O imperativo ético de Sartre
Resumo
Antes de tratar da figura do intelectual na obra de Sartre, é preciso perguntar-se sobre uma ética existencialista. Ela é possível?
A resposta mais imediata seria “não”, já que a fenomenologia consiste no estudo único e exclusivo do que “é”. Daí, a impossibilidade de estabelecer prescrições de qualquer tipo.
Por outro lado, ao ir mais fundo na questão, descobre-se que o estudo do que “é” implica o abandono dos fundamentos essencialistas tradicionais para afirmar a identidade radical entre existência e responsabilidade, fortemente vinculada à ideia da subjetividade como liberdade. Assim, ao aceitar que a existência precede a essência, aceita-se também que a “realidade humana em situação” é determinada por uma enorme série de escolhas, em meio a uma avassaladora facticidade. Se é difícil fundar uma ética nesse contexto, nada impede que o existencialismo gere consequências de tal ordem, tais como: o indivíduo livre e responsável a um só tempo, cada qual juiz de seus próprios valores, critérios e fins, o desejo de tornar-se em-si-para-si, o sentimento de incompletude inerente à vida, o sujeito inapelavelmente histórico.
Tudo isso aponta para a figura do intelectual.
Quem é ele?
Segundo o a sociedade estabelecida, o cientista, o profissional liberal, o professor… Quem reproduz ou aprimora o estado de coisas, segundo a figura do burguês universal e seu saber prático, que trabalha com uma ideologia fria como a técnica mesma, de modo que a ilusão é a da vigência da racionalidade, universal e necessária.
Quem deveria ser o intelectual?
Quem acordasse da condição descrita acima para descobrir que não existe nem igualdade humanista, nem liberdade de pesquisa, senão introjetadas; afinal, o que há são fins particulares.
Nesse sentido, suponha-se a descoberta de um remédio. Ela é universal – formalmente, pois, na prática, o que há são a patente e o preço.
Isso não significa que a ciência atual seja essencialmente burguesa, mas que ela o é por meio dos controles econômicos dos fins das pesquisas. É por isso que a escolha é radical. Ou se é apolítico, ou se é intelectual. Este, que “se mete onde não é chamado”, é, para a classe dominante, um traidor. Na verdade, o mais compromissado dos traidores, já que, a partir de então, passa-se da identidade segundo a função para a identidade segundo a postura. Passa-se enfim ao intelectual, cujo trabalho consiste na decifração ideológica, na recomposição da verdade histórica, por meio da identificação e derrubada de mitos.
Falta uma ética ao existencialismo? A pergunta parece fazer sentido primeiramente a partir das considerações feitas por Sartre ao final de O ser e o nada, e que parecem invocar uma espécie de continuidade entre a ontologia fenomenológica e a ética: “A ontologia não pode formular de per si prescrições morais. Consagra-se unicamente àquilo que é, e não é possível derivar imperativos de seus indicativos. Deixa entrever, todavia, o que seria uma ética que assumisse suas responsabilidades em face de uma realidade humana em situação”.[1] Tais afirmações são seguidas de uma promessa, que se tornou célebre por ter sido a primeira daquelas que Sartre não cumpriu: “Todas essas questões, que nos remetem à reflexão pura e não cúmplice, só podem encontrar respostas no terreno da moral. A elas dedicaremos uma próxima obra”.[2]
Observemos que a relação estabelecida entre ontologia e ética é dupla: de um lado, a ontologia não pode prescrever regras morais porque se dedica unicamente a descrever a realidade humana; de outro, essa descrição implica, de alguma maneira, a ética, na medida em que abandona todos os fundamentos essencialistas da tradição para afirmar a identidade radical entre existência e responsabilidade. Em outras palavras, a descrição ontológica se dá de tal maneira que a ela se associa necessariamente uma ética da responsabilidade, devido à reciprocidade que se constata entre a descrição da liberdade e a assunção da responsabilidade. Talvez por isso, a descrição da realidade humana em situação apresenta, desde a sua primeira versão no Diário de uma guerra estranha, implicações éticas relativas às formas como o sujeito assume a situação que deve viver em termos de conduta, isto é, segundo suas escolhas de ação.[3] Outra tentativa, talvez mais extensa e específica de elucidação ética, se encontra em Cadernos para uma moral, texto em que a realidade humana historicamente situada aparece como reconfigurada no tratamento das relações entre existência e história.[4]
