as ciências humanas, as artes e a filosofia.
Essa transposição lhe permitiu declarar que a sociedade não é uma realidade orgânica (como pensava a sociologia positivista) nem um campo de conflitos (como pensavam os marxistas), e sim uma rede de comunicações linguísticas, uma linguagem composta de uma multiplicidade de diferentes jogos cujas regras são incomensuráveis, cada jogo entrando em competição ou numa relação agonística com os outros. Ciência, política, filosofia, artes são jogos de linguagem, “narrativas” em disputa.
Por isso, o pós-modernismo comemora o que designa como “fim da metanarrativa”, ou seja, os fundamentos do conhecimento moderno, relegando à condição de mitos eurocêntricos totalitários os conceitos que fundaram e orientaram a modernidade: as ideias de verdade, racionalidade, universalidade, o contraponto entre necessidade e contingência, os problemas da relação entre subjetividade e objetividade, a história como dotada de sentido imanente, a diferença entre natureza e cultura etc. Em seu lugar, afirma a fragmentação como modo de ser do real, fazendo das ideias de diferença (contra a identidade e a contradição), singularidade (contra a totalidade) e nomadismo (contra a determinação necessária) o núcleo provedor de sentido da realidade; e preza a superfície do aparecer social ou as imagens e sua velocidade espaço-temporal.
Os conceitos atuais de racionalidade e conhecimento enfatizam a variabilidade histórica e cultural, a fatalidade, a impossibilidade de ir par além da linguagem e alcançar a “realidade”, a natureza fragmentada e particular de toda compreensão, a penetrante corrupção do conhecimento pelo poder e a dominação, a futilidade de toda busca de fundamentos seguros e a necessidade de um enfoque pragmático para enfrentar essas questões. A ideologia pós-moderna, sob a ação das tecnologias virtuais, faz o elogio do simulacro, cuja peculiaridade, na sociedade contemporânea, se encontra no fato de que por trás dele não haveria alguma coisa que ele simularia ou dissimularia, mas apenas outra imagem, outro simulacro. Suscita o gosto e a paixão pelo efêmero e pelas imagens, em consonância com a mudança sofrida no setor da circulação das mercadorias e do consumo, no qual prevalece um tipo novo de publicidade e marketing em que não se vendem e compram mercadorias ou “coisas”, mas o simulacro delas, isto é, vendem-se e compram-se imagens (de saúde, beleza, juventude, sucesso, bem-estar, segurança, felicidade) que, por serem efêmeras, precisam ser substituídas rapidamente. Dessa maneira, o paradigma do consumo tornou-se o mercado da moda, veloz, efêmero e descartável, que induz preferências individuais igualmente efêmeras e descartáveis.[20]
Do ponto de vista da política, a concepção pós-moderna identifica racionalismo, capitalismo e socialismo: a razão moderna é exercício de poder ou o ideal moderno do saber como dominação da natureza e da sociedade; o capitalismo é a realização desse ideal por meio do mercado; e o socialismo o realiza por meio da economia planejada. Trata-se, portanto, de combater o racionalismo, o capitalismo e o socialismo, seja desvendando e combatendo a rede de micropoderes que normalizam ou normatizam capilarmente toda a sociedade,[21] seja erguendo-se contra a territorialidade das identidades orgânicas que sufocam o nomadismo das singularidades,[22] seja, enfim, combatendo os investimentos libidinais impostos pelo capitalismo e pelo socialismo, isto é, mudando o conteúdo, a forma e a direção do desejo.[23] A “política” pós-moderna opera, assim, três grandes inversões: substitui a lógica da produção pela da circulação (os micropoderes e o nomadismo das singularidades), e por isso substitui a lógica do trabalho pela da informação (a realidade como narrativa e jogos de linguagem), e, como consequência, substitui a luta de classes pela satisfação-insatisfação do desejo.
Diante disso e da paralisia do pensamento socialista (que mencionamos acima), não é surpreendente a atual fascinação das esquerdas pelas ideias políticas de um ideólogo como Carl Schmitt, em particular pelo “decisionismo” ou sua concepção da soberania como poder de decisão ex-nihilo em situações de exceção (isto é, de guerra e de crise).
