O invisível da visão
por Renaud Barbaras
Resumo
O que é ver? A visão é algo difícil de definir. A atitude mais natural consiste em defini-la a partir dos conteúdos visuais, logo, ver é entrar em contato com qualidades visuais, principalmente cores, e a coisa vista é uma soma de sensações visuais. Mas, esta definição não é satisfatória. Num desenho bem feito, basta alguns traços para se ver um rosto, que não pode ser reduzido a estes traços visíveis. É por isso que a tradição intelectualista recusou a redução da visão a uma sensação. Como o mostra Descartes, se aproximarmos um pedaço de cera de uma chama, todas as qualidades sensíveis que, supostamente, compunham a cera desaparecem e, no entanto, digo que a mesma cera permanece. Conclui-se, então, que a visão da cera não consiste numa recepção de qualidades sensíveis, mas sim num ato intelectual pelo qual reconhecemos o próprio objeto. Se vemos homens passando na rua, mas, na realidade, o que vemos são chapéus e paletós e, portanto, julgamos que por trás dessas roupas há homens. No entanto, essa posição, é excessiva. Ver não é conceber.
Ver não é ter uma representação ou uma ideia daquilo que vemos; ver não é possuir. A visão envolve uma relação com o invisível, ela implica uma forma de cegueira. Como Merleau-Ponty escreve no Visível e o invisível, “é preciso compreender que é a visibilidade mesma quem comporta uma não-visibilidade – na medida mesmo em que vejo, não sei aquilo que vejo (uma pessoa familiar é não definida)”. Tal é a potência da visão: mostrar sem explicitar, dar a entender sem comentar, desvendar um sentido que permanece implícito. Isto confere-lhe um poder de sugestão que não existe na linguagem e que as artes visuais exploram. Como o diz Merleau-Ponty a propósito do cinema, elas são particularmente “aptas a fazer aparecer a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a expressão dum no outro”.
Mas, essa potência também pode resultar num poder de manipulação. Com efeito, uma vez que o sentido fica escondido nos dados sensíveis, tudo depende da maneira como as imagens são usadas e, por assim dizer, respeitadas em sua própria essência. É possível deixar o sentido transparecer através das imagens, o que exige um uso sóbrio e sensível das imagens. É, particularmente, a função da arte: fazer com que o sentido nasça das imagens.
Vivemos num mundo visual, feito de cores, de formas e de volumes, e, neste sentido, todo o mundo sabe o que significa ver. No entanto, se tentarmos definir a visão, em vez de viver nela, deparamos com muitas dificuldades. Com efeito, a experiência da visão tem algo de paradoxal. Como experiência, ela remete a uma subjetividade e é dependente de um órgão sensível, ou seja, de uma vida corpórea, mas, como visão, ela desvenda um mundo externo que se dá como independente dela, como repousando nele mesmo. Assim escreve Merleau-Ponty na primeira frase do Visível e o invisível: “Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos”.[1] O que significa que as coisas mesmas dependem da nossa subjetividade, e não são senão aquilo que é visto. Como Merleau-Ponty comenta, “pois, se é certo que vejo minha mesa, que minha visão termina nela, que ela fixa e detém meu olhar com sua densidade insuperável […] é certo também que esta certeza é combatida, desde que atento para ela, porquanto se trata de uma visão minha”.[2]
A visão é, sim, uma experiência paradoxal e, portanto, misteriosa. Merleau-Ponty chega a falar de uma “loucura”: “Há uma espécie de loucura da visão que faz com que, ao mesmo tempo, eu caminhe por ela em direção ao próprio mundo, e, entretanto, com toda a evidência, as partes desse mundo não coexistam sem mim”. E ele acrescenta, referindo a experiência da visão à teoria sartriana do Ser e do Nada, “O ser é contornado (bordé) em toda a sua extensão por uma visão do ser que não é um ser, que é um não-ser”.[3]
Assim, a especificidade da visão é que sua dimensão subjetiva — se eu fechar os olhos, o mundo desaparecerá — tende a se negar, a se esquecer como dimensão subjetiva, de modo que tenho a impressão de ter acesso às coisas mesmas, tal como elas são em si, isto é, independentemente de mim. Em virtude de uma espécie de inversão, mesmo que o aparecimento do mundo dependa completamente de minha visão, é como se minha visão encontrasse, ou entrasse em contato com, um mundo já presente e independente dela. Mesmo que, na realidade, essa descrição tenha certa validade com respeito à percepção em geral — qualquer percepção se dá como percepção do próprio mundo —, é de notar que ela vale particularmente para a visão, que, nesse sentido, aparece como um caso eminente de percepção. No tato, por exemplo, nunca me esqueço da sensação de meu próprio corpo e, portanto, da dependência daquilo que é tocado em relação ao corpo que está tocando: quando estou roçando minha mesa com a minha mão, sinto, junto com a lisura da madeira, a ponta dos meus dedos e, por assim dizer, minha própria