2003

Nacionalismo e a nova desordem mundial

por Michael Löwy

Resumo

Os problemas gritantes da nossa época — tais como o crescente abismo entre Sul e Norte, a necessidade de um desarmamento geral, a crise do mundo capitalista, a ameaça de catástrofe ecológica — são de caráter internacional. Daí que dificilmente podem ser solucionados em escalas local, regional ou nacional. Entretanto, ao mesmo tempo em que a economia mundial está se tornando cada vez mais unificada pelo capitalismo multinacional, uma onda espetacular de nacionalismo está irrompendo na Europa, e em escala mundial, fazendo submergir tudo por onde passa. Enquanto alguns movimentos nacionais são emancipatórios e progressistas, o nacionalismo é com muita freqüência uma “falsa solução” aos desafios econômicos, sociais, políticos e ecológicos de nosso tempo. Por que então se tornou tão popular em tantos países e regiões do mundo? Não há explicação fácil para essa irrupção, mas poderia ser útil compará-la ao atual renascimento dos sentimentos religiosos. A crise de ambos os modelos de racionalidade (instrumental) existentes — a acumulação de capital e o produtivismo burocrático — favorece o desenvolvimento de reações não-racionais (algumas vezes irracionais), tais como a religião e o nacionalismo. Naturalmente, ambos os fenômenos também podem assumir formas progressistas — como nos movimentos de libertação nacional ou na teologia da libertação —, mas as tendências reacionárias (nacionalistas e/ou da intolerância religiosa) são muito poderosas.

Quais são as alternativas ao controle totalitário do capitalismo mundial “realmente existente”? O antigo pseudointernacionalismo do Comintern stalinista ou dos seguidores das várias “Pátrias Socialistas” está morto e enterrado. Uma nova alternativa internacionalista para os oprimidos e explorados é desesperadamente necessária.

O internacionalismo de amanhã surgirá da fusão entre a tradição internacional socialista, democrática e antiimperialista do movimento operário (ainda mais viva entre os revolucionários de várias tendências, sindicalistas radicais, comunistas críticos, socialistas de esquerda) e a nova cultura universalista dos movimentos sociais como ecologia, feminismo, antirracismo e solidariedade terceiro-mundista. Essa tendência pode ser minoritária agora, mas é a semente de um futuro diferente e a garantia definitiva contra o barbarismo.


Os problemas gritantes da nossa época — tais como o crescente abismo entre Sul e Norte, a necessidade de um desarmamento geral, a crise do mundo capitalista, a ameaça de catástrofe ecológica — têm obviamente um caráter internacional. Dificilmente podem ser solucionados em escalas local, regional ou nacional. Entretanto, ao mesmo tempo em que a economia mundial está se tornando cada vez mais unificada pelo capitalismo multinacional, uma onda espetacular de nacionalismo está irrompendo na Europa, e em escala mundial, fazendo submergir tudo por onde passa. Enquanto alguns movimentos nacionais são emancipacionistas e progressivos, o nacionalismo é com muita frequência uma “falsa solução” aos desafios econômicos, sociais, políticos e ecológicos de nosso tempo. Por que então se tornou tão popular em tantos países e regiões do mundo? Não há explicação fácil para essa irrupção, mas poderia ser útil compará-la com o renascimento paralelo dos sentimentos religiosos. A crise de ambos os modelos de racionalidade (instrumental) existentes — a acumulação de capital e o produtivismo burocrático — favorece o desenvolvimento de reações não-racionais (algumas vezes irracionais), tais como a religião e o nacionalismo. Naturalmente, ambos os fenômenos também podem assumir formas progressivas — como nos movimentos de libertação nacional ou na teologia da libertação —, mas as tendências regressivas (nacionalistas e/ou da intolerância religiosa) são muito poderosas.

Em muitos países do mundo, a religião tende a se mesclar com o nacionalismo, insuflando-o com grande poder de atração e uma aura de “santidade”: é este o caso do catolicismo na Polônia e Croácia (como também, em um contexto diferente, na Irlanda), do cristianismo ortodoxo na Sérvia e Rússia, do evangelismo conservador nos Estados Unidos, de certas formas de judaísmo ortodoxo em Israel, do islã na Líbia e Irã. Em outros casos, a religião e o nacionalismo são rivais que se opõem ou mesmo forças em aberto conflito, como é o caso do fundamentalismo islâmico e do nacionalismo árabe no norte da África e no Oriente Médio.

De qualquer modo, o nacionalismo tem suas próprias raízes e não depende necessariamente da religião para se expandir. Como explicar seu presente surgimento? Poder-se-ia talvez considerar a onda nacionalista como uma espécie de reação à crescente internacionalização da economia e (até certo ponto) da cultura, uma resistência à ameaça de homogeneização. Ela também poderia ser compreendida como um movimento compensatório, tentando contrabalançar o declínio da independência econômica por meio do fortalecimento (algumas vezes em proporções gigantescas) dos aspectos éticos, políticos e culturais da identidade nacional.

Uma hipótese semelhante (porém diferente) foi sugerida por Theodor Adorno em uma conferência, em 1966 (sobre “Educação pós-Auschwitz”): se o nacionalismo é tão agressivo, “é porque, na era da comunicação internacional e dos blocos supranacionais, ele não consegue acreditar realmente em si e não tem escolha a não ser se tornar exageradamente excessivo, para persuadir tanto a si mesmo quanto aos outros de seu caráter substantivo”.[1] Naturalmente, o argumento tem muito mais peso em relação à situação na Europa nos anos 1990 do que em relação àquela existente nos anos 1960.

No entanto, esta e outras interpretações gerais, embora proveitosas, não conseguem explicar muito bem a extraordinária diversidade do fenômeno, que assume formas muito diferentes em diferentes regiões do mundo. Tem-se portanto de examinar a forma específica de nacionalismo em cada um de seus múltiplos aspectos, para poder entender as forças que o movem.

Vamos começar com a região onde essa nova onda de nacionalismo é particularmente visível: a Europa Oriental e a ex-União Soviética. Um inteligente observador politico da Europa Oriental resumiu de modo notável os acontecimentos nesta região do mundo:

“Os últimos vestígios de solidariedade entre as nacionalidades não-emancipadas no ‘cinturão das populações misturadas’ evaporaram com o desaparecimento de uma burocracia central despótica, que também serviu para reunir e desviar os ódios dispersos e as reivindicações nacionais conflitantes. Agora todos estavam contra todos os outros e, acima de tudo, contra seus vizinhos mais próximos — os eslovacos contra os tchecos, os croatas contra os sérvios, os ucranianos contra os poloneses.”