Uma decisão soberana é excepcional — como o milagre, em que Deus interrompe com um acontecimento extraordinário o curso ordinário das coisas. É, por isso mesmo, incondicionada, ou seja, não depende de qualquer condição (econômica, social, jurídica, cultural, histórica) e não se submete a nenhuma condição. Por conseguinte, é instantânea, despojada de qualquer lastro temporal — é um início absoluto, sem vínculo com um passado e sem prolongamento em um futuro. Também o gosto pós-moderno pelas singularidades nômades ou desterritorializadas encontra eco nesse ideólogo, para quem a esfera política é autônoma, isto é, não é determinada pela economia, pela ética ou pelo direito, e se define pelo surgimento aleatório de agrupamentos antagônicos sob a forma da oposição amigo-inimigo. Politicamente, amigo é o que compartilha nosso modo de vida, inimigo, o outro, “o estrangeiro” que ameaça nosso modo de vida e, com isso, nossa existência. A política é uma operação de distinções e desigualdades para um confronto de forças.
Sob essa perspectiva, para Schmitt também a modernidade (no caso, a Revolução Francesa) é a catástrofe a ser superada. Por que a modernidade política foi catastrófica? Em primeiro lugar porque, ao introduzir a ideia de estado de direito, deu anterioridade jurídica ao político e o identificou ao Estado; em segundo, porque destruiu o núcleo definidor da soberania, ao proibir que o soberano intervenha na ordem jurídica; em terceiro, porque instituiu a união do individualismo igualitário e apolítico do liberalismo econômico com a democracia, a qual admite apenas a igualdade dos cidadãos cuja semelhança decorre de sua identidade pela língua, pela moral e pela religião, excluindo o outro ou o diferente. Pela mediação da democracia, o liberalismo se tornou uma política escondida e clandestina, sob a máscara do direito, da justiça, da lei, da verdade, da universalidade e da racionalidade. E o marxismo, por sua vez, foi o equívoco teórico e prático de interpretar a realidade a partir do economicismo que caracteriza intrinsecamente o liberalismo.
5
Em 1980, quando se desenvolvia o chamado processo de democratização, participei, nos Estados Unidos, de um colóquio sobre o Brasil. Mencionei a forte presença dos intelectuais nos debates políticos brasileiros, deixando transparecer minha apreensão e um certo desconforto pelo fato de que seu discurso sobre a sociedade brasileira poderia fazer calar os discursos da sociedade brasileira. A fala dos intelectuais, dominando o campo da opinião pública, poderia impor o silêncio aos outros sujeitos sociais, situação ainda mais grave quando a prática social e política brasileira passava por uma mutação sem precedentes, em decorrência do surgimento de um novo sujeito histórico, os movimentos sociais de luta pela criação de direitos, definidores da cidadania. Sempre forçadas ao silêncio e definidas sociologicamente como “classes subalternas”, as camadas populares — mais precisamente, a classe trabalhadora — emergiam como sujeito político.
Durante a discussão, uma antropóloga norte-americana me disse: “Não se preocupe. Assim que houver democracia no Brasil, os intelectuais deixarão de ter muita importância”. Esse comentário poderia ser interpretado de duas maneiras. Em uma delas, está presente a ideia de que a democracia, instituindo a igualdade dos cidadãos, confere a todos o direito de manifestar-se na esfera pública e de participar da formação da opinião pública. Na outra, poderia estar presente a experiência histórica recente dos Estados Unidos, isto é, a forte presença dos intelectuais nos movimentos contra a Guerra do Vietnã, que, uma vez terminada, os reconduziu ao seu habitat natural, a universidade. Da mesma maneira que num momento de contestação da ordem vigente os intelectuais norte-americanos ocuparam a cena pública, também no Brasil, passada a luta contra a ditadura, eles voltariam ao silêncio de seus trabalhos acadêmicos.