sensibilidade. No caso da visão, não sinto os meus olhos vendo, a não ser em situações excepcionais e, na verdade, não tenho a impressão de ver pelos olhos ou “no meu corpo”, mas tenho antes a impressão de ver de nenhum lugar ou de toda parte, isto é, de sobrevoar o mundo. Pela visão ausento-me de mim mesmo, esqueço-me em proveito de uma pura exterioridade. A experiência da visão é negação da visão como experiência subjetiva: a experiência da visão confunde-se com a presença da coisa vista. Como Merleau-Ponty mostra em O olho e o espírito, a visão não é certo modo do pensamento ou presença a si mesmo: ela é o meio que me é dado para ser ausente de mim mesmo e para assistir à “fissão” do Ser. Na visão, o mundo é para mim a fim de ser sem mim, ou seja, de ser mundo, e Merleau-Ponty pode assim concluir: “O quale [a qualidade] visual me dá e é o único a me dar a presença daquilo que não é eu, daquilo que é simples e plenamente”.[4] Em outras palavras, a visão tem um poder ontológico sem equivalente, uma vez que ela constitui o verdadeiro acesso a um mundo enquanto tal, ou seja, enquanto sendo.
Isso dá conta da dificuldade de falar da visão, pela qual começamos, pois o próprio da visão é esquecer-se e aparecer como mera abertura para as coisas. É por isso que, para falar da visão, é preciso fazer um esforço, é preciso resistir a seu movimento natural de esquecimento, para reencontrar suas raízes subjetivas, ou seja, corpóreas. Assim, como veremos mais adiante, é ao reconhecer a inscrição da visão no corpo próprio, ou seja, sua relação com os outros sentidos e com o movimento, que Merleau-Ponty consegue aprofundar o sentido dela. Além disso, essa primeira descrição da visão também dá conta da necessidade de pensar sobre a visão. Com efeito, à diferença dos outros sentidos, com os quais nunca me esqueço completamente da dimensão subjetiva de minha experiência, há um fascínio próprio à visão, um poder de convicção da coisa vista, de tal maneira que qualquer imagem, enquanto pertencendo ao visível, dá-se como real, como algo que faz parte do mundo. Assim, justamente por causa do poder da visão, do efeito de verdade inerente ao visível, e, por conseguinte, das manipulações que ele possibilita, é preciso tentar compreender mais adiante o que significa ver e, assim, abrir caminho para uma crítica da visão.
As concepções filosóficas clássicas da visão permanecem, em vários graus, dependentes de nossa experiência ingênua dela. Na medida em que a visão é vivida como uma janela abrindo para o mundo, a filosofia toma como ponto de partida a existência de um mundo real a partir do qual trata-se de explicar a visão. Assim, segundo a filosofia empirista e realista, a coisa existe independentemente do sujeito: ela tem qualidades objetivas que vão agir sobre o órgão da visão e suscitar sensações visuais, principalmente de cores e de formas. Desse ponto de vista, o objeto pode ser definido como um conjunto, uma coleção de sensações, e a visão, como a recepção das qualidades constituintes do objeto. No entanto, por mais simples que ela seja, essa explicação da visão não pode ser aceita, justamente porque se trata de uma explicação que não dá conta da experiência enquanto tal. Com efeito, a percepção visual é, de início, percepção de alguma coisa, ou seja, de uma coisa individual determinada. Segue-se daí que a coisa não pode ser definida como o conjunto das qualidades sensíveis, já que cada aspecto visual é imediatamente reconhecido como aspecto dessa coisa. Em outras palavras, é impossível separar a suposta qualidade visual da coisa daquilo de que ele é a qualidade e, portanto, do sentido que ela manifesta ou que é reconhecido nela. Um empirista rigoroso diria que a flor do lírio, descrita a partir do que é concreto, ou seja, do que é dado nela, deve ser definida como a união de uma cor, o branco, uma forma, a dessa flor, um cheiro, etc. Ora, pensando bem, o branco enquanto tal não existe, é uma abstração: existe apenas o branco da neve, do leite ou da flor do lírio. E, mesmo assim compreendido, o branco ainda é uma abstração: não existe o branco da flor do lírio em geral, mas apenas o branco desse lírio. Esse exemplo mostra que, se quisermos definir uma cor concretamente, isto é, tal como ela é dada, não podemos abstraí-la do objeto de que ela é a cor e que ela manifesta. Não há cor que não seja cor de alguma coisa e, em consequência, uma cor pura — um branco que seja simplesmente branco — não existe. Daí os nomes das cores: de rosa, de laranja, de abóbora. O que a visão percebe primeiro é um objeto, uma coisa, por exemplo, um lírio, que ela reconhece imediatamente por meio de um certo estilo, sem ter de distinguir qualidades visuais e compô-las para obter esse objeto. O objeto visual não pode ser definido como um conjunto de qualidades, pois cada qualidade é, por essência, manifestação desse objeto, de modo que, na realidade, não é nem possível distinguir a qualidade do objeto.
