1982

O nacional e popular na cultura brasileira – MÚSICA II

por José Miguel Wisnik

Resumo

A ação deVilla-Lobos, arregimentando, desde os inícios dos anos 30, corais de professores e alunos em contextos cívicos que vão ganhando um respaldo institucional progressivo, integrados à estrutura escolar como prática cotidiana de civismo concebendo assim, o programa do canto orfeônico, permite que, sistematicamente, se reúnam milhares de estudantes em manifestações cívicas.

A ação orfeônica deVilla-Lobos não deveria ser encarada pela faceta autoritária com que se apresenta nos numerosos relatórios e textos de propaganda doDIPgetulista, mas como representante de uma orientação humanista tradicional que marcava presença nos primeiros anos do governo Vargas, através da ação de Anísio Teixeira na Diretoria de Instrução Municipal do Rio de Janeiro. Foi através de Anísio Teixeira, justamente, que se criou a Superintendência de Educação Musical e Artística, a partir da qualVilla-Lobos passou a desenvolver o programa do canto orfeônico.

Seria preciso considerar a concepção pedagógica e a visão do popular explicitada em algumas falas deVilla-Lobos, em entrevistas à imprensa. O compositor faz uma bem sintomática analogia entre a “mentalidade ingênua, espontânea e primária do povo”, e a mentalidade infantil, igualmente ingênua e primitiva. Povo, criança e índio se equivalem no sentido de que precisariam ser catequizados pela “cultura” para se converterem, de massa inculta e desordenada, em povo adulto, ordeiro e civilizado.

Villa-Lobos tem obsessão pela catequese e pela figura de Anchieta, em quem, claramente, se projeta. A imagem da catequese figura uma relação com o povo, assim como a imagem das crianças rendidas ao canto orfeônico.Indioe criança são figuras de um projeto de conversão do povo ao culto da nação. Catequese, uso educativo do folclore, canto orfeônico, são aspectos de uma mesma representação.

Através do canto coral, se quer levar a população ao transe cívico, composto de êxtase e ascese, identificação fervorosa e introjeção da autoridade. O projeto do canto orfeônico quer fazer com que o corpo social se exprima, desde que não faça valer seus direitos, mas que se submeta ao culto e às ordens de um chefe.

Villa-Lobos pretendia, já antes da revolução de 30 e aproveitando o “sortilégio” do canto coral “como um fator de civismo e de cultura”, fazer do Estado Nacional uma verdadeira obra de arte. Tal projeto só se torna possível graças à conjugação Villa-Lobos—Getúlio. Paradestrinchar a partitura política da nação o chefe teria que ser, a seu modo, um verdadeiro maestro, e o maestro, para conduzir a harmonia social regendo o conflito, teria de constituir-se num verdadeiro chefe.

No entanto, a combinação desses dois batutas não sufoca a voz do samba urbano, que vem participar ativamente desse panorama.

Fascinado pela música dos chorões cariocas, Villa-Lobos tocava clandestinamente violão e saltava a janela do quarto em busca das noitadas musicais. Estava, então, devassando uma das fronteiras impostas pelo mapeamento cultural da Primeira República, onde o violão, o choro e a seresta (sem falar nas batucadas) eram repelidos do estreito conceito de cidadania moral e estética.

O artesanato musical dos chorões ocupava nessa economia cultural em transformação, lugares estratégicos de resistência às marginalizações sofridas pelos grupos populares em suas práticas culturais. A casa da Tia Ciata, frequentada por Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres, era o “centro de continuidade da Bahia negra (…) no Rio” e um lugar de resistência por excelência.

A vida musical da capital do Brasil no começo do século é significativa do próprio processo de interpenetração de culturas que vinha ocorrendo. Da sala de visitas ao terreiro de candomblé, passando pelo samba raiado (onde “só se destacavam os bambas da perna veloz e do corpo sutil”), polarizam-se dois universos diferentes (na ritualidade, na corporalidade, na sociabilidade), o da ordem religiosa mágica espiritual do mundo negro e o da ordem da convivência/festejo de salão que a sala de visitas propõe e (meio que) imita.

O processo tem mão dupla e a alteridade das culturas projeta-se numa espécie de jogo de espelhos regido certamente pela dinâmica do favor, pois enquanto o negro avança para o lugar público onde se faz reconhecível e reconhecido, apropriando-se, mimetizando ou distorcendo a seu modo formas de cultura branca de base europeia, ospoliticose intelectuais brancos vão ao candomblé e apadrinham o samba, reconhecendo nele uma fonte de autenticidade “nacional” que os legitima.

Não são poucos os artistas com formação erudita que se tornam mediadores da música popular e que são admitidos por essa época nas salas-de-concerto: em 1908 Catullo da Paixão Cearense apresentou-se no auditório da Escola Nacional de Música, com sucesso; em 1922 a presença de ErnestoNazarethem recital na mesma Escola provocou tumulto com intervenção policial.

Além destes, João Pernambuco, violonista que tocava nos choros junto comVilla-Lobos deu recital na Cultura Artística de São Paulo, em 1915.

Ochoro e a seresta ocupam um lugar paralelo e elástico entre o samba, o salão e o sarau, tangenciando a batucada e aspirando eventualmente aostatuserudito. O carnaval enquanto movimento ofensivo da estratégia de afirmação dos grupos marginais ocupa e desapropria simbolicamente o espaço urbano, desrecalcando num caleidoscópio extrovertido toda a gama de gestos corporais/sonoros das batucadas, sambas, maxixes, marchinhas, modinhas e danças de salão, dramatizados na interpenetração pública dos ranchos, cordões, afoxés, blocos e, pouco a pouco e mais e mais, das escolas de samba.

Na batida do populismo, o carnaval emergente em busca de cadadania ganha traços sinfônicos, e a sinfonização nacionalista levada a efeito porVilla-Lobos não se faz sem passar por um devassamento carnavalizante da música brasileira. EmVilla-Lobos a busca de representação ou de efetuação dessa passagem do caos ruidoso do Brasil a um cosmos coral se dá em dois canais, ou dois registros: o registro propriamente estético da obra musical é mitopoético, e o registropoliticodo programa orfeônico será pedagógico-autoritário.

No registro mitopoético, bem representado pelo Choros nº 10 (espécie de condensação de um projeto musical distribuído esparsamente pelas múltiplas obras), o momento caótico tem grande relevo, em ressonância congenial com a experimentação vanguardista. O registro pedagógico-autoritário, por outro lado, representado pelo programa do canto orfeônico no Estado Novo, quer imprimir disciplina e civismo ao povo deseducado (ou educando), partindo do tom patriótico e hínico.


GETÚLIO DA PAIXÃO CEARENSE (VILLA-LOBOS E ESTADO NOVO)

ARPEJO

o tema

desta

pesquisa

o nacinal

e o popular

na cultura

brasileira

é

um

convite

ao

erro

irrecusável

NACIONALISMO MUSICAL

NACIONAL-POPULAR, VANGUARDA-MERCADO

É mais do que sabida a ligação que os compositores nacionalistas brasileiros tiveram com o popular: Villa-Lobos, Mignone, Lorenzo Fernandez, Camargo Guarnieri, Luciano Gallet, para citar alguns, usaram fartamente o material “folclórico” na composição de suas peças, e é esse uso que marca o perfil característico tão reconhecível na música de todos eles. Mas o que pouco se fala é que o povo homenageado e imaginado por esses músicos, o povo bom-rústico-ingênuo do folclore, difere drasticamente de um outro que desponta como anti-modelo: as massas urbanas, cuja presença democrático-anárquica no espaço da cidade (nos carnavais, nas greves, no todo-dia das ruas), espalhada pelos gramofones e rádios através do índice do samba em expansão, provoca estranheza e desconforto.

“Nosso populário sonoro honra a nacionalidade”, dizia Mário de Andrade no Ensaio sobre a música brasileira (1928), referindo-se às virtudes “autóctones” e “tradicionalmente nacionais” da música rural. Essa raiz, que serviria de base à pesquisa da expressão artística brasileira, deveria ser cuidadosamente separada da “influência deletéria do urbanismo”, com sua tendência à degradação popularesca e à influência estrangeira.[1]

Tempos mais tarde, já em plena euforia musicológica estado-novista, o crítico Luis Heitor diria, fazendo o elogio da vocação musical nacional, em tom de rádio-ministério-da-educação:

“A época de desconhecimento do valor social e da utilidade educacional da música, no Brasil, já vai ficando para trás. O impulso musical é insopitável entre a nossa gente. A música é, por excelência, o meio de sublimação da alma popular brasileira, uma necessidade de nossa formação, de nossa psicologia nacional”.

Para em seguida fazer o reparo:

“Não tomo como índice a música vulgar, a canção das ruas, pois essa é, apenas, a manifestação inconsciente, não disciplinada, do pensador musical”.

Mas (poderíamos perguntar) e

noel ismael si

nhôdosprazeres

pixindongajazz

batutaslamarti

nearibar rosa?

E teríamos como resposta inequívoca do crítico a seguinte hierarquização:

“Refiro-me, aqui, justamente, à aptidão do brasileiro, como criador e como apreciador da música dita ‘artística’. E acho perigosa a confusão que às vezes se faz, no Brasil, englobando sob o rótulo de música popular não o fundo musical anônimo, de que a música artística se utiliza, para tonificar-se, mas a música sem classificação, baixa e comercial, que prolifera em todos os países do mundo, sem que por isso tenha direito a ocupar um lugar na história da arte”.[2]

A oposição é clara entre a Arte que tem história, elevada e disciplinada, tonificada pelo bom uso do folclore rural (isto é, a música nacionalista), e as manifestações indisciplinadas, inclassificáveis, insubmissas à ordem e à história, que se revelam ser as canções urbanas.

Sintomática e sistematicamente o discurso nacionalista do Modernismo musical bateu nessa tecla: re/negar a cultura popular emergente, a dos negros da cidade, por exemplo, e todo um gestuário que projetava as contradições sociais no espaço urbano, em nome da estilização das fontes da cultura popular rural, idealizada como a detentora pura da fisionomia oculta da nação.

Certamente, tal escolha correspondia à descoberta, à paixão e à defesa de uma espécie de inconsciente musical rural, regional, comunitário contido nos reisados, nos cantos de trabalho, na música religiosa, nas cantorias repentes e cocos que se entremostravam nas práticas musicais das mais diversas regiões do país (revelando-se e no mesmo momento tendentes à desaparição). A atlântida folclórica desse “fundo musical anônimo” fundia a música ibérica, sagrada e profana, católica e carnavalesca (ligada a antigos festejos pagãos) com a música negra e indígena, promovendo a magia (animismo ritual “dionisíaco” e feitiçaria), o trabalho (ativando as potências corporais), a festa, o jogo e a improvisação.

O problema é que o nacionalismo musical modernista toma a autenticidade dessas manifestações como base de sua representação em detrimento das movimentações da vida popular urbana porque não pode suportar a incorporação desta última, que desorganizaria a visão centralizada homogênea e paternalista da cultura nacional.

O popular pode ser admitido na esfera da arte quando, olhado à distância pela lente da estetização, passa a caber dentro do estojo museológico das suites nacionalistas, mas não quando, rebelde à classificação imediata pelo seu próprio movimento ascendente e pela sua vizinhança invasiva, ameaça entrar por todas as brechas da vida cultural, pondo em xeque a própria concepção de arte do intelectual erudito.

A propósito, Gilberto Mendes observa que a música folclórica, tomada como repertório passivo da “música artística”, fornecedora de temas e motivações, “não atua” diretamente “sobre a linguagem musical moderna”, enquanto a música popular urbana, ao contrário, investe ativamente sobre essa linguagem, “trazendo contribuições das mais significativas para o seu desenvolvimento”.[3]

Por outro lado, se a trincheira folclorista tentava de certo modo defender as condições de produção da Grande Arte contra o avanço da música popular comercial, ela abria também para si mesma um outro flanco crítico, que Mário de Andrade conhecia muito bem: como transpor o universo de uma cultura comunitária e sem autoria para o universo da cultura erudita moderna, individualista-esteticista, sem estocar radicalmente a própria definição da “arte”?[4]

No entanto, a plataforma ideológica do nacionalismo musical consistia justamente na tentativa de estabelecer um cordão sanitário-defensivo que separasse a boa música (resultante da aliança da tradição erudita nacionalista com o folclore) da música má (a popular urbana comercial e a erudita europeizante, quando esta quisesse passar por música brasileira, ou quando de vanguarda radical).

Está formada a cadeia conflitual bem típica da discussão brasileira: a conjunção entre o nacional e o popular na arte visa à criação de um espaço estratégico onde o projeto de autonomia nacional contém uma posição defensiva contra o avanço da modernidade capitalista, representada pelos sinais de ruptura lançados pela vanguarda estética e pelo mercado cultural (onde, no entanto, foi se aninhar e proliferar em múltiplas apropriações um filão da cultura popular). Essa constelação de ideias, onde nacional-popular tende a brigar com vanguarda-mercado, já era incisiva, mas implosiva na música nacional-erudito-popular de 30 e 40, e se tornará decisiva e explosiva na área musical durante as movimentações da década de 60.

Na média da atitude crítica que se produziu no seu contexto, a ideologia nacionalista na música modernista luta por uma elevação estético-pedagógica do país, que resultasse da incorporação e sublimação da rusticidade do folclore (o povo ingênuo), e aplacasse através da difusão da cultura alta a agitação urbana (o povo deseducado) a que os meios de massa (especialmente o rádio) davam trela.

Entra aí uma concepção do funcionamento ambivalente da música para as massas iletradas, como unta dobradiça que as liga às formas anárquicas do “sensualismo vulgar” (prenhe de “desordem” política) e que estabelece ao mesmo tempo um contato com as manifestações civilizadas da grande arte (reduzida a instrumento de instauração da ordem cívica).

Agitadora (medium por excelência do carnaval popular) e apaziguadora (portadora de umethos educativo, caldeado das fontes folclóricas para a arte erudita), a música é percebida como lugar estratégico na relação do Estado com as maiorias iletradas do país, lugar a ser ocupado pelas concentrações corais, pela prática disciplinadora cívico-artística do orfeão escolar, pelo “samba da legitimidade” (que, desmentindo toda a sua tradição, exalta as virtudes do trabalho e não as da malandragem).[5] No entanto, como a música popular é um espaço de resistência mais forte do que sua emulação cívico-patriótica, além do que ocupando uma posição relativamente ofensiva no cenário cultural brasileiro urbano-moderno, o resultado não será na verdade uma conversão do “carnaval” ao “dia da Pátria”,[6] mas a instauração da movimentada cena da político-chanchada populista, onde há lugar para o senador gagá dançar seu samba (como na cena famosa de Terra em transe).

RADIO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

ALVARO F. SALGADO, da Rádio Ministério da Educação, discorrendo sobre o uso eficaz do rádio para fins político-culturais (ESTADO NOVO, 1941):[7]

“A nosso turno adiantamos que, (…) todos os indivíduos analfabetos, broncos, rudes de nossas cidades são muitas vezes pela música atraídos à civilização. (…) dia virá, estamos certos, que o sensualismo que busca motivos de disfarce nas fantasias de carnaval, seja a caricatura, o fantoche, o palhaço, o alvo ridículo desta festa pagã. Enquanto não dominarmos esse ímpeto bárbaro é prejudicial combatermos no broadcasting o samba, o maxixe e os demais ritmos selvagens da música popular”..

… “o samba, que traz na sua etimologia a marca do sensualismo, é feio, indecente, desarmônico arrítmico. Mas paciência: não repudiemos esse nosso irmão pelos defeitos que contém. Sejamos benévolos; lancemos mão da inteligência e da civilização. Tentemos devagarinho torná-lo mais educado e social. Pouco nos importa de quem ele seja filho”.

VILLA MÁRIO

Fora da média, as questões do nacionalismo musical em Villa-Lobos e Mário de Andrade enquanto criadores são sempre mais complicadas.

Villa-Lobos porque se formou musicalmente no meio dos chorões seresteiros e sambistas do Rio de Janeiro no início do século, e a sua música, trabalhada pela sua formação erudita em processo de atualização modernista, nasce tangenciando a mesma fonte sócio-cultural de onde saiu a música popular urbana de mercado. Durante toda a década de 20 o seu grande projeto de composição é a série de Choros onde ele trabalha aquela matriz popular urbana, amalgamada com blocos de outras informações, primitivas negras e indígenas, rurais, suburbanas e cosmopolitas — da vanguarda europeia —, fazendo dela o centro de uma confluência diferida de tempos culturais que focalizava da sua perspectiva o problema brasileiro (a sinfonização e a ordenação do tumulto musical nacional). Ou seja, embora sempre propagasse a superioridade do folclore sobre a música popular, Vila-Lobos deslanchou a sua fulminante trajetória a partir da convivência íntima do dado erudito da sua formação com o dado popular urbano, com o que projetou, pela bricolage de diferentes técnicas e fontes, e noves-fora o seu talento genial, um alcance violentamente mais amplo que o do nacionalismo ortodoxo.

