O livro do mundo [Pessoa]
por Haquira Osakabe
Resumo
O Livro do Desassossego tem uma história longa e complexa como a obra inteira de Fernando Pessoa. Como ordenar e dar uma coerência estilística à sua prosa fragmentária, datada de 1914 a 1934? De início atribuído a Vicente Guedes (alguém que “passeou a arte de sonhar através do acaso de existir”, escreve o próprio Pessoa), seu primeiro momento é marcado por um sujeito que busca a eternidade, o sossego (“Por que escrevo este livro? (…) Calado seria a perfeição, escrito, imperfeiçoa-se”) e por uma interlocutora velada e silenciosa. Recusa da vida e impossibilidade de conceber outra. Mas, 15 anos após deixar esse projeto no limbo, Pessoa vai retomá-lo com um novo autor, Bernardo Soares, e um universo quase oposto ao de Guedes. A diferença é que Soares, embora não encontre solução salvadora para sua inquietude, reconstitui, numa espécie de diário e por trás da materialidade mais restritiva, o significado das coisas e de si. Os companheiros e os objetos do escritório onde trabalha são seu contato sensível com o mundo. Mas persiste ainda uma divisão entre angústia solitária e aceitação da vida. O embate dos heterônimos não se resolve nesse semi-heterônimo que é o mais próximo de Pessoa, certamente o que habita um mundo mais “povoado”, e também o mais “influenciado” por Caeiro, como se pode entrever nesta passagem: “Também há universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver (…) os sonhos que consigo extrair de entre as rodas e as tábuas, ainda assim são para mim o que tenho e o que posso ter.”
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Tenho diante de mim as duas páginas grandes do livro pesado; ergo de sua inclinação na carteira velha, com os olhos cansados, uma alma mais cansada do que os olhos. Para além do nada que isto representa, o armazém, até à rua dos Douradores, enfileira as prateleiras regulares, os empregados regulares, a ordem humana e o sossego do vulgar. Na vidraça há o ruído do diverso, e o ruído diverso é vulgar, como o sossego que está ao pé das prateleiras.
Baixo os olhos sobre as duas páginas brancas, em que meus números cuidadosos puseram resultados da sociedade. E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas páginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços à régua e de letras, inclui também os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, eles sem escrita, a vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.
No próprio registro de um tecido que não sei o que seja se me abrem as portas do Indo e de Samarcanda e a poesia da Pérsia, que não é de um lugar nem de outro, faz das suas quadras, desrimadas do terceiro verso, um apoio longínquo para o meu desassossego. Mas não me engano, escrevo, somo e a escrita segue, feita normalmente por um empregado deste escritório.
Fernando Pessoa,
Livro do desassossego II, Teresa Sobral Cunha (org.),
Campinas, Ed. Unicamp, 1994, p.64
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1
É muito provável que nem mesmo Fernando Pessoa, ao imaginar pela primeira vez um livro denominado do desassossego, tivesse a mínima suspeita dos problemas que iria acarretar o empreendimento (finalmente póstumo) de sua organização e publicação.[1] Escritor compulsivo e múltiplo — como o revelam não só sua obra, por tantas mãos publicada, mas sobretudo o famoso baú, hoje depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa —, deixou ele, entre seus escritos, vários projetos de publicação de seus trabalhos nos quais consta explicitamente o nome do Livro do desassossego. Não só isso. Deixou também rascunhados projetos de edição desse livro que jamais chegou, na verdade, sequer a organizar. Em 1914, um ano, portanto, depois da publicação de “Na floresta do alheamento”, o primeiro texto proposto para o Livro, o poeta já escrevia a Armando Côrtes Rodrigues: “O meu estado de espírito obriga-me a trabalhar bastante, sem querer no Livro do desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos”.[2] . Na verdade, ao longo dos anos, essa mesma impossibilidade unificadora que aí aparece como uma queixa do autor iria se confirmar cada vez mais, embora com a substancial alteração de seu estilo e com a definição mais clara de sua autoria. O caráter de notação e registro implicado pela escrita fragmentária acabaria por se tornar não apenas o modo particular de construção do Livro, mas sobretudo o grande empecilho para um consenso editorial em torno dele. Pessoa, em fragmento solto já do início dos anos 1930, ao chegar finalmente a uma atribuição clara de autoria em favor de Bernardo Soares, fala, no entanto, da necessidade de harmonizar materiais mais antigos com a psique desse seu semi-heterônimo, então recentemente definido. Mas o poeta não chegou a realizar tal empreendimento e mesmo o fato de haver naquele momento separado um envelope com fragmentos indicando Livro do desassossego não conseguiu livrar seus pósteros da tarefa insolúvel de propor uma organização minimamente consensual da referida obra. Não se pode negar que, de modo bastante compacto, há escritos de tom fragmentário e reflexivo que o poeta produz de 1929 a 1934, com bastante coerência estilística, e que poderiam permitir a composição de um livro quase autônomo, não fossem determinados problemas ligados a heterocliticidade natural de outros materiais pessoanos e que concernem, sob diferentes critérios, a tudo o que o poeta teria pensado sob o nome de Livro do desassossego. O maior desses problemas tem a ver com o fato de que, independentemente da vontade de qualquer pesquisador, e mesmo de Pessoa, que não os destruiu e não os alterou, há uma série nada desprezível de textos que — explícita, estilística ou tematicamente — se harmonizam com outra personagem que constava até 1916 como um coautor do Livro do desassossego (o autor evidentemente seria o próprio Pessoa): trata-se de Vicente Guedes. Parece-me que, tendo sido Pessoa não só um escritor visceralmente prolífico e múltiplo, foi ele também, para o bem e para o mal, um arquivista não menos implacável. A vida, no entanto, deu conta de combinar sua fecundidade criadora com uma desordenação definitiva de boa parte do material do Livro do desassossego, fato que em nada combina com o espírito sistemático que caracteriza todo arquivista que se preze. Tanto assim que, passados mais de vinte anos da publicação da primeira edição do referido livro, vemo-nos ainda diante de uma discussão que, ao que parece, está longe de encerrar-se. Vejamos em que termos e em que circunstâncias ela se apresenta.