O mais surpreendente nessa análise é o fato de ela não ter sido escrita há poucas semanas: é uma passagem de um livro muito conhecido de Hannah Arendt sobre as origens do totalitarismo, publicado em… 1951, que descreve “a atmosfera de desintegração” na Europa Oriental durante os anos 1920, i.e., após o fim da monarquia austro-húngara e do império czarista — as duas

burocracias despóticas referidas na citação anterior.[2]

Eventualmente, uma avaliação semelhante também pode ser encontrada nas anotações de Rosa de Luxemburgo sobre Guerra e Nacionalismo, de 1918: “O nacionalismo é um trunfo nesse momento. De todos os lados, nações e seminações aparecem e reivindicam seu direito de formar um Estado. (…) No Brocken nacionalista, agora é a hora da noite das valquírias.”[3]

Em outras palavras: em grande parte da Europa, fomos levados de volta a setenta anos atrás.

Que não haja equívocos: não há nada de regressivo — pelo contrário — quando, hoje em dia, como em 1920, os impérios multinacionais, que se haviam tornado verdadeiras “prisões de populações”, desintegram-se e as nações oprimidas recuperam sua liberdade. Nesse sentido, existe inegavelmente um momento democrático no renascimento nacional ocorrido a partir de 1989 na Europa Oriental e na União Soviética. Os socialistas e democratas só poderiam mesmo exultar quando os tanques soviéticos deixaram a Polônia e a Hungria, e as tropas da KGB abandonaram os países bálticos, deixando que suas populações decidissem por si mesmas o seu futuro e escolhessem livremente unidade, separação ou federação.

Infelizmente, nem tudo é tão agradável nesse quadro: o melhor e o pior estão inseparavelmente misturados nesses movimentos nacionais. O melhor: o despertar democrático de nações saqueadas, a redescoberta de suas línguas e culturas, a aspiração pela liberdade e soberania popular. O pior: o despertar de nacionalismos chauvinistas, de expansionismos, de intolerâncias, de xenofobias; o despertar de antigos conflitos nacionais marcados pelo ódio contra o “inimigo hereditário”; o crescimento de tendências autoritárias que levam à opressão de suas próprias minorias nacionais; e, finalmente, o abrupto surgimento das formas de nacionalismo fascista, semifascista e racista na Rússia (Pamiat), na Romênia, na Eslováquia, na Croácia (neo-ustachi), na Sérvia (neochetniks), na antiga DDR (neonazistas) e em outras regiões também. Os eternos bodes expiatórios do passado — judeus e ciganos — estão sendo novamente escolhidos como responsáveis por todos os males da sociedade…

Paradoxalmente, esse aspecto negativo e ameaçador, esse “retorno do recalcado”, essa ressurreição de antigas vinganças nacionais não aparecem em nenhum outro lugar de forma tão bruta e absurda quanto na Iugoslávia — o único dos países ditos “socialistas” que foi capaz de escapar do controle de Moscou e de estabelecer uma federação relativamente igualitária entre as nações que a compõem. A solidariedade antifascista entre as várias nacionalidades, enraizada na luta partidarista comunista da Segunda Guerra Mundial, saiu agora de cena para ser substituída por uma selvagem bella omnia contra omnes.

Naturalmente, pode-se explicar esse paradoxo por intermédio de várias e complexas causas econômicas, culturais, políticas, religiosas e históricas — sem esquecer a pesada responsabilidade do regime sérvio stalinista-nacionalista de Milosevic, que abriu, através de sua política de opressão contra os albanos de Kosovo, a caixa de Pandora do nacionalismo no país.[4] Entretanto, resta uma semente irredutível de pura irracionalidade nessa explosão de ódio contra o “outro” — cuja expressão mais terrível é a política de “limpeza étnica” implementada pelas forças nacionalistas sérvias e croatas na Bósnia e Herzegovina.

É impossível prever, no momento, se o “paradigma iugoslavo” vai ser seguido por outros, e se os atuais conflitos entre eslovacos e tchecos, húngaros e romenos, moldávios e russos, azeris? e armênios, georgianos e ossetos, russos e ucranianos etc. etc. assumirão ou não a forma de confrontação geral; e se a dissolução da ex-União Soviética resultará ou não em guerras nacionais (com armas nucleares?) que fariam o atual conflito na Iugoslávia parecer um pequeno incidente. Qualquer coisa pode acontecer, e infelizmente o pior é uma provável possibilidade.

As razões para essa explosão nacionalista, que está sacudindo praticamente todo o antigo “bloco socialista”, são, entre outras, as seguintes:

  1. A rebelião contra décadas de discriminação nacionalista e de hegemonia da “Grande Rússia”. Este é o motivo mais óbvio por trás dos movimentos nacionais, tanto na ex-União Soviética quanto em seus antigos “satélites”. Não há dúvida de que a anexação dos estados bálticos durante a Segunda Guerra Mundial, ou a invasão da Hungria em 1956 e da Tcheco-Eslováquia em 1968, deixou uma impressão muito profunda na consciência nacionalista desses países. Uma vez que a tampa de ferro da ocupação soviética foi levantada, era compreensível que ocorresse uma ampla irrupção nacionalista.

Mas isso não se aplica à Iugoslávia, um estado independente que se libertou da hegemonia soviética a partir de 1948…

  1. De acordo com o historiador tcheco Miroslav Hroch, “onde um antigo regime se desintegra, onde antigas relações sociais se tornaram instáveis, em meio ao aumento da insegurança geral, pertencer a uma língua e cultura comuns pode se tornar a única certeza que a sociedade tem…”[5]

Isso ajuda a compreender o paralelo entre os acontecimentos atuais e aqueles dos anos 1920, após a desintegração dos impérios tradicionais na Europa Central e Oriental.

  1. O colapso das ideias, dos valores e das imagens socialistas (inclusive a ideia do “internacionalismo proletário”), assim como da cultura operária, desacreditada por tantos anos de manipulação burocrática e identificada pelas grandes massas como a doutrina oficial do “antigo regime”. A política, como a natureza, odeia o vácuo. Nenhuma outra ideologia política rival teve uma tradição tão poderosa e raízes tão antigas fincadas na cultura popular quanto nacionalismo — frequentemente combinado, como vimos, com a religião. O individualismo liberal do tipo ocidental, embora atraente para a classe intelectual e para a nova classe emergente de homens de negócio, exerceu pouco apelo à ampla massa da população.
  2. O desejo das nações, regiões ou repúblicas relativamente avançadas de se afastarem das áreas mais pobres e relativamente atrasadas, a fim de mante rem seus próprios recursos para si e se unirem o mais rapidamente possível ao Mercado Europeu Ocidental. Isso se aplica particularmente à Eslovênia e à Croácia, às repúblicas bálticas, e de modo geral às partes ocidentais da ex-União Soviética (em contraste com as asiáticas). Um fenômeno semelhante, por acaso, também pode ser encontrado ao norte da Itália (o surgimento das tão faladas Ligas Lombardas).