Quanto a Mário, homem dividido entre um modo socrático-platônico e um modo dionisíaco-nietzscheano, embora apresente nos seus textos programáticos traços daquela resistência aos aspectos polimorfos da cultura popular (resistência subjacente ao paternalismo folclorista de que eu estava falando), lança no Macunaíma o imaginário submerso do mundo indígena-rural como dado emergente no panorama da cidade, detonando um confronto vivo, polifônico, agônico-lancinante, que flagra as defasagens e sintonias inesperadas entre os vários tempos culturais de um país que vive (como encruzilhadas de destinos) num aglomerado de relações capitalistas e pré-capitalistas. Se é verdade que o programa do nacionalismo musical tem um caráter centralizador e paternalista, alimentado pela ilusão de imprimir homogeneidade à cultura nacional e de cauterizar a ferida das tensões sociais, o que se tem a considerar, por outro lado, é que Mário de Andrade mergulha de fato nos processos mitopoético-musicais da cultura popular, desentranhando dela concepções dionisíaco-apolíneas e formas “mágicas” que serão constitutivas de sua poesia, trabalhadas pelo crivo crítico que desloca, relativiza e reorganiza esses elementos segundo uma informação erudita. É a tensão recuperada pelo engajamento da técnica que dará à sua obra uma modalidade indagativa que não fecha com o nível programático-apologético do nacionalismo. Em sua corrente subterrânea, a obsessão pela cultura popular é mais o sinal do dilaceramento e da percepção da sociedade em suas tensões sísmicas não aparentes do que um feliz arranjo de classes e raças que se acomodariam harmonicamente para sanear a falta de “caráter” nacional. Nesse plano, o nacionalismo de Mário pode ser lido como expressionismo, tal como fez Gilda de Mello e Souza: “Nacionalismo e Expressionismo se empenhavam (…) na descoberta de um homem novo, atormentado, dividido, alógico, deformador, cuja arte acolhia, como mais congeniais ao seu espírito, as manifestações do gótico, do barroco, da arte primitiva e popular, em vez das manifestações centradas no ideal de beleza e imitação, próprio da arte clássica”.[8]

Na última fase de sua vida, a tensão entre o lado doutrinário e o lado oculto do nacionalismo mário-andradino se torna ainda mais complexa. Sustentáculo de um nacionalismo musical difusamente democrático ao longo de 20 e 30, Mário de Andrade entra na década de 40 sob um profundo dilaceramento, à medida que percebe as contradições e os impasses do seu projeto estético-ideológico, e o engaja na luta de classes. Nos seus escritos dessa época é extremamente agudo o drama do intelectual burguês que deseja uma arte (em especial uma música) que concilie positivamente a sociedade (na utopia e na festa) mas que marque ao mesmo tempo uma posição precisa na luta que a divide internamente. Como essa tarefa parece ser praticamente insustentável, Mário é que se divide: de um lado a negatividade crítica de O Banquete põe a nu os impasses da arte burguesa; pelo outro, em Chostacovitch, exprime uma positividade comunista, uma apologia da arte soviética como realização do ideal do artista útil às massas, e com aplausos para o papel vigilante do Estado estalinista (pai amigo e severo) quando este corrige os desvios do artista.

Politicamente, Villa-Lobos e Mário realizam, cada um a seu modo, tendendo para a direita ou para a esquerda, ligando-se ao Estado Novo ou antecipando Zdanov, o horizonte de destino do projeto nacionalista: pedagogia coral emanada do artista a serviço do Estado-Nação[9] (não têm uma saída para a possível autonomia das culturas do povo a partir de suas bases). A viabilização política encontrada por cada um deve ser lida em confronto dialético com o conjunto das suas obras, das quais não esgota nem de longe o sentido, embora indicando-lhes refrações decisivas.

DA REPÚBLICA MUSICAL I

Ao projetar a hegemonia da música erudita (bebida no ethos popular folclórico) sobre a música popular-comercial urbana e as inovações mais radicais da vanguarda europeia (o que se acentuará de certo modo no fim da década de 30, frente à atuação no Brasil do professor e compositor Hans Joachin Koellreuter), o nacionalismo brasileiro estava adotando sem saber a última solução platônica para a questão da cultura frente ao avanço crescente da indústria cultural.

As discussões que pontuam A República de Platão incidindo sobre o lugar político-pedagógico da música lançam luz sobre os rumos do nacionalismo musical no Brasil desde o Ensaio sobre a música brasileira até a atuação de Villa-Lobos no Estado Novo, regendo as grandes concentrações orfeônicas em nome de uma concepção cívico-autoritária copidescada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo. Aqui não se pode falar em influência, mas talvez de uma longa permanência, na tradição ocidental, de um certo equacionamento do poder psico-político-social da música em vista de sua utilização pelo Estado (como fator disciplinador) em contraponto com a sua utilização nas festas/ritos populares (como elemento de propiciação da mania, isto é, da possessão, do transporte dionisíaco, do êxtase, da liberação de energias eróticas, da reversão paródica das hierarquias, ou da-alegre dessublimação da corporalidade).

O poder atribuído à música tem seu eixo numa ambivalência consistente na concepção de que ela pode carrear as forças sociais para o centro politico, conferindo ao Estado, através de suas celebrações, um efeito de imantação sobre o corpo social, ou então, ao contrário, pode expelir essas forças para fora do controle do Estado, para um regime de centrifugação onde elas se afirmam pela. “expatriação radical, longe da vida cotidiana, das ocupações comuns, das servidões impostas”.[10] Introduzindo “no mais íntimo da alma” o próprio da questão política, isto é, ajusta afinação do individual para com o social (e Platão recorre à imagem da harmonia sonora como metáfora da justiça e da harmonia da Polis) a música aparece como o elemento agregador/desagregador por excelência, podendo promover o enlace da totalidade social (quando o nó é pedagogicamente bem dado) ou preparando a sua dissolvência (quando não). Por isso mesmo, “a educação repousa na música”, ela é a imitação do caráter (elevado ou inferior) que redunda, por seus matizes éticos de profunda repercussão subjetiva, não só na contemplação do belo, mas também nas consequências práticas da realização da virtude. A adequada dieta músico-ginástica, base da formação do cidadão, imprimiria nele o “caráter sensato e bom”, enquanto o uso malbaratado da música generalizaria, na concepção platônica, a “feia expressão” e os “maus costumes”.

Não pretendo nem de longe captar aqui a sutileza do pensamento platônico, mas sim colher os sinais, disseminados ao longo dessa verdadeira “purga ática” que é A República (no dizer de Adorno), de um modelo, historicamente recorrente, de reconhecimento e controle do poder da música através de uma triagem do significante, que discrimina a música aceitável (elevada, liberadora de impulsos ético-sociais, afirmativos da cidadania e da pertinência à Polis) e a música inaceitável (vista como rebaixante, liberadora de impulsos orgiástico-passionais, individualistas ou populares, isto é, próprios dos excessos virtuo-sísticos dos músicos profissionais ou dos excessos festivos de escravos e camponeses).

Ante a incisividade da música como ocupadora ambivalente do corpo e da alma, torna-se necessário fabricar o crivo capaz de separar a “boa norma” musical (constituída paradigmaticamente pelas práticas que infundem ordem ao corpo social e elevam “tudo o que estava caído na cidade”) dos maus usos e das inovações, capazes de insinuar “de maneira a mais insensível” a “infração da lei”, produzindo “um silencioso deslizamento nos costumes e no modo de viver”, e acabando por destruir “toda a vida privada e pública”, já que “não se pode modificar as regras musicais sem alterar ao mesmo tempo as maiores leis políticas”.[11]

Para efeito de coesão da Polls, Platão afirma a superioridade dos instrumentos mono-harmônicos (a lira e a cítara, instrumentos de Apolo) sobre os instrumentos de muitas harmonias e cordas (a harpa, o bombyx — flauta elaborada e virtuosística — e o aulos popular, instrumento dionisíaco). Gilbert Rouget observa que essas escolhas se dão no quadro de uma condenação das inovações musicais (e já vimos o caráter catastrófico atribuído ao deslizamento da norma) e da resistência ao transe.[12] Assim também, condenam-se as harmonias lídia mista, lídia densa, a jônia “e outras”, tidas por propiciadoras da indolência e efeminadas. Em contraposição, recomendam-se as harmonias capazes de levar à temperança, ao heroismo altivo, à soberana aceitação da adversidade. Muito sintomaticamente também numa poética apolínea e antidionisíaca como esta, indica-se a dominância da poesia sobre a música: “o ritmo e a harmonia seguem a letra, e não esta a aqueles”.

Em Aristóteles, a alteridade do significante que separa a música “superior” e “inferior” é mais nítida em termos de ethos modais, além de que o caráter de classe que subjaz à oposição salta ao primeiro plano.

O modo dórico, tido como educativo, destina-se ao programa pedagógico dos filhos bem nascidos, enquanto o uso do aulos e o modo frígio, mais ligados a um pathos do que a umethos, satisfazem “à classe de pessoas grosseiras, compostas de artesãos, trabalhadores e indivíduos dessa espécie”.[13]

O motivo pelo qual uma diferença minima entre dois modos musicais pode gerar consequências práticas tão gritantemente opostas fern permanecido um verdadeiro desafio musicológico. Uma interpretação recente tende a ver, no entanto, na diferença entre o dórico e o frígio, mais do que uma modalização dentro de um mesmo sistema, a incisiva alteridade de sistemas entre um modo pentatônico sem meio tom e um modo heptatônico com semitom — essa diferença sendo capaz de precipitar, somada às diferenças timbrísticas de instrumentos, de repertório e de ritualizações que as acompanham, um verdadeiro abismo entre dois universos gestuais-sociais-religiosos: o da religião da Polis e o da religião dionisíaca.[14]

Ao aspecto fortemente marcado (na religião da Polis) “de integração social de um culto cívico, cuja função é sacralizar a ordem, tanto humana quanto natural, e permitir aos indivíduos se ajustarem, opõe-se um aspecto inverso, complementar ao primeiro, e do qual se pode dizer em linhas gerais que ele se exprime no dionisismo”, voz daqueles “que não podem enquadrar-se inteiramente na organização institucional da Polis” por estarem excluídos da vida política: as mulheres, os escravos, os grupos campesinos alijados do controle do Estado. O dionisismo aparece, pois, como a voz da margem, das minoridades políticas, às quais oferece “um quadro de agrupamento”.[15]

Assim dá para entender os critérios musicais defendidos em A República. A dicção composta de uma só harmonia obedecendo a um só e mesmo ritmo constante, em detrimento da representação que necessita de todas as harmonias e de todos os ritmos “por abarcar em si mesma variações de todas as classes”, corresponde à religião da Polis onde, “dos deuses até a Cidade, das qualificações religiosas às virtudes cívicas, não existe ruptura nem descontinuidade”. A norma musical depurada no uso exclusivo de certos instrumentos e certos modos cristaliza a “mediação social” fora da qual “o indivíduo acha-se desligado do mundo divino”. (Perde ao mesmo tempo o seu ser social e a sua essência religiosa: não é mais nada.)[16] Resiste, pois, aos excessos individualistas do virtuosismo artístico e à experiência religiosa diametralmente oposta do transe dionisíaco. “Com efeito, o que o dionisismo oferece aos fiéis — mesmo controlado pelo Estado como ele o será em época clássica —, é uma experiência religiosa oposta ao culto oficial:

não mais a sacralização de uma ordem à qual é preciso integrar-se, mas a libertação desta mesma ordem, das opressões que faz supor em certos casos. Busca de uma expatriação radical, longe da vida cotidiana, das ocupações comuns, das servidões impostas; esforço para abolir todos os limites, para derrubar todas as barreiras pelas quais se define um mundo organizado: entre o homem e o deus, o natural e o sobrenatural, entre o humano, o animal, o vegetal, barreiras sociais, fronteiras do eu”.[17]

Para concluir essa separação entre dois modos religiosos que parecem condensar-se no conjunto de práticas que gravitam em torno da diferença aparentemente irrisória entre o dórico e o frígio: “O culto cívico se ligava a um ideal de sophrosyne, feita de controle, de domínio de si mesmo, situando-se cada ser em seu lugar nos limites que lhe são consignados. Ao contrário, o dionisismo aparece como uma cultura do delírio e da loucura: loucura divina, que é tomada como encargo, possessão pelo deus”.[18]

DA REPUBLICA MUSICAL II

Em 1928 Mário de Andrade, que dava cobertura teórico-ideológica aos compositores, propondo o desenvolvimento de um projeto nacional-erudito-popular para o Brasil, colocava a intenção nacionalista e o uso sistemático da música folclórica como condição sine qua non para o ingresso e a permanência do artista na república musical, dizendo enfaticamente no seu Ensaio sobre a mítisica brasileira que o compositor que não fizesse música de cunho nacional (bebida na estilização do popular rústico) funcionaria como “pedregulho na botina” a ser devidamente extirpado.[19]

A busca de hegemonia nacionalista (aliás amplamente obtida na produção musical erudita brasileira até a década de 50, assentada sobre o critério da “eficácia” social, extraia a sua legitimidade da afirmada necessidade de “determinar e normalisar (sic) os caracteres étnicos permanentes da musicalidade brasileira”, presentes (segundo essa concepção) de modo inconsciente na música popular folclórica tanto quanto ausentes da música “artística” de mera transposição europeia.[20]

A nova música brasileira, produzida pela determinação do artista decidido a “se basear quer como documentação quer como inspiração no folclore”, daria relevo ao caráter nacional nele delineado — daí o destaque ao compromisso da música “artística” com a “popular” (no que esta perderia a sua primariedade incapaz de totalizar e aquela outra a sua irresponsabilidade desenraizada).

O projeto explícito será o de fazer a composição erudita beber nas fontes populares. estilizando seus temas, imitando suas formas, em suma, incorporando a sua técnica. A preocupação nacionalista, voltada para o “folclore”, será tomada como norma, com acentuada intransigência. Mas a passagem concreta do erudito ao popular, e vice-versa, permanecerá sendo, sempre, o grande problema.

Mário alerta os compositores para alguns dos problemas implicados no projeto nacionalista: o perigo do exotismo (quando o uso de elementos da música popular, retirados de seu contexto, resulta simplesmente em efeitos pitorescos) e da banalidade (já que a música popular, muitas vezes aplicada às práticas-rituais, à dança hipnótica, dirigida ao corpo, é fundamentalmente repetitiva, do que pode resultar em pura redundância quando transposta para as formas que procedem pelo desenvolvimento progressivo e pela inovação dirigida ao intelecto como são as formas da tradição sinfônica erudita). Aliás, é nesse ponto justamente que Schoenberg (ao lado de um certo desprezo colonizante pelo mundo subdesenvolvido) fazia a sua crítica da música nacionalista, vendo nela a união espúria dos procedimentos estruturalmente reiterativos da música do povo com os procedimentos estruturalmente evolutivos da tradição erudita ocidental.[21]

É nesse ponto também que incide a oposição estabelecida por Mário entre a música “interessada” (aplicada por exemplo ao calendário agrícola e religioso, como a popular rural) e a música “desinteressada” (destinada a fins contemplativos, como a música de concerto). É o caráter “interessado” da primeira que lhe dá uma base repetitiva (que se aplica ao ritual) e é o caráter “desinteressado” da segunda que lhe imprime a desenvoltura evolutiva (dirigida à intelecção da progressão das formas).

A nova música proposta por Mário oscila entre ser “interessada” e “desinteressada”. Em certo momento, diz: “O artista tem só que dar pros elementos já existentes (da arte nacional pronta na inconsciência do povo) uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada”.[22] Duas páginas adiante, referindo-se ao movimento nacionalista, afirma: “Pois toda arte socialmente primitiva que nem a nossa é arte social, tribal, religiosa, comemorativa. É arte de circunstância. É interessada. Toda arte exclusivamente artística e desinteressada não tem cabimento nutha fase primitiva, fase de construção”[23] (e está se referindo ao critério social que justifica a necessidade imperiosa do nacionalismo musical).

Em suma, o seu programa aponta para uma música “artística” que encontre ao mesmo tempo uma nova função prática (a conquista da expressão nacional), e essa dupla exigência terá consequências sobre a forma, que ficará dividida entre o desenvolvimento construtivo e a redundância característica (bem realçada nos típicos ostinatos — às vezes caricatos — da música nacionalista). Vale lembrar que os problemas colocados por Mário (quando aconselha os músicos), por mais conscientes que possam ser, ficam sempre externos à forma, o que não acontecerá no Macunaíma, quando eles serão radicalmente enfrentados no interior da invenção.

No Ensaio, Mário discute a complexidade da música popular folclórica, especialmente no seu ritmo (decodificado muitas vezes pelos compositores eruditos como meras síncopas), oscilante entre o fraseológico e o metrificado (Mário analisa a rítmica popular brasileira como a superposição complexa de duas estruturas diferentes, a rítmica aberta da sequência discursiva, que procederia por adição infinita, e a rítmica fechada da quadratura do compasso, que procederia por subdivisão periódica, compreendendo a tensa condensação desses dois sistemas, um de origem negro-indígena e outro de origem europeia, como uma solução original para as próprias tensões implicadas no processo de colonização). No Ensaio, analisa ainda questões de melodia, de harmonia, de polifonia, de instrumentação e de forma construtiva.

A ideia de caráter nacional recessivo, adormecido nas fontes populares como o mineral disperso sob o solo da variedade regional, de onde deveria ser extraído e fundido pelo esforço conjunto de artistas letrados salta à vista, principalmente se não esquecemos que, exatamente no mesmo momento em que escrevia o Ensaio, Mário de Andrade produzia também o Macunaíma, a rapsódia do herói “sem nenhum caráter”.

Recebendo “injeções maciças” de folclore (a expressão é de Florestan Fernandes), a música nacionalista aproximaria intelectual e povo, separados por um abismo “cultural” (formulável, noutros termos, como alteridade de classe), e funcionaria ao modo de uma panaceia pedagógica para sanar (a nível doutrinário) aquela “falta de caráter” que o Macunaíma registra na sua economia simbólica como impasse.