Organizada por Jacinto do Prado Coelho e com colaboração de Teresa Sobral Cunha e Maria Aliete Galhoz, a editora Ática, de Portugal, publicou pela primeira vez (em 1982) uma edição (a primeira a propor-se como tal) do Livro do desassossego, revelando uma surpreendente quantidade de textos e sobretudo uma fortíssima faceta simbolista-decadentista. (Só um parêntese: Jorge de Sena teria se proposto a uma edição do material e chegou a escrever uma grande introdução sobre o referido livro. A edição não saiu, mas a introdução é minuciosa, e sua leitura é obrigatória para qualquer pesquisador pessoano.)[3] Críticos como Eduardo Lourenço e George Rudolf Lind alertaram para a importância desse “novo” aspecto de Pessoa em ensaios bastante decisivos para a compreensão da obra toda do poeta. No que interessa a este artigo, no ensaio de Lind, publicado em 1983, o crítico já aponta para uma questão que mais tarde iria ser o centro de boa parte das discussões ligadas a uma fisionomia possivelmente definitiva do livro.[4] Segundo o crítico alemão, seu organizador, Jacinto do Prado Coelho, teria deixado de lado, para “editar em breve numa publicação separada”, os textos atribuíveis a um “certo Vicente Guedes”. De fato, esse nome consta mesmo de diferentes projetos, nos quais Pessoa afirma, por exemplo, a intenção de publicar o Livro do desassossego, “escrito por quem diz de si próprio chamar-se Vicente Guedes”.[5] Por outro lado, a mesma diferença estilística que teria levado Jacinto do Prado Coelho a pensar em compor um livro diferente (com que título, afinal?) com certeza presidiu a edição que António Quadros publicou pelas edições Europa-América em 1986, propondo uma separação entre uma fase mais antiga e simbolista da produção do livro e outra claramente atribuível ao moderno decadentista Bernardo Soares. O saudoso crítico, considerando a vontade expressa de Pessoa na atribuição da autoria do Livro a Bernardo Soares, organizou em um primeiro volume os textos mais tardios e mais conformes ao caráter diarista da escrita do semi-heterônimo. Num segundo volume, dispôs os textos que, como ele mesmo afirma, ressoavam a um “simbolismo decadentista que pela mesma época, à margem da poesia dos heterônimos, Pessoa ia exprimindo…”.[6] Mas ficou por conta de Teresa Sobral Cunha dar a Vicente Guedes, personagem de estilo e contorno simbolista-decadentista, uma espécie de herói wildiano, foros de cidadania literária, ao colocá-lo expressamente como coautor do primeiro volume de sua edição em 1991, dada a público pela editorial Presença (o lado de Pessoa, e já de Bernardo Soares). Este último figuraria como o coautor do segundo volume, desaparecendo deste, definitivamente, Vicente Guedes. Uma edição inglesa por conta do pesquisador americano Richard Zenith (Carcanet e Calouste Goulbenkian, 1992) daria início a um debate em que se questionariam dois pontos afirmados por Teresa Sobral Cunha tanto na sua edição de 1991 quanto nas posteriores edições (1994 e 1997), a saber: a precedência de um critério cronológico nas disposição dos fragmentos que comporiam o Livro, bem como a tese da dupla autoria: Vicente Guedes, seu primeiro coautor, e Bernardo Soares, o coautor definitivo. Num artigo em que fiz uma mise au point da questão, analisei os prós e os contras de cada uma das posições.[7] Aqui, todavia, assumo a tese da pesquisadora portuguesa, que considero, do ponto de vista da compreensão geral da obra pessoana, de maior fecundidade crítica.
2
De todo o conjunto de textos que Teresa Sobral Cunha atribui a Vicente Guedes, há um número deles, agrupáveis em torno do conhecido “Na floresta do alheamento”, que forma uma inequívoca unidade estilística e que, não por coincidência, tem como um dos temas mais correntes o ato presente da escrita do próprio livro: O livro do desassossego. Do significado desse primeiro conjunto de textos à configuração que quinze anos após o dito livro foi assumindo, há, pelo menos aparentemente, uma diferença muito grande. Resta saber até que ponto o propósito inicial do autor alterou-se tão substancialmente e resta saber como essa provável alteração teve a ver com outros fatos relativos à produção da obra geral do autor.
Num documento sem data, apenas anotado como “pref.”, Fernando Pessoa coloca-se na posição de editor de um livro de cujas páginas seria autor o suposto Vicente Guedes, cujo traço existencial mais definido, no dizer do próprio Pessoa, foi de alguém que “quase não existiu”:
este livro suave.
É quanto resta e restará duma das almas mais subtis na inércia, mais dedicadas (?) ao puro sonho que tem visto este mundo. Nunca — eu o creio — houve criatura por fora humana mais complexamente que cedesse a sua consciência de si própria. Dândi/ no espírito, passeou a /arte/ de sonhar através do acaso de existir.[8]
Essa figura diáfana era na verdade um simulacro turvo do próprio Pessoa, era quem “não tendo onde ir nem o que fazer, nem amigos, que visitasse, nem interessasse em ler livros, soía gastar suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também”.[9]
Que livro teria deixado essa figura por quem o autor-editor teria tanta ternura e simpatia?
Numa primeira citação em referência ao Livro, num texto com certeza contemporâneo do conhecido poema “Impressões do crepúsculo” e de “Na floresta do alheamento”, logo, anterior ao nascimento dos heterônimos em 1914, diria o autor, Vicente Guedes:
Às horas em que a paisagem é uma auréola da Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos ao fim duma alameda abandonada.