Por que Sartre não chegou a terminar e a publicar um livro sobre ética com propósito elucidativo análogo ao do tratado de ontologia fenomenológica, se ele mesmo parecia entender que uma coisa levava à outra? Talvez a resposta deva ser procurada na ambiguidade que caracteriza a implicação ética da descrição ontológica da existência. É inteiramente plausível que a compreensão da conduta se faça num horizonte de questões éticas, uma vez que a subjetividade é descrita como liberdade. Mas será verdadeiramente possível passar dessa descrição a uma prescrição? Seria coerente, por exemplo, fazer derivar um imperativo ético da elucidação do sentido existencial da liberdade? Ora, se entendermos prescrição como determinação de conduta, certamente nos depararemos com a grande dificuldade em relacionar tal determinação com o caráter originário da liberdade. A facticidade original de uma existência que precede a essência já nos impediria de conceber qualquer instância prescritiva que pudesse interferir a priori na contingência radical que define a realidade humana. Ainda assim, no entanto, é precisamente essa descrição de uma liberdade originária e radical que nos faz encontrar a responsabilidade como algo dado ou imediata consequência. Assim podemos dizer que a questão da ética no existencialismo sartriano manifesta-se na passagem necessária da ontologia à moral, que é também a passagem impossível da descrição à prescrição. A ambiguidade a que nos referimos há pouco se situa precisamente entre as exigências simultâneas e contraditórias: a conduta livre é necessariamente responsável, mas não pode haver qualquer prescrição que venha a orientar a conduta na experiência concreta dessa relação indissociável.
No cerne dessa ambiguidade, e como sua revelação mais nítida, está outra contradição constitutiva: é o homem que deve dar a si mesmo o valor, o critério e os fins de suas ações; ao mesmo tempo, o projeto de ser que se configura nessa autoconstituição da subjetividade é sempre frustrado, por ser em última análise o desejo de tornar-se em-si-para-si, ou o propósito de atingir a completude do ser através do processo de existir, que no entanto é uma totalização que nunca se completa. Simone de Beauvoir notou muito bem que a contradição enunciada em O ser e o nada, entre o desejo de ser e a falta que nos constitui, significa, ao mesmo tempo, de um lado, a necessidade de livre criação de valores e fins, e, de outro, a impossibilidade de realizá-los, uma espécie de manifestação dramática da fatalidade da liberdade: a escolha absoluta (e a absoluta responsabilidade) e a incompletude existencial que se traduz na impossibilidade de realização.[5]
Há dois aspectos que definem intrinsecamente a existência, individual e histórica, como processo: a totalização e a totalidade impossível. De acordo com o primeiro, o que caracteriza a existência na sucessão dos projetos é a busca da totalidade, razão pela qual o processo de existir é um processo de totalização. Por outro lado, a totalidade como meta jamais será atingida, uma vez que a falta e a incompletude são constitutivas, e isso é algo que experimentamos tanto no plano individual como na história. Diante desses dois aspectos que definem a existência com contradição, como conceber a ação? Mais do que isso, como projetar valores e fins que são os meios pelos quais nos revelamos a nós mesmos no percurso de constituição da subjetividade? A totalidade impossível significa que nossa subjetividade nunca será de fato constituída e que nossa história nunca será completada. Ao mesmo tempo, o que confere sentido e realidade às nossas ações é a intenção de totalidade que se traduz no processo de totalização. Assim, vivemos aquilo que Sartre denomina totalidade destotalizada, que não é outra coisa senão a existência sempre em via de totalização.
É essa vocação universalizante da existência algo que nos constitui eticamente. Assim, vivemos de acordo com um imperativo que não podemos realizar, e a razão não se prende a que a forma ética do imperativo superaria a priori as possibilidades de realização, como em Kant, mas porque a realidade que nos constitui é marcada pela falta ontológica. A existência individual e histórica está estruturalmente comprometida com a frustração e, no entanto, também estamos, pela estrutura ontológica que nos constitui, destinados a agir e “condenados” à liberdade. A compatibilidade entre essa condição e as possibilidades de ação sem dúvida é uma questão ética que decorre imediatamente da descrição ontológica da realidade humana situada. Por isso, o exame das possibilidades éticas de compromisso deve ser feito sempre levando em conta as situações históricas em que os indivíduos fazem a experiência da condição existencial.