O programa tem uma tintura ao mesmo tempo ilustrada e romântica que corresponde bem à oscilação quase paradigmática do intelectual letrado no Brasil frente às culturas do povo. O lado romântico marca a concepção de povo como fonte prodigiosa da qual emana a cultura autêntica e criativa, tesouro-inconsciente-coletivo capaz de transformar a personaeuropeizante da nação, remetendo-a a um ponto de equilíbrio profundo onde se daria a individuação (a identidade atingida ao final de uma via tormentosa de divisões entre a máscara social dominante — que mostra a fisionomia do colonizador ocupante — e o rico repositório submerso de símbolos que habita o inconsciente coletivo — divisado na música popular rural).[24] Sabemos que Mário de Andrade fez dessa verdadeira saga da identidade (projetada em círculos progressivamente abrangentes do plano subjetivo ao plano da sociedade-nação) o eixo da sua obra poética.[25] O lado ilustrado marca a concepção de povo como massa analfabeta, supersticiosa, indolente, verdadeira tábula rasa necessitada de condução firme e de elevação através da instrução letrada e da consciência cívica (em contextos mais críticos, de consciência política). Frequentemente essas duas atitudes aparecem separadas, mas são contrabalançadas como os dois lados de uma gangorra. Em alguns casos (e é o de Mário de Andrade) o intelectual quer ser o orquestrador de sua própria oscilante superioridade/ inferioridade frente à cultura popular, e se projeta imaginariamente num ponto-de-epifania de onde divisa o encontro das águas do povo opaco e do povo luminoso, redimidos da sua dualidade numa nova unidade transparente e transformadora. Essa transformação, antevista desse lugar que poderíamos chamar de o ponto platônico da questão moderna da cultura, só pode se dar, no entanto, graças e através da ação do intelectual-filósofo que pensa devolver às massas o seu “populário sonoro” convertido em “música artística”, propiciando através dessa conversão o fortalecimento do debilitado “caráter” nacional (“… os defeitos de nossa gente, rapazes, alguns facilmente extirpáveis pela cultura e por uma reação de caráter que não pode tardar mais, nossos defeitos impedem que as nossas qualidades se manifestem com eficácia. Por isso que o Brasileiro é por enquanto um povo de qualidades episódicas e de defeitos permanentes”, diz ele).[26]

O tom abatido mas sobranceiro do texto de Mário parece estar pedindo um movimento político geral que ataque o problema nacional nas várias frentes (estamos às vésperas da Revolução de 30) mas a música tem um lugar privilegiado nesse quadro em que se constata uma espécie de doença da cultura (a incapacidade de afirmar a potencialidade produtiva da sociedade) e se prevê a sua terapêutica (pelo recurso às reservas de “caráter nacional” adormecidas na música popular). Através dessa curiosa operação desalienante, em que o povo-nação recobra o “caráter” que lhe falta, o intelectual letrado-pedagogo fica no centro imaginário, de onde procura reger o coro nacional, levando-o à unidade harmônica. Seu papel aparentemente modesto de simples correia conversora (do popular primário ao popular estetizado) é exponencial porque comanda idealmente a passagem da sociedade passiva à sociedade ativa, ou seja, porque comanda a parte mais secreta e decisiva — a parte psicossocial — do processo politico. Ele aparece de modo subjacente como o orquestrador da sociedade dividida (é nesse campo devidamente preparado que se vai erguendo a figura singular de Heitor Villa-Lobos).

Se à sociedade falta “caráter”, a música, no seu poder de reproduzir o caráter elevado (já que investida de ethos — no caso brasileiro triado da música popular folclórica), de generalizar os sentimentos e de agir sobre as massas (traduzido no valor social do ritmo coletivizador e da concentração coral) aparece já como veículo capaz de promover a elevação “de tudo o que estava caído na Cidade” (conforme nos diz Platão). Mas o poder da música, veículo privilegiado de transmissão social, é multiplicado ainda mais no Brasil pela sua ampla penetração, pelo fato de ser o lugar de produção de uma linguagem popular original (a música popular é “a criação mais forte e a caracterização mais bela de nossa raça”, dizia Mário de Andrade; “é na música, entre todas as atividades artísticas, que o gênio brasileiro conseguiu realizar alguma coisa fortemente original e diferente dos moldes europeus”, dizia o crítico Luiz Heitor).

Em suma, o programa nacionalista parece retirar o músico erudito dos confins da sua gratuidade (aonde o lança cada vez mais a modernização de um país periférico e não-alfabetizado) para colocá-lo, pelo menos desejadamente, no centro dos acontecimentos, promotor-beneficiário de um projeto de cultura centralizada e homogeneizada pela convergência dos traços comuns da psique nacional, tanto mais fortalecido pela convicção de que a música (e só a música) pode desempenhar no Brasil essa função de orquestrador da sociedade dividida, pela força da sua difusão, e pelo fato de que, no seu campo e registro próprios, a música popular no Brasil (resultante de um trabalho coletivo secular de apropriações, seleções e sínteses criativas) não ficaria a dever à cultura erudita.

Na batida do seu impulso de classe média pedagogizante, o paternalismo nacionalista tem forte atração para orfeonizar o país. Pouco tempo antes de Villa-Lobos desencadear a sua famosa arremetida coral, que se alastrou como um movimento didático-político-musical que implantou na escola do Estado Novo o ensino do canto coletivo, Mário de Andrade também louvava as possibilidades terapêuticas de massa que se pode extrair da prática generalizada do “canto em comum”. Vale a pena ler a longa peroração do seu Ensaio sobre a música brasileira:

… “Mas os nossos compositores deviam de insistir no coral por causa do valor social que ele pode ter. País de povo desleixado onde o conceito de Pátria é quasi uma quimera a não ser pros que se aproveitam dela; pais onde um movimento mais franco de progresso já desumanisa os seus homens na vaidade dos separatismos; país de que a nacionalidade, a unanimidade psicológica, uniformes e comoventes independeram até agora dos homens dele que tudo fazem para desvirtuá-las e estragá-las; o compositor que saiba ver um bocado além dos desejos de celebridade tem uma função social neste país. O coro unanimisa os indivíduos(…).

A música não adoça os caracteres, porém o coro generalisa os sentimentos. A mesma doçura molenga, a mesma garganta, a mesma malinconia, a mesma ferocia, a mesma sexualidade peguenta, o mesmo choro de amor rege a criação da música nacional de norte a sul. Carece que os sergipanos se espantem na doçura de topar com um verso deles numa toada gaúcha. Carece que a espanholada do baiano se confraternize com a mesma baianada do goiano. E si a rapaziada que feriram o assento no pastoreio perceberem que na Ronda gaúcha, na toada de Mato Grosso, no aboio do Ceará, na moda paulista, no desafio do Piauí, no coco norte-riograndense, uma chula do Rio Branco, e até no maxixe carioca, e até numa dança dramática do rio Madeira, lugar de mato e rio, lugar que não tem gado, persiste a mesma obsessão nacional pelo boi persiste o rito do gado fazendo do boi o bicho nacional por excelência… É possível a gente sonhar que o canto em comum pelo menos conforte uma verdade que nós estamos não enxergando pelo prazer amargoso de nos estragarmos pro mundo…”.[27]

Olhado no conjunto, o ciclo modernista do nacionalismo musical compreende assim uma pedida estético-social: sintetizar e estabilizar uma expressão musical de base popular, como forma de conquistar uma linguagem que concilie o país na horizontalidade do território e na verticalidade das classes (levantando a cultura rústica ao âmbito universalizado da cultura — burguesa —, e dando à produção musical burguesa uma base social da qual ela está carente).

O pulular irrequieto da música urbana espirrou fora do programa nacionalista porque ele exprime o contemporâneo em pleno processo inacabado, mais dificilmente redutível às idealizações acadêmicas de cunho retrospectivo ou prospectivo. Dupla novidade, como emergência do popular recalcado no âmbito da cultura pública brasileira, atravessando uma rede de restrições coloniais-escravocratas, e como emergência dos meios modernos de reprodução elétrica, a música popular brasileira urbana lançava em jogo os elementos sintomáticos de um flagrante desmentido descentralizador às concepções estético-pedagógicas do intelectual erudito, prometendo um abalo decisivo no seu campo de atuação.

A intelectualidade nacionalista não pôde entender essa dinâmica complexa que se abre com a emergência de uma cultura popular urbana que procede por apropriações polimorfas junto com o estabelecimento de um mercado musical onde o popular em transformação convive com dados da música internacional e do cotidiano citadino. Como vêem no popular distanciado um ethos platônico, acham que ele deve retornar de forma organizadamente pedagógica para devolver o caráter perdido pela cultura de massas. Acontece que esse retorno nunca pode se dar, essa regressão à origem não encontra o intervalo para se impor, arrastada na esteira do processo tecnológico-econômico onde rola o caos heteronímico do mercado.

Em vez de olhar de frente esse processo, o programa musical nacionalista resiste até quanto pode — de forma bastante compreensível, diga-se — ao deslocamento sofrido pela arte na modernidade capitalista, procurando desviar os seus sinais na direção de uma investidura cívico-pedagógica que buscará apoio no Estado forte carente de legitimação. Com isso, recusará, junto com Platão, as inovações musicais que sinalizam o desenvolvimento da linguagem, por um lado (na forma da vanguarda radical atonal), e as músicas “popularescas”, carnavalescas e outras que denunciam o caráter multiforme das interpenetrações lírico-satírico-paródico-festivas da música popular urbana (cujo pique, lastreado de fato numa rica tradição popular convergente para assimilações de todo tipo, até hoje não se esgotou ainda no campo padronizante tendencial da indústria cultural).

Quando perdeu esse bonde, o intelectual organizador-da-cultura no Brasil se atrasou de maneira básica, sempre tendendo a reduzir o popular ao mito da origem (e da pureza das raízes, romanticamente) e/ou ao mito dos fins (plenitude da consciência realizada, mito ilustrado), na modalidade normativa ou instrumental, mas nunca no campo do complexo-contraditório-contemporâneo, campo de afirmação das múltiplas leituras e escrituras corporais (quanto mais numa cultura sincrética), campo de afirmação poético-religioso-sexual do trabalho e ócio, tendendo converter todas as diferentes direções da energia para o canal cívico-político, com sua cruzada de conteúdos.

Do gramofone ao cinema falado (Villa-Lobos — 1929) (A sétima arte toca os sete instrumentos da civilização moderna)

“Vim ver o Rio, que tanto adoro, e fiquei triste com os que o estão afeiando de tantos rumores diferentes e desgraciosos. O Rio está gramofonizado, horrivelmente gramofonizado… Toca-se, aqui, hoje em dia, tanta victrola, tanta radiola, tanta meia-sola musical do momento, no meio da rua, COMO NÃO SE VÊ EM NENHUMA PARTE DO MUNDO DENTRO DE CASA, NOS BURGUESES SERÕES DE FAMÍLIA… O mal, aliás, não estará no número e na difusão dessa música mecanizada do século, mas na sua qualidade. E com isto não me refiro aos trechos de orquestra, aos solos em diversos instrumentos, por notabilidades mundiais, às melosas árias do bel-canto ou às alucinações do jazz norte-americano. A nós, brasileiros, que possuímos uma arte popular ao rica e variada como de nenhum outro povo — posso agora afirmá-lo mais do que nunca — a nós deve cada vez interessar, menos a arte alheia, para que melhor realizemos e imponhamos a nossa em toda a sua beleza e originalidade, em respeito mesmo ao que dela se acaba de dizer e de pensar na Europa, ATRAVÉS das minhas composições e dos meus concertos. Os nossos gravadores de discos, porém, os comerciantes de nossa música popular, estão muito desorientados. Aceitam tudo, gravam tudo, o que é um erro, pois eles é que deveriam concorrer para educar o povo e o conseguiriam MAIS FACILMENTE DO QUE NÓS, OS ARTISTAS, graças aos elementos de que dispõem. Outra coisa que também me entristeceu desta vez no Rio: a precária situação em que vão ficando os nossos músicos de orquestra, esses heroicos e tradicionais lutadores pela vida, com a instituição do cinema falado. Eu, que passei por lá, e que sei das dificuldades que tem o tocador de qualquer instrumento para viver, porque nem sempre é possível ganhar-se ao menos o pão ensinado, eu bem percebo o negro quadro que se desenha em frente aos nossos músicos de orquestra, que já estão ficando inteiramente abandonados por causa dos filmes, que CANTAM, DANÇAM E TOCAM OS SETE INSTRUMENTOS DA CIVILIZAÇÃO MODERNA. O cinema-falado é uma maravilha, está certo. Mas o ARTISTA é INDISPENSÁVEL às coletividades e eu penso que o que se devia fazer em toda parte do mundo era o que determinou MUSSOLINI, na Itália: aproveitar o músico de qualquer maneira. Ora, por exemplo, nas salas de espera dos cinemas. Aqui mesmo, no Rio de há tantos anos passados, a orquestra da sala de espera do Odeon chegou a ser famosa…”[28]

Uma palestra com o genial compositor
(Villa-Lobos — 1929)

“Perguntamos, então, a maneira de fazer com que o povo no Brasil tivesse uma opinião definida dos vários gêneros de música e capacidade de seleção.

— A um país novo, como o Brasil, cheio de INICIATIVAS E CAVAÇÕES, não sobra tempo para cuidar da formação de elementos capazes de, com abnegação e patriotismo, concorrerem para DOMAR O FEROZ INSTINTO, sob o ponto de vista musical, DE UMA RAÇA EM PLENO DESENVOLVIMENTO.

Creio, porém, haver um meio de fazer nosso povo ter uma opinião própria (falo sempre sob o ponto de vista musical). É o da PATRONAGEM ABSOLUTA DO GOVERNO NO SENTIDO DE UMA EDUCAÇÃO POPULAR”.[29]

Marechal dos músicos: patrono da educação cívico-artística pelo canto coral

(Villa-Lobos — 1936)

  1. “Há três elementos modernos e um tradicional que poderiam concorrer para a solução do problema da educação artística de uma nação, mais do que milhões de professores, se não ultrapassassem, como às vezes sucede, dos limites do bom senso e da disciplina natural que devem ter todos os povos de boa cultura. São eles: o cinema, o rádio, o futebol e o carnaval.”
  2. “0 CINEMA sobrepujou o teatro, desde a alta comédia à ópera lírica; o RÁDIO, que aniquilou as melhores oportunidades para os meios de subsistência dos verdadeiros solistas; o FUTEBOL, dando-nos a impressão de ter a inteligência humana se deslocado do cérebro; e finalmente o CARNAVAL, que acoroçoa todas as anomalias sociais, amalgamando-as na mais lamentável anarquia, estabelecendo por conseguinte uma completa confusão na opinião pública, em prejuízo da LEGITIMA manifestação da VERDADEIRA ARTE.”
  3. “NO ENTANTO, O RADIO É O POSSUIDOR DO MAIOR SEGREDO DA CULTURA COLETIVA UNIVERSAL.”[30]
  4. “O Brasil precisa de educação, de uma educação que não seja de pássaros empalhados em museus, mas de vôos amplos no céu da arte”, diz Vila-Lobos ao repórter, no que é completado por um colaborador do Conservatório de Canto Orfeônico (Miranda Neto): “Villa tem feito coisas incríveis.

Acredita na música popular, não no POPULAR errado do morro, mas no popular que está palpitando em toda a grande música do mundo.”[31]

DA REPÚBLICA MUSICAL III

A cena cultural do nacionalismo modernista é interessante-instrutivo-dramático-patética como primeiro momento de confronto entre o intelectual letrado burguês e as culturas populares no território urbano-industrial — quando a música popular se abre num leque que vai do folclore aos meios de massa, cruzando na transversal esse campo contraditório e deixando a música-de-concerto meio nua na sua condição precária de exercício imitativo de procedimentos europeus (Ii neige!) reduzido a elites.

Com a emergência dos meios de massa a música da repetição (música do disco e do rádio proliferante no espaço da cidade) dá um rude golpe na música erudita, pertencente a outro sistema de produção e reprodução, o sistema da representação no espaço separado do concerto.” O que é suficiente para fazer com que alguns músicos mais ativos se sentissem reduzidos a uma condição francamente decorativa perante a penetração crescente da “canção das ruas” com função lucrativa e “utilitária”.

O Estado autoritário aparece então como uma espécie de socorro para o músico erudito perdido em meio ao campo da Arte inteiramente revirado pela nova economia política da cultura capitalista, marcada pelo mercado dos objetos em série. Respaldada por Getúlio Vargas, a contra-ofensiva orfeônica de Villa-Lobos (ligada a uma antiga tradição tendente a fazer da música o elemento de unificação e de imantação da sociedade em torno do Estado, como se vê desde A República de Platão) busca reconquistar ativamente para a “grande Arte” o seu prestigioso papel de portadora do sentido da totalidade, perdido no vórtice galopante da “crise” moderna.

OS CHOROS E O SAMBA CLÁSSICO DO CABOCLO DOIDO

Filho de um funcionário da Biblioteca Municipal do Rio (Raul Villa-Lobos, professor e autor de livros de história e cosmografia, além de instrumentista amador), Heitor Villa-Lobos foi educado para ser médico e músico, formado no estudo do violoncelo e na admiração de Bach. Mas fascinado pela música dos chorões cariocas (nos diz a lenda biográfica) tocava clandestinamente violão e saltava a janela do quarto em busca das noitadas musicais. Atravessando esse umbral doméstico à revelia do modelo paterno, Villa-Lobos estava devassando uma das fronteiras impostas pelo mapeamento cultural da Primeira República, onde o violão, o choro e a seresta (sem falar nas batucadas) eram repelidos do estreito conceito de cidadania moral e estética (e reprimidos policialmente, quanto mais populares). No entanto, e justamente enquanto o Villa-Lobos adolescente pulava a janela, as resistências à música popular urbana (símbolo tradicional do desregramento indesejável dos folguedos da malta, segundo o zelo de classe da cultura dominante) estavam sendo minadas em vários pontos à medida que as massas emergiam para o capital como mão-de-obra assalariada flutuante e mal absorvida, na sociedade pós-escravocrata em trânsito para o “modo de produção de mercadorias”:[32] é quando as formas de música popular produzidas pelos grupos negros e boêmios despontarão com brilho e relevo no mercado fonográfico.

Para entendermos o lugar que o artesanato musical dos chorões ocupava nessa economia cultural em transformação, com seus hábeis instrumentistas (em geral doublés de funcionários públicos e boêmios, biscateiros musicais das orquestras de cinema e restaurante, às vezes músicos de banda), vamos passar antes por um lugar estratégico do processo de resistência às marginalizações sofridas pelos grupos populares em suas práticas culturais: a famosa casa da Tia Ciata, onde surgiu das improvisações coletivas o samba Pelo Telefone, lançado por Donga em 1917, e que consagrou o gênero.