Colhi para escrevê-lo a alma de todas as flores e dos momentos efêmeros de todos os cantos de todas as aves, teci eternidade e estagnação. Tecedeira…, sentei à janela da minha vida e esqueci que habitava e era, tecendo mortalhas para o meu tédio amortalhar as toalhas de linho casto para os altares do meu silêncio.[10]
Tributário de um estilo que o próprio pessoa denominaria paúlico, o poeta fala do livro que escreve e do contexto que o origina: a matéria que o compõe e que qualificará em seguida de “belo e inútil” é “a alma de todas as flores e dos momentos efêmeros de todos os cantos”, enfim: “eternidade e estagnação”.
O significado desse ato parece paradoxal: o Livro é o de desassossego, mas a matéria, eternidade e estagnação, é o seu oposto: sossego, eternidade e paralisia. É justamente a tensão entre esses estados que parece comandar todos os escritos deste Vicente Guedes e parece comandá-lo ao extremo de condenar ao silêncio o próprio livro: “E porque este livro é absurdo, eu o amo; porque é inútil, eu o quero dar: e porque de nada serve querer to dar, eu to dou…”.[11]
Como se percebe neste texto, ou em vários outros da mesma natureza, três entidades constituem sua base: o sujeito, a interlocutora e o livro que se está escrevendo. O entendimento da natureza dessa obra imaginada exige um exame da relação entre os três. Entremeando o sujeito, o livro e a interlocutora deste e de outros textos, possivelmente esteja um conceito de existência que tudo pode explicar. É o que vou tentar fazer.
Nesse mesmo segmento, ao falar à sua interlocutora, ele pergunta: “Em que ponto ondeado da dança estacas e o tempo contigo, para do teu parar fazeres ponte até minha alma e do teu sorriso púrpura do meu fausto?”.[12] Retenhamos do que foi dito até agora as atribuições que o livro recebe: do desassossego, absurdo, livro cuja matéria é a eternidade e a estagnação.
A forma mais condescendente com que o poeta parece ter nos franqueado os estreitos e confusos caminhos que nos conduzem ao âmago do livro em processo talvez seja o significado ou a natureza da sua interlocutora, figura insistente que perpassa os textos fundamentais desse primeiro conjunto.
Tomemos de partida que ela, no dizer do poeta, não existe: “Tu não existes, eu bem sei, mas sei eu ao certo se existo? Eu que te existo em mim, terei mais vida real do que tu, do que a vida morta que te vive?”.[13]
Mas é justamente desta antivida que o autor tira ou quer tirar a relação entre criador e criatura, por força do sonho: “farei do sonharte o ser forte”. E conferindo existência a essa “mulher”, confere a arte ao que “dela” resulta. Dirá ele em seguida:
Do teu corpo de ânfora inútil saiba eu tirar a corola esquecida de novos versos, e ao teu ritmo lento de onda efêmera, saibam meus dedos ir buscar as linhas pérfidas de uma prosa virgem de a terem ouvido […] E tu que não és ninguém, serás para sempre e, ó suprema, a arte querida dos deuses que nunca foram e a mãe virgem e estéril dos deuses que nunca serão.[14]
Eu diria que essa figura é a mesma que comanda o primeiro texto dedicado ao Livro do desassossego e que foi publicado em 1913 e que só uma leitura apressada pode entender como a companheira amorosa do sujeito pelo trajeto na floresta do alheamento. Veja-se o trecho:
Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e nossos olhares perguntavam-se o que seria ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor.[15]
Mas a seguir o sujeito afirma: “Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós. Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento…”.[16] Essa fala conduz o leitor a outro lugar que não a floresta amorosa, e sim a floresta da sombra e do esquecimento. Como se seu o passeio com a “amada” não fosse mais do que sua inserção numa paisagem vazia, embora desalentadoramente bela. É por isso que ao final desse significativo texto o sujeito afirmará:
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemos-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos…
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto de nossa Imperfeição…[17]
De fato, as denominações de Velada, Silenciosa, confinam a figura da interlocutora no plano da indefinição. Figura mítica com certeza, mas, mais do que isso, por enquanto inominável.
E será só no grande texto “Nossa Senhora do Silêncio” que essa figura de mulher começará a definir-se, a sair da zona do limbo em que nada se nomeia. E, por isso mesmo, ela serve para nos orientar de modo mais preciso na compreensão desse intrigante livro.
Citando:
só posso ter como sonho o pensar nos meus sonhos, folheio-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ler mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessa todas as minhas visões demoradas de paisagens lentas e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio…[18]
Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para a planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto.[19]
O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo. A matéria da tua carne, não é espírito mas é espiritual. És a mulher anterior à Queda, escultura ainda daquele barro que […] do paraíso […] Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.[20]
Esses fragmentos extraídos quase ao acaso permitem apreender uma figura que, dita no feminino, nega porém sua condição biológica de mulher. A sequência que melhor a expressa é “Mulher anterior à queda”, anterior ao pecado, e sobretudo anterior aos horrores da própria condição de fêmea. Em frases que beiram ao escândalo no mesmo texto o poeta vilipendia as mulheres reais: “as que têm sexo”. Diz ele: “Quem não se enoja de ter mãe por ter sido tão vulvar na sua origem, tão nojentamente expelido para luz? Que nojo de nós não punge a ideia da origem carnal da nossa alma…”.[21] Justamente por isso ela, imaterial, imóvel, é a única pura a quem o sujeito pede: “Sê o dia eterno. Sê a noite total”.
“Nossa Senhora do Silêncio”, esse texto que é autoexposição mais escancarada do possível Vicente Guedes, constitui, desse modo, não só um monumento à antivida, glorioso e belo, mas explicita a matéria por quem e sobre quem está sendo gestado esse primeiro Livro do desassossego.