No que se refere à compreensão crítica da condição ética e histórica do intelectual, Sartre dedica-se a essa tarefa em dois textos: primeira-mente, em Que é a literatura?, sobretudo na última parte, e nas conferências proferidas no Japão, que receberam o título Em defesa dos intelectuais.[6] Trata-se, como se pode ver, de elucidar a situação do intelectual, isto é, as formas de compromisso assumidas em diferentes contextos históricos. Todos os indivíduos respondem à situação histórica em que vivem, interiorizando as condições objetivas e, em seguida, exteriorizando-as em forma de ações. No caso daqueles que produzem obras intelectuais e artísticas, essa relação se dá de modo específico, revelador do compromisso singular como modalidade de experiência histórica. Na Idade Média, por exemplo, a figura do intelectual é o clérigo, na medida em que é praticamente a única personagem histórica que tem acesso à cultura. Esta se dá em circuito fechado, o que significa que um clérigo escreve para outro a partir de temas e códigos determinados pela Igreja, que, como instituição, patrocina e controla essa atividade, de acordo com seus interesses. Os clérigos constituem, ao mesmo tempo, os escritores e o público de uma literatura específica.
Essa situação se modifica no início da modernidade (século XVII), quando os escritores escrevem para outros escritores e também para a nobreza. Ampliação que na verdade não é muito significativa, na medida em que a situação cultural faz com que o leitor seja também um virtual escritor, ou pelo menos alguém que, de direito, é capaz de dialogar com o escritor em condições de relativa igualdade. Mesmo nos casos em que o escritor não pertence à nobreza, ele sabe como oferecer a ela uma imagem de si mesma ideologicamente configurada, da qual está ausente qualquer ruptura. Público, no sentido em que hoje entendemos a expressão, surge somente no século XVIII, e coincide com o período histórico da ascensão da burguesia. Há, nessa situação, uma sintonia entre escritor e leitor que leva Sartre a aplicar ao intelectual iluminista a qualificação gramsciana de orgânico. O escritor re-flete, nos ideais expressos em obra, as reivindicações da classe em ascensão, ou os princípios que alicerçam sua visão de mundo, ideias que nesse período são revolucionárias e que triunfarão na Revolução Francesa. Exemplos dessa relação orgânica encontramos nos philosophes: Diderot, Voltaire e Rousseau expressam intelectualmente a ascensão política da nova classe e a deterioração dos valores morais e religiosos do Antigo Regime. Há uma certa sintonia entre a transformação política e a expressão dessa transição em valores universais cultivados pelo pensamento.
Esse encontro entre público e escritor será profundamente modificado no século XIX, mudança estreitamente relacionada com a situação da burguesia, que de classe ascendente se torna classe dominante. Nesse novo status, a burguesia já não mais necessita do intelectual crítico, o filósofo iluminista do século anterior, que expressava em ideias universais os princípios políticos que a burguesia defendia como base de seus interesses. Esse público não precisa mais que se critique, implicitamente em seu nome, o regime absolutista já vencido pela revolução. Na verdade, a classe burguesa, tendo consolidado o seu poder, já não precisa do intelectual que critique o poder, uma vez que agora ela o detém. Em vez do ácido corrosivo da negatividade crítica, o que a burguesia deseja ver, doravante, nos seus intelectuais, é a justificação de si mesma, isto é, o burguês retratado como o homem universal, o sistema político vigente como realização definitiva dos princípios universais pelos quais lutaram os seus ancestrais revolucionários. Uma vez derrotadas as barreiras do sangue e do nascimento, que antes eram proclamados como diferenças entre os homens, o que se tem é o triunfo do humanismo burguês, a igualdade de princípio que só pode comportar as diferenças oriundas do mérito individual, da capacidade empreendedora e do trabalho.