Frequentada, além de Donga, por João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres, a casa onde morava a respeitada babalaô-miri baiana “casada com o médico negro João Batista da Silva”, “centro de continuidade da Bahia negra (…) no Rio”, vem descrita no livro de Muniz Sodré, Samba — o dono do corpo:[33]

“A habitação — segundo depoimentos de seus velhos frequentadores — tinha seis cômodos, um corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas, realizavam-se bailes (polcas, lundus etc.); na parte dos fundos, samba de partido alto ou samba-raiado; no terreiro, batucada.

Metáfora viva das posições de resistência adotadas pela comunidade negra, a casa continha os elementos ideologicamente necessários ao contato com a sociedade global: ‘responsabilidade’ pequeno-burguesa dos donos (o marido era profissional liberal valorizado e a esposa, uma mulata bonita e de porte gracioso); os bailes na frente da casa (já que ali se executavam músicas e danças mais conhecidas, mais ‘respeitáveis’), os sambas (onde atuava a elite negra da ginga e do sapateado) nos fundos; também nos fundos, a batucada — terreno próprio dos negros mais velhos, onde se fazia presente o elemento religioso — bem protegida por seus ‘biombos’ culturais da sala de visitas (noutras casas, poderia deixar de haver tais ‘biombos’: era o alvará policial puro e simples)”.[34]

A imagem da polarização da casa, resguardada por esses biombos sutilmente devassáveis, resulta, como foi bem lida por Muniz Sodré, numa “metáfora viva” do território/limite em que se davam os avanços e recuos de “um novo modo de penetração urbana para os contingentes negros”, que lutavam com a “cortina de marginalização erguida (contra eles) em seguida à Abolição”, reelaborando os elementos da tradição cultural africana numa gradação entremostrada.

A riqueza da metáfora admite a tentativa de tomá-la como base de um mapa da vida musical da capital do Brasil no começo do século, pois a tensão entre o salão e o terreiro, entre o que se mostra e o que se oculta, separados por biombos que vazam sinais nas duas direções, é significativa do próprio processo de interpenetração de culturas que vinha ocorrendo.

Da sala de visitas ao terreiro de candomblé, passando pelo samba raiado (onde “só se destacavam os bambas da perna veloz e do corpo sutil”), polarizam-se dois universos diferentes (na ritualidade, na corporalidade, na sociabilidade), o da ordem religiosa mágica espiritual do mundo negro e o da ordem da convivência/festejo de salão que a sala de visitas propõe e (meio que) imita.

A contiguidade dessas duas ordens e o modo como elas se negam e se traduzem faz pensar na “dialética da malandragem” (que segundo Antonio Candido é incorporada à estrutura narrativa do romance Memórias de um sargento de milícias como modo de representação da estrutura social brasileira no começo do século XIX.[35] A dialética da malandragem é tanto mais saliente se lembrarmos que o marido de Tia Ciata tornou-se mais tarde chefe de gabinete do Chefe de Polícia de Wenceslau Brás: temos aí, como no romance de Manuel Antônio de Almeida, aquela estratégia de convivência dútil e capciosa entre os imperativos da conduta “respeitável” e os procedimentos da religião e da festa popular, vizinha, nas culturas do povo, da paródia da classe dominante e da carnavalização das suas imagens de poder e da sua versão da história.

Na verdade o processo tem mão dupla, e a alteridade das culturas projeta-se numa espécie de jogo de espelhos confrontados, regido certamente ainda pela dinâmica do favor, pois enquanto o negro avança para o lugar público onde se faz reconhecível e reconhecido, apropriando-se, mimetizando ou distorcendo a seu modo formas de cultura branca de base europeia, os politicos e intelectuais brancos vão ao candomblé e apadrinham o samba, reconhecendo nele uma fonte de autenticidade “nacional” que os legitima.[36]

São muitos os casos curiosos, dessa época, exemplos do entreabrir-se paternalista do futuroso filão populista.

Na campanha eleitoral de Júlio Prestes à Presidência, o sambista Sinhô, “o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana” (nas palavras de Manuel Bandeira),[37] foi com seu conjunto “Embaixada do Amor” ao Palácio dos Campos Elíseos. Lá “organizou-se então uma festa íntima” que, se terminou à meia-noite com o Hino Nacional, teve seus pontos altos no momento em que “O Sr. Dr. Júlio Prestes gemeu no ‘pinho’ lembrando-se daqueles tempos (…) em que era boêmio. (…) E todos cantavam e dançavam. É o que se pode dizer — um sucesso real! Num dos belos salões dos Campos Elíseos, toda a família Júlio Prestes, inclusive o Presidente eleito e o velho Coronel Fernando Prestes, entravam no coro do samba de Sinhô:

Ora vejam só

A mulher que eu arranjei

Ela me faz carinho

Até demais

Chorando ela me diz

O meu benzinho

Deixa a malandragem

Se és capaz.

A malandragem

Eu não posso mais deixar

Juro por Deus

E Nossa Senhora

É mais fácil ela me abandonar

Meu Deus do Céu

Que maldita hora![38]

(Tudo isso sem nenhum prejuízo evidente do fato de que o sambista Salvador Correa, diretor da “Embaixada”, era autor do seguinte estribilho: “Estava na roda do samba / Quando a polícia chegou / Vamos acabar com este samba / Que seu delegado mandou”.)

Em outubro de 1914 Nair de Teffé, a mulher do presidente Hermes da Fonseca, tinha causado escândalo nas rodas elegantes do Rio interpretando ao violão o Corta-jaca de Chiquinha Gonzaga, num sarau do Palácio do Catete:

“Neste mundo de misérias quem impera

É quem é mais folgazão

É quem sabe cortar jaca nos requebros

De suprema perfeição.

Ai, ai, como é bom dançar, ai

Corta Jaca assim, assim, assim

Mexe com o pé

Ai, ai, tem feitiço, tem

Corta, meu benzinho assim, olé!

Esta dança é buliçosa, tão dengosa

Que todos querem dançar.

Não há ricas, baronesas nem marquesas

Que não saibam requebrar”.

Ainda que em clima de Ameno Resedá, acontecimentos como estes na órbita palaciana indicavam o movimento insinuante de penetração, nas danças de salão, de alterações no modo de assumir o corpo, pela rítmica sincopada trazida das danças populares. É preciso compreender que ao deslocar o acento das formas rítmicas da quadratura europeia convertendo suas anacruses em acentos téticos rebatidos e intervalados, convocando o corpo a preencher com gestos requebrados as frações “vazias” de sua pontuação rítmica, essas danças como que invertiam a órbita do movimento corporal, promovendo um desrecalque sensual capaz de alastrar-se no campo das representações coletivas. É que na verdade pela percepção inconsciente dessa alteridade do significante, só comparável àquela que os gregos atribuíam no seu sistema musical à diferença entre o modo clórico (harmonioso, equilibrado, polido) e o modo frígio (excessivo, orgiástico e pejorativamente popular), que vozes conservadoras reagiam com escândalo à sua adoção, enquanto o carnaval das adaptações seguia firme.

Outros indicadores do trânsito de sinais musicais filtrando-se através dos biombos é a presença de artistas com informação erudita que se tornam mediadores da música popular e que são admitidos por essa época nas salas-de-concerto: em 1908 Catullo da Paixão Cearense apresentou-se no auditório da Escola Nacional de Música, com sucesso; em 1922 a presença de Ernesto Nazareth em recital na mesma Escola provocou tumulto com intervenção policial.

Catullo: poetastro modinheiro, trovador semiparnasiano que infundia cadências plangentes e nostálgicas (sempre nos motivos da dor e do luar) aos movimentos ritmados da música instrumental (principalmente a de Anacleto de Medeiros), jactando-se de ser o Rei dos Cantores e o introdutor do violão e da modinha no concerto clássico (no monumental Choros nº 10 para orquestra e coro misto, de que falarei mais adiante, Villa-Lobos utilizou com grande relevo o “Rasga-coração”, canção com letra de Catullo sobre adaptação do xote Iara, de Anacleto de Medeiros). Nazareth: conhecedor do pianismo chopiniano, compositor sensacional que fora colocado nas nuvens pelo francês Darius Milhaud em sua passagem pelo Brasil, transmissor do maxixe ricamente desenvolvido e ciosàmente resguardado sob a rubrica mais apresentável (segundo seus próprios critérios) de “tango brasileiro”. Além destes, João Pernambuco, violonista que tocava nos choros junto com Villa-Lobos, que aprendera violão com cantadores e violeiros nordestinos, operário no Rio e depois funcionário público, desenvolveu a sua técnica “parecida na mão direita com a de Segovia” e deu recital na Cultura Artística de São Paulo, em 1915.

O caso de Sátiro Bilhar, exemplaríssimo funcionário da Estrada de Ferro Central, mostra que os biombos culturais devassáveis passavam a ser um dado interno à própria técnica musical: no seu modo exímio e peculiaríssimo de tocar violão, Sátiro Bilhar estilizava a mesma composição (entre as poucas que tinha) conforme as conveniências do público a quem tocava, em gradações nuançadas do popular ao erudito. O depoimento de Donga: Sátiro “foi o violonista mais original que conheci. (…) Ele tinha duas ou três composições só, e só tocava aquilo. (Villa-Lobos dizia que não era o que Sátiro tocava, mas como tocava é que era genial.) Tinha uma que ele denominava de várias maneiras, Sons não sei de que, uma denominação clássica. Daquilo ele fazia tudo, clássico, popular, virava tudo, tocava prá cá, tocava prá lá, em cada lugar, conforme a casa e o ambiente tocava aquilo”.[39]

Vista assim, a simbologia da casa de Tia Ciata, sugerida por Muniz Sodré, ao mesmo tempo que dá forma a um movimento de afirmação de contingentes negros no espaço social do Rio de Janeiro, capta e configura em suas próprias “disposições e táticas de funcionamento” o modo de articulação mais geral das mensagens culturais da sociedade, que eu quero sistematizar e desdobrar assim:

O núcleo:

sala — fundos — terreiro

que dispõe os planos das danças de salão, do samba e do candomblé, poderia ser desdobrado segundo o leque dos espaços culturais, e teríamos que o salão-de-dança-piano respeitável é contíguo, nessa topologia musical urbana, ao sarau (sala onde a música passa de ser motivação da dança para objeto de contemplação amena) e esse à sala de concerto (onde a contemplação auditiva é mais ritúalizada e o repertório investido de uma aura museo-lógica mais destacada).

sala-de-concerto — sarau — salão-de-baile —quintal-de-samba — terreiro-de-candomblé[40]

gramofone

rádio

Na linha horizontal perfazem-se passagens do popular ao erudito através de sinapses que marcam as fronteiras culturais do nervosismo social, ao mesmo tempo que deixam vazar alguns sinais que, vindos das duas direções, querem percorrer todo o sistema. “Sambista, anteprojeto de artista”, diria Paulo da Portela num dos seus sambas, indicando o desejo de reconhecimento e de cidadania que anima parte da cultura negra a buscar posição no sistema sócio-cultural, e que levaria o próprio Paulo a ser eleito “Cidadão-Samba” na década de 30.

(A linha oblíqua marca,por sua vez,a ramificação mercadológica de massa que deu inesperada margem de penetração alternativa à música popular, correndo por fora do sistema de difusão da arte.)

Aparentemente, se tomamos como referência a linha horizontal que vai do candomblé ao concerto através de uma série de gradações, estaria diluída inteiramente a luta de classes no conjunto da vida cultural (já que teríamos uma diferença meramente quantitativa entre o erudito e o popular). Mas a coisa é mais complicada. É verdade que o populismo que está se armando aí atenua a luta de classes no jogo de imagens de um paternalismo de novo tipo onde cultura dominante e culturas do povo buscam referendar-se num espelhamento, mas o que ele faz é colocar a luta de classes no ponto invisível, no lugar onde ela não parece estar.

Em primeiro lugar, a polaridade social fica marcada nos pontos terminais dessa cadeia, onde a ideologia tem seu ponto de força: de um lado o ritual religioso popular, de outro, o ritual estético burguês (e essa oposição é mais política do que se possa imaginar). Em segundo lugar, já que os signos de classe se confundem em seu movimento de ida e volta, onde parecem encontrar-se nos mesmos pontos, eles se distinguem e conflitam (e nisso reside ao mesmo tempo a alteridade, de classe e a alteridade do significante) exatamente pelo sentido estratégico do seu movimento.

Como expressão da marginalidade dos grupos dominados, a ocupação de lugar através dos biombos corresponde a uma estratégia popular de resistência onde, procedendo por avanços e recuos, escaramuças e escamoteamentos, reage-se à exclusão e firma-se uma identidade polarizada pelo seu ponto mais encoberto: a prática religiosa.

Como expressão da cidadania cultural no domínio da Polis burguesa, a ocupação de lugar através dos biombos corresponde a uma estratégia de dominação imaginária de todo social através de sua representação estética, o que aparece principalmente na estratégia de totalização estética que quer unir a diversidade social para resgatar a unidade harmoniosa da sociedade fragmentada (e nesse sentido expressa também uma resistência frente à perda de valores — a aura da obra de arte, por exemplo — com o avanço da modernidade capitalista).

Curiosamente, a primeira estratégia, a dos dominados, vai encontrar seu canal de escoamento social no mercado de música nascente (e passa daí por todo um processo de afirmação e mistura, convertendo o modo comunitário primitivo de produção do samba num modo individualizado — com suas poéticas e seus melodismos de autor — e procedendo por uma verdadeira guerra de apropriações autorais na fase selvagem de corrida ao mercado).[41] A música popular negra, que tem seu lastro no candomblé, encontra portanto um modo transversal de difusão (a indústria do disco e o rádio); e as contradições geradas nessa passagem certamente que não são poucas, mas ela serviu para generalizar e consumar um fato cultural brasileiro da maior importância: a emergência urbana e moderna da música negra carioca em seu primeiro surto, que mudou a fisionomia cultural do pals. Enquanto o nacionalismo musical quer implantar uma espécie de república musical platônica assentada sobre o ethos folclórico (no que será subsidiado por Getúlio), as manifestações populares recalcadas emergem com força para a vida pública, povoando o espaço do mercado em vias de industrializar-se com os sinais de uma gestualidade outra, investida de todos os meneios irônicos do cidadão precário, o sujeito do samba, que aspira ao reconhecimento da sua cidadania mas a parodia através de seu próprio deslocamento.

Por sua vez, sem acesso ao mercado e sem a mesma força de expansão, o outro pólo forte de afirmação musical, isto é, o projeto de representação “elevada” da totalidade social pela grande arte, buscará meios de escoamento social no apoio do Estado (primeiramente invocado de maneira implícita na pedagogia nacionalista de 20, e mais tarde, amplamente desenvolvido no programa do Canto Orfeônico, durante a década de 30 rumo ao Estado Novo).

O choro e a seresta (contíguos no espaço boêmio mas diferentes na forma e no conteúdo, instrumental de câmara o primeiro, cantada e lírico-plangente a segunda) ocupam a meu ver um lugar paralelo e elástico entre o samba, o salão e o sarau, verdadeiras “capelas ambulantes” (na expressão feliz de Adhemar Nóbrega)[42] tangenciando a batucada e aspirando eventualmente ao status erudito. Tanto é assim, fronteiriço e ambivalente o lugar social do choro, que dele dão duas versões curiosamente opostas Pixinguinha e Donga. Donga: “Todos os pais daquela época não queriam o cidadão no choro porque era feio, era crime previsto no Código Penal. O fulano (polícia) pegava o outro tocando violão, esse sujeito do violão estava perdido, perdido! Mas perdido, pior que comunista. Muito pior. Isso é verdade o que estou lhe contando, não era brincadeira não. O castigo era seríssimo. O delegado te botava lá umas 24 horas”.[43] Pixinguinha: “O choro tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais cantado nos terreiros pelas pessoas muito humildes. Se havia uma festa, o choro era tocado na sala de visitas e o samba, só no quintal, para os empregados”.[44]

Já na sua constituição o choro é um gênero de síntese instrumental baseado na “improvisação inteligente” a que se referia Villa-Lobos. Espaço de convergência da técnica musical da cidade, assentado na classe média (seus músicos: funcionários de repartição, carteiros, oficiais, músicos formados em escola e mais alguns trabalhadores manuais, malandros profissionais e um que outro doutor desgarrado), produzindo um gestuário sonoro original rabiscado de traços eruditos e populares, o choro funcionou para Villa-Lobos (o “Violão Clássico” era seu apelido entre os músicos) como uma espécie de olho mágico através do qual ele enxergou a música brasileira.

A exposição cabal dos cômodos contíguos da vida musical dependia de momentos mais acentuados de verdadeiro devassamento dos biombos culturais, quando as restrições que separam as práticas musicais de grupos e classes são suspensas e as diferenças expostas de maneira simultânea, provocando um efeito de estranhamento na emergência do recalcado. Esse devassamento, na década de 20, operou-se progressivamente através da expansão de dois fatores: o carnaval brasileiro moderno e a sinfonização das disparidades musicais do país levadas a efeito por Villa-Lobos.

O carnaval enquanto movimento ofensivo da estratégia de afirmação dos grupos marginais ocupa e desapropria simbolicamente o espaço urbano, desrecalcando num caleidoscópio extrovertido toda a gama de gestos corporais/sonoros das batucadas, sambas, maxixes, marchinhas, modinhas e danças de salão, dramatizados na interpenetração pública dos ranchos, cordões, afoxés, blocos e, pouco a pouco e mais e mais, das escolas de samba.

A sinfonização nacionalista, entendida no sentido amplo como conjunto de peças artísticas que obedeceu à estratégia de controle simbólico da totalidade social,[45] busca representar a nação sintetizando o seu espectro cultural de modo a conferir-lhe uma unidade sublimada, mas, no caso das elaborações villa-lobísticas, ao preço de expor em blocos aglomerados um painel explosivo das práticas musicais diferidas.