Assim, eu ousaria afirmar que o propósito inicial desse Livro do desassossego de Fernando Pessoa, atribuível a si na figura de seu outro, Vicente Guedes, que mal existiu, é um livro que se “delineia” e se perde na sua própria evanescência à medida que vai sendo escrito e que não se fecha, justamente pelo fato de que sua matriz geradora, essa Nossa Senhora do Silêncio, por natureza, nunca se lhe conforma às suas palavras nem se confina às linhas do livro. Desse fato, decorre que o próprio autor entenda a precariedade de seu empreendimento:
Que santificados de Absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas máximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer obra de todo perfeita, preferiram ousá-la de nunca a fazer…. Por que eu escrevo este livro? Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição, escrito, imperfeiçoa-se. Por isso o escrevo.[22]
Passamos agora ao sujeito de que afirmei ser ele um esboço embaçado do próprio Pessoa projetado em Vicente Guedes, ou este, editado e também encarnado por Pessoa. Vamos partir de algumas indicações. Os trechos em que fala da amada, da interlocutora, fazem-nos crer processo obviamente causal da relação realidade–sonho. Na verdade a coisa não é assim tão simples. Num dado momento ele mesmo afirma: “Tu não existes, eu bem sei, mas sei ao certo se eu existo? Eu que, te existo em mim, terei mais vida real do que tu, do que a vida morta que te existe?”.
Estamos aqui num dos pontos nucleares da criação pessoana, cuja realização máxima no período anterior a 1914, quando nascem os heterônimos, está na peça teatral O marinheiro. Nela, lembremos, justamente o que faz as conhecidas veladoras tremerem é a possibilidade de que sejam seres criados pelo sonho do marinheiro. Inúmeras são as passagens desse conjunto de textos em que fica ambivalente a relação entre o sonhador e a coisa sonhada. Mas, nesse caso, com uma diferença fundamental: se a mulher matricial é, como se viu, “a eternizada”, “esplendor do nada, nome do abismo, sossego do além” e, enfim, “tudo o que a vida não é”, se ela é tudo isto, o sujeito não será o seu contrário, mas estará mergulhado na vida vivente, naquilo que nega essa condição de “nada”. É como se, sendo símile dessa mulher, o sujeito se tensionasse contra a existência que o conforma e o oprime. O desassossego será o traço essencial dessa existência: será tudo aquilo que se agita, se move e aflige. E o livro, consequentemente, será não tanto o registro desse desassossego, mas sobretudo um modo particular e paradoxal de dessubstanciação da realidade, constituindo-se numa tentativa de criar pela escrita tudo aquilo que nega o desassossego, como afirmação de uma antivida. Alguns textos demonstram cabalmente o que acabo de afirmar: “Na floresta do alheamento”, “Muito longe”, e “Viagem nunca feita”.
O primeiro texto começa com uma alusão a um estado de vigília ou semivigília, que é uma sombra de sonhar “onde vislumbra a figura da mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia”. O texto todo é um percurso por essa paisagem e até a metade se assemelha a um sonho amoroso, mas vai-se desvendando como o avesso disso: um sonho oco de sentir, sem enleios de amor, impessoalizando-se ambos os sujeitos como que entregues a um estado de vacuidade: “não tínhamos vida que a morte precisasse matar… Não tínhamos época nem propósito”.
Desperto do sonho dirá o sujeito:
A manhã rompeu, como uma queda, do ciclo pálido da hora… […]
Cubramos, ó silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto de nossa imperfeição.[23]
Se de fato este é um dos primeiros textos que o poeta teria atribuído ao Livro dá para entender que este teria sido pensado como um repositório dos escritos que na linha das construções oníricas comporiam o mundo fundado sobre o ato de “nulificar” o desassossego em que está mergulhado.
Em “Viagem nunca feita” a paisagem é outra, digamos, mais concreta:
Passei pelas margens dos rios cujo nome me encontrei ignorando. As mesas dos cafés de cidades visitadas descobri-me a perceber que tudo me sabia a sonho, a vago. Cheguei a Ter às vezes a dúvida senão continuava sentado à mesa da nossa casa antiga, imóvel e deslumbrado por sonhos! Não lhe posso afirmar que isso não aconteça, que não esteja lá agora ainda, que tudo isto, incluindo esta conversa consigo, não seja falso e suposto.[24]
E exatamente por ser mais concreta ou de contornos mais definidos é que, ao contrário de “Na floresta do alheamento”, esse sonho carrega marcas da indesejável realidade. É o que o texto diz: “Levei de um lado para outro o cansaço de Ter tido um passado, o desassossego de estar vivendo um presente, e o tédio de Ter que Ter um futuro”.[25]
O final esclarece:
E assim escondo-me atrás da porta, para que a Realidade, quando entra não me veja. Escondo-me debaixo da mesa, onde subitamente prego sustos à Possibilidade. De modo que desligo de mim, como aos dois braços de um amplexo, os dois grandes tédios que me cingem — o tédio de poder viver só o Real e o tédio de poder conceber só o possível.[26]
E o Livro de Vicente Guedes, o primeiro desassossego de Fernando Pessoa, será aquilo mesmo: manifestação de uma carga espantosa da recusa da vida e da espantosa impossibilidade de conceber outra vida possível. É paradigmática a seguinte passagem da “Educação sentimental”:
Escrevo, porque esse é o fim lógico, requinte supremo, o requinte temperamentalmente ilógico da minha cultura de estados de alma. Se pego uma sensação minha e a desfio até poder com ela tecer-lhe a realidade interior a que eu chamo ou “A Floresta do Alheamento” ou “Viagem Nunca Feita”, acreditai que o faço não para que a prosa soe lúcida e trêmula, ou mesmo para que o eu goze com a prosa — ainda que mais isso quero, mais esse requinte final ajunto, como um cair belo de pano sobre meus cenários sonhados — mas para que dê completa exterioridade ao que é interior, para que assim realize o irrealizável, conjugue o contraditório e, tornando o sonho exterior, lhe dê o seu poder máximo poder de puro sonho, estagnador de vida que sou, burilador de inexatidões, pajem doente da minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepúsculo não os poemas que estão no livro, aberto sobre meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio, e ela fingindo que ouve, enquanto a Tarde, lá fora não sei como ou onde, dulcifica sobre esta metáfora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz tênue e última dum misterioso dia espiritual.[27]
Daí que ele mesmo, Pessoa, “condene” o Livro ao fracasso já que toda a sua verdade só poderia ser o silêncio. Esse primeiro Livro do desassossego dissolve-se assim na própria impossiblidade de construir-se como estagnação plena fazendo o reverso do desassossego. Não registra o desassossego, como o título poderia fazer esperar, mas tenta formular uma vida sem ele, um sonho de um mundo sem brisa que movimente, sem rios que corram, sem tempo que envelheça. Um mundo mudo e definitivamente estanque.