Deve-se acrescentar a essas explicações principais a manipulação dos sentimentos nacionalistas pelas elites neo-stalinistas ou neoliberais, numa tentativa de manter (ou recuperar) seu poder: o Azerbaijão, a Rússia, a Sérvia e a Croácia são bons exemplos desse processo.

Em uma situação tão caótica, em confronto com esse confuso turbilhão de conflitos territoriais, demandas históricas, exclusões chauvinistas e movimentos de libertação, para que servem os instrumentos analiticos e políticos do marxismo?

O marxismo tem a grande vantagem de ser um ponto de vista não somente crítico/racional, como também humanista/universal. Mas ele permanecerá impotente diante dos acontecimentos atuais, se não for capaz de eliminar certos mitos e ilusões que pertencem à sua tradição.

Dentre os mitos, existe um que é particularmente abominável: a ideia de uma definição “científica” e “objetiva” de nação. Graças a Stalin, esse dogma espalhou desordem nos quatro continentes, transformando a teoria em um verdadeiro leito de Procusto, imposto por decreto do Bureau Político (responsável por verificar se esta ou aquela nação estava de acordo com os critérios “objetivos”).

Com alegria, a maioria dos marxistas que lidam hoje com a questão nacional compreendeu muito bem que as nações não podem ser definidas em termos puramente objetivos (território, língua, unidade econômica etc.) — mesmo que estes estejam longe de ser irrelevantes —, mas que são comunidades imaginadas (Benedict Anderson), criações culturais (Eric Hobsbawm). Já em 1939, Trotsky insistia, numa discussão com C. L. R. James a respeito da questão dos negros na América, que, “em se tratando desta questão, um critério abstrato não é decisivo, sendo mais importantes a consciência histórica, os sentimentos e os impulsos de um grupo”.[6]

Em relação às ilusões, existe uma que pode ser encontrada no próprio Marx e que assombra as reflexões dos melhores marxistas, desde Rosa de Luxemburgo até os nossos dias: o iminente declínio do nacionalismo e do Estado-Nação, tornados anacrônicos pela internacionalização da economia.
Uma versão atenuada dessa hipótese ainda pode ser encontrada em 1988, na véspera da mais notável onda nacionalista na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Em seu livro, excelente em outros aspectos, sobre nações e nacionalismo a partir de 1780, Eric Hobsbawn arriscou o seguinte diagnóstico: “enquanto não se pode negar o crescente e por vezes dramático impacto do nacionalismo, ou da política étnica, existe um importante aspecto pelo qual o fenômeno hoje é funcionalmente diferente do ‘nacionalismo’ e das ‘nações’ da história dos séculos XIX e início do XX. Ele não é mais o vetor principal do desenvolvimento histórico”. Em sua opinião, “o significado do declínio histórico do nacionalismo está hoje encoberto… pela visível propagação do movimento étnico/linguístico”. Em outras palavras: “apesar da sua evidente proeminência, o nacionalismo é historicamente menos importante. Ele não é mais, por assim dizer, um programa político global, como pode ter sido considerado nos séculos XIX e início do XX. Quando muito, é um fator complicador ou um catalisador para outros desenvolvimentos”.[7]

Gostaríamos de subscrever essa visão otimista das coisas (do ponto de vista do socialismo internacionalista), mas dificilmente podemos evitar a impressão de que o grande historiador está confundindo seus desejos com a realidade. Não precisamos simpatizar com as ideologias nacionalistas para levar em conta sua crescente influência na Europa. É difícil prever o que vai acontecer no próximo século, mas agora, e nos próximos anos, é impossível considerar o papel do nacionalismo na Europa (e em qualquer outro lugar) como um fator menor ou secundário.

Hobsbawm é mais direto quando mostra a insuficiência das “soluções” nacionalistas, particularmente na Europa Oriental. Ao contrário dos nacionalistas, os marxistas estão convencidos de que a independência nacional — embora necessária, em muitos casos — está longe de ser suficiente para solucionar os problemas econômicos sociais, ecológicos ou políticos básicos que a população enfrenta. Particularmente, se considerarmos a nova espécie de dependência econômica (e portanto também política) das nações recentemente emancipadas das finanças ocidentais.

Os europeus ocidentais liberais consideram com frequência essa explosão nacionalista oriental — e suas manifestações xenofóbicas — como produto do “subdesenvolvimento”, de sociedades primitivas semi-agrárias, de populações submetidas tempo demais ao “comunismo” e sem experiência democrática. Alguns até mesmo acreditam que o nacionalismo é apenas um complô de ex-comunistas (como na Sérvia, Bulgária ou Azerbaijão) para manter o poder. A Europa Ocidental é apresentada como um mundo harmonioso, bem distante dessas paixões irracionais: reconciliadas, as nações dessa região democrática e moderna do continente estão rapidamente se articulando para integrar uma Comunidade Europeia unida.

Essa imagem idílica não corresponde bem à realidade. É uma ilusão, se não uma mistificação, proclamar que agora a Europa Ocidental está “além do nacionalismo”, ou que ela atingiu, como escreveu recentemente Ernest Gellner, o “Estágio Cinco” na história do nacionalismo europeu, uma “condição relativamente benigna” em que “ambas as convergências, econômica e cultural, diminuem as hostilidades étnicas”.[8]

Os conflitos nacionais, os sentimentos nacionalistas e os movimentos nacionalistas também estão presentes na Europa Ocidental, e vêm se intensificando. Eles pertencem basicamente a duas categorias muito distintas:

  1. os movimentos — geralmente progressivos — pelos direitos das minorias nacionais e/ou nações oprimidas: os bascos e os irlandeses são apenas a ponta visível (e explosiva) de um iceberg, que inclui os catalães e galegos, escoceses e gauleses, corsos e greco-cipriotas — e muitos outros.
  2. o nacionalismo xenofóbico e racista, dirigido não tanto contra o velho “inimigo de fora” (outras nações europeias), mas contra o “inimigo de dentro”: os trabalhadores imigrantes de origem árabe, africana, turca, curda ou europeia oriental (como também, com frequência, as minorias judaicas ou ciganas). A expressão política desse desenvolvimento é o surpreendente surgimento de partidos nacionalistas e de movimentos de caráter semifascista, fascista ou mesmo nazista (na França, Áustria, Bélgica, Alemanha etc.) — que já representam 7 milhões de eleitores na Comunidade Europeia! —, assim como as violentas agressões dos skinheads e de outros grupos racistas. Somente na Alemanha, em 1991, houve mais de 1.200 agressões cometidas por delinquentes racistas contra imigrantes estrangeiros (em comparações com 270 em 1990).[9]

É verdade que o racismo não é idêntico ao nacionalismo. Mas como Adorno já enfatizara na conferência de 1966 mencionada antes, “o despertar do nacionalismo é o clima mais propício para a irrupção do racismo e da intolerância.”[10] Em suas formas mais radicais e extremas, o nacionalismo frequentemente se transforma em racismo, tentando justificar a supremacia nacional por meio de critérios pseudobiológicos.