O devassamento carnavalesco, cuja maior força está em não poder ser transposto, porque se dá no momento da sua experiência múltipla (musical, gestual, sexual etc. etc.) tende a ser modificado na medida em que a irrupção que provoca busca reconhecimento oficial, isto é, busca para a comunidade popular negra marginalizada a cidadania que será tipificada na eleição de Paulo da Portela cidadão samba, e desenhará nos seus desfiles um novo fraseado apologético (que se fixou principalmente depois dos “carnavais de guerra” do Estado Novo).[46] O devassamento sinfonizante nacionalista por sua vez virá marcado por um forte didatismo paternalista (simétrico à apologética sambística); a tensão entre a franca irrupção carnavalizante e um severo escrúpulo pedagógico (paternalista e/ou autoritário) marca o itinerário de Villa-Lobos. Na batida do populismo, o carnaval emergente em busca de cadadania ganha traços sinfônicos, e a sinfonização nacionalista levada a efeito por Villa-Lobos não se faz sem passar por um devassamento carnavalizante da música brasileira.

A sinfonia nacionalista já vinha sendo esboçada de longa data.

No programa para o poema sinfônico Brasil, lançado pelo Jornal do Brasil em 1921, Coelho Neto buscava um compositor erudito que escrevesse uma história musical apologética do país que culminaria no trançado das formas populares rendidas ao Hino Nacional (com o que Coelho Neto parecia querer converter a economia carnavalesca da festa popular — religiosa, orgiástica e paródica — numa batida de desfile militar do “Dia da Pátria”, reduzindo a sua horizontalidade múltipla a uma hierarquização vertical autoritária e monocórdica).[47]

Não encontrando nenhum músico que empeitasse o seu programa sinfônico, Coelho Neto, que também era chegado às sociedades carnavalescas, consegue introduzir-lhes uns enredos cívicos. Numa crônica publicada também no Jornal do Brasil logo depois do carnaval de 1923, “apela para o patriotismo das pequenas sociedades (os ranchos) no sentido de apresentarem como enredo de seus préstitos temas de caráter estritamente nacional”.[48] No ano seguinte o Ameno Resedá, rancho do qual participavam destacados politicos, literatos e bem-sucedidos profissionais liberais, inclusive o próprio Coelho Neto, saía com o enredo Hino Nacional. Visto por esse lado, nada nos impede de pensar que não só a proposta do rancho cívico-carnavalesco, mas o próprio programa do poema sinfônico Brasil já era, na verdade, um primeiro projeto avant-la-lettre de enredo de escola de samba, com suas alegorias históricas distribuídas em partes sucessivas como num grande teatro rolante caminhando em cortejo triunfal para a apoteose cívica, ao som da batida combinada de todas as danças populares. Acontece que o Ameno Resedá fez escasso sucesso naquele ano de 24, e o primeiro secretário do rancho, em carta ao escritor, descrevia as dificuldades de “associar carnaval e patriotismo”.

Desgostoso com o insucesso do seu programa nas duas frentes, da sinfonia nacionalista e do carnaval, Coelho Neto escreve um curioso desabafo profético: “Se o júri não lhe conferiu o primeiro prêmio, não deixou de louvar a ideia e certo estou de que no próximo ano, o Ameno Resedá terá consolador triunfo vendo o seu exemplo imitado, com o que não só lucrarão os ranchos, tendo fartas novidades para explorar, como o povo que aprenderá alegremente, em espetáculos artísticos, a amar o Brasil através da poesia de suas lendas, dos episódios da sua história e dos feitos dos seus heróis. Os precursores semeiam, não colhem. Este ano foi o da sementeira; a colheita virá depois, e optima. O primeiro passo foi dado e, já agora, ninguém poderá disputar ao Ameno Resedá a glória de haver norteado pelo civismo as suas festas carnavalescas”.[49]

Do nacionalismo folclorizante já dissemos o suficiente para entendermos que ele quer sinfonizar a totalidade social trazendo para a moldura do concerto a música dos espaços populares recalcados e submersos (as danças dramáticas, os cocos, os pregões, as rodas infantis etc.) mas sem saber o que fazer em suas estilizações, da contiguidade excessivamente contemporânea e “impura” da música urbana. Aqui, os telões abertos para a música rural se arrumam de modo a ocultar a pressão da modernidade.Vale acrescentar nesse ponto que podemos entender talvez agora o contexto em que a Arte culta nacionalista buscará apoio no Estado para sustentar seu litígio com a música de mercado: correspondendo a duas formas contrastantes de representação do drama social, ligadas a estratégias de ideologia cultural opostas, elas disputavam a primazia da condição de pedra-de-toque musical da nação, mas em territórios de expansão desiguais. Embora o “erudito” e o “popular” fossem parâmetros relativa e mutuamente dependentes nessa época (um mimando de certa forma o outro), para a sinfonia nacionalista a comercialização fácil da música popular parece abusiva, para esta a redução do popular a uma versão subalterna daquela pode chegar a parecer ilegítima.[50]

Insuflada pelo empenho de representação musical da nação através da grande obra, Villa-Lobos jogava nela com toda a força de suas metamorfoses em blocos a vivência do artesanato popular em amplificações panorâmicas. Não por acaso o seu grande projeto da década de 20, quando a sua música toma impulso, foi a série de Choros, de cuja expressão mais simples ele partiu até atingir progressivamente formas complexas onde superpôs em condensações e deslocamentos contínuos as batucadas afro-indígenas (emergentes de uma espécie de inconsciente das formas de dança contemporânea), os sambas, os choros e serestas, ponteios, marchas, cirandas etc., trabalhados em clima de franca bricolage e invenção timbrística.

A música que Villa-Lobos passou a fazer na década de 20 nasceu do quadro movimentado das aproximações erudito-populares do Rio de Janeiro, e exorbitou desse quadro como se transbordasse “um magma sonoro em permanente transfiguração” cuja forma “é uma consequência do desdobramento do material (…) que ele preliminarmente pesquisava e depois multiplicava num jorro de acontecimentos musicais sempre novos”.[51]

Contrapondo ao rigor da música europeia o “seu informalismo caótico, jovem e cheio de vida, num vale-tudo experimental antropofágico”, Villa-Lobos usa os efeitos do sinfonismo descritivo, os timbres e os modos debussystas, os blocos sonoros polirrítmicos e politonais (aparentados com a música do primeiro Strawinsky), os temas da música indígena (colhidos em Jean de Léry ou nos fonogramas de Roquette Pinto), os cantos sertanejos, a música dos coretos de banda, a valsa suburbana, a bateria de escola de samba, e daí por diante. Avaliar e analisar uma produção acidentada desse jeito não é fácil. Gilberto Mendes sugeriu como critério que o disparatado (dos seus altos e baixos, e do “mau gosto” que advém da mistura geral em tais proporções) não é um acidente ou um desvio estético, mas uma dimensão própria da tumultuada procura (“do transcendental, do cósmico, através do sentimento nativo”):

“Todos esses compositores (das Américas), Ives, Cowell, Antheil, Villa-Lobos, são na verdade de um impressionismo e politonalismo baratos, frente à técnica composicional de seus contemporâneos europeus, mas a gente sente em sua música, principalmente naquilo que parece ruim, mal feito, algo mais que a torna diferente, uma autenticidade, uma independência em que encontraremos as raízes tipicamente americanas de uma vanguarda que não tem nada a ver com a vanguarda europeia. Só nas Américas poderia surgir uma pop art, o jazz, o ‘tropicalismo’, a música de Villa-Lobos e Ives”.[52]

Entre os Choros, que centralizam a produção de Villa-Lobos na década de 20, o de nº 10 (para orquestra e coro misto), não por acaso o mais célebre, é a confirmação mais significativa dos rumos que a música do compositor estava seguindo naquele momento.

Vale dizer, para introduzir o problema, que o princípio sincrético que manda nos choros populares extravasa numa violenta ampliação nos Choros de Villa-Lobos, criando um efeito de distorção panorâmica. Iniciados por uma pecinha para violão nos moldes de Ernesto Nazareth, eles absorvem rápida e crescentemente (por uma progressiva aumentação das massas sonoras de uma peça para outra) um enorme repertório de significantes musicais diversos da música indígena (constantemente recorrente), africana (mais rara e circunstancial), popular rural, urbana e suburbana (aglomerados em constantes re-combinações). Há uma intenção (explícita) de captar o prisma da psiquê musical brasileira, pelas ambientações orquestrais ecológicas (florestais, sertanejas), pela pontuação de cantos de pássaros, pela citação e desdobramento de cantos rituais indígenas, pela alusão a batucadas, ranchos, valsinhas, cantigas de roda, dobrados, tudo isto visto a partir das serestas e dos choros.[53]

A técnica investida nessas agregações realiza metamorfoses oníricas do material musical de base, submetido a condensações/deslo-camentos no nível contrapontístico (superposições por blocos simultâneos de signos e códigos musicais diferentes e distantes), harmônico (circulação de configurações modais, tonais e politonais), sintático-discursivo (adjunção constante de motivos sem continuidade linear), do que resulta, desde a primeira impressão, uma figura da simultaneidade das forças, da liberação de energia sem o fechamento que corresponderia à representação da forma acabada, e da temporalidade sem finalismo dos fragmentos compostos. É a audição de uma figuração onírica que trabalha com significantes de brasil: o país-inconsciente é o conjunto de forças inapreensível que o texto musical tenta flagrar em sua cinética sonora.

Nesse sentido mesmo, de levantamento parcial do recalque que separa as produções simbólicas das classes, os Choros fazem o papel de devassador cultural, atravessando vigorosamente as sinapses que censuram a passagem de significantes carregados de intensidades sensuais, de informações vitais, de história reprimida.

O Choros nº 10 pode ser considerado modelar (uma análise minuciosa mostraria como se dá ali a articulação de sinais cifrados da diversidade brasileira compondo um mito nacional, que vou traçar aqui em linhas gerais).

A peça admite uma leitura sintático-semântica que acompanhe a articulação de gestos musicais nacionais, leitura que, aparentemente demodée à primeira vista, mostra-se adequada ao objeto.

Ela apresenta (I) uma longa seção orquestral (formada de uma introdução animada e de um episódio lento) seguida de (II) uma parte final coral-sinfônica de caráter progressivamente apoteótico. O contraste entre essas duas partes (tomadas aqui bem panoramicamente) é nítido.

A parte orquestral (I) é o domínio dos sinais culturais (cosmo-polito-primitivo-urbano-suburbano-rurais) trabalhados ao modo de pulsões, agregados por superposição e por “adjunção constante”,[54] como energia não-ligada que configura, em contraste com a parte final, um quadro de forças à solta, erráticas entre o plano primitivo e o projeto “civilizador” (formigamento caótico perdido entre o animismo selvagem e a inscrição na história da acumulação). Ela é pontuada por acidentados índices dinâmicos, que despontam ora como irrupções ora como quebras disruptivas, ora como focos atritivos, ora como aclamações rebarbativas. O regime de intensidades descontínuas, que era modo padrão da vanguarda fauve na década de 20, cobre aqui uma apresentação a-mostrativa dos tempos defasados, intervalados, compactados e espaçados do brasil (“onde é o Brasil?… um sistema de sons que vai guiando / / a eletrônica / e musical figuração das coisas”).[55]

A proliferação de motivos dessa primeira parte corresponde a um diapasão semântico: o desdobramento do potencial (o espaço-brasil é o campo onde as forças erráticas — vasto repositório de energias litigantes — se entrechocam até encontrarem a ligação consubstanciada na coraiidade tonal e ritmicamente periódica da última parte). Lido sincronicamente, o mito que dispõe a passagem dos aglomerados intermitentes da seção sinfônica à periodicidade apoteótica da seção coral-sinfônica cristaliza o destino de potência como seu núcleo de desejo.

O Choros nº 10 inicia-se com um acorde fortíssimo percutido em anacruse, com a nota superior (sol na trompa) longamente sustentada. Esse acorde fundador surge como um bloco de energia/intensidade, bordado na flauta por uma transcrição instrumental do canto do pássaro azulão (primeira aparição da voz da natureza sobre o fundo do potencial). A esses dois elementos sobrepõe-se a evocação, nas cordas, do toque rasgado da viola popular, constituindo no conjunto uma primeira combinação da natureza muda (a força da nota sustentada), a natureza cantante (a melodia do pássaro) e a cultura popular (a batida de viola). Sustentada ao longo dos compassos da seção introdutória, a nota inicial proferida pela trompa se abre num motivo melódico ascendente (no segmento marcado na partitura com a letra A) procedendo por atritos de segunda menor nas trompas que conduzem (resolvendo-se) a um acorde perfeito menor. Acompanhado de um correspondente movimento de intensidade crescente e de alargamento do campo de tessitura e dos timbres instrumentais, esse motivo, que desabrocha da nota inicial como uma vitória-régia, assume aqui o caráter de uma alvorada virginal-inaugural, reincidindo em progressiva ampliação nos segmentos B e C, onde incorpora um tema incaico enunciado em acordes paralelos com incidências dissonantes em “ambiente de passarada”, transpondo-se para as cordas, onde desemboca finalmente no motivo nuclear de toda a peça, um acalanto dos índios parecis, de perfil cromático descendente, cujas metamorfoses (por diatomização ou alteração do perfil rítmico) serão estruturantes da obra, e assumirão grande importância na parte final.[56] Da primeira nota até o “achado” do tema se dá, portanto, um processo de gênese, a partir do qual o motivo dos índios parecis pontuará generalizadamente o espaço sonoro, ao modo de intervenções disseminadas (em gestação onipresente). (Adhemar Nóbrega chamou-o “motivo conspi-ratório”.) Trata-se no entanto de uma génese acidentada por múltiplas superposições sincrônicas: metamorfoses politonais da tocata chorística intervindo com suas inflexões sincopadas, refrões populares/ temas de embolada, solo de trombone derrapando sem expansão melódica o motivo nuclear ampliado em gesto de choro-seresta (timbrística e melodicamente distorcido), piano e sopros emitindo quase-clusters percutidos à maneira de dança indígena/Sacre du printemps primitivo-moderna, e outras tantas incidências, em múltiplas combinações, sempre acirradas pela reiteração polimorfa do motivo nuclear.

No final da parte puramente sinfônica o clima associativo e disruptivo da somatória cultural, que prevalece desde o começo, dá lugar ao desenvolvimento, pelas cordas e trompas, de um elemento melodicamente ascendente e reiterativo, crescente em intensidade, animando-se no andamento (além de conter uma aceleração rítmica interna ao próprio motivo), que eu chamaria, pelo contraste que instaura, de tema da vontade (pelo modo como ele parece indicar a tendência a organizar as energias livres num novo regime de articulação).

E de fato o tema da vontade (de uma altissonância mais para Amaral Neto Repórter, nessa passagem, do que para Glauber Rocha) leva o desdobramento do potencial (inserido no início da peça) a um limiar onde ele se interrompe em fortíssimo (FFFF). A pausa pontua o que será a efetiva entrada de um outro regime na economia rítmico-melódico-harmônica da peça, em andamento très peu animé et bien rythmé.

Pois a parte final, coral-sinfônica, (II) é, antes de mais nada, o campo da periodicidade: ela começa com um motivo insistentemente repetido, célula rítmico-melódica de corte incisivo dançante reiterativo (engendrada, diga-se de passagem, pelo trabalho de metamorfose do motivo “conspiratório” dos índios parecis) que lançada pelo contrafagote atravessa a orquestra e projeta-se no coro (vozes masculinas) em movimentos cadentes coleantes articulados pelas vozes em silabações onomatopaicas imitativas do tupi (jakatakamarajá, jakatakamarajá, jakata jakataka jakatakamarajá etc.). A regularidade rítmica do motivo indígena permanecerá todo o tempo, acrescida da superposição de cadências de marcha-rancho percutidas no piano, coroada pelas vozes ecoando motivos melódicos advindos dos temas indígenas, acentuada por interferências dissonantes diversas. No ápice desse processo de progressivo congestionamento do campo sonoro, onde a batida indígena é sublinhada pela percussão acrescida de instrumentos brasileiros — reco-reco, puíta e caxambu — adensada por clusters, glissandos e comentários sonoros meteóricos, quando o crescendo das massas corais/orquestrais atinge o seu clímax, é que surge, “já em terceiro plano, confundindo-se com a intrincada teia de um contraponto cerrado em pleno stretto, uma melodia lírica e sentimental à maneira da modinha suburbana, extraída de uma canção popular, com letra do poeta seresteiro Catullo da Paixão Cearense, denominada Rasga o coração”, entoada pelo naipe mais agudo das vozes femininas.[57] É preciso realmente ouvir o despontar dessa espécie de miragem sonora sob a compacta massa coral/orquestral para perceber nessa aparição algo como a visão mirífica de uma “alma brasileira” (aliás é esse o subtítulo do Choros nº 5) pairando sobre o tumulto das forças fundidas e atritantes (às quais imprime agora o movimento encadeado dos intercâmbios tonais).

Desdobrado por todo o coro, o Rasga o coração toma conta da parte final desse Choros nº 10, e, depois de evocar a sequência de acordes do início da peça (o desdobramento do potencial) fecha-se pela eclosão de um acorde coral-sinfônico-tonal (embora carregado de dissonâncias).