Assim, a filosofia empirista confunde a simplicidade lógica ou objetiva com a simplicidade fenomenológica. No plano lógico, é simples o elemento indivisível a partir do qual a coisa é composta. Mas o fato de que uma coisa seja composta de elementos simples não implica que a visão da coisa seja baseada em sensações elementares: para a visão, o mais simples é aquilo que aparece primeiro, a saber, um objeto, caracterizado por uma certa unidade, um certo estilo, e é apenas mediante um esforço de análise, necessariamente posterior à visão do objeto, que se podem descobrir “conteúdos” visuais. Na realidade, nosso mundo não é constituído por conteúdos, mas sim por formas, fisionomias, qualidades afetivas, isto é, por significações, e o que os empiristas chamam “conteúdos” (as sensações visuais) é o mínimo de matéria necessário para a aparição dessas significações. O que vejo num rosto, por exemplo, e que me enseja reconhecê-lo? Justamente uma certa fisionomia, uma maneira singular de ser, imediatamente reconhecível, e não um conjunto de cores e de formas. Como Merleau-Ponty escreve em A estrutura do comportamento, no contexto de uma crítica ao conceito de sensação,
[…] é possível perceber um sorriso ou até nesse sorriso um sentimento sem que as cores e as linhas que “compõem”, como se diz, o rosto estejam presentes à consciência ou dadas num inconsciente. Precisaria, portanto, levar ao pé da letra o fato, frequentemente notado, de que podemos conhecer perfeitamente uma fisionomia sem saber qual é a cor dos olhos ou dos cabelos, a forma da boca ou do rosto. Esses elementos supostos não estão presentes senão pela contribuição que eles trazem à fisionomia e é a partir dela que eles são reconstituídos com dificuldade na recordação.[5]
Assim, a visão não é, em hipótese nenhuma, a pura recepção de um conteúdo visual, o que equivale a dizer que não vemos apenas com nossos olhos. Enquanto apreensão de um sentido dentro do sensível ou como sensível, a visão é mais do que visão física: ela envolve uma forma de compreensão ou de pensamento.