Os principais alvos do nacionalismo xenofóbico da Europa Ocidental eram até recentemente os imigrantes do Sul (particularmente da África e da Asia); as próximas vítimas serão — ou já são, especialmente na Alemanha — os imigrantes desafortunados da Europa Oriental, expulsos de seus países pelos conflitos nacionais ou pela catástrofe econômica resultante da introdução brutal de uma economia de mercado. Depois dos árabes, dos africanos ou dos turcos, agora é a vez de os poloneses, dos romenos ou dos albaneses se tornarem o bode expiatório para os nacionalistas racistas ocidentais.

Os partidos proeminentes da Europa Ocidental se recusam a apoiar o racismo, mas compartilham uma espécie de “nacionalismo ocidental” que leva à exclusão dos trabalhadores imigrantes de seus direitos democráticos (p. ex., votar e ser eleito) e a um fechamento, o mais acirrado possível, das fronteiras da CE aos imigrantes não-ocidentais. Será que um dia a Comunidade Europeia reconstruirá o muro de Berlim um pouco mais ao leste e restabelecerá as barreiras de arames farpados eletrificados da antiga “cortina de ferro”, dessa vez no lado ocidental da fronteira?

Na verdade, a presença dos imigrantes é apenas um pretexto: eles não constituem mais do que 2% da população da Comunidade Europeia; além do mais, eles já estavam lá havia quinze ou vinte anos, sem provocar as mesmas reações. Por que essa onda xenofóbica aconteceu precisamente agora?

A crise econômica, o desemprego e a degradação das condições de vida nos bairros populares estão certamente entre os principais fatores.

Mas há algo mais profundo acontecendo na cultura política de algumas camadas populares: como na Europa Oriental, mas de modo diferente, o declínio dos valores socialistas e de classe, até então identificados com a União Soviética e os partidos comunistas, dão lugar ao nacional/racismo. Desse ponto de vista, o aparecimento dos valores nacionalistas tem raízes comuns em ambas as partes da Europa. A isso se deve acrescentar, no Ocidente, o desapontamento com a administração social-democrata da crise, cada vez mais indistinta da neoliberal (com a exceção de alguns detalhes). O fracasso dos governos social-democratas (ou coalizões que incluem tais partidos) no enfrentamento das crescentes desigualdades sociais, sua adoção do pensamento econômico convencional (burguês) e seu envolvimento em vários casos de corrupção (p. ex., na França e na Itália) pavimentaram o caminho para todos os tipos de movimentos xenofóbicos “populistas”.

Graças ao enfraquecimento da cultura socialista, o capitalismo aparece mais e mais como um sistema “natural”, como o único horizonte possível, como a forma necessária de produção e de comércio; em consequência disso, porções significativas da população não mais atribuem os problemas econômicos e sociais, como desemprego, pobreza ou insegurança urbana, às disfunções do capitalismo, mas sim à presença de imigrantes e de outros “estrangeiros”.

Formas progressivas e reacionárias de nacionalismo também podem ser encontradas no chamado Terceiro Mundo (um termo que perdeu todo significado, já que não existe mais nenhum “Segundo Mundo”), ou “Sul”, i.e., na periferia dependente do sistema imperialista mundial. Faz-se necessário iniciar uma reflexão sobre essa questão, sem cair nas armadilhas do eurocentrismo dominante atual, nem naquelas do “terceiro-mundismo” ingênuo.

Historicamente, todos os grandes e autênticos movimentos revolucionários dos países do Sul foram simultaneamente de libertação nacional e de libertação social, combinando a emancipação anticolonial — ou antiimperialista com a emancipação dos trabalhadores urbanos e rurais. Isso se aplica às revoluções chinesa e vietnamita, à revolução mexicana “interrompida”, de 1910-17, assim como à cubana e à nicaraguense.

Hoje em dia, vários e importantes movimentos de libertação nacional emancipacionistas e progressistas podem ser encontrados na África, na Ásia e no Oriente Médio (abordaremos a América Latina mais tarde). Mas dever-se-ia enfatizar que a maioria desses movimentos — como aqueles no Curdistão, na Eritreia, na África do Sul, na Palestina, no Timor, no Sudão — não se opõe diretamente ao imperialismo ocidental em si, mas sim às formas locais de opressão nacional. Com exceção da onda de protesto popular no mundo árabe contra a Guerra do Golfo, os nacionalismos anticoloniais e antiimperialistas parecem ter perdido muito de sua influência, para o benefício de movimentos basicamente reacionários e/ou xenofóbicos, como o fundamentalismo islâmico, o comunalismo étnico-linguístico e religioso (Índia, Sri Lanka) e o tribalismo. Ainda é cedo demais para saber se esse é um fenômeno transitório ou uma perda mais definitiva de momentum, que favorece formas regressivas de “identidade política”.

Os movimentos nacionais progressistas são de naturezas muito diversas: o comunismo mais ou menos ortodoxo, de inspiração soviética ou chinesa (os Partidos Comunistas palestinos, sul-africanos e filipinos); o “comunismo nacional” (o PKK curdo); o nacionalismo de esquerda (Congresso Nacional Africano, Frente Popular de Libertação da Eritreia, os Eelam Tigers do Sri Lanka, a esquerda palestina, o Partido Democrático curdo) etc. No Timor-Leste, existe um movimento sui-generis, originado na esquerda cristã, o FRETILIN (Frente pela Libertação Nacional do Timor), que trava uma difícil batalha contra a ocupação do exército indonésio. Em certos casos, rivalidades internas por razões politicamente não muito claras — por exemplo, no Curdistão iraquiano ou no sul do Sudão — enfraquecem o movimento e favorecem os governantes opressores.