Naquela mesma discussão, uma historiadora inglesa perguntou-me se a presença dos intelectuais brasileiros na cena pública não seria influência da cultura francesa sobre nossa intelligentsia.
Vinda de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras paulista, em cuja fundação a cultura francesa foi marcante e decisiva, senti-me tentada a responder afirmativamente. Afinal, a Ilustração francesa inspirou a Inconfidência Mineira; os pintores acadêmicos brasileiros do Segundo Império eram enviados a Paris; o positivismo de Augusto Comte inspirou os republicanos da Escola Militar e um pensador como Sílvio Romero; o romantismo literário francês marcou nossa literatura romântica; Zola deixou suas marcas não apenas sobre nossa literatura naturalista, mas também, com Germinal, sobre nossos anarquistas; De Maistre e De Bonald foram referências fundamentais para o pensamento católico brasileiro conservador e reacionário; o esquerdismo de Sartre sacudiu nossos universitários; o marxismo de Althusser e a teoria foquista de Régis Debray marcaram as esquerdas brasileiras nos anos 1960-1970, cedendo apenas quando Michel Foucault passou a ocupar corações e mentes.
No entanto, minha resposta foi negativa. Voltei-me para a tradição ibérica, hierárquica e autoritária, na qual os letrados se distribuíam em três campos: na formulação do poder, como teólogos e juristas; no exercício do poder, como membros da vasta burocracia estatal e da hierarquia universitária; e no usufruto dos favores do poder, como bacharéis e poetas de prestígio. No Brasil, essa tradição combinou-se com a percepção da cultura como ornamento e signo de superioridade, reforçando o mandonismo e o autoritarismo, e como instrumento de ascensão social, reforçando desigualdades e exclusões. Em suma, voltei-me para o autoritarismo de nossa sociedade e para o letrado como uma de suas expressões.
Com as transformações econômicas e sociais do capitalismo no Brasil, ou a industrialização, uma parte dos letrados tornou-se intelectual de esquerda; porém, sob os efeitos do bolchevismo, os intelectuais tenderam a colocar-se como vanguarda esclarecida do proletariado, com a função de trazer a verdadeira consciência de classe às massas alienadas, desconsiderando a história dos movimentos operários e suas tradições anarquistas e socialistas, assim como as formas de ação e de organização dos trabalhadores brasileiros. Posteriormente, com a implantação da indústria de modelo fordista e taylorista, ou da “gerência científica”, com o crescimento da urbanização, o surgimento das universidades e das investigações científicas, a implantação da indústria cultural ou da cultura de massa pelos meios de comunicação e pela publicidade, a figura tradicional do letrado recebeu um acréscimo, qual seja, a do especialista, e tornou-se portadora do discurso competente, segundo o qual aqueles que possuem determinados conhecimentos têm o direito natural de mandar e comandar os demais em todas as esferas da vida social, de sorte que a divisão social das classes foi sobredeterminada pela divisão entre os especialistas competentes, que mandam, e os demais, incompetentes, que executam ordens ou aceitam os efeitos das ações dos competentes.
Era essa figura do intelectual brasileiro — como letrado de prestígio, burocrata estatal, vanguarda política e especialista competente — a causa de minha apreensão e de meu desconforto naqueles idos de 1980, pois muitos de nós indagávamos se seríamos capazes de perceber os novos sujeitos sociais e políticos e de ouvir o discurso do social sem substituí-lo pelo discurso competente sobre e para a sociedade e a política.
Em suma, se seríamos capazes de não tomar a política como uma técnica de especialistas — ou como administração — e de profissionais — que entenderiam de “engenharia política” —, mas praticá-la como construção da cidadania.
De fato, nos anos 1980, era possível delinear uma espécie de “tipologia” dos intelectuais brasileiros entre os anos 1950-1970: entre 1956 e 1963, os intelectuais (em geral vinculados ao Partido Comunista Brasileiro) se deram o lugar de consciência avançada das massas (ou, como se dizia, do povo) e de produtores de planos político-econômicos e governamentais para o Estado (como foi o caso do ISEB),[24] os dois grupos possuindo uma visão do papel demiúrgico do Estado para a resolução da luta de classes; entre 1964 e 1969, perante a ditadura e o terror de Estado, deixaram de colocar-se como consciência teórica do proletariado e puseram-se como seu “braço auxiliar e armado”, caminhando todos juntos, braços dados ou não (como dizia a canção).