Cabe concluir que a concepção empirista e realista da visão deve ser recusada: ela repousa sobre a ilusão própria à visão segundo a qual essa atinge um mundo preexistente. Em consequência, o empirismo a reconstitui a partir da coisa vista em vez de se perguntar o que significa exatamente ver. No que diz respeito a esse problema, Descartes deu um passo decisivo, pois ele mostrou que, para dar conta da visão e, em geral, da percepção, é preciso reconhecer uma dimensão que ultrapassa a dos olhos, ou seja, dos próprios conteúdos visuais. Num texto célebre da Segunda meditação metafísica, Descartes imagina a seguinte experiência. Peguemos um pedaço de cera: este pode ser caracterizado pela cor amarela, a forma cúbica, um certo cheiro de flor, um aspecto liso e ligeiramente brilhante, etc. Em outras palavras, parece que a percepção da cera pode ser justamente definida a partir de um conjunto de qualidades sensíveis e, antes de tudo, visuais. Mas, se aproximarmos essa cera de uma chama, ela se derrete: o cheiro dissipa-se, a cor muda, a forma desaparece, seu tamanho aumenta, ela torna-se líquida, etc. Ora, dizemos que, depois dessa mudança, a mesma cera permanece. Assim, para mostrar que nossa percepção da cera não é redutível às sensações inicialmente dadas, que ver a cera não é ver a cor dela, Descartes opõe o julgamento de identidade, ou seja, o reconhecimento do objeto — a mesma cera permanece —, à variação ou desaparição das qualidades sensíveis. Se posso afirmar que a mesma cera permanece a despeito do desaparecimento das qualidades sensíveis pelas quais eu acreditava percebê-la no princípio, cabe concluir que não é pelas sensações que percebo a cera enquanto tal, ou seja, enquanto objeto. Assim, na medida em que digo que vejo a cera, isto é, uma coisa definida que permanece para além das variações, a visão da cera não se pode reduzir à visão do olhos, cujo objeto, a cor, é fadado a desaparecer. Mas essa experiência levanta um problema: como definir aquilo que permanece e constitui o objeto próprio de minha percepção? Descartes dá a seguinte resposta: aquilo que eu conhecia desde o começo e permanece através das mudanças é um corpo, ou seja, algo extenso, flexível e mutável. Ora, qual é o sentido da extensão, da flexibilidade e da mutabilidade, a não ser a capacidade de ter uma infinidade de volumes, de formas e de lugares, o que corresponde de fato à definição de um objeto físico? Essa caracterização da cera como corpo permite entender qual é o verdadeiro sentido da percepção. Perceber não é sentir nem imaginar, pois a imaginação é incapaz de abranger a infinidade das mudanças possíveis: perceber é conceber. Com efeito, é apenas pelo entendimento que sou capaz de apreender o corpo como potência de uma infinidade de variações. Assim, segundo Descartes, se posso afirmar que a mesma cera permanece, é porque alcanço a presença da cera pelo entendimento, ou pelo pensamento como aptidão a perceber um corpo enquanto tal, ou seja, enquanto fragmento de extensão. Desde o começo, mesmo quando eu achava que atingia a cera pelos sentidos, eu só podia reconhecer essa cera porque a concebia.
Por meio dessa análise, que é muito convincente, Descartes põe em evidência a dimensão de pensamento que é encerrada na percepção visual e mostra que a visão não é apenas função do olho, mas também do espírito. Na realidade, somos vítimas da linguagem: debruçados na janela, dizemos que estamos vendo homens passeando na rua, mas, na realidade, o que estamos vendo são chapéus e paletós. Portanto, se podemos dizer que há homens passeando na rua, é porque julgamos que as roupas encobrem homens, e não autômatos: no fundo, minha visão, enquanto visão de uma realidade externa (homens), é julgamento. Mas, por mais convincente que seja, essa análise não deixa de ser problemática. Ela vale mais pelo que critica do que pelo que sustenta. Ela estabelece uma verdade definitiva: a coisa vista não pode ser reduzida a uma coleção de qualidades sensíveis, e, em qualquer visão, há algo que não se reduz à atividade dos olhos, há um reconhecimento e, portanto, uma forma de pensamento. Mas nem por isso pode confundir-se a visão com um julgamento, o que levaria a afirmar que os aspectos sensíveis não têm nenhuma verdade quanto ao objeto, que eles são mera ilusão, expressando as propriedades do corpo que está vendo e, de