Pelo menos em dois países, os movimentos de libertação nacional progressistas obtiveram importantes vitórias: na Eritreia, com a derrota do regime militar etíope e a independência da nação, e, é claro, na África do Sul, com o fim do apartheid e as primeiras eleições baseadas em sufrágio universal, que resultaram num governo chefiado por Nelson Mandela e o Congresso Nacional Africano. Longe de ser esse o caso na Palestina, apesar dos acordos de Oslo.

É possível também encontrar nessa parte do mundo formas agressivas e reacionárias de nacionalismo, como, por exemplo, durante os conflitos interestatais: a guerra atroz entre Iraque e Irã, as confrontações periódicas entre Paquistão e Índia. No entanto, os “movimentos de identidade” mais regressivos não são estritamente nacionalistas, mas tribais — frequentemente provocados ou manipulados pelos poderes coloniais do passado —, religiosos ou “comunalistas”. Também ocorre uma ampla utilização de argumentos religiosos pelo nacionalismo expansionista, como o regime dos aiatolás no Irã. O fundamentalismo religioso surge mais como um rival ou mesmo um oponente dos movimentos nacionalistas, como, por exemplo, no mundo muçulmano-árabe; somente em casos excepcionais, ele pode também trazer uma demanda nacional, como no Líbano e na Palestina. No subcontinente indiano, os conflitos religiosos entre os fundamentalistas hindus e muçulmanos são responsáveis por trágicas e assassinas confrontações entre as populações, cada minoria sendo vítima de agressões e massacres.

No que concerne aos movimentos tribalistas — mesmo que este termo não corresponda sempre a uma precisa realidade étnica ou cultural —, eles são muitas vezes manipulados por forças reacionárias contra a libertação nacional: foi isso que ocorreu com os movimentos contra-revolucionários nas ex-colônias portuguesas, tais como RENAMO em Moçambique ou UNITA em Angola — ou Inkhata na África do Sul —, todos apoiados durante muitos anos pelos líderes do apartheid sul-africano (e pelos Estados Unidos) em nome da luta contra o “comunismo”. Mas ainda há pior: a bandeira da “purificação tribal” — discretamente apoiada por poderes neocolonialistas — pode provocar um verdadeiro genocídio, como aconteceu recentemente em Ruanda. Mesmo que os conceitos europeus de “nacionalismo” ou de “racismo” não sejam apropriados para descrever a ideologia dos matadores hutus, foi alguma espécie de identidade “étnica” (real ou imaginária), no entanto, que serviu para legitimar um dos piores crimes das últimas décadas contra a humanidade.

A irrupção de fundamentalismos religiosos, tribalismos e “comunalismos” é frequentemente encorajada pelo fracasso ou dificuldades dos governos nacionalistas “de esquerda” ou seculares, como, por exemplo, na África Negra ou no mundo árabe — que abriram mão de seus objetivos de emancipação e se comprometeram com políticas antidemocráticas inspiradas pelo Fundo Monetário Internacional. Eles também se beneficiaram da crise e da decomposição da esquerda, após o fim do chamado “socialismo de verdade” — uma crise que enfraqueceu a identidade de classe e a solidariedade entre todos os explorados, para além de fronteiras étnicas ou confessionais.

A situação na América Latina é um tanto diferente, na medida em que existem muito poucos conflitos interétnicos, interconfessionais ou “comunalistas” — o que não significa que o racismo e a marginalização social das comunidades indígenas ou negras não existam.

Formas contraditórias de nacionalismo também coexistem na América Latina. O exemplo clássico do nacionalismo reacionário é a ideologia “patriótica” dos regimes militares — como na Argentina, no Brasil, no Chile, durante os anos 1970 e 1980, dirigida em geral contra o fantasma do “comunismo internacional” e seus “agentes subversivos” latino-americanos. Em nome da “Doutrina de Segurança Nacional”, todos os protestos sociais, todos os movimentos de esquerda são denunciados como sendo “de inspiração estrangeira” ou baseados em “doutrinas exóticas extrínsecas à nossa tradição nacional”. Este tipo conservador de nacionalismo guerra-fria faz uso extensivo de símbolos nacionais (a bandeira, o hino nacional) e de retórica patriótica, mas aceita sem hesitação a hegemonia dos Estados Unidos (“a liderança americana do Mundo Livre”). Ele pode se referir à geopolítica para reivindicar um papel subimperialista de hegemonia regional — como os militares brasileiros nos anos 1970 — mas essa ambição raramente leva a um conflito aberto com poderes ocidentais rivais, como na guerra da Argentina com a Inglaterra em torno da questão das Ilhas Malvinas/Falkland.

O nacionalismo populista de classe média, que teve seu apogeu durante os anos 1940 e 1950 (peronismo na Argentina, o APRA peruano, “getulismo” no Brasil etc.), está em declínio e entrou em acordo com o capital estrangeiro. O exemplo mais óbvio é o governo peronista do presidente Menem, na Argentina, que rompeu sistematicamente todos os laços com a tradição nacionalista do movimento e seguiu estritamente as ordens do FMI. Em alguns casos, como o do México, a crise do movimento populista governamental (o PRI, Partido Revolucionário Institucional) acarreta uma divisão e a formação de um novo partido. O PRD (Partido Revolucionário Democrático), dirigido por Cuauhtémoc Cárdenas — filho do ex-presidente Lázaro Cárdenas, que desapropriou as companhias de petróleo americanas no México durante os anos 1930 —, tem como objetivo uma renovação da tradição nacionalista e antiimperialista da Revolução Mexicana.

As revoluções na América Latina sempre tiveram simultaneamente um conteúdo social e outro nacional. Isso se aplica não apenas à Revolução Mexicana de 1910-17 ou à Revolução Boliviana de 1953, mas também às revoluções mais radicais (i.e., que visam a uma transformação socialista) em Cuba (1959-61) e Nicarágua (1979). Fidel Castro e seus seguidores foram inspirados pela luta e ideias de José Martí, o Jacobino, líder nacionalista e antiimperialista da insurreição contra o colonialismo espanhol; e os combatentes da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional) na Nicarágua se consideravam herdeiros da guerra de libertação nacional de Augusto Sandino contra os fuzileiros navais americanos (1927-32). A luta pela independência nacional e soberania, em confronto com as agressivas políticas imperialistas dos Estados Unidos, foi um componente decisivo dos movimentos revolucionários cubanos e nicaraguenses e do seu apoio popular.