A guerrilha, porém, os isolou da classe trabalhadora e da sociedade, em geral levando ao “espírito de aparelho”, isto é, pequenos grupos autocentrados e autorreferidos, que seriam dizimados pela repressão estatal, no início dos anos 1970. Entre 1974 e 1980 surgiram dois novos “tipos”. De um lado, os que voltaram a se alinhar com a perspectiva do pré-1964, introduzindo a ideia do partido moderno de massa, no qual o intelectual é a vanguarda teórica mas não dirige o processo, que deve emanar das direções políticas e das bases; de outro, os intelectuais que, finalmente, descobriram que os dominados pensam, sabem, conhecem a exploração e a dominação, não são vítimas da “falsa consciência” e sim da repressão sistemática a que os submete o Estado brasileiro, que destrói as possibilidades de transformar em prática política e histórica contínua o saber de que são possuidores. A história mostrou que esses dois tipos de intelectuais atuaram efetivamente na política brasileira, no correr dos anos 1980-1990.
Por que, então, supor o silêncio e o fim do engajamento?
Por um lado, porque a figura do intelectual brasileiro como letrado-especialista encontrou um novo lugar: os meios de comunicação de massa, os quais, como a velha figura do letrado-burocrata, tendem a erguer obstáculos à instituição da esfera da opinião pública, impondo suas próprias opiniões. Por outro, porque o verdadeiro silêncio dos intelectuais não tem como origem (como supunha a antropóloga norte-americana) o fortalecimento da cidadania e da participação, mas a mudança na forma de inserção das artes e do saber no modo de produção capitalista e o refluxo do pensamento de esquerda ou da ideia revolucionária de emancipação do gênero humano. O saber e a arte como crítica do presente e expressão do novo, a política como ação que se inventa a si mesma, e a história como campo do possível parecem sufocados pelo conformismo.
Merleau-Ponty escreveu certa vez que todo mundo gosta que o filósofo seja um revoltado. A revolta agrada. Afinal, é sempre reconfortante ouvir que as coisas como estão vão muito mal. Dito e ouvido isso, a má consciência se acalma, o silêncio se faz, e toda a gente, satisfeita, volta aos seus afazeres. O quadro que aqui tracei poderia parecer um grito de revolta contra o mal. No entanto, como intelectual engajada, quero fazer minhas as palavras desse filósofo quando escreve: “O mal não é criado por nós nem pelos outros, nasce do tecido que fiamos entre nós e que nos sufoca. Que nova gente, suficientemente dura, será suficientemente paciente para refazê-lo verdadeiramente? A conclusão não é a revolta, é a virtù sem qualquer resignação”.[25]
Notas
[1] Boaventura dos Santos, Crítica da razão indolente. Contra o desperdiço da experiência, São Paulo, Cortez Editores, 2000.
[2] Pierre Bourdieu, “The corporatism of the universal: the role of intellectuals in the modern world”, Telos, 1989, no 81, p. 99.
[3] Jean-Paul Sartre, “Questions de méthode”, em Critique de la raison dialectique, Paris, Gallimard, 1960, p. 23.
[4] Merleau-Ponty, “La guerre a eu lieu”, em Sens et non sens, Genebra, Nagel, 1965. A primeira versão foi publicada no final dos anos 1940 em Les Temps Modernes.
[5] Jean-Paul Sartre, “Questions de méthode ”, op. cit., p. 96
[6] Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, 1945, p. 520
[7] Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1986, pp. 113-4.
[8] Ibidem, p. 115.
[9] Pierre Bourdieu, op. cit., p. 102.