maneira nenhuma, as do objeto visto. Se é verdade que ver não é apenas receber qualidades sensíveis pelos olhos, ver também não é pensar. Se a visão fosse pura e simplesmente pensamento, eu reconheceria um rosto posto de cabeça para baixo, pois, para o pensamento, a orientação espacial não faz sentido: ora, justamente, o fato é que não reconheço um rosto posto de cabeça para baixo. Assim, Descartes toma como ponto de partida a descrição empirista do objeto como coleção de qualidades atômicas, reconhece a impossibilidade de dar conta da unidade do objeto a partir dessa multiplicidade e, portanto, estabelece um princípio de unidade que, inevitavelmente, se situa para além dessas qualidades: a pura extensão, acessível ao entendimento e completamente independente das qualidades sensíveis, que, por sua vez, são reduzidas a uma mera ilusão. Mas, nessa análise, Descartes perde de vista a presença perceptiva do objeto e não dá conta da diferença entre a cera vista e a cera concebida ou pensada: ele fala como se a cera dada na experiência fosse a cera do físico, que a reduz a uma extensão material. Como escreve Merleau-Ponty em Fenomenologia da percepção,
[…] a célebre análise do pedaço de cera salta de qualidades como o odor, a cor e o sabor para a potência de uma infinidade de formas e de posições, que está para além do objeto percebido e só define a cera do físico. Para a percepção, não há mais cera quando todas as propriedades sensíveis desapareceram, e é a ciência que supõe ali alguma matéria que se conserva. A cera “percebida” ela mesma, com sua maneira original de existir, sua permanência que não é ainda a identidade exata da ciência, seu “horizonte interior” de variação possível segundo a forma e segundo a grandeza, sua cor mate que anuncia a moleza, sua moleza que anuncia um ruído surdo quando eu a golpear, enfim a estrutura perceptiva do objeto, tudo isso é perdido de vista.[6]
Assim, é apenas porque Descartes confundiu desde o começo a cera percebida com a cera do físico que ele pode afirmar que a mesma cera permanece a despeito do desaparecimento de todas as qualidades iniciais. Se tomássemos o exemplo de um pedaço de gelo, não poderíamos dizer, depois de tê-lo posto perto de uma chama, que “o mesmo gelo permanece”, mas diríamos, ao contrário, que “o gelo tornou-se água”. Em outras palavras, mesmo que o objeto não se confunda com a soma de suas qualidades, sua identidade não é transcendente ao sensível, mas imanente a ele: o objeto enquanto tal é apreendido no plano sensível, e, quando as qualidades visuais mudam, o objeto também se transforma. Tal é a dificuldade de uma reflexão sobre a visão: se a visão não se reduz à atividade dos olhos, o fato é que vemos pelos olhos, se a coisa vista não se reduz a suas cores e formas, o fato é que a vemos por meio dessas cores e formas. Assim, se é verdade que a coisa vista não se confunde com a coleção de suas qualidades visuais, ela também não é outra coisa, um princípio positivo para além dessas qualidades. A unidade da coisa vista não se distingue positivamente dos conteúdos visuais: é algo que se manifesta em cada um deles sem poder ser apreendido positivamente, como um tema musical que nunca é tocado por ele mesmo, mas aparece apenas nas variações, por assim dizer, em filigrana. A cor da cera dá-se imediatamente como cor da cera, ou seja, manifesta a cera que é reconhecida nela, e, assim, ela anuncia uma certa moleza e um certo ruído, do mesmo modo que a cor do mármore já contém e anuncia a dureza e o frescor dessa pedra, pois eles têm em comum um certo estilo, designado pela palavra “mármore”, ou como a palavra “limão” se refere a algo que se manifesta ao mesmo tempo em seu amarelo, sua aspereza e sua acidez. Trata-se, portanto, de uma unidade que não repousa sobre um princípio positivo apreendido pelo entendimento, mas de uma unidade que fica imanente à diversidade dos conteúdos que ela unifica, que lhes dá uma coerência sem se distinguir deles e que é apreendida em cada conteúdo como um certo estilo que o unifica com os outros. De novo, a comparação com a visão de uma outra pessoa é relevante: a presença de cada qual pode ser caracterizada por uma certa maneira de ser, um “jeito” singular, evidentemente presente em cada aspecto e cada comportamento e dando-lhes coerência, ainda que seja impossível apreendê-lo positivamente.