O Rasga o coração era na verdade uma adaptação, para não dizer apropriação, do antigo xote instrumental lara, de Anacleto de Medeiros, transformado em canção por Catullo.[58]A música, até chegar ao Choros, passou assim por uma série de transformações. O scotish carioca do antigo chorão Anacleto de Medeiros, companheiro de Villa-Lobos, embebido depois nas “rutilâncias da dor” plangentes de Catullo (tomando um banho de verbosidade nostálgica), rasga um espaço mítico no contexto sonoro transfigurado da obra de Villa-Lobos. A música de dança urbana sofre portanto uma primeira sublimação, quando ralentada e versificada pelo “doutor da Dor” cearense, e um novo efeito de totalização quando emerge como superestrutura lírica da acirrada massa sonora posta em açao por esse outro artista que não foi doutor, Heitor Villa-Lobos.[59]

Não me parece difícil ler nessa obra, que causou forte impressão no Brasil e na Europa quando do seu lançamento, em 1926-27,[60] através da conversão da energia livre à energia ligada, que ela opera, a construção do mito do feroz instinto (“de uma raça em pleno desevolvimento”) domado, para usar expressão do próprio Villa-Lobos, na medida em que ela encadeia uma série de “livres-associações” significativas da multiplicidade cultural pela via dos motivos do potencial emergente, do tema da vontade e do triunfo coral, elementos civilizadores ascendentes a partir de um campo de forças rico e “caótico”. Que dizer, por sua vez, do canto de sereia da “alma brasileira” pairando em meio às forças tumultuadas do primitivo e do moderno? A receita mítica deste Choros para o Brasil é: mistura e sacode, que se desprende uma aura, miragem encantatória que harmoniza a. sociedade pairando acima dela (como a classe média, em certas manifestações ideológicas da própria, como a nação, efeito de totalidade desprendendo-se das particularidades sociais, como o Estado, orquestrador da sociedade dividida). Uma resposta taxativa seria francamente abusiva, em vista do caráter aberto do “discurso” musical, sujeito a múltiplas versões, a múltiplos usos e a múltiplas reconstruções semânticas, nunca definitivas. Mas constelar dados como esses, que cercam a produção villa-lobística logo antes de sua entrada orfeônica no Estado Novo, e enriquecer a margem de leituras de sua obra, é sem dúvida o melhor que temos a fazer.

Pode-se dizer que a obra de Villa-Lobos é esplêndida realização de populismo, mais para enriquecer a ideia (do populismo) do que para sujeitar a música a um rótulo. Ela faz parte desse processo ambivalente de emergência de imagens visíveis de povo “soberano”, necessárias à identidade civil das nações modernas (o que só foi possível muito recentemente no Brasil, depois da Abolição), em conjunto com os conflitivos esforços para integrá-lo (o povo) na nova ordem capitalista. Os obstáculos que o povo real parece opor à sua integração na totalização nacionalista são de dois tipos. Por um lado, ele aparece aos olhos desse intelectual como atrasado e indolente (entre as indefectíveis coloniais “falhas” de “caráter”). Por outro, a ideia do atraso de sua cultura (e de suas práticas “supersticiosas”, quando religiosas; “bárbaras e sensuais”, quando festivas) vêm se somar às tumultuárias vicissitudes modernas, como as reivindicações de massa e a proliferação de cultura urbana (passando diretamente do plano das culturas rurais iletradas para os meios audiovisuais elétricos sem o estágio, tão típico dos países desenvolvidos, da educação letrada e tudo o que ela comporta em matéria de modelos culturais e de consciência cívica).

Fora portanto da imagem de povo a ser produzida pela arte nacionalista, apoiada no folclore (o povo “bom”), emerge um outro povo problemático, de difícil controle por esse projeto, seja pelo que parece ser a sua inconsciência (frente às exigências mínimas da razão ilustrada) mergulhada no animismo a-cívico, seja pelo que deriva de ser as eclosões de sua consciência política, expressa em movimentos populares.

Surpreendemos aí a matriz da oscilação constante, e típica, entre a postura neo-romântica (que toma o povo como sujeito da nação, imaginário ou simbólico) e a postura neo (e sub)-ilustrada (que toma o povo como objeto de um banho pedagógico), oscilação esta que é o lugar por excelência de ação, (des)engano e dilaceramento do intelectual burguês brasileiro no período.

Enquanto o popular é suscitado, coloca-se o problema de dominá-lo em benefício da totalidade (no caso, da ordem vigente) controlando o monstro de duas cabeças, que morde pelo lado moderno e pelo lado “atrasado”. A demanda do popular coloca imediatamente, do ponto de vista dominante, o problema da autoridade e da hierarquia, chamada a dominar as convulsões inscritas nas próprias energias sociais que é necessário convocar para a produção (vale dizer, para a consecução do potencial acumulativo ocioso a ser despertado).

É tão simplista pensar que essas considerações enquadram a música de Vila-Lobos quanto é bobagem achar que a obra do compositor não tem nada a ver com elas. A música de Villa-Lobos busca oficiar o rito de passagem da nação-caos (território potencial da natureza bruta e do povo inculto, tidos como forças indômitas do “feroz instinto de uma raça em pleno desenvolvimento”) à nação-cosmos (território simbólico da natureza e povopotenciados).

A música, que será tomada como a mediadora pedagógica dessa passagem, quando do programa do canto orfeônico, já tem a charada resolvida de antemão na obra sinfônica: dar ordem ao caos através de um movimento de espelhamento entre povo e nação, graças ao qual a sociedade surge como conflituosa (dilacerada pelos interesses conflitantes que a dividem) e harmoniosa (resgatada pelo sentimento pátrio).[61] Da trama desse movimento de postulação da gênese da nação (fazendo-a falar através do povo e fazendo-o calar em seus “excessos”) é que salta em refração acima dos conflitos a alma brasileira, o Rasga o coração, espécie de estado lírico e feminino, emulação utópica do Estado político masculino.

Em Villa-Lobos a busca de representação ou de efetuação dessa passagem do caos ruidoso do Brasil a um cosmos coral se dá em dois canais, ou dois registros: o registro propriamente estético da obra musical é mitopoético, e o registro politico do programa orfeônico será pedagógico-autoritário.

No registro mitopoético, bem representado pelo Choros nº 10 (espécie de condensação de um projeto musical distribuído esparsamente pelas múltiplas obras), o momento caótico tem grande relevo, em ressonância congenial com a experimentação vanguardista: aí o devassamento sinfônico-carnavalesco dos tempos culturais defasados e simultâneos parece ser fundamental para o melhor êxito da apoteose final, tanto mais representativa na concordância tonal que chega a criar quanto mais explosivas e tumultuadas as forças que chegou a subordinar e a organizar. A rica desordem do “país novo” (reservatório potencial de energias caóticas) desponta de modo marcante nas obras da década de 20, nos Choros, no Noneto e no Rudepoema, onde Villa-Lobos captou com a antena modernista de suas polirritmias, suas politonalidades, suas estridências timbrísticas e harmônicas, os ruídos culturais do Brasil, ruídos do social recalcado até então pela cultura oficial, que ele devassa e superpõe em aglomerações fragmentárias, exacerbando a tumultuada diferença desses materiais. A pacificação prefigurada no Choros estabiliza-se na obra musical a partir da década de 30, através do neoclassicismo das Bachianas brasileiras, como que a augurar o desejado equilíbrio da nação “madura”, que soube disciplinar asua rica “seiva”.

O registro pedagógico-autoritário, por outro lado, representado pelo programa do canto orfeônico no Estado Novo, quer imprimir disciplina e civismo ao povo deseducado (ou educando), partindo do tom patriótico e hínico. Pelos alto-falantes do Estado Novo Villa-Lobos buscou a conversão do caos ruidoso do Brasil num cosmos coral, mito utópico que se traduziu, quando precisou transformar-se em plano pedagógico-político, na questão da autoridade e da disciplina: a música contribuiria para reverter a rica e perigosa desordem do “país novo” em ordem produtiva, calando a múltipla expressão das diferenças culturais numa cruzada monocórdica, como veremos a seguir.

A conciliação dos polos da desordem e da ordem, na corda tensa que Villa-Lobos vibrou com extrema intensidade, não se faz sem disparates sublimes. Se uma tradição bem-posta costuma satirizar como “samba do crioulo doido” alguns dos resultados heteróclitos a que chegam as culturas da margem quando, procedendo por suas apropriações carnavalizantes, buscam mimetizar a cultura oficial para ganhar cidadania, o que dizer das tiradas, exortações, hinos e teorizações villa-lobísticas, quando se propõem a sanear a incultura nacional senão que compõem junto à sua “dança do índio branco” um inusitado samba clássico do caboclo doido? “Olha o passado: heróis ardentes / saltam das tumbas, brilham quais sóis / Barroso, Anchieta, Tiradentes, / Caxias, Gusmão… Quantos heróis! / E nosso ardor, na paz, na guerra, / exalta a glória do meu Brasil!”, canta Villa-Lobos em Meu País, “hino castrolópico” (como chamou-o Manuel Bandeira) publicado sob o pseudônimo de Zé Povo.[62]

Por mais que pretenda impor programaticamente uma ordem cultural afinada pela seriedade bombástica da exortação hínica, Villa-Lobos escorrega na casca de banana do campo minado onde o Estado busca legitimização na imagem do popular e o popular busca cidadania no reconhecimento oficial, num jogo de mimetismos carnavalescamente espelhados, onde ambos se engrupem mutuamente.

Assim, se o “samba da legitimidade” do Estado Novo toma foros algo orfeônicos e sinfônicos, conforme mostrou Antonio Pedro num trabalho ainda inédito,[63] Villa-Lobos cometeu por sua vez um “Samba Clássico”, curioso exemplo de batucada cívica onde a ascensão patriótica, quando parece atingir o pináculo da sublimação, derrapa espetacularmente no carnaval: “Na grandeza infinda / É feliz quem vive / Nesta terra santa / que não elege raça, / nem prefere crença / Oh! Minha gente! Minha terra! / Meu país! Minha Pátria! / Para frente! A subir! A subir! A SAMBAR”(!)[64] (Como não se lembrar aí do senador de casaca de Terra em transe, que se inflama com seu discurso demagógico de bacharel-de-comício e cai no samba rasgado?)

A leitura que eu estou fazendo não é para que o suposto bom senso de algum ranço universitário se imagine estar acima desses exemplos “bizarros” de “populismo”. Ela não serve à crítica costumeira de “posições” ideológicas, porque neste caso a vontade de potência transitando entre a música e a política dá um curto-circuito no fusível do crítico-da-cultura, se ele se dignar a perceber que o total das forças em jogo nessa cadeia de revolução, carnaval e autoritarismo ultrapassa em muito o alcance das categorias explicativas do seu discurso verbal.

A crítica do populismo (o tema desta pesquisa é um convite ao erro irrecusável) é a crítica do lugar imaginário do intelectual letrado burguês como explicador e regente do movimento social (e o efeito bumerangue dessa crítica do “objeto” sobre o sujeito). Como regente, ele só pode constatar hoje que se vê amplamente superado pelos movimentos sociais. Como explicador eu só posso explicar e me explicar, diz ele-eu, espécime fóssil (quando soterrado pelas camadas geológicas da história) mas mutante (quando percebe que o buraco-brasil é mais em cima, mais embaixo e mais em volta).

Atravessa o vício profissional da explicação (droga do intelectual: a carreira brilhante) decupadora, a vontade de síntese descentrada, raio da ideia detonadora.

A música de Villa-Lobos não se mede pelo bom senso. Eu acho que ela se mede melhor pela cena de Terra em transe. A mistura farsesca e altissonante de cruzada cívica e carnaval, que ele herdou e flagrou lancinantemente, Glauber Rocha acrescentou, segundo a emergência dos movimentos políticos da década de 60, o vértice da revolução, no caldeirão onde esses impulsos — revolucionário, carnavalesco e patriótico — revertem dramática e parodicamente um ao outro. Ou, nas palavras da Tropicália: “eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval, eu inauguro o monumento no planalto central do país”. Glauber reforçou o sopro profético revolucionário terceiro mundista do seu cinema justamente com o fôlego sinfônico dos Choros e das Bachianas, isto é, daquele complexo político e cultural ambivalente com que Getúlio e Villa-Lobos, no seu modo nacionalista, autoritário-paternalista e desenvolvimentista, hábeis no manejo dos compromissos entre forças contrárias, identificados com a figura do pai da pátria que acende a chispa do Brasil moderno, roubaram a cena histórica. O que não quer dizer absolutamente que Glauber seja um herdeiro-rebetidor ideológico dos parceiros do Estado Novo: ele é um captador da energia que circula entre os polos, Getúlio—Villa-Lobos, cruzando o campo da arte-política e seu sonho de potência num zigue-zague barroco que fez por levar à microfonia mais estridente as pulsões de direita-esquerda contidas no núcleo populista (e rebatidas, por exemplo, em Villa-Lobos e Mário de Andrade). Transando o poder da arte e da política, ele exacerba gritantemente a contradição do intelectual no ciclo nacional-populista, levando à máxima potência paradoxal a visão desencontrada do povo como força revolucionária e como presa impotente‑inconsciente da apatia, da alienação, do atraso (subtexto recalcado de toda a apologética nacional-populista). De Barravento a Idade da terra, Glauber junta os fios dos dois polos da corrente que passa por Getúlio—Villa-Lobos e reapresenta todo o monumento do nacional-populismo como alegoria: esplendor e ruína barroca, entre a história da salvação e o nada.

O político populista entoa seu discurso bacharelesco em meio aos passistas e à batucada, e cai no samba (o contexto é o do comício-manifestação-passeata-populista). Junto com esse samba-clássico-doido as massas (estudantes, operários, demagogos e escola de samba) começam a se deslocar e a câmera se aproxima do intelectual poeta-revolucionário e da militante colocados no olho-do-ciclone populista,[65] que se movem lentamente num contraponto com a massa, quando começam a soar impressionantemente os sons iniciais da Fuga das Bachia-nas brasileiras. Ali, entre a guerrilha e a festa, o carnaval politico do ciclo populista, que a música de Villa-Lobos atravessa e potencia, recupera a sua dimensão subjacente, que é a dimensão trágica.[66]

O ORFEÃO DO ESTADO NOVO / ESSE COQUEIRO QUE DÁ COCO

A ação de Villa-Lobos, arregimentando, desde os inícios dos anos 30, corais de professores e alunos em contextos cívicos que vão ganhando um respaldo institucional progressivo, integrados à estrutura escolar como prática cotidiana de civismo e ao aparato comemorativo das grandes datas nacionais através de mobilizações de massa, muda o tom daqueles que falam de música erudita no Brasil na altura de 1940. A data redonda pareceu propícia por sinal à afirmação apologética dos feitos do Estado Novo, num tom eufórico que destaca a regeneração da música na vida social, e do papel orgânico de que o músico erudito se vê investido enquanto propagador da cultura (entendida, por sua vez, já frisamos, como elemento patriótico-disciplinador).

Dizia Luiz Heitor ao fazer o balanço crítico da década:

“Em 1930 o termômetro de nossa cultura musical havia descido quase a zero. A estagnação era de alarmar. Ausência completa de iniciativa. Ação corruptora de agentes poderosos, como a falsa ‘música popular’ e o seu temível aliado, o rádio, nessa época tão precariamente orientado, ainda, e em tumultuoso início de comercialização”.

Fator decisivo de transformação:

“( …) Villa-Lobos, primus inter pares, passa a residir no Rio e inicia a sua famosa campanha em prol da cultura musical infantil e popular; desaparecem velhas instituições e surgem outras que modificam totalmente a cadência de nossa vida musical; o ensino é modificado revolucionariamente; atingimos uma autonomia artística compatível com os votos mais optimistas”.[67]

Tal exaltação só se torna possível graças à conjugação Villa-Lobos—Getúlio, duas figuras que tinham mais de um motivo para ressonância. Na crônica que se desentranha aqui e ali dos textos de Luiz Heitor, lemos que o Presidente da República atendera a “dramático apelo” do compositor, passando a apoiar “todas as suas iniciativas” pela altura de 1932. (“O que Getúlio Vargas apreciava no compositor era a inestancável energia, a febre do grandioso, do colossal, postas a serviço das cerimônias cívicas da República Nova, anterior a 1935, ou do Estado Novo, posterior a 1937”.)[68] Num texto publicado pelo DIP (A música nacionalista no Governo Getúlio Vargas) é a própria voz de Villa-Lobos ‘que realça a aliança da arte com o Estado:

“Aproveitar o sortilégio da música como um fator de cultura e de civismo e integrá-la na própria vida e na consciência nacional — eis o milagre realizado em dez anos pelo governo do presidente Getúlio Vargas”.

No livro, estas palavras de abertura vêm sob a insignia do pentagrama inicial do Hino Nacional. Nele estão contidas as linhas gerais do casamento entre a arte e a política: dispondo do seu poder (o sortilégio do canto coral) para que ele seja encampado pelo Estado, a música estaria restaurando, segundo o compositor, a “sua verdadeira finalidade social” e o “seu objetivo educacional”. Em outro lugar, ele mesmo diria:

“O canto orfeônico aplicado nas escolas tem como principal finalidade colaborar com os educadores para obter a disciplina espontânea e voluntária dos alunos, despertando, ao mesmo tempo, na mocidade, um sadio interesse pelas artes em geral e pelos grandes artistas nacionais e estrangeiros”.[69]

Estribado segundo diretrizes federais num “tríplice aspecto” (disciplina, educação cívica e educação artística), o programa do canto orfeônico nas escolas é estético-pedagógico na sua proposta geral explícita, e politico no modelo autoritário de que se faz instrumento semi-implícito (entremostrando-se num curioso escamoteio).

Em 1931 ocorre a primeira manifestação coral em São Paulo, sob os auspícios do interventor João Alberto, com um imponente conjunto de 12 000 vozes regidas por Villa-Lobos (Hino Nacional). O “certame de canto”, pioneiro na América do Sul, é propagado “por meio de prospectos e folhetos exortativos, lançados por aviões e distribuídos largamente nas escolas, academias e em todos os centros de estudo e de trabalho da juventude”, penetrando “em todas as camadas sociais”, com “qualidade estritamente brasileira”. Luiz Heitor: “O ineditismo da manifestação, a mobilização da massa infantil, interessando milhares de famílias e exigindo providências especiais de transporte, que se faziam notar e alteravam o tráfego normal da metrópole, tiveram o resultado que ele” (Vila-Lobos, comandando a massa e “envergando um casaco de cores berrantes”) “visava: atrair para a música, para a importância de cantar, a atenção das multidões. Ninguém pôde deixar de tomar conhecimento dessa proeza; e o telégrafo levou a noticia a todo o Brasil”.[70]

Em 32 instala-se no Distrito Federal um curso de Pedagogia da Música e Canto Orfeônico, que arregimenta “artistas de renome no cenário brasileiro” e professores da Escola Nacional da Universidade do Brasil para a formação de um Orfeão dos Professores, constituído de 250 figuras, que se tornará uma espécie de núcleo-piloto disseminador do programa de implantação do ensino do canto orfeônico nas escolas.