Hoje em dia, a luta contra a dívida externa e as políticas do FMI tem sido o foco principal de sentimentos nacionalistas progressistas e mobilizações antiimperialistas na América Latina, assumindo a forma de passeatas, de greves, de protestos e mesmo de revoltas populares. Graças às pesadas exigências para o (estritamente impossível) pagamento da dívida, o FMI e o Banco Mundial exercem de tal maneira um controle direto (sem precedente desde o fim da colonização espanhola no século XIX!) sobre as políticas econômicas e sociais desses países, que sua independência é frequentemente reduzida a uma ficção. Os “consultores” e “especialistas” das instituições financeiras internacionais ditam aos governos latino-americanos a sua taxa de inflação, seus cortes orçamentários em educação e saúde, sua política salarial e sua estrutura fiscal. A luta popular contra essas formas ultrajantes de dependência e contra o pagamento da dívida externa não é apenas um movimento “nacionalista”, mas também anti-sistêmico (usando o útil conceito de Immanuel Wallerstein), por sua oposição à lógica do mundo financeiro capitalista. Ela também tem um componente de “classe”, por seu conflito com os dirigentes locais — prontos para cumprir as políticas do FMI e dos bancos estrangeiros.

Não é surpresa que em alguns países, como no Brasil, Bolívia ou Peru, os movimentos trabalhistas, os sindicatos e os partidos de esquerda liderem a luta contra o pagamento da dívida externa libertaçao nacional e social estão intimamente associadas na consciência dos setores mais ativos do movimento. Lula, líder do Partido dos Trabalhadores do Brasil — 47% dos votos nas eleições presidenciais de 1989 —, reivindicava a imediata suspensão do pagamento e o estabelecimento de uma investigação pública sobre a dívida, para descobrir o que aconteceu com o dinheiro tomado emprestado (principalmente pelo regime militar que governou o país de 1964 a 1985). Ele também clamou por uma iniciativa comum dos países endividados, já que nenhum deles é forte o bastante para enfrentar os credores sozinho.

Até que ponto um país sozinho mesmo um país poderoso como o Brasil ou o México — pode recusar a ditadura do Banco Mundial e quebrar as amarras da dominação imperialista? Poderia a unidade da América Latina, sob liderança popular, constituir uma alternativa aos planos americanos de integração econômica? Como alcançar libertação nacional e social em um país subdesenvolvido sem o apoio econômico ou militar de uma potência industrial como a União Soviética? Qual o grau de importância das contradições entre Europa, Japão e Estados Unidos, e poderiam estas ser exploradas pelos países periféricos libertados?
Estas e outras questões semelhantes — que não podem ser facilmente respondidas — estão sendo debatidas entre forças progressivas, socialistas e antiimperialistas na América Latina e em outros lugares do ex-Terceiro Mundo. Elas revelam que a libertação nacional ainda é uma questão-chave na periferia do sistema, mas também que as soluções puramente nacionalistas têm valor limitado: a necessidade de uma estratégia internacionalista é talvez mais bem percebida agora do que antes.

O exemplo de Cuba parece mostrar que um país independente pode, ao menos durante um período de tempo limitado, sobreviver em confronto com um bloqueio americano, um boicote das instituições financeiras mundiais e nenhum apoio da ex-União Soviética. Mas a longo prazo, o futuro de Cuba dependerá de desenvolvimentos nas outras partes da América Latina.

Durante os últimos anos, as diversas forças socialistas, nacionalistas e antiimperialistas na América Latina — incluindo entre outros o PT do Brasil, a FSLN da Nicarágua, o FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional), o PRD mexicano e o Partido Comunista cubano —, sentindo a necessidade de uma coordenação internacional (ou ao menos regional), associaram-se em um front unido, chamado Fórum de São Paulo, que promove encontros anuais e debate perspectivas comuns. Na primeira conferência do Fórum, em 1990, foi adotado um documento que apresentava os amplos parâmetros de uma estratégia comum de libertação nacional na América Latina. Antes de tudo, ela rejeitou a proposta de “Integração Americana” apresentada pelo presidente americano George W Bush, denunciando-a como uma tentativa de “abrir completamente nossas economias nacionais à competição desleal e desigual do aparato econômico imperialista, submetendo-as inteiramente à sua hegemonia e destruindo nossas estruturas produtivas, integrando-as em uma zona de livre comércio dirigida e organizada pelos interesses econômicos dos Estados Unidos”. O documento vai contra essa proposta de integração sob domínio imperialista, “um novo conceito de unidade continental e integração”, baseado na soberania e autodeterminação da América Latina, recuperação de sua identidade histórica e cultural, e solidariedade internacionalista de seus povos. “Isso pressupõe a defesa do patrimônio latino-americano, um fim para a fuga e exportação de capitais, uma política comum e unida contra o flagelo de uma dívida externa impagável, e a adoção de políticas econômicas em benefício das maiorias, capazes de combater a situação de miséria na qual vivem milhões de latino-americanos”.[11]

Um diferente tipo de nacionalismo emancipacionista, próximo ao nacionalismo antiimperialista, tem se desenvolvido na América Latina durante os últimos anos: o movimento das nações indígenas pelos seus direitos. O debate acerca do Quinto Centenário da chegada de Colombo à América e o prêmio Nobel conferido a Rigoberta Menchu deram uma visibilidade maior a essa luta indígena pela defesa de suas comunidades, de suas terras e de sua cultura nacional contra a opressão das oligarquias governantes (geralmente de descendência espanhola).

Esses movimentos indígenas, associações ou partidos políticos (como o movimento Tupac Katari na Bolívia) — que geralmente não são limitados a um grupo étnico (quíchuas, aimaras, maias), mas unem todas as comunidades indígenas em cada país — desenvolvem uma crítica abrangente da civilização ocidental e de seus valores (propriedade privada, individualismo, produção de commodities), em nome das tradições pré-capitalistas indígenas (e pré-colombianas) e de sua cultura comunitária. Sua luta tem caráter ao mesmo tempo nacional, social e ecológico.

Enquanto algumas organizações têm um componente étnico mais forte e clamam pela restauração das antigas nações e impérios indígenas, a maioria desses movimentos luta pelo reconhecimento dos direitos nacionais e culturais dos povos indígenas, em coalizão com outros grupos e classes oprimidos. Um exemplo disso é o movimento de âmbito continental contra as celebrações oficiais do Quinto Centenário, chamado “Quinhentos Anos de Resistência Indígena, Negra e Popular”, que tem como uma de suas principais metas a solidariedade com as reivindicações dos povos indígenas.

Naturalmente, existem diferenças muito grandes entre as nações indígenas de países como a Guatemala, Peru e Bolívia, onde seu povo constitui a maioria da população, e as pequenas tribos sobreviventes da região amazônica. Enquanto no primeiro caso a luta nacional está intimamente ligada à social, e à questão agrária (a luta pela terra), no segundo caso é mais uma questão de proteção contra a lógica etnocida da “civilização”.