De tudo isso resultam textos notáveis de especulação estético-filosófica, como a Estética do Artifício, a Estética da Abdicação, textos definitivos de quem levou ao extremo a arte da decadência assumindo-a em seu limite com a célebre frase: “ser é abdicar”.
E, nesse sentido, não se poderia deixar de registrar aqui a mais notável página que esse Pessoa-Guedes nos legou e que, não por acaso, é dedicada a um dos ícones do decadentismo, o rei Luís II da Baviera, e que se inicia com um relato da visita da figura da Morte ao próprio rei. Não a morte mórbida, esquelética, mas a opulenta, aquela que lhe oferece o reino que ele não teve na terra. Diria ela, a Morte: “Mas no meu domínio, onde só a noite reina, terás a consolação, porque não terás a esperança; terás o esquecimento, porque não terás saudade; terás o repouso, porque não terás a vida”.[28] E conclui:
Rei virgem que desprezaste o amor, Rei-sombra que desdenhaste a luz, Rei-sonho que não quiseste a vida!
Entre o estrépito surdo de címbalos e atabales, a Sombra te aclama imperador.[29]
Esta página que consideraria uma das maiores do poeta e um dos documentos mais radicais da arte decadentista leva adiante a configuração da interlocutora dos textos: a Silenciosa, a Veladora, Nossa Senhora do Silêncio, citada anteriormente, e acaba por nomeá-la a Morte, a esplendorosa soberana de um reino sem desassossego, porque vazio.
3
Quinze anos se passam entre este primeiro livro ao qual Pessoa parece ter renunciado, ou pelo menos colocado no limbo, sobretudo como veremos adiante, com o impacto fulminante da presença do mundo heteronímico, mormente de Alberto Caeiro e suas lições de uma objetividade fundada na natureza. Quinze anos se passam até que sinais mais claros de sua retomada apontam não só para um novo autor, Bernardo Soares, mas também para um novo universo quase oposto ao de Vicente Guedes.
Mas, à semelhança de si próprio e do próprio Vicente Guedes, Bernardo Soares também é funcionário de comércio. Ao contrário, porém, do perfil difuso de Guedes, ele tem com o mundo uma relação, pelo menos em aparência, muito mais palpável, sensível. Sua morada, num quarto andar da rua dos Douradores na Baixa lisboeta, é vizinha do escritório em que trabalha. Sua Lisboa situa-se próxima aos armazéns, ao Terreiro do Paço, à igreja de São Domingos, ao Cais do Sodré. Ao contrário de Guedes, o livro que está escrevendo são páginas soltas cujo nome lhe foi conferido por herança pelo próprio Fernando Pessoa, que, a partir de 1929, começa a atribuir-lhe o que seria autoria definitiva do projeto aparentemente interrompido. Talvez essa seja a razão pela qual, herdeiro de uma obra até certo ponto iniciada, desdobrada e transformada, Bernardo Soares ocupe-se menos em justificar e explicar seu livro, sem deixar de continuar indagando pelo seu significado:
Pergunto ao que me resta de mim a que vêm estas páginas inúteis, consagradas ao lixo e ao desvio, perdidas antes de ser, entre os papéis rasgados do Destino.
Pergunto e prossigo. Escrevo a pergunta, embrulho-a em novas frases, desmado-a de novas emoções. E amanhã tornarei a escrever, na sequência do meu livro estúpido, as impressões diárias do meu desconvencimento com frio.[30]
Uma primeira observação deve ser feita: a afirmação do caráter diarístico do livro, característica que já vinha sendo definida antes mesmo de a nova autoria ser atribuída ao novo autor. Em segundo lugar, a formulação de Bernardo Soares, apesar de aparentada ao seu antecessor quanto às observações sobre a inutilidade do próprio livro, é bastante diferente. Para Guedes, lembremos, o livro será sempre imperfeito, porque o verdadeiro livro é o que se cala, nada diz e se realiza com o silêncio. Imperfeito que se sente, Guedes conforma-se nos desenhos de paisagens em que tentaria a tarefa de chegar àquela espécie de silêncio primordial, o avesso do desassossego visceral da vida.
Nesse sentido pode-se dizer que Vicente Guedes, de alguma forma, “resolve” seu desassossego, criando pela escrita o sonho de quietude absoluta ao qual seu olhar decadentista tinge de roxos crepusculares, paisagens palidamente douradas e lagos estagnados.
O caso de Bernardo Soares é diferente e ele aparentemente não encontra uma solução salvadora para sua inquietude. Páginas de intensa angústia, tédio, cansaço e vontade de morte formam grande parte de seus escritos, e delas só citaria exemplificativamente algumas linhas, extraídas de uma das últimas páginas datadas do livro:
Só quando vem a noite de algum modo sinto, não uma alegria, mas um repouso que, por outros repousos serem contentes, se sente contente por analogia dos sentidos. Então o sono passa, a confusão do lusco-fusco mental que esse sono dera esbate-se, esclarece-se, quase se ilumina. Vem um momento a esperança de outras coisas. Mas essa esperança é breve. O que sobrevém é um tédio sem sono nem esperança, o mau despertar de quem não chegou a dormir. E da janela do meu quarto fito, pobre alma cansada do corpo, muitas estrelas; muitas estrelas, nada, o nada, mas muitas estrelas.[31]
Na formulação de uma tipologia extraída do naturalismo de Alberto Caeiro, Bernardo Soares é um doente de sentimentalismos e de metafísica, parecendo fadado a dissolver-se no prosaísmo de seu cotidiano, na banalidade dos problemas do escritório.