No livro de inscrição do Orfeão, Roquette Pinto escreveu, como presidente honorário:

PROMETO DE CORAÇÃO SERVIR A ARTE, PARA QUE O BRASIL POSSA, NA DISCIPLINA, TRABALHAR CANTANDO.

“Essa legenda admirável pode bem sintetizar o espírito com que é praticado o canto orfeônico no Brasil, e simboliza a disciplina e a força espiritual de que virão impregnadas as futuras gerações brasileiras”,

comenta o compositor.

E, de fato, trata-se de uma sigla ideológica que fará carreira já na sua capacidade de condensar “o trinômio ufanismo-nacionalismo-trabalhismo”[71] inflado de música. Dez anos mais tarde, em 1942, na maré da música popular imbuída também do andamento cívico e empenhada em pregar a devoção ao trabalho e contra a malandragem, João de Barro e Alcir Pires Vermelho faziam o samba Brasil, usina do mundo:

“Vibram sonoros clarins,

de quebrada em quebrada,

anunciando o raiar de uma

nova alvorada,

Dias de luz hão de ser

sempre os teus,

Brasil, usina do mundo,

nova oficina de Deus.

As águas moveram as rodas,

descendo da serra,

As forjas lançaram fagulhas,

vermelhas ao léu,

Os rolos de fumo subiram

do seio da terra,

Toldando o sol, tingindo o céu.

E junto às fornalhas gigantes,

o malho empunhando,

Homens de mãos calejadas

trabalham, cantando,

Ouve esta voz que o destino

da pátria bendiz

— É a voz do Brasil,

que trabalha cantando, feliz.[72]

Zelava pelo Orfeão e pelo curso que formava os professores de canto uma Superintendência de Educação Musical e Artística, criada “com o fim de cultivar e desenvolver o estudo de música nas escolas primárias e nas de ensino secundário e profissional, assim como nos demais departamentos da Municipalidade”. O ensino de canto orfeônico tornava-se obrigatório por decreto.

Mais tarde, em 1942, cria-se o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, “robusta maturação desse movimento de cultura e civismo”, que aspira então a um “caráter permanente”. Os professores aí formados: “sentinelas avançadas e continuadoras desse movimento de autêntico nacionalismo musical”.

Em 1933 o governo federal dirige um apelo aos interventores e diretores de instrução de todos os Estados para que se interessem pelo programa, “apresentando-se ao mesmo tempo uma exposição das necessidades e vantagens que poderiam advir para a unidade nacional, da prática coletiva do canto orfeônico, calcada numa orientação didática uniforme”. A ideia foi bem recebida em vários Estados, que enviaram professores para os cursos especializados e pequenos estágios básicos no Rio de Janeiro.

Entre esses anos, Villa-Lobos está empenhado em criar uma metodologia de transmissão da prática coral, em formar um repertório adequado ao “caso nacional”, em constituir “o corpo de educadores especializados” etc. Os cursos de professores sucedem-se ao longo da década de 30.

Para o programa do canto orfeônico o compositor escreveu os seis volumes do Guia Prático, que contêm: 1) canções infantis populares, 2) hinos nacionais e escolares, canções patrióticas e hinos estrangeiros,3) canções escolares nacionais e estrangeiras, 4) temas ameríndios do Brasil e do resto da América, melodias afro-brasileiras e folclore universal, 5) peças do repertório universal, 6) repertório de música erudita.

Luiz Heitor: “Foi Villa-Lobos quem pôs em moda o canto coletivo, fundando o seu Orfeão de Professores, de maravilhosa eficiência técnica, e produzindo enorme série de composições, em que os efeitos obtidos com a voz humana atingem limites extremos que só a incomparável maestria desse homem de gênio poderia conceber”.[73]

A constituição do orfeão de professores, mais a implantação do canto coral nas escolas permite que, sistematicamente, se reúnam milhares de estudantes em manifestações cívicas (“demonstrações anuais de caráter cívico para comemorar as grandes datas da Pátria, como a da Bandeira, da Independência, do Panamericanismo etc.”). “Pela imponência do espetáculo e pela repercussão que tiveram na alma popular”, Villa-Lobos destaca, ao rememorar aquela frase: uma apresentação de 30 000 vozes em 1935, a celebração da sua Missa de São Sebastião pelo Cardeal Leme, em 1936, e a apresentação de 40 000 vozes no estádio do Vasco da Gama, em 1940. Esses programas cívicos são permeados por outros, de cunho “cultural”, quando se apresenta em primeira audição no Brasil a Missa Papae Marcelli de Palestrina, a Missa Solemnis de Beethoven, o grande concerto gratuito “dedicado às classes operárias”, o Dia da Música em louvor de Santa Cecilia (com 2 000 instrumentistas civis e militares, mais 10 000 vozes de conjuntos orfeônicos), o oratório Vidapura, do próprio Villa-Lobos.

Em 1942, temos no pátio do Colégio Militar um exemplo de colaboração entre o Canto Orfeônico e a Educação Física, quando alunos de várias escolas do Rio de Janeiro entoam um cânone a seis vozes “simultaneamente formando as letras da palavra BRASIL em evoluções marciais”.

Outras decorrências da “ação socializadora” do programa: reuniões de confraternização de alunos de escolas municipais e federais, organização de concursos para avaliar o aproveitamento, questionários enviados às famílias dos alunos, “nos quais foram solicitadas as suas impressões sobre a influência do canto orfeônico nos hábitos e inclinações dos mesmos”, com a finalidade de “estender ao próprio lar da criança o interesse pelo canto orfeônico, e apurar, de maneira sensível, as conveniências dele decorrentes”.

Nas escolas formam-se orfeões de 70 alunos, desenvolvendo-se as aptidões dos alunos-regentes potenciais. Assinala-se o caso do regente precoce, de 10 anos, da Escola “José de Alencar”, “possuidor de absoluta segurança rítmica, consciência do som e domínio sobre o conjunto”: “a capacidade de organização e a energia desse menino tornam-se ainda mais notáveis atendendo-se ao fato de existirem, entre os alunos a ele subordinados, muitos de idade superior e sobre os quais mantinha, entretanto, controle e autoridade — conforme as observações feitas pelos orientadores desse serviço”. Observações que indicam a concepção de que o vértice da pirâmide dos talentos consiste na capacidade de fazer-se obedecer, pirâmide construída, portanto, assim, para ser polarizada em seu conjunto pelo senso da ordem e da hierarquia, e atravessada pelo culto da autoridade.

“Fatos como este vêm provar a prodigiosa intuição musical das crianças brasileiras, a par da facilidade de se submeterem a um rigoroso espírito de disciplina por meio da música. Essa constatação nos faz descortinar uma era promissora e nos deixa entrever as benéficas consequências educacionais decorrentes da implantação do canto coletivo nas escolas brasileiras.”

Outras atividades: junção do canto com a dança (“gênero Diaghilev”) (!) “para criar uma nova forma de bailados tipicamente brasileiros”; colônias de férias com hasteamento diário da Bandeira, em que “todos manifestavam sempre uma alegria enorme em cantar os hinos”; sistema de fichas individuais para avaliação do aproveitamento, seguindo os critérios de afinação, ritmo, musicalidade, colaboração e civismo.

Quando historia sua ligação com o projeto do canto orfeônico, Villa-Lobos coloca na origem uma visão da modernidade como anarquia e rebaixamento:

“Percebemos que o mal-estar dos intelectuais e dos artistas não era apenas o fruto de um desequilíbrio político e social — mas que se originava, em grande parte, de uma crescente materialidade das multidões, desinteressadas de qualquer espécie de cultura e divorciadas da grande e verdadeira arte musical”.

Em outro momento, assinala que “no atual panorama universal da música artística, vem se notando um vácuo inexplicável, de confusão e mal-entendidos entre os homens, desde a grande guerra (…)”. Vai daí, afirmar que esses males, que também afetam a produção musical (“as composições são academicamente experimentais em vez de serem criadoramente robustas”) têm uma “única causa”: “Os nossos métodos de ensino”. Em suma, o impacto da modernidade capitalista, a perda da aura da obra de arte (“Que fim terão a Alma Humana, os sonhadores, o mistério, o amor, a pátria, a arte e, finalmente, a Música?”), a emergência das massas convocadas para o consumo dos chamados meios-de-massa correspondem a uma falha pedagógica, a ser retificada pelo empenho conjunto do artista e do estadista. Assim é que, no governo de Getúlio Vargas, além de promover uma nova estrutura política, social e econômica, “os atos administrativos passaram a ser concebidos num plano de grande espiritualidade, analisando a gênese dos fenômenos sociais, para poder chegar às sínteses construtoras”. Dando especial atenção à juventude, “começou a dedicar à infância e à adolescência todo o interesse que elas merecem, como alicerces da nacionalidade”. “E um dos elementos de que o governo lançou mão para conseguir a sua finalidade, no sentido da unidade espiritual brasileira, foi a integração definitiva da cultura musical e do ensino do canto coletivo no plano educacional da Escola Renovada”.

Em suma, comemora-se o fato de que, na medida em que o Estado tem um projeto político-social-econômico-cultural, apertando os elos entre os níveis, o artista tem um lugar, ele é de novo admitido na ordem social, deixando de ser um mero apêndice: a música deixaria de ser “um passatempo da moda entre os senhores feudais (hoje o é entre os burgueses) e o artista, com raras exceções, um galante e privilegiado escravo dos senhores porque escreve ou executa notas musicais”. “(…) o artista não é nenhum palhaço que diverte gratuitamente o espectador e sim um ente predestinado, extremamente útil à humanidade e que tem o direito de viver da subsistência do seu trabalho, independente de uma espécie de esmola que as ‘elites snobs’ supõem dar quando lhe frequentam”.

Nesse quadro, a arte é concebida de maneira pragmática, “terapêutica”, “dinamogênica”, medicinal: o artista é um pesquisador de laboratório que tira conclusões a serem “aplicadas em pequenas ‘doses’ à mocidade brasileira”, de modo a “trazer proveitosos resultados e as melhores esperanças para a formação de uma suave disciplina das nossas gerações futuras”, através do veículo privilegiado do canto orfeônico. Por isso mesmo é que se pede “não confundir o (…) objetivo cívico-educacional (deste) com outras exibições de ordem puramente estética, que não visam senão o prazer imediato da arte desinteressada”.[74]

É difícil ou insuficiente buscar o sentido dessa empreitada músico-pedagógica de reação à crise de valores da modernidade apenas através do enunciado desses textos de propaganda assinados por Villa-Lobos. Parece-me que eles exibem (e claramente) uma faceta, certamente a preponderante, do programa educacional sob Vargas: a pedagogia autoritária.

Há quem considere, no entanto, que a ação orfeônica de Villa-Lobos não deveria ser encarada pela faceta autoritária com que se apresenta nos numerosos relatórios e textos de propaganda do DIP getulista, mas como representante de uma orientação humanista tradicional que marcava presença nos primeiros anos do governo Vargas, através da ação de Anísio Teixeira na Diretoria de Instrução Municipal do Rio de Janeiro, e pelos estímulos modernizantes de Capanema, que engajou tantos dos intelectuais brasileiros no período. Foi através de Anísio Teixeira, justamente, que se criou a Superintendência de Educação Musical e Artística, a partir da qual Villa-Lobos passou a desenvolver o programa do canto orfeônico. Já enfatizei o caráter “platônico” desse movimento musical como tentativa de responder à emergência de uma cultura capitalista industrial dissolvente da cultura letrada clássica (todavia quase inexistente no Brasil como instauradora de um padrão educacional abrangente), e daí a presença da música como elemento decisivo, nessa perspectiva, para uma estratégia de “elevação” da cultura, como elemento mediador entre o popular e o erudito. O encarecimento desse aspecto humanista tradicional faz com que alguns vejam na ação de Villa-Lobos um vigoroso trabalho de educação musical popular sem precedentes na nossa história, frente ao qual o aspecto propagandístico e cívico não mereceria maior importância, relegado ao plano de um mero expediente de circunstância externo à própria pedagogia, de interesse puramente tático para a obtenção de respaldo institucional indispensável à consecução de uma ação musical de tais proporções. Adhemar Nóbrega, por exemplo, desconhece nos textos do DIP a dicção villa-lobística (mais associativa e delirante do que escolasticamente articulada — a observação é minha), e praticamente considera que esses textos, mesmo que assinados pelo compositor, não deveriam ser creditados ideologicamente a Villa-Lobos.

Acho que a possível verdade contida nessas ponderações deveria levar não à cômoda distinsão do problema na mera suspensão da “aparência”, mas ao redobro de sua complicação.

Antes de mais nada, seria preciso considerar a concepção pedagógica e a visão do popular explicitada em algumas falas de Villa-Lobos, em entrevista à imprensa. O compositor faz uma bem sintomática analogia entre a “mentalidade ingénua, espontânea e primária do povo”, e a mentalidade infantil, igualmente ingênua e primitiva. Povo, criança e índio se equivalem no sentido de que precisariam ser catequizados pela “cultura” para se converterem, de massa inculta e desordenada, em povo adulto, ordeiro e civilizado.

Numa entrevista para o jornal A Noite, em 8.7.38, Villa-Lobos afirmava:

“O maior homem da História do Brasil foi José de Anchieta, precursor da educação nacional. Ele foi o nosso primeiro instrumento de cultura, lidando com gerações bárbaras. Quem considerar o estado em que ainda permanece a educação popular no Brasil, pode compreender o vulto de sua obra e a importância de seus sacrifícios para assentar as bases de uma civilização. Anchieta não se limitou aos objetivos imediatos, procurando despertar os sentimentos artísticos dos índios, através da música e do teatro. Só uma visão genial apreenderia, de tão longe, o privilégio desses processos de verdadeira cultura, realizando nas selvas a mais profunda dignificação do homem”.

Na mesma reportagem que ostenta a declaração acima, se lê:

“Villa-Lobos submete milhares de crianças em tumulto à sua mímica magistral, transportando-as, solidariamente, para os êxtases maravilhosos, para as abstrações transcendentes. O olhar imperioso domina as cabecinhas irrequietas, de repente rendidas à magia irresistível”.[75]

Villa-Lobos tem obsessão pela catequese e pela figura de Anchieta, em quem, claramente, se projeta. A imagem da catequese figura uma relação com o povo, assim como a imagem das crianças rendidas ao canto orfeônico. Indio e criança são figuras de um projeto de conversão do povo ao culto da nação. Catequese, uso educativo do folclore, canto orfeônico, são aspectos de uma mesma representação.

A certa altura da sua exposição sobre Educação Musical, Villa-Lobos faz novamente uma abrupta aproximação entre a catequese e o canto orfeônico no Estado Novo. Vale a pena transcrever dois parágrafos:

“Em verdade, a música no Brasil surgiu com o aborígene, pois os primeiros vestígios musicais de que há noticia são encontrados em todos os aspectos da vida tribal dos ameríndios. Eram, como se sabe, manifestações precárias de ordem estética, curtos desenhos rítmico-melódicos, entoados em uníssono para sublinhar os movimentos da dança ou acompanhar as cerimônias tribais, assim como também se pode afirmar que o canto coletivo surgiu com a catequese, quando os missionários começaram a ensinar aos índios os cantos religiosos, ministrando-lhes, também, o ensino musical nas escolas. Porque, como acontece com quase todos os povos primitivos, os nossos índios sofriam a fascinação da música e utilizavam-se dela nas suas cerimônias sociais e litúrgicas.

Os cronistas do século XVI são unânimes em louvar a intuição e o gosto musical dos indígenas, ao ponto de pouparem a vida do seu inimigo, quando descobriram que este era um bom cantor. (…) De Jean de Léry, em 1530, até Roquette Pinto através de Spix e Martius e de Koch Grunberg, todos os cientistas que se embrenharam pelos sertões bravios do Brasil recolheram uma quantidade apreciável de melodias, provando a musicalidade dos indígenas. Como nos mistérios medievais, os autos religiosos dos padres Anchieta e Nóbrega eram representados pelos índios e pelos sacerdotes, de comum acordo, nos palcos que se elevavam junto às igrejas”.

Se o primeiro parágrafo afirma a precariedade básica da música indígena, isto é, a sua insuficiência perante o parâmetro “estético”, o segundo parágrafo, curiosamente, afirma ao contrário a riqueza e a variedade das manifestações musicais indígenas. É visível aí a oscilação característica da visão burguesa das culturas do povo, ora rebaixadas ora elevadas, rudimentares mas bem vocacionadas, toscas e primárias mas prodigiosas, erradas mas aptas para a grande viagem do progresso, levadas pela “admirável intuição” dos catequistas, “os precursores do aproveitamento da música como fator de disciplina coletiva”. Essas duas visões, antitéticas e complementares, quase nunca se encontram juntas. Só mesmo a excepcional confusão dos escritos de Villa-Lobos é que poderia vir a apresentá-las assim, limpidamente conjugadas, em presença.

O canto coral alimenta-se, antes de mais nada, do folclore infantil: busca seu material naquilo que é familiar, isto é, “os brinquedos ritmados, as marchas, as cantigas de ninar ou as canções de roda”. “O folclore é hoje considerado uma disciplina fundamental para a educação da infância e para a cultura de um povo. Porque nenhuma outra arte exerce sobre as camadas populares uma influência tão poderosa quanto a música — como também nenhuma outra arte extrai do povo maior soma de elementos de que necessita como matéria-prima”.

Através do canto coral, se quer levar a população ao transe cívico, composto de êxtase e ascese, identificação fervorosa e introjeção da autoridade. A música tem de, ao mesmo tempo, desencadear forças afetivas, e represá-las; detoná-las e contê-las; liberá-las e dirigi-las. Em 1937, Villa-Lobos fazia constar num livro oficial sobre o programa de ensino de música nas escolas da Prefeitura da Capital Federal:

“As festas e concentrações escolares, com exceção das imprescindíveis, dentro da orientação do programa de ensino de música traçado, e previstas de acordo com a organização de cada escola, só poderão acarretar prejuízo, não somente quanto à aplicação normal do ensino de música, mas também a outras disciplinas“.