A resistência de sindicalistas, de ecologistas e de tribos indígenas contra, o desenvolvimento destrutivo da agroindústria pode levar a uma ação conjunta, como aconteceu há pouco tempo na região amazônica brasileira, com a formação da Confederação dos Povos da Floresta, por iniciativa do conhecido sindicalista e líder ecológico Chico Mendes (assassinado recentemente por proprietários de terra).

O exemplo mais espetacular de resistência indígena é sem dúvida o levante zapatista em Chiapas, baseado nas demandas por autonomia nacional das comunidades indígenas e sua luta pela terra. Pode-se encontrar nos documentos da EZLN uma única fusão entre as tradições da Revolução Mexicana, a cultura maia das populações indígenas de Chiapas e as ideias marxistas da esquerda latino-americana.

Por ocasião da Convenção Democrática Nacional, realizada em Chiapas, em novembro de 1994 — em solidariedade com o movimento zapatista várias organizações indígenas mexicanas aprovaram uma resolução que é um dos documentos mais relevantes já produzidos sobre a questão indígena nacional na América Latina. Considerando que os indígenas mexicanos haviam sido usurpados tanto de suas terras quanto de suas línguas, de suas raízes e de sua identidade, a resolução propõe substituir o atual sistema político, baseado numa estrutura estadista intolerante e autoritária, por um Estado de autonomias que torne possível o respeito ao pluralismo e à participação dos povos indígenas na vida democrática do país. Para as regiões habitadas por várias comunidades ou grupos socioculturais, o documento propõe, por uma livre decisão dos interessados, “a possibilidade de viver em conjunto na unidade e na diversidade, com igualdade e respeito mútuo. Isso significa o estabelecimento de regiões multiculturais e multiétnicas”. Durante séculos, a autonomia tem sido uma aspiração, e ela se materializou na vida diária das comunidades indígenas, em suas formas de organização social e de produção: o que é preciso agora é transformar essas formas de comportamento em elementos constitutivos do sistema político mexicano, estabelecendo um novo nível de poder regional em todo o país. Ao mesmo tempo, os indígenas mexicanos insistem em que o seu projeto de autonomia “não tem nada a ver com o separatismo, o que é para nós, povos indígenas, uma ideia estéril”.[12]

Por fim, existe uma terceira forma de nacionalismo progressivo na América Latina (e nos Estados Unidos também): o nacionalismo negro, que é particularmente importante nos países do Caribe. Suas raízes históricas podem ser encontradas nas rebeliões de escravos, e principalmente na Revolução Haitiana de 1791, liderada por Toussaint Louverture e os jacobinos negros. Em um país como o Brasil, onde a maioria da população é negra ou de cor, também houve revoltas de escravos (como a do Quilombo dos Palmares, uma comunidade de escravos rebeldes no século XVIII). Hoje em dia, a principal forma de resistência cultural dos negros brasileiros é religiosa, através do desenvolvimento da umbanda, um culto sincrético composto de elementos africanos e cristãos.

Qual deveria ser a atitude dos marxistas em relação aos movimentos e conflitos nacionais? O marxismo é contrário à ideologia nacionalista, mas não ignora a importância e legitimidade dos direitos nacionais democráticos.

Essa é a razão pela qual, por ocasião de conflitos entre as forças imperialistas ocidentais e os países dependentes da Ásia, da África ou da América Latina, os marxistas geralmente defendem os direitos das nações periféricas e lutam contra todas as formas de agressão imperialista (seja seu enfoque “democrático” ou “jurídico”) — mas isso não significa que devam dar qualquer tipo de apoio aos ditadores militares reacionários, religiosos ou nacionalistas do Terceiro Mundo, como o general Videla, Ayatollah Khomeini, Saddam Hussein ou o general Noriega.

Como uma visão do mundo internacionalista, o marxismo — que deve ser diferenciado de suas múltiplas imitações nacional-burocráticas — tem a vantagem de uma posição universalista e crítica, em contraste com as paixões e intoxicações da mitologia nacionalista. Porém, com a condição de que esse universalismo não permaneça abstrato, fundamentado na simples negação da particularidade nacional, mas se torne um verdadeiro “concreto universal” (Hegel), capaz de incorporar toda a riqueza privada, sob a forma de um Aufhebung dialético.

Graças ao conceito de imperialismo, o marxismo é capaz de evitar as armadilhas do falso universalismo eurocêntrico (ou “ocidental”), que pretende se impor em todos os países do mundo (particularmente naqueles da periferia) sob o disfarce de “civilização”, a dominação do moderno modo de vida burguês/industrial: propriedade privada, economia de mercado, expansão econômica ilimitada, produtivismo, utilitarismo, individualismo possessivo e racionalidade instrumental.

Isso não significa que os socialistas ignorem o valor universal de certas conquistas da cultura europeia a partir de 1789, tais como democracia e direitos humanos. Apenas que negam o falso dilema entre um pretenso universalismo “ocidental” e a veneração bitolada das diferenças culturais.

O mais importante valor universal para o marxismo é a libertação dos seres humanos de qualquer forma de opressão, dominação, alienação e degradação. Isso é uma universalidade utópica, em oposição às ideológicas, que apresentam de forma apologética o status quo ocidental como sendo a realização da cultura humana universal, o fim da história, a realização do espírito absoluto. Somente uma universalidade crítica dessa, buscando um futuro emancipado, é capaz de superar nacionalismos míopes, culturalismos limitados, etnocentrismos.

A partir dessa premissa, como os marxistas devem reagir aos atuais conflitos nacionais europeus (ou à disputa comunitária do Terceiro Mundo)?

Em primeiro lugar, o marxismo propõe uma diferença capital entre o nacionalismo dos opressores e o dos oprimidos. Sem aderir a nenhuma ideologia nacionalista, o socialismo marxista apóia sem reservas o movimento nacional dos dominados e rejeita sem hesitação o “Grande Poder chauvinista” da nação governante. Essa diferença é mais do que nunca justificada e opera como uma preciosa bússola para conhecer a posição de alguém na atual tempestade. Entretanto, o seu emprego é dificultado por uma característica bem conhecida dos nacionalismos modernos: cada nação oprimida, tão logo seja libertada (ou mesmo antes), considera como sua mais importante tarefa exercer uma opressão análoga sobre suas próprias minorias nacionais. Frequentemente, durante os atuais conflitos interétnicos, cada lado oprime a minoria pertencente à nação rival, enquanto manipula seus próprios cidadãos no outro lado da fronteira (a ex-Iugoslávia é um relevante bom exemplo).