No entanto, e é aqui que reside sua grande particularidade, é exatamente dos limites de seu mundo tão restrito que Bernardo Soares irá tirar partido para iluminar a possibilidade de resolver-se na sua inquietação.
Em primeiro lugar, porque é justamente o limite estreito daquele mundo que o leva a descobrir que aquele universo não é nem limitado nem estreito. Num texto em que se imagina um dia estar livre da rua dos Douradores e do escritório ele diz:
Senti em sonho a minha libertação […] Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual do meu ser.
Mas de repente, e no próprio imaginar, que fazia num café no feriado modesto do meio dia, uma impressão de desagrado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim, digo-o como se o dissesse circunstancialmente: teria pena. O patrão Vasques, o guarda livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva cartas ao correio, […] tudo isso se tornou a parte da minha vida […] Aliás, se amanhã me apartasse deles todos, e despisse este traje da rua dos Douradores, a que outra coisa me chegaria — porque a outra me haveria de chegar? De que outro traje me vestiria — por que de outro me haveria de vestir?[32]
E em outro trecho mais significativo ainda ele dirá:
mais vale, na verdade o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escritório da rua dos Douradores, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem.[33]
E aqui se afirma o traço maior desse semi-heterônimo e que acaba transformando por completo o significado que um possível Livro do desassossego tivesse até então. É sobre esse ponto que nos concentraremos agora.
Há uma insistência de Bernardo Soares em falar da vida prosaica de auxiliar de guarda-livros nesse escritório cujo patrão, como vimos, é Vasques, cujo guarda-livros é o Moreira e onde trabalha um moço sem nome e um garoto que leva encomendas. Trata-se, como já sugerira o próprio Soares, de um universo aplastado. E dentro desse universo vê-se ele diante de seu instrumento de trabalho: um grande livro. Não aquele, do Desassossego, noturno repositório frequente ou cotidiano de suas angústias, mas sim o livro em que registra as contas da empresa, os lucros e as dívidas de Vasques. É exatamente sobre esse repositório de escrituras contábeis, todavia, que Bernardo Soares cria aquilo que em madrugadas insones não consegue formular em seu solitário quarto andar. Assim ele nos escreve:
Tenho diante de mim as duas páginas grandes do livro pesado; ergo de sua inclinação na c
arteira velha, com os olhos cansados, uma alma mais cansada do que os olhos […]
Baixo olhos novos sobre as duas páginas brancas, em que numerosos cuidados puseram resultados da sociedade. E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas páginas com nomes de fazendas e dinheiros, com os seus brancos, e os seus traços à régua e de letra, inclui também os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, todos eles sem escrita, a vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.[34]
A passagem é clara e espetacular: o ajudante de guarda-livros registra, por sob os números e cifras, o mundo que vai desde nomes de fazendas e dinheiros até os grandes santos, poetas e navegadores. Escreve o mundo no seu livro de contas e, mais do que isso, registra nele a aura misteriosamente viva que recobre o escritório, seus habitantes, seu patrão. Um modesto ato demiúrgico, como se escrevesse e não apenas descobrisse sob o registro do livro as coisas essenciais que este parece ocultar, mas que compõem a grandeza de seu universo. É assim que descobre quando afirma:
Ah! Compreendo… O patrão Vasques é a Vida. A vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora.[35]
E o milagre da transmutação se processa aí, no prosaísmo de seu escritório em que finalmente constitui, por detrás da materialidade mais restritiva, o significado das coisas e de si. Há pelo menos duas páginas notáveis nesse sentido: a primeira delas é aquela em que descreve um dia em que um temporal com relâmpagos e trovões turva e ameaça o escritório: um relâmpago, como diz o texto, “um formidável dia estilhaçou-se. Uma luz de inferno frio visitara o conteúdo de tudo e enchera os cérebros e recantos”. O resultado do impacto dessa explosão da natureza ele o diria mais adiante: “Uma vaga religião formara-se no escritório. Ninguém estava quem era…”.[36]
A segunda página que eu citaria aqui é datada de 1931 e relata a partida do funcionário apenas nomeado como o “moço do escritório”:
Cada coisa que foi nossa, ainda que só pelos acidentes do convívio ou da visão, porque foi nossa se torna nós. O que se partiu hoje, pois, para uma terra galega que ignoro, não foi, para mim, o moço do escritório: foi uma parte vital, porque visual e humana, da substância da minha vida. Fui hoje diminuído. Já não sou bem o mesmo. O moço do escritório foi embora.[37] Longe estamos daquelas lúgubres e requintadas passagens do primeiro Livro do desassossego, e também longe estamos do solitário Bernardo Soares trancado em seu quarto andar. Na verdade, a função de guarda-livros, imersa na convivência banal com os companheiros e os objetos de escritório, tem no contato sensível com esse mundo a indicação de uma via possível de vida:
Devo ao ser guarda-livros grande parte do que posso sentir e pensar como a negação e a fuga do cargo.