O projeto do canto orfeônico quer fazer com que o corpo social se exprima, desde que não faça valer seus direitos, mas que se submeta ao culto e às ordens de um chefe.

“O fascismo queria organizar as massas, sem mexer no regime de propriedade, permitindo às massas, não certamente valer seus direitos, mas exprimi-los. As massas têm o direito de exigir uma transformação do regime de propriedade; o fascismo quer permitir-lhes que se exprimam, porém conservando o regime. O resultado é que ele tende naturalmente a uma estetização da vida política” (Walter Benjamin).[76]

Aqui, menos do que aplicar a palavra-fetiche fascismo, interessa compreender a passagem que se faz na música de Villa-Lobos no momento em que ela busca ingenuamente (e inconscientemente, creio eu) fazer-se instrumento de uma estetização da política, sacrificando no altar da deusa Disciplina (meio através do qual, como já vimos, o músico pensa ganhar uma posição central na vida social). Para tanto, converte o mitopoético do campo de energias caótico-domadas em fator de legitimação do Estado através de um procedimento que lembra em tudo a concisa formulação de um crítico musical nazista, em 1938:

“Não se compreende a vida musical da Alemanha contemporânea se não se a considera do ponto de vista surgido da reunião e da unificação dos três conceitos Povo, Estado e Arte, porque um Estado sem seu povo, um povo sem sua arte, são tão pouco concebíveis como uma arte que existisse por si só e não pudesse elevar-se até converter-se em expressão do pensamento popular. Porque o Estado que incorpora a vontade de um povo, suas emoções e seus interesses, não é por acaso um organismo cuja harmoniosa conjunção alcança a categoria de obra de arte?”[77]

Resgatar a aura perdida pela arte na sociedade de massas através do modelo da arte estatal, que por sua vez estetiza o Estado, é o vértice do fascismo, dizia Walter Benjamin no seu famoso ensaio, “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”.

Pois é isso mesmo que Villa-Lobos oferecia, já antes da revolução de 30: aproveitando o “sortilégio” do canto coral “como um fator de civismo e de cultura”, fazer do Estado Nacional uma verdadeira obra de arte. Em troca, clamava por um governante capaz de dar função orgânica ao músico e de consumar aquela delicada operação que sua obra já realizava simbolicamente: despertar para o trabalho, vale dizer, para a acumulação, as poderosas energias ociosas do País, e ao mesmo tempo dominar o tumulto potencial nelas inscrito. Tarefa para um verdadeiro orquestrador da sociedade dividida: orquestração já magnificamente mapeada na partitura da série dos Choros, a ser arrematada socialmente pela prática generalizada do canto coral.

Nesse sentido o músico e o politico se correspondem: para destrinchar a partitura política da nação o chefe teria que ser, a seu modo, um verdadeiro maestro, e o maestro, para conduzir a harmonia social regendo o conflito, teria de constituir-se num verdadeiro chefe (segue-se todo o culto da disciplina e da hierarquia que acompanha o programa do canto orfeônico, tomando como modelo a corporação coral rendida ao domínio do condutor, culto este insistentemente frisado a cada momento).

No entanto, a combinação desses dois batutas não sufoca a voz do samba urbano, que vem participar ativamente desse panorama. Durante o Estado Novo, o samba, que tradicionalmente sustentava a apologia da boêmia e do ócio malandro, dialoga ambiguamente com o poder, aquiescendo muitas vezes no elogio da ordem e do trabalho. Ganhando nessa época o tom eloquente do samba-exaltação, ele proclama o Brasil como usina do mundo, faiscante forja de aço do futuro, segundo um ethos heroico pouco comum em sua história. E é somente esse clima que torna passível de sentido essa pérola do pleonasmo e da tautologia, incrustada na apoteose de Ari Barroso: entendido como uma enorme oficina que “trabalha cantando feliz”, esse coqueiro que dá coco é finalmente o Brasil.

Nem bem caiu a ditadura, no entanto, e em dezembro de 1945 saía o samba de Almeidinha, grande sucesso no carnaval do ano seguinte: “Eu trabalhei como um louco / Até fiz calo na mão / O meu patrão ficou rico / E eu pobre sem tostão / Foi por isso que agora / Eu mudei de opinião / Trabalhar, eu não, eu não / Trabalhar, eu não, eu não / Trabalhar, eu não, eu não”.[78]

PASSEI A NOITE PROCURANDO TU

(o tema desta pesquisa é um convite…)

as aves que aqui gorgeiam não piam ali na primeira esquina / cada sabiá sabido subido no seu galho / de gaiola descendo o rio / canta canta canta brasil / e diz: / que que há com seu peru? / em cismar sozinho passei a noite procurando tu / minha ilha do exílio / minha terra é uma presilha / que liga o lado de cá do lado com o lado de lá do lá / do lado de lá / sou um trabalhador intelectual procurando o plug / e não permita o autor e as autoridades constituídas que desliguem a força / sem eu ter encontrado meu ligar no curto-circuito da alteridade de classes nem sem ter desfrutado os fervores que sais não encontro eu porcá

e assim tomado pelo diabo da representação contorcia-se malabarístico com um cobertor menor que o corpo onde ora descobria a cabeça ora descobria os pés a cabeça era um palco vazio (de povo e cheio de intelectuais) e os pés eram um palco cheio (de povo e vazio de intelectuais) ficava um risco no meio que podia ser visto da lua um mar vermelho fervendo um frevo um caldeirão industrial de açúcar carnaval

Notas

  1. Ver Mário de Andrade, Ensaio sobre a música brasileira, São Paulo, Martins, 1962, pp. 163-167. Como sempre, o pensamento de Mário não é esquemático; ele procura nuançar o seu critério de valorização da música popular rural sobre a música urbana, nos seguintes termos: “Nas regiões mais ricas do Brasil, qualquer cidadinha do fundo sertão possui água encanada, esgotos, luz elétrica e rádio. Mas por outro lado, nas maiores cidades do pais, no Rio de Janeiro, no Recife, em Belém, apesar de todo o progresso, internacionalismo e cultura, encontram-se núcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria do urbanismo não penetra. (…) Por tudo isso, não se deverá desprezar a documentação urbana. Manifestações há, e muito características, de música popular brasileira, que são especificamente urbanas, como o Choro e a Modinha. Será preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano, o que é virtualmente autóctone, o que é tradicionalmente nacional, o que é essencialmente popular, enfim, do que é popularesco, feito à feição do popular, ou influenciado pelas modas internacionais”.
  2. Luiz Heitor, “O Brasil e a música”, in Música e músicos do Brasil, Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1950.
  3. Gilberto Mendes, “A música”, in Affonso Avila (org.), O Modernismo, São Paulo, Perspectiva/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1975, p. 130.
  4. Nesse sentido, as reflexões de Mário de Andrade sobre a arte “interessada”, isto é, arte diretamente ligada ao conjunto da vida produtiva da comunidade, levariam a pensar num deslocamento decisivo da sua função estética de objeto oferecido à contemplação reservada (da sala-de-concerto, por exemplo). E a ideia de arte “interessada” provém de sua concepção de arte popular.
  5. Nos anos do Estado Novo, há um surto de sambas que fazem a apologia de uma moral do trabalho, dentro do clima de ufanismo-nacionalismo-trabalhismo que marcava a propaganda getulista, e combatem a rica tradição da malandragem na música popular do Rio de Janeiro. Esse assunto foi estudado por Antonio Pedro em Samba da legitimidade, tese de mestrado (mimeo.), São Paulo, USP, 1980.
  6. O “Carnaval” e o “Dia da Pátria” são termos polares de uma ritualização do “dilema brasileiro”, tal como é formulada por Roberto da Matta, em Carnavais, malandros e heróis, Rio, Zahar Editores, 1980.
  7. Alvaro F. Salgado, “Rádio Difusão, fator social”, in Cultura Política nº 6, agosto de 1941, pp. 79-93.
  8. Gilda Rocha de Mello e Souza, “Vanguarda e Nacionalismo na década de 20”, in Almanaque 6, São Paulo, s.d., p. 78.
  9. Talvez por isso mesmo Mário de Andrade, que à altura dos anos 40 radicalizava suas posições de esquerda e escrevia textos de critica contundente ao Estado Novo (principalmente quando discutia música, a exemplo de O Banquete), não critica a ação orfeónica de Villa-Lobos. Ao contrário: “A lição mais profundamente humana que podemos colher da obra de um Villa-Lobos (e não é à toa que o grande artista dedicou grande parte de sua atividade à formação de massas corais…) (…) é (…) uma sadia e harmônica fusão social entre a arte erudita e o povo” (“Distanciamentos e aproximações”, in Música, doce música, São Paulo, Martins, 1963, p. 364). O objeto de sua critica, no mesmo texto, é o esteticismo da vanguarda, “as criações exacerbada mente ‘hedonísticas’ de um Léger na pintura, de um Schoemberg (sic) na música, como de um Joyce na literatura”. Ser “escravo de uma classe” (a burguesa) ou “servidor da humanidade” é o que diferencia “o gênio humano de um Cervantes do gênio classista de um Proust, o gênio humano de um Villa-Lobos do gênio nazista de um Wagner” (p. 366).
  10. Cf. Jean-Pierre Vernant, “A pessoa na religião”, in Mito e pensamento entre os gregos (trad. de Haiganuch Sarian), São Paulo, Difusão Europeia do Livro/ USP, 1973, p. 279.
  11. Platão, A República, 424.
  12. Gilbert Rouget, La musique et la transe, Paris, Gallimard, 1980, pp. 267-315.
  13. Ver Gilbert Rouget, op. cit., p. 305.
  14. Cf. Samuel Baud-Bovy, referido por Gilbert Rouget, op. cit., p. 311 (quanto à oposição entre o modo dórico e o modo frígio). A oposição entre a religião da Polis e a religião dionisíaca, nos termos tratados aqui, é feita por J. P. Vernant, op. cit.
  15. Jean-Pierre Vernant, op. cit., pp. 278-279.
  16. Idem, ibidem, p. 278.
  17. Idem, ibidem, p. 279.
  18. Idem, ibidem, p. 279.
  19. Mário de Andrade, op. cit. , p. 18.
  20. Idem, ibidem, p. 28.
  21. Arnold Schoenberg. “Las sinfonías folkloristas”, in El estilo y la idea, pp. 248-257.
  22. Mário de Andrade, op. cit. , p. 16.
  23. Idem, ibidem, p. 18.
  24. Os termos usados (inconsciente coletivo, persona, individuação), estranhos ao discurso nacionalista, foram tomados propositalmente do contexto da conceituação junguiana, e usados localmente aqui, pela sua adequação didática ao andamento da exposição.
  25. Conforme os estudos de Anatol Rosenfeld, “Mário e o cabotinismo”, in Texto/contexto, São Paulo, Perspectiva, 1976, e de João Luiz Machado Lafetá, Figuração da intimidade, tese de doutoramento (mimeo.), USP, 1980.
  26. Mário de Andrade, op. cit., p. 72.
  27. Idem, ibidem, pp. 64-66.
  28. O Globo, Rio de Janeiro, 20.7.1929. Recortes Mário de Andrade. IEB-USP. Os grifos disparatados são propositalmente meus.
  29. 21.8.1929. Recortes de Mário de Andrade, IEB-USP, sem indicação de periódico.
  30. Heitor Villa-Lobos, “Educação cívico-artística”, artigo publicado no Correio da Manhã de 4.4.1936, recolhido em Presença de Villa-Lobos (5º vol.), Rio, MEC/ Museu Villa-Lobos, 1970, p.102.
  31. Citado por Gastão de Bettencourt na conferência “O grande desbravador do sentido brasílico da música”, publicada em Presença de Villa-Lobos (4º vol.), Rio, MEC/Museu Villa-Lobos, 1969, p. 94.
  32. Cf. Francisco de Oliveira, “A emergência do modo de produção de mercadorias: uma interpretação teórica da economia da República Velha no Brasil”, in Boris Fausto (org.), O Brasil Republicano (Estrutura do poder e economia), São Paulo, Difel, 1975, pp. 391-414.
  33. Muniz Sodré, Samba — o dono do corpo, Rio, Codecri, 1979.
  34. Idem, ibidem, p. 20.
  35. Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros nº 8, São Paulo, USP, 1980.
  36. Eis aqui um campo de problemas aberto à reflexão no estudo da música brasileira: as interpenetrações que se dão na vida musical do Rio de Janeiro a partir do fim do século XIX, matriz cultural do populismo, poderiam ser pensadas como desdobramento pós-abolição da ordem do favor na sociedade escravocrata (analisada e interpretada em suas consequências ideológicas e literárias por Roberto Schwarz em Ao vencedor as batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1976).
  37. Manuel Bandeira, Crônica da Província do Brasil, Rio, Civilização Brasileira, 1937, pp. 108-110. Citado por Vasco Mariz em A canção brasileira, Rio, Civilização Brasileira/MEC, 1977, p. 203.
  38. Francisco Guimarães (Vagalume), Na roda do samba, Rio, MEC/FUNARTE, 1978, p. 60.
  39. Citado por Hermínio Bello de Carvalho em “Villa-Lobos e o violão”, palestra publicada em Presença de Vila-Lobos, 3º vol., Rio, MEC/Museu Villa-Lobos, 1969, pp. 140-141.
  40. Se quisermos tirar este esquema de dentro da metáfora da casa, como conviria a uma descrição concreta da diversidade das práticas musicais do Rio no começo do século, bem como a uma representação menos doméstica da sociedade, seria preciso levar também em consideração os cafés-cantantes, os bailes populares, os teatros de revista. José Ramos Tinhorão dá excelente material para isso, em Os sons que vêm da rua, Rio, Edições Tinhorão, 1976, e na Pequena história da música popular (da modinha à canção de protesto), Petrópolis, Vozes, 1978 (em especial no capítulo sobre o maxixe).
  41. “Samba é que nem passarinho: é do primeiro que pegar” (frase famosa de Sinhô).
  42. Adhemar N6brega, Os choros de Villa-Lobos, Rio, MEC/Museu Villa-Lobos, 1975. Sobre o mesmo assunto, ver também José Maria Neves, Villa-Lobos, o choro e os Choros, São Paulo, Ricordi, 1977.
  43. Citado por Herminio Bello de Carvalho no texto referido à nota 8, p. 139.
  44. Muniz Sodré, op. cit. , p. 62.
  45. Não estou usando portanto o sentido habitual de sinfonia como gênero de música orquestral do século XIX. Penso, isto sim, num conjunto de obras de vários gêneros que une materiais sonoros os mais diversos para extrair daí um efeito de totalização.
  46. A trajetória do sambista é muito bem apresentada no livro de Marília T. Barbosa da Silva e Lygia Santos, Paulo da Portela — traço de união entre duas culturas, Rio, MEC/FUNARTE, 1979.
  47. “Os (…) sons aliaram-se, fundiram-se e aí vibram nas langorosas modinhas, nos batuques, nos cateretês, nos jongos e com tais músicas, expressão sonora de um povo emancipado, passamos, sorrindo e cantando, da Colônia para o Império e no Império, conquistamos as duas formosas liberdades — redimindo o escravo e exaltando a Pátria ao prestígio em que hoje a vemos”. “E tais glórias conseguimos com um só hino, que não era o símbolo de um regime, mas a própria voz da nação que, com ela, vai seguindo vitoriosamente para o futuro, como a França, através de todas as vicissitudes políticas, tomou para canto de marcha a Marselhesa” (trecho da proposta sinfônica de Coelho Neto aos compositores nacionais por ocasião do centenário da Independência, lançada no Jornal do Brasil e reproduzida por O Estado de S. Paulo em 7.2.1922. Analisei deta-lhadamente o programa de Coelho Neto em O coro dos contrários — a música em torno da Semana de 22, São Paulo, Livraria Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977, pp. 17-39.
  48. Citado por Jota Efegê, em Ameno Resedá, o rancho que foi escola, Rio, Editora Letras e Artes, 1965, p. 48. A indicação desse texto me foi possível graças ao trabalho da pesquisadora Dulce Tupy para a FUNARTE, sobre os Cantavais de guerra.
  49. Citado também por Jota Efegê, no mesmo texto, à p. 50.
  50. Valerá como indício o episódio narrado por Manuel Bandeira?: “Me apresentaram a Sinhô na câmara ardente do Zeca Patrocínio. (…) Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia passar a noite ali e, não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aventuras comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado naquela época com o Villa e o Catullo, poeta era ele, músico era ele” (na mesma crônica j á citada).
  51. Gilberto Mendes, “A Música”, in Affonso Avila (org.), O Modernismo, São Paulo, Perspectiva, 1975, p. 132.
  52. Idem, ibidem, p. 131.
  53. Essa explicitação encontra-se no texto do próprio compositor, “Choros — estudo técnico, estético e psicológico de Villa-Lobos”, mimeografado e revisto pelo professor Adhemar Nóbrega no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico em 1950, e publicado em Villa-Lobos — sua obra, pelo MEC/Museu Villa-Lobos, 1972.
  54. Termo empregado por Adhemar Nóbrega em Os Choros de Villa-Lobos.
  55. Carlos Drummond de Andrade, “A palavra e a terra”, Lição de coisas.
  56. A referência ao tema incaico e ao acalanto dos índios parecis, feita pelo próprio Villa-Lobos, encontra-se no texto citado à nota 22.
  57. A citação é do texto referido à nota 22.
  58. Eis a letra do Rasga o coração: “Se tu queres ver / a imensidão / do céu e mar, / refletindo a prismatização / da luz solar, / rasga o coração, / vem te debruçar / sobre a vastidão / do meu penar! // Rasga-o, que hás de ver / lá dentro a dor / a soluçar! / sob o peso de uma cruz / de lágrimas, / chorar!… / Anjos a cantar / preces divinais, / Deus a ritmar seus pobres ais. // “Sorve todo o