Por conseguinte, precisamos de um critério universal para desenredar a rede de reivindicações opostas e mutuamente exclusivas. Esse critério — comum a socialistas e democratas — só pode ser o do direito da autodeterminação (até a separação) de cada nação, isto é, de cada comunidade que se considere como tal. Indiferente aos mitos de sangue e de pátria, e sem reconhecer quaisquer reivindicações puramente religiosas ou históricas sobre um determinado território, esse critério tem a enorme vantagem de se referir apenas aos princípios de soberania democrática e popular, e de levar em consideração somente as realidades demográficas concretas de qualquer espaço habitado.

Esse princípio não impede que os socialistas defendam a opção que lhes parece mais desejável ou a mais progressista num determinado momento histórico: separação estatal (independência), federação, confederação. O ponto essencial é que as referidas nações e nacionalidades deveriam decidir livremente seu próprio futuro.

Esta regra — incorporada por Lênin ao vocabulário marxista — é mais necessária do que nunca. Mas, outra vez, sua aplicação aos conflitos nacionais atuais — particularmente na Europa Oriental e na ex-União Soviética, — nem sempre é fácil. Em muitos casos, a interpenetração das nacionalidades é tanta, que qualquer tentativa de mapear fronteiras nesse mosaico é repleta de riscos. O sonho da homogeneidade nacional dentro do Estado, que aterroriza quase todos os nacionalismos, é uma perspectiva muito perigosa. Como observa Eric Hobsbawm, em uma sóbria lembrança histórica: A implicação lógica da tentativa de se criar um continente cuidadosamente dividido em estados territoriais coerentes, cada um habitado por uma população homogênea étnica e linguisticamente separada, foi a expulsão em massa e o extermínio das minorias. Isso foi e é o reductio ad absurdum aniquilador do nacionalismo em sua versão territorial, embora isso não tenha sido inteiramente demonstrado até os anos 1940.”[13]

Vamos retornar ao nosso paradoxo inicial: neste singular final de século XX nacionalista, os problemas mais urgentes têm, mais do que nunca, um caráter internacional. A busca do antigo “bloco socialista” por uma saída da crise econômica, a questão da dívida do Sul e o iminente desastre ecológico — para mencionar apenas esses três principais exemplos requerem soluções planetárias. Aquelas do capital são bem conhecidas e perfeitamente organizadas em escala mundial: em qualquer lugar que tenham sido implementadas, têm inevitavelmente o mesmo duplo resultado: fazer o rico cada vez mais rico, e o pobre cada vez mais pobre.
Quais são as alternativas ao controle totalitário do capitalismo mundial “realmente existente”? O antigo pseudo-internacionalismo do Comintern stalinista, dos seguidores das várias “Pátrias Socialistas”, está morto e enterrado. Uma nova alternativa internacionalista para os oprimidos e explorados é desesperadamente necessária.

O internacionalismo de amanhã surgirá da fusão entre a tradição internacional socialista, democrática e antiimperialista do movimento operário (ainda mais viva entre os revolucionários de várias tendências, sindicalistas radicais, comunistas críticos, socialistas de esquerda) e a nova cultura universalista dos movimentos sociais como ecologia, feminismo, anti-racismo e solidariedade terceiro-mundista. Essa tendência pode ser minoritária agora, mas é a semente de um futuro diferente e a garantia definitiva contra o barbarismo.

NOTAS

  1. T. Adorno, Modeles critiques, Paris, Payot, 1984, p. 106. 
  2. H. Arendt, The burden of our time, Londres. Secker e Warburg, 1951, p. 267. 
  3. R. Luxemburg, “Fragment über Krieg, nationale Frage und Revolution”, Die Russische Revolution, Frankfurt, Europãische Verlagsanstalt, 1963, p. 82. 
  4. Veja este notável artigo de Catherine Samary, “The Fragmentation of Yougoslavia”, Amsterdã. Notebooks for Study and research, n° 19/20, 1992. 
  5. Citado por Eric Hobsbawm em “The Perils of the New nationalism”, The Nation, 4 de novembro de 1991, p. 556. 
  6. L. Trotsky, On Black Nationalism and Self-Determination, Nova York, Pathfinder Press, 1978, p. 28. 
  7. E. Hobsbawm, Nations and Nationalism since 1780. Programme, Mith, Reality, Cambridge University Press, 1990, p. 163, 170, 181. 
  8. K. E. Gellner. “Nationalism and Politics in Eastern Europe”, New Left Review, n° 189, outubro de 1991, p. 131. 
  9. Bild am Sontag, 26 de janeiro, 1992. 
  10. T. Adorno, op.cit., p. 133. 
  11. Inprecor, n° 6, julho de 1990, p. 6. 
  12. Hobsbawm, op. cit., p. 133. 
  13. “Mexique: nouvelle relation entre les peuples indiens et la société”, Inprecor, n° 387, janeiro de 1995, p. 4-7. 

    Tags

  • acumulação de capital
  • alternativa internaiconalista
  • ameaçã de catástrofe ecológica
  • antirracismo
  • atualidade
  • capitalismo multinacional
  • caráter internacional
  • comunistas críticos
  • controle totalitário do capitalismo mundial
  • crescente abismo entre sul e norte
  • crise do mundo capitalista
  • cultura universalista
  • desafios
  • desafios econômicos
  • desafios políticos
  • desafios sociais
  • ecologia
  • ecológicos
  • economia mundial
  • emancipatório
  • época
  • escala local
  • escala mundial
  • escala nacional
  • escala regional
  • Europa
  • explorados
  • falsa solução
  • feminismo
  • fenômenos
  • formas progressistas
  • fusão
  • garantia contra o barbarismo
  • internacionalismo de amanhã
  • intolerância religiosa
  • irracional
  • irracionalismo
  • minoritária
  • modelos de racionalidade
  • movimento operário
  • movimentos de libertação nacional
  • movimentos nacionais
  • movimentos sociais
  • nacinalismo
  • necessidade de um desarmamento geral
  • nosso tempo
  • onda espetacular de naiconalismo
  • oprimidos
  • país
  • países
  • pátrias socialistas
  • produtivismo burocrático
  • progressismo
  • progressista
  • pseudointernacionalismo do comintern stalinista
  • racionalidade instrumental
  • reações não-racionais
  • reanscimento dos sentimentos religiosos
  • regiões do mundo
  • religião
  • revolucionários de várias tendências
  • semente de um futuro diferente
  • sindicalistas radicais
  • socialistas de esquerda
  • solidariedade terceiro-mundista
  • tendência
  • tendências reacionárias
  • Teologia da Libertação
  • tradição antiimperialista
  • tradição democrática
  • tradição internacional socialista
  • unificação