Nesse novo perfil de sociedade, a própria história é vista como o trabalho do progresso: a ciência, a técnica e a industrialização caminham paralelamente na direção de um horizonte aberto em que se projetam, de modo infindável, as realizações humanas. A ciência moderna nasce com a sociedade burguesa, com a laicização do mundo e com o advento das liberdades. O aprimoramento da atividade científica produz os frutos tecnológicos que consolidam o império do homem sobre as coisas. Como já preconizava Bacon, é o saber prático que move o mundo, aqueles que o realizam são os técnicos do saber prático. Com essa expressão Sartre designa os cientistas, os profissionais liberais, os professores e todos aqueles que, na condição de funcionários da ordem burguesa, se encarregam de reproduzi-la e aprimorá-la nas diversas esferas em que atuam. O técnico do saber prático tem duas funções que se complementam: trabalhar pelo progresso e justificar o sistema regido pela ideia de progresso. O caráter ideológico dessa última função é dissimulado pela forma técnica e científica na qual ela é cumprida, de modo a que a dimensão política e social apareça como expressão da racionalidade e, assim, como dotada de universalidade e necessidade. É o caso, por exemplo, das demonstrações teóricas da superioridade do branco europeu colonizador sobre os povos colonizados.
A classe dominante recruta, nas camadas médias da sociedade,aqueles que lhe vão servir de meio para que tais fins sejam atingidos. Daí a sinonímia que se pode estabelecer, segundo Sartre, entre a classe média e os indivíduos, pertencentes a essa classe, que atuarão como meio de reprodução e justificação do sistema, colocando a serviço dessa finalidade a capacitação técnica e o saber adquirido. Assim, o técnico do saber prático não pertence à classe dominante (é apenas o funcionário que ela utiliza), nem à classe dominada, da qual se diferencia pela sua ligação instrumental com a classe dominante. Sua situação se caracteriza como estando subordinado à burguesia e isolado do proletariado.
Percebe-se que essa condição aparentemente dupla é na verdade uma ausência de lugar. Mas o cruzamento sociológico que se dá nesse vazio faz do técnico do saber prático uma figura contraditória. A percepção dessa contradição acontece quando acorda no técnico do saber prático aquela reminiscência crítica que permanece, apesar de tudo, como herança esquecida de seus antepassados iluministas, cujo pensamento era pautado pela crítica do statu quo. Esse técnico pode, então, dar-se conta de sua condição de funcionário da classe dominante, recrutado e formado por ela. Percebe então que a igualdade humanista que lhe foi inculcada nessa formação é desmentida pela sua própria condição de indivíduo selecionado pelo sistema e guindado à posição de seu servidor voluntário. Há, portanto, desigualdade na origem, a qual permanecerá durante todo o processo de servidão, que ele até então tomara como missão a serviço do progresso, isto é, dos fins universais. A sua condição desigual foi compensada por uma igualdade outorgada, da qual ele desfruta como privilégio consentido.
Isso que descobre em si o leva também a uma constatação objetiva: a universalidade burguesa é abstrata. E ele, técnico do saber prático, ao servir a essa universalidade formal, trabalha na verdade para fins particularistas que são os interesses da classe dominante. Isso significa que, se ele é, por exemplo, um pesquisador, a liberdade de pensamento e a universalidade dos fins, que parecem pautar o seu trabalho, ocultam o controle e os objetivos utilitários que são os parâmetros reais. Assim, a descoberta de remédios é formalmente para todos, mas o controle de patentes e os preços lucrativos fazem com que seja realmente apenas para grupos restritos. Ainda que o técnico do saber prático intencionalmente trabalhe para a humanidade, essa universalidade lhe é roubada pelo sistema. O utilitarismo da pesquisa científica, que deriva em princípio de seu teor prático (saber prático), exacerba-se quando configurado economicamente pelo sistema.
Assim chegamos à contradição que dilacera o técnico do saber prático: ele se vê sempre entre a vocação formalmente universal inerente ao seu trabalho e os fins particularistas da classe que o controla. Não se pode dizer, sem incorrer em simplificação, que a ciência seja burguesa porque seu início na modernidade coincide com a ascensão da burguesia; por outro lado, deve-se dizer que a ciência é burguesa porque o controle econômico dos fins da pesquisa configura o alcance e os limites da própria ciência.