[10] Manuel Castells, A sociedade em rede, São Paulo, Paz e Terra, 1999, p. 69
[11] “A riqueza não reside mais no capital físico e sim na imaginação e criatividade humana”, Jeremy Rifkin, La era del acceso, Buenos Aires, Paidós, 2000. Estima-se que mais do 50% do PIB das maiores economias da OECD encontra-se fundado no conhecimento
[12] Manuel Castells, op. cit., p. 167
[13] Segundo cifras de J. Appleberry, citado por José Joaquín Brunner, o conhecimento de base disciplinar e registrado internacionalmente demorou 1750 anos para duplicar-se pela primeira vez, contado desde o início da era cristã; a seguir, duplicou seu volume a cada 150, e depois a cada cinquenta anos. Atualmente o faz a cada cinco anos, e a previsão é de que para o ano de 2020 se duplicará a cada 73 dias. Estima-se que a cada quatro anos duplica-se a informação disponível no mundo; todavia, assinalam os analistas, somos capazes de prestar atenção em apenas entre 5% e 10% dessa informação; cf. José Joaquín Brunner, “Peligro y promesa: la Educación Superior en América Latina”, em F. López Segrera e Alma Maldonado (orgs.), Educación Superior latinoamericana y organismos internacionales — Un análisis crítico, Cali, UNESCO, Boston College e Universidad de San Buenaventura, 2000, citado por Carlos Tunnemann e Marilena Chaui, “Desafios de la universidad en la sociedad del conocimiento”, texto preparatório para a Conferência Mundial sobre a Educação, UNESCO, 2004.
[14] Até os filósofos se tornaram proprietários de microempresas de assessoria ética para as grandes corporações, enquanto outros buscam a inserção no mercado como “filósofos clínicos”!
[15] Ver Michel Freitag, Le naufrage de l’université, Paris, Editions de la Découverte,1996.
[16] David Harvey, Condição pós-moderna, 14ª ed., São Paulo, Loyola, 1992.
[17] Paul Virilio, O espaço crítico, São Paulo, Editora 34, 1993. Numa direção semelhante, encontramos as análises de Maria Rita Kehl e Eugênio Bucci em Videologias, São Paulo, Boitempo Editorial, 2005, quando mostram que o olhar instituído pela mídia nada tem em comum com a experiência perceptiva do corpo próprio, uma vez que os meios de comunicação destroem nossos referenciais de espaço e tempo, constituintes da percepção, e instituem-se a si mesmos como espaço e tempo — o espaço é o “aqui” sem distâncias, sem horizontes e sem fronteiras; o tempo é o “agora” sem passado e sem futuro. Ou, como mostram os autores, a televisão se torna o lugar, um espaço ilocalizável que se põe a si mesmo num tempo imensurável, definido pelo fluxo das imagens. A televisão é o mundo. E esse mundo nada mais é senão a sociedade-espetáculo, entretecida apenas no aparecimento e na presentificação incessante de imagens que a exibem ocultando-a de si mesma
[18] Ilya Prigogine, O fim das certezas. Tempo, caos e as leis da natureza, São Paulo, Editora da Unesp, 1996, pp. 14, 58, 193 e 199
[19] Jean-François Lyotard, La condition posmoderne. Rapport sur le savoir, Paris, Editions de Minuit, 1979.
[20] David Ford, “Epilogue: postmodernism and postscript”, citado por Atilio Borón, A coruja de Minerva. Mercado contra democracia no capitalismo contemporâneo, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 369.
[21] Ou seja, os pós-modernos se apropriam do combate político travado por Michel Foucault quando substituiu o conceito moderno de poder pelo de disciplina.
[22] Ou seja, o pós-modernismo se apropria da filosofia da diferença, elaborada por Gilles Deleuze, e da noção de autonomia, elaborada por Félix Guattari
[23] Esta a proposta de Jean-François Lyotard
[24] Ver Caio Navarro de Toledo, ISEB — Fábrica de ideologias, São Paulo, Ática,1977.
[25] Merleau-Ponty, Prefácio a Signos, São Paulo, Martins Fontes, 1991, p. 37.