Se houvesse de inscrever […] a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão Vasques, do Guarda livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António, moço do escritório. E a todos poria, em letras magnas, o endereço chave: LISBOA.[38]
Em outro trecho escreve:
Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a história inútil de uma firma obscura: e, ao mesmo tempo, meu pensamento segue com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igualmente visíveis perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas pautadas, os versos da epopeia comercial de Vasques e Cia., e o convés, onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas dos que sossegam na viagem.[39]
Do que foi dito até este momento, sobra-nos a impressão da existência de pelo menos dois Bernardo Soares: o primeiro, aparentado a Álvaro de Campos, angustiado e sentimental, sedento de metafísica; o outro capaz de constituir um mundo viável, oculto por detrás da prosaica e materialista Baixa lisboeta, e que ele registra cripticamente no grande livro de contas. O desassossego, com certeza, fica por conta do habitante solitário do quarto andar da rua dos Douradores, ao passo que a percepção salvadora, mesmo que momentânea, fica por conta do ajudante de guarda-livros. A relação entre ambos parece explicar-se na contraposição que eles têm com o ambiente que os cerca. O Bernardo Soares tedioso não guarda nem sobre pessoas nem sobre coisas quaisquer relações relevantes. É autor de uma prosa tendente a uma especulação existencial quase sempre voltada para a afirmação da falta de significado da própria vida.
Nesse sentido, suas páginas compactas constituem uma pesada tarefa ao crítico, em primeiro lugar pelo peso das especulações, e em segundo lugar pela insistência e aparente persistência de temas. Na verdade, a prosa de Soares acaba sendo muito mais difícil de ser enfrentada do que a de Vicente Guedes. Neste, o décor decadentista alivia o fundo niilista que em Soares se escancara num discurso menos alusivo e mais analítico.
Entre a obra desses dois presumíveis autores do Livro do desassossego — Vicente Guedes, o aristocrata decadente, aquele que faz a apologia da existência como vazio, e Soares, o prosaico habitante da Baixa lisboeta — há uma enormidade de textos de difícil atribuição, correspondentes a um período aproximado de quinze anos, a partir de 1916, ano da morte de Sá Carneiro, o grande amigo de Fernando Pessoa. É um ano que parece ter sido decisivo no encerramento de uma primeira fase do Livro. Sobre isso diria a pesquisadora Teresa Sobral Cunha:
Talvez nesse ano de tantas provações o artifício daquela literatura falisse pelo seu mesmo excesso, e o autor, de novo em sua própria voz, aspirasse a uma outra capacidade de compreender a realidade e o mundo, com os sentidos não já em mediação metafísica e idealista, mas em percepção sensível e racional.[40]
Acredito que essa hipótese — bastante viável — que explica a “morte” do primeiro autor e a construção lenta do segundo pode ser mais bem entendida se pensarmos no seguinte: o próprio Fernando Pessoa, coautor e editor do primeiro livro, teria sentido o impacto das lições que Alberto Caeiro, depois de 1914, iria imprimir à sua obra como um todo, até mesmo à sua prosa. E nada mais contrário ao gozo da infinitude e da imprecisão característico de Vicente Guedes do que as lições do mestre quando afirma com doce severidade:
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…[41]
Assim, quando finalmente a partir de 1929, Pessoa concede autoria e cidadania ao autor “definitivo” do seu livro, vamos reconhecer nele as marcas das lições de seus dois mestres: Cesário Verde, a quem Caeiro já reverenciara pela inteligência sensível ao mundo das coisas (“Ele era um camponês/ Que andava preso em liberdade pela cidade. Mas o modo como reparava nas ruas/ É o de quem olha para as árvores/ E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando/ E anda a reparar que há flores pelos campos”),[42] e sobretudo ao próprio Caeiro, sobre quem afirma:
Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural ao que resulta do pequeno tamanho de sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade…
Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura
Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece o corpo todo.[43]
A vontade de cumprir a lição do mestre aparece em inúmeras páginas:
Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não Ter aprendido, da nascença em diante a dar sentido dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente a da expressão que lhes foi imposta.[44]
Não tenho dúvida de que aquele que se assume como ajudante de guarda-livros, debruçado sobre o enorme livro de brancas páginas, é o mesmo que tenta praticar as lições do mestre Caeiro, embora sem estar cercado de rios e prados, mas que é sensível à vida que pulsa em cada habitante do escritório e que, por força da própria inspiração do mestre, sente que um simples relâmpago é capaz de revelar não o mistério dela, mas sua natureza, aquela que seus olhos veem e que está ao alcance de seus sentidos e por isso é a verdadeira.
No entanto, se Caeiro está presente nos momentos diurnos de Bernardo Soares, nos soturnos momentos de solidão no seu quarto andar, seus companheiros são outros: são os discípulos incompletos, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, o próprio Pessoa, aqueles que confessaram jamais poder seguir a lição de translucidez e naturalidade do mestre.
Afinal quem vence o embate em Bernardo Soares: o princípio criador que lhe é insuflado por Caeiro ou a ética corrosiva dos condiscípulos?
As páginas datadas do Livro chegam a 1934, um ano antes da morte de Pessoa. E a persistência do tema do tédio leva-me a crer que, apesar de tudo, este seja a constante, o território turvo de onde fala Bernardo Soares. Os momentos luminares que ocorrem como visões são mais raros, mas incisivos. Como se as lições de Caeiro interviessem para transpor o semi-heterônimo, mesmo que momentaneamente, para o fulgor de sua realidade e da realidade dos outros. Caeiro mais uma vez cumpriria sua função de mestre, e sua filosofia estaria por detrás do ato pelo qual o pesado livro de contas da empresa Vasques e Cia. se tornaria o livro da vida que o seu Livro do desassossego não teria logrado ser.
Algumas das últimas páginas de Bernardo Soares tendem a insistir no avesso desse desassossego. Falam em “sossego”, “suavidade”, “repouso”, como um desejo de alma cansada a que a referência a Deus confere algum consolo. São páginas densas e reconfortantes, mas que apenas atenuam no leitor a pesada impressão de tristeza e desconsolo.
Eu diria que, quando Alberto Caeiro aparece na cena poética de Fernando Pessoa, uma das finalidades críticas de sua pregação por uma poesia objetiva, modelada sobre a natureza, tem a ver com aquele Pessoa impressionista das “Impressões do crepúsculo”, mas também tem a ver com seu êmulo, Vicente Guedes, decadente e incipiente autor de um Livro cujo significado foi-se esvaindo pela presença incisiva do Mestre, no diálogo com seus discípulos, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, o próprio ortônimo. E, após ter sido repositório da mais fulgurante prosa decadentista que nossa língua conheceu, o Livro do desassossego terá dessa forma perdido paulatinamente para o autor-editor sua razão de ser. Muito depois, com outro coautor, mais uma vez, sósia de Fernando Pessoa, é que um novo significado iria trazer o Livro para a pauta explícita das preocupações do poeta.