Diante dessa situação, ou o técnico do saber prático refugia-se na universalidade formal do saber e oculta, por estratégia de má-fé, as condições ideológicas da produção científica, tornando-se, por exemplo, apolítico, ou constata abertamente o particularismo ideológico que mutila o seu trabalho, pondo então em questão a si mesmo, isto é, a ideologia que o formou e a hegemonia da classe que prescreve os fins da ciência. Ao fazê-lo, extrapola os limites técnicos do saber prático, é visto como aquele que “se mete no que não é da sua conta” — e torna-se um intelectual. Nesse processo de transformação há, portanto, o aspecto subjetivo, sempre enfatizado por Sartre como componente do curso da história: tornar-se ou não intelectual depende de como o técnico do saber prático vive na sua história pessoal a tensão que caracteriza a sua condição, bem como a de seus iguais. Pois esse técnico é um produto histórico; quando se torna intelectual pela consciência do dilaceramento que sofre, continua sendo um produto histórico de uma sociedade dilacerada.
Mas é claro que, ao violar os limites em que deveria se manter, a classe dominante o destitui de suas funções: não faz sentido manter como funcionário alguém sobre quem se perdeu o controle de classe. Assim como a burguesia o recrutou e o treinou, assim também ela o abandona e o desautoriza. Sua função era técnica; jamais recebeu um mandato para exercer a crítica, essa função perturbadora e desnecessária. O técnico que se tornou intelectual passa então a estar desvinculado. Não tem mais o lugar que lhe reservava a classe dominante e permanece tão isolado da classe dominada quanto sempre esteve, pois esta tampouco lhe delegou qualquer mandato crítico.
Não sendo mais funcionário da classe dominante, e não tendo qualquer função delegada pela classe dominada, o intelectual faz a experiência da universalidade de forma negativa, entre as duas classes que o rejeitam — uma experiência marcada pela solidão: só e nesse espaço vazio, ele faz então a experiência da universalidade singular. Essa noção nos ajuda a entender a posição do intelectual que não pode aderir a quaisquer interesses de classe (já que recusa a classe burguesa e é recusado pela classe proletária), nem deseja pairar acima de tudo como quem adota o ponto de vista de Sirius. Percebeu que o homem do humanismo burguês não existe; percebeu também que o homem plena e concretamente constituído na sua humanidade também não existe. Mas é isso mesmo que o leva a perceber que o primeiro é uma abstração e o segundo, uma tarefa. O homem universal e ao mesmo tempo singular, o indivíduo lastreado pela humanidade que ele porta singularmente em si, aquele que não estaria nem alienado na universalidade nem reificado na particularidade, é algo a fazer. Nesse momento nasce o compromisso, que coincide com o conhecimento da possibilidade do universal singular ou concreto. Sartre dedicou-se longamente, em Questão de método e na Crítica da razão dialética,[7] a mostrar que um indivíduo real, um agente livre, não pode ser definido apenas como membro de uma série, diferenciando-se apenas funcionalmente dos demais; não pode ser um particular no estrito sentido da lógica analítica, mas deve fazer-se singular, isto é, uma expressão do universal particularmente modalizada. Isso significa que o sujeito singular expressa o universal que o constitui quando faz da tarefa da expressão um modo de totalização subjetiva. Trata-se de uma visão dialética da história pessoal e das relações que essa história mantém com as condições objetivas da história geral.
Desnecessário dizer que esse conhecimento — que é também uma expectativa — não eleva ninguém acima dos interesses individuais e de classe; apenas faz com que tais interesses sejam compreendidos num processo mais amplo de historização e subjetivação que constitui o indivíduo como sujeito histórico. Assumir um compromisso histórico de modo consciente não significa despojar-se de interesses, mas compreendêlos criticamente no contexto do movimento social e histórico. Isso é importante porque assim compreendemos que o intelectual entendido como alguém que desmistificou a pseudo-universalidade dos fins perseguidos pela classe burguesa nem por isso se livrou da herança e da formação pequeno-burguesas. Ele as levará para sempre consigo, o que implica consequências e contém um risco.