Essa análise crítica das concepções clássicas da visão enseja pôr em evidência a dificuldade de dar conta da percepção visual que é finalmente confundida com outra coisa — recepção de conteúdos visuais ou apreensão intelectual de um objeto físico. Essa análise também permite esclarecer o problema da visão: ver não é ver apenas aquilo que os olhos vêem sem por isso ver, ou seja, apreender outra coisa. Ora, o fracasso das filosofias clássicas vem do fato de que elas assumem a ontologia ingênua suscitada pela própria visão: essa é sobrevôo, panorama, dando para um mundo em si. Portanto, se se quiser dar conta do mistério da visão, ou seja, descrevê-la em vez de explicá-la, é preciso abrir mão dessa abordagem espontânea da visão como sobrevôo. Em O olho e o espírito, Merleau-Ponty ressalta o fato de que a visão, como todos os sentidos e contrariamente ao que parece, não é um não-ser, mas pertence a um corpo. Com efeito, há um entrelaçamento entre a visão e o movimento. Primeiro, cabe reparar que basta ver algo para saber alcançá-lo, de modo que tudo quanto é visível é, por princípio, acessível (mesmo que não seja fisicamente possível de imediato). Isto significa que a visão é vinculada ao corpo enquanto capaz de movimentos: ver é poder alcançar com o corpo, e, por outro lado, a aproximação de alguma coisa exige uma visão. Não existe separação radical entre o corpo como vidente e o corpo como motor. Isto é confirmado pelo fato de que há como uma precessão da visão nos movimentos do corpo e dos olhos: eles tomam espontaneamente a posição permitindo a visão mais rica, mais completa, como se os movimentos vissem antes dos olhos e para os olhos verem. Esse entrelaçamento entre visão e movimento corpóreo evidencia a dimensão encarnada da visão e, portanto, conduz a desistir da ideia da visão como sobrevôo. Cabe levar a sério o fato de que a visão se realiza num corpo: isto não significa apenas que vejo com os meus olhos, o que é óbvio, mas que a própria visão é uma forma de movimento para o mundo, é uma maneira de se aproximar dele. Se entendermos profundamente o entrelaçamento entre a visão e o movimento, deveremos concluir que a distinção entre a visão como órgão sensível e o movimento como mudança de posição é uma distinção abstrata, que, portanto, a visão, enquanto encarnada, deve ser definida como certo movimento — num sentido que não é meramente espacial —, movimento pelo qual o sujeito aproxima-se do mundo, ou seja, torna-se íntimo dele. Como Merleau-Ponty escreve em O olho e o espírito,
[…] essa extraordinária imbricação [empiétement], em que não se pensa suficientemente, interdiz de conceber a visão como uma operação de pensamento que colocaria diante do espírito um quadro ou uma representação do mundo, um mundo da imanência e da idealidade. Imerso no visível pelo seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se apropria daquilo que ele vê: ele só o aproxima pelo olhar, ele abre para o mundo.[7]
Assim, apreendida a partir de seu enraizamento no corpo e no movimento, a visão já não pode ser definida como representação, ou seja, assimilação, redução daquilo que é visto àquilo que conheço nele. Ver não é apoderar-se, mas aproximar-se, não é possuir, mas abrir para. Enquanto algo que ocorre num corpo situado no mundo, a visão percebe ao ser ultrapassada pelo que ela está percebendo. Para ela, segundo a fórmula hegeliana, não há alternativa entre entrar em si mesmo e sair de si mesmo: ela se realiza como visão à medida que ela se movimenta para o mundo. Mas segue-se daí que há na visão uma forma de cegueira, que o visível comporta uma dimensão de invisibilidade. Se ver é aproximar-se em vez de possuir, há necessariamente naquilo que é visto algo que escapa da visão, que a ultrapassa: se a visão não é sobrevôo, mas sim relação com uma realidade transcendente, há necessariamente naquilo que é visto algo que não é redutível a uma representação e, nesse sentido, não pode ser visto. Em outras palavras, tem-se de reconhecer uma invisibilidade constitutiva da visão. Essa invisibilidade não remete ao fato de que nunca vejo uma coisa integralmente, de modo que sempre posso tornar visíveis aspectos invisíveis do objeto. Pelo contrário, ela significa que, por essência, na própria visão, na medida em que ela não é apropriação, mas aproximação, há uma não-visão. Se a visão fosse visão de ponta a ponta, ou seja, se nada no objeto lhe escapasse, ela já não seria visão, mas representação ou conhecimento: por conseguinte, a visão vê aquilo que ela está vendo, contanto que ela não o veja plenamente, contanto que permaneça nela uma forma de cegueira. Como escreve Merleau-Ponty em O visível e o invisível,
[…] quando digo que todo visível é invisível, que a percepção é impercepção, que a consciência tem um “punctum caecum”, que ver é sempre ver mais do que se vê — é preciso não compreender isso no sentido da contradição: é preciso não imaginar que ajunto ao visível perfeitamente definido como em-Si um não-visível (que seria apenas ausência objetiva, isto é, presença objetiva alhures, num alhures em si); é preciso compreender que é a visibilidade mesma quem comporta uma não-visibilidade; na medida mesmo em que vejo, não sei aquilo que vejo (uma pessoa familiar é não definida).[8]
Assim, a invisibilidade constitutiva da visão não se refere a uma impotência qualquer: dizer que o visível é invisível equivale a dizer que o visível, enquanto sendo, tem uma espessura, encobre um excesso de realidade que suscita a exploração. É por isso que Merleau-Ponty escreve, de uma maneira muito esclarecedora, que “ver é sempre ver mais do que se vê”: na medida em que a visão é aproximação ou exploração, ou seja, antecipação, ela já vê, de certa forma, aquilo que ela ainda não está vendo, e, nesse sentido, é verdade que ver é ver mais do que se vê. A não-visão inerente à visão não é a negação da visão, mas a promessa de visões futuras. Em resumo, o visível envolve um invisível, pois a visão não é conhecimento, mas relação com uma realidade, isto é, uma transcendência: “O invisível reside aí sem ser objeto, é a pura transcendência, sem máscara ôntica”,[9] ou seja, sem ser a transcendência de alguma coisa determinada.