Dessa vez, porém, seu novo autor, repito, será alojado entre escritórios e armazéns, dono de uma prosa menos altissonante, mais límpida e mais direta. O mundo que teria gostado de construir nasceria do milagre de criar-se pela própria pena do ajudante de guarda-livros e seria escrito ali mesmo no grande livro do escritório de Vasques e Cia.: recenderia aos dias de chuva no calor e teria a magnitude de todas as coisas e gentes anônimas daquelas ruas barulhentas. Mas, como seus condiscípulos, Bernardo Soares não alcançou a magnitude da lição do mestre, lição impossível para ele, humano, falível, sentimental e com uma sede intermitente de infinitude.
Assim, “dois mundos” se constituem nesse livro. Se as lições de Caeiro condenaram o primeiro ao fracasso e deram as bases para a constituição do segundo, esta é uma hipótese que conjuga a feitura desse livro fragmentário e inconcluso ao processo da criação dos heterônimos. Essa explicação justifica a dimensão humana que o livro foi ganhando: tanto assim que se pode dizer que, das criaturas inventadas pelo “drama em gente” de Pessoa, Bernardo Soares é, apesar de tudo, aquele que habita um mundo mais povoado: solitário de um lado, exercita, no entanto, a prática do convívio que falta a seus companheiros. E nesse exercício povoa, à revelia de sua solidão, toda a Baixa lisboeta de uma grandeza humana onde cabe o mundo todo, até mesmo o seu permanente desassossego. E se os acordes da esplêndida “Marcha fúnebre ao rei Luís Segundo da Baviera” do primeiro autor sempre ameaçam transportar-nos para o abismo, Bernardo Soares, de braços com Caeiro e Cesário Verde, num ponto qualquer da universal rua dos Douradores, indica na sintaxe espantosamente simples de sua linguagem o fascínio de uma vida sem estrépito, a vida possível que Vicente Guedes recusara.
Mas, enfim, também há universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver. E por isso, se não pobres, como a paisagem de carroças e caixotes, os sonhos que consigo extrair de entre as rodas e as tábuas, ainda assim são para mim o que tenho e o que posso Ter.[45]
[1] Esta parte I, em que trato das questões relativas às edições, foi retomada de um ensaio anterior, “Os vários livros do desassossego”, DO Leitura, 7/8, São Paulo, Imprensa Oficial de São Paulo, julho e agosto de 2000.
[2] Obras em prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, p. 50.
[3] Ver Jorge de Sena, Fernando Pessoa e cia. heterónima, Lisboa, Edições 70,1982, vol. I.
[4] Ver Eduardo Lourenço, Fernando, rei da nossa Baviera (Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986) e G. Rudolf Lind, “O Livro do Desassossego: um breviário do Decadentismo”, em Persona 8
[5] António Quadros, “Introdução” ao Livro do desassossego por Bernardo Soares, Lisboa, Europa-América, 1989, vol. I, pp. 27-8.
[6] António Quadros chega mesmo a assumir não haver um mas dois Livros do desassossego. Ibidem, p. 26.
[7] Ver nota prévia.
[8] Fernando Pessoa, Livro do desassossego, vol. I: Vicente Guedes, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa, Relógio d’Água, 1997, p. 305. (Doravante abreviado LD I.)
[9] LD I, p. 302
[10] LD I, p. 36
[11] LD I, p. 306
[12] LD I, p. 307
[13] LD I, p. 38
[14] LD I, p. 39
[15] LD I, p. 31
[16] LD I, p. 32
[17] LD I, p. 34. Impossível não associar essa apologia da inércia com o mesmo tópico tantas vezes visitado por Ricardo Reis: “Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos… Mais vale saber passar silenciosamente/ E sem desassossegos grandes” (Obra poética, Rio de Janeiro, Aguilar, 1983, p. 190).
[18] LD I, pp. 74-5. Aqui também Pessoa parece retomar, pelo menos pelo contexto onírico, a Virgem do célebre soneto de Antero: “Num sonho todo feito de incerteza,/ De noturna e indizível ansiedade/ É que eu vi teu olhar de piedade/ E (mais que piedade) de tristeza…” (Sonetos 114, Lisboa, Sá da Costa, 1962).
[19] LD I, p. 75
[20] LD I, p. 77
[21] LD I, p. 77
[22] LD I, p. 44
[23] LD I, p. 34
[24] LD I, pp. 61-2
[25] LD I, p. 61
[26] LD I, p. 62
[27] LD I, p. 117 (grifos nossos)
[28] LD I, p. 177
[29] LD I, p. 178
[30] Fernando Pessoa, Livro do desassossego II. Bernardo Soares, Campinas, Ed.Unicamp, 1994, p. 72. (Doravante abreviado LD II.)
[31] LD II, p. 373
[32] LD II, p. 40
[33] LD II, p. 107
[34] LD II, p. 64
[35] LD II, p. 103. Note-se aqui uma referência quase textual a Alberto Caeiro: “E fico contente/ Porque sei que compreendo a Natureza por fora/ E não a compreendo por dentro/ Porque a Natureza não tem dentro;/ Se não não era a natureza” (Fernando Pessoa, Obra poética, cit., p. 153).
[36] LD II, p. 42
[37] LD II, p. 303
[38] LD II, p. 207
[39] LD II, p. 196
[40] LD I, p. 14302
[41] Fernando Pessoa, Obra poética, cit. p. 139.
[42] Idem
[43] LD I, p. 95
[44] LD I, p. 361
[45] LD I, p. 243