O risco é que uma herança que se leva consigo, mesmo sem assumila, pode manifestar-se a qualquer momento. Esse é um risco que o intelectual tem de correr, porque se trata dele mesmo e da contradição que o constitui; mas os partidos de massa, os movimentos sociais e outras forças organizadas do proletariado entendem que não devem nem precisam fazê-lo. Daí a desconfiança, tanto com os intelectuais que apóiam de fora quanto com aqueles que militam internamente. Os intelectuais são candidatos permanentes ao expurgo. De modo que a situação do philosophe como intelectual orgânico da classe ascendente não pode se repetir na relação entre o intelectual contemporâneo e a classe proletária, por mais que este se comprometa com as lutas populares. Assim, para Sartre, o intelectual não deve pretender ser aquilo que a sua própria contradição e as condições históricas o impedem de sê-lo. A experiência do engajamento será inevitavelmente a experiência da contradição: jamais estará totalmente dentro das classes populares e de seus movimentos; e procurará jamais estar totalmente fora. Essa dificuldade, vivida na forma de uma tensão, deriva de que, para a classe dominante, o intelectual é um traidor consumado, e, para a classe dominada, é um traidor em potencial.
A burguesia constatou a traição do intelectual; por que o proletariado suspeita e percebe que ela poderá vir a acontecer? Não se trata apenas de inferir que quem já traiu uma vez poderá fazê-lo novamente. A razão principal está justamente na condição do intelectual, no fato de que ele se tornou o que é por ter passado de funcionário do sistema a crítico do sistema. A função crítica, exercida à revelia de qualquer mandato, é irreversível e incontornável, a menos que o intelectual renuncie ao universal singular e opte por vincular-se abstratamente ao geral ou ao particular — pois é possível abstrair em ambas as direções. Como já dissemos, a percepção crítica dos interesses não nos liberta deles, mas nos faz vêlos a partir da liberdade. Essa liberdade é indesejada por todos os aparelhos de todas as classes.
E há motivos para isso, pois não é difícil perceber a tensão a que se expõe o intelectual: de um lado, é necessário que a crítica não enfraqueça os meios de organização política; de outro, há necessidade da crítica para que se mantenham vivas as relações entre meios e fins. Há uma indisfarçável oposição entre as duas atitudes que correspondem a essa dupla exigência. Trata-se de uma situação incômoda, terrível, talvez insustentável, e cada um terá de vivê-la como puder, porque nela se configura a experiência crítica como conduta política do intelectual. Ele terá de
Fazer-se, contra todo poder, inclusive o poder político que se exprime pelos partidos de massa e pelo aparelho da classe operária, o guardião dos fins históricos que as massas perseguem; já que o fim se define como a unidade dos meios, é preciso que ele examine estes em função do princípio de que todos os meios são bons quando eficazes, exceto aqueles que alteram o fim perseguido.[8]
Seria possível superar a contradição que parece intrínseca à condição do intelectual e se reflete na sua conduta? A contingência da ação impede que se responda categoricamente pelo sim ou pelo não. Mas também não é o caso de comprazer-se no silêncio ou de cultivar a euforia do palavreado. Sartre indica um caminho: o trabalho persistente de decifração da ideologia, de recomposição da verdade histórica, de identificação dos mitos. Nisso consistiria a radicalidade da tarefa do intelectual vista como prática política. Ao fim e ao cabo, assumir-se como um produto das classes médias, mas que soube transformar as técnicas do saber prático em técnicas de veracidade, de verificação da verdade, isto é, de separação completa entre verdade e mito; alguém que tenta fazer da experiência da contradição subjetiva ocasião de desvelamento das tensões objetivas.
Notas
[1] Jean-Paul Sartre, O ser e o nada, trad. Paulo Perdigão, Petrópolis, Vozes, 2001, p.763.
[2] Ibidem, p. 765.
[3] Jean-Paul Sartre, Diário de uma guerra estranha (escrito entre 1939 e 1940 e publicado postumamente em 1983), trad. Aulyde Soares Rodrigues, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.
[4] Jean-Paul Sartre, Cahiers pour une morale (escrito entre 1947 e 1948 e publicado postumamente em 1983), Paris, Gallimard, 1983.
[5] Simone de Beauvoir, Moral da ambiguidade, trad. Anamaria de Vasconcelos,Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970.
[6] Jean-Paul Sartre, Que é a literatura?, trad. Carlos Felipe Moisés, São Paulo, Ática, 1989; Em defesa dos intelectuais, trad. Sérgio Goes de Paula, São Paulo, Ática, 1994.
[7] Jean-Paul Sartre, Crítica da razão dialética, precedida de Questão de método,trad. Guilherme João de Freitas Teixeira, Rio de Janeiro, DP&A, 2002.
[8] Jean-Paul Sartre, Em defesa dos intelectuais, op. cit., p. 49.