O sensível, e particularmente o visível, longe de ser aquela qualidade simples e transparente, é caracterizado por uma obscuridade ou uma ambiguidade que corresponde pura e simplesmente à sua dimensão de presença pura. Como escreve Merleau-Ponty:
O sensível é precisamente o meio em que pode existir o ser sem que tenha que ser posto; a aparência sensível do sensível, a persuasão silenciosa do sensível é o único meio de o Ser manifestar-se sem tornar-se positividade, sem cessar de ser ambíguo e transcendente.[10]
Afinal, como definir a invisibilidade constitutiva do visível? Na medida em que minha visão se realiza num corpo situado num lugar do mundo, há uma dimensão que é constitutiva da visão, mas que não pode ser vista: a da profundidade. Dizer que as coisas que estou vendo são reais ou presentes equivale a dizer que elas têm uma profundidade (é a diferença entre um quadro e, justamente, um objeto real), ou seja, que elas são mais do que vejo nelas. Ora, mesmo que esse excesso fique, por definição, escondido, ou seja, invisível, por outro lado, ele é dado como invisível, justamente sob forma da profundidade: não vejo a profundidade (equivaleria a negá-la como profundidade e a transformá-la num comprimento), mas vejo as coisas na profundidade, isto é, tenho acesso a sua invisibilidade. Assim, escreve Merleau-Ponty, ela é
a dimensão do oculto por excelência. […] É preciso que haja profundidade, pois que existe o ponto de onde eu vejo. A profundidade é o meio que têm as coisas de permanecerem nítidas, ficarem coisas, embora não sendo aquilo que olho atualmente. É a dimensão por excelência do simultâneo. Sem ela, não existiria um mundo ou Ser. [11]
Assim, a invisibilidade do visível reside em sua profundidade (ou transcendência), que não deve ser entendida no sentido puramente objetivo de uma distância espacial entre dois pontos, mas antes, para além da diferença entre o sentido próprio e o sentido metafórico (fala-se de um “pensamento profundo”), como uma forma de reserva ou de irredutibilidade.
Há incontestavelmente um poder das imagens, incomparável com os outros campos da sensibilidade. Na medida em que pertencem a um ser ambíguo, a uma transcendência pura ou profundidade, elas mostram sem explicitar, dão a entender sem comentar, desvendam um sentido que, porém, permanece implícito e se dá como inesgotável. Em outras palavras, o visível suscita um fascínio, seja qual for seu conteúdo, pois é a visibilidade enquanto tal que nos deslumbra. Uma vez que o visível encerra uma dimensão de invisibilidade, tem uma profundidade que, ao mesmo tempo, ele desvenda e oculta, uma vez que “ver é sempre ver mais do que se vê”, sendo a visão uma forma de exploração do mundo, é compreensível que a visão não possa ficar satisfeita com aquilo que ela está vendo atualmente e queira, por assim dizer, ver o invisível, passar além da película das coisas, entrar na profundidade. Há uma forma de ânsia, e até de frenesi, constitutiva da visão que nos leva a sempre querer ver mais e melhor, mas que fica necessariamente insatisfeita, já que qualquer novo visível abre uma nova invisibilidade. Nossa relação com o visível é caracterizada por uma insatisfação irredutível. Daí a proliferação das imagens, sob todas as formas, que está crescendo de uma maneira exponencial. Do mesmo modo que o homem é um ser viajante, querendo penetrar na profundidade do mundo, ou seja, no horizonte, para ver o que há além do que ele está vendo, o homem também é um ser vidente e criador de imagens, como se não fosse suficiente ver o mundo, mas ele precisasse desdobrar essa visão, multiplicando as imagens e as imagens das imagens. Como disse um semiólogo francês, somos caracterizados por uma hipertrofia da função escópica. A meu ver, essa ânsia, que conduz a um frenesi na criação das imagens, não se explica de maneira satisfatória pelo progresso técnico, nem pela psicanálise, mesmo que a ideia de que é a sexualidade — na medida em que ela sempre permanece incompreensível — que procuramos ver em tudo quanto vemos me pareça ter certo valor. Eu quis mostrar acima que essa insatisfação constitutiva da visão e a ânsia em que ela resulta enraízam-se na dimensão propriamente ontológica da visão, na invisibilidade que a constitui enquanto visão. Aliás, poderíamos demonstrar que a curiosidade erótica, realçada pela psicanálise, é baseada, em última instância, numa forma de curiosidade ontológica: é provavelmente a Carne do mundo que procuramos atingir na carne propriamente dita, isto é, na carne de outra pessoa. Seja como for, a proliferação das imagens, a vontade de transformar tudo em visível, origina-se no poder e, por assim dizer, na superioridade ontológica, ou seja, na profundidade da visão.
Por fim, seria possível, a partir dessa tese, esboçar uma forma de crítica das imagens, ou, antes, do uso delas. Qualquer visível causa uma forma de insatisfação, que toma a forma de um desejo de exploração da dimensão invisível do visível. Em face dessa insatisfação, haveria, para simplificar, duas maneiras de utilizar as imagens, ou seja, de responder a esse desejo. Podem-se multiplicar as imagens sem discriminação nem hierarquia, fotografando, filmando e mostrando tudo quanto pode ser mostrado, respondendo assim ao desejo de visibilidade por uma saturação quantitativa. Esse uso, o mais frequente, das imagens, não apazigua o desejo, pois ele responde a uma pergunta sobre o invisível por uma multiplicação dos visíveis e, portanto, pela manutenção da invisibilidade. Mas há um outro uso, mais raro, das imagens, que procura justamente dar uma resposta à pergunta constitutiva da visão, em vez de tentar apagar ou abafá-la: é o uso artístico, que não se limita à pintura, mas caracteriza-se, antes, por uma certa atitude em relação às imagens. Em vez de acrescentar ao visível outro visível, as artes visuais tentam mostrar a essência da visibilidade, ou seja, a sua dimensão de invisibilidade, no seio e por meio do visível. Elas tentam, por uma espécie de reflexão imanente ao visível, pôr em evidência a potência ontológica do visível. Por exemplo, na obra de Cézanne, não se trata tanto de pintar coisas vistas quanto de pintar o poder de revelação ou de manifestação dessas coisas, ou seja, a profundidade que as caracteriza enquanto coisas existentes ou coisas do mundo. Procedendo dessa maneira, o pintor responde ao desejo das imagens ao desvelar qual é o verdadeiro objeto desse desejo, a saber, a invisibilidade constitutiva do visível, e, dessa forma, o pintor o apazigua muito melhor, pois entendemos, graças a ele, o motivo profundo de nossa frustração e a impossibilidade de preenchê-la.
Notas
[1] Maurice Merleau-Ponty, O visível e o invisível, trad. José Arthur Giannotti & Armando Mora d’Oliveira (São Paulo: Perspectiva, 1992), p. 15.
[2] Ibid., p. 17.
[3] Ibid., p. 19.
[4] Maurice Merleau-Ponty, L’oeil et resprit (Paris: Gallimard, 1964), p. 84. Ed. brasileira: O olho e o espírito, trad. Paulo Neves (São Paulo: Cosac & Naify, 2004).
[5] Maurice Merleau-Ponty, La structure du comportement (Paris: PUF, 1942), p. 180.
[6] Maurice Merleau-Ponty,Fenomenologia da percepcão, trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (São Paulo: Martins Fontes, 1994), p. 61.
[7] Maurice Merleau-Ponty, L’ceil et Pesprit, cit., p. 18.
[8] Maurice Merleau-Ponty, O visível e o invisível, cit., p. 224.
[9] Ibid., p. 211.
[10] Ibid., p. 199.
[11] Ibid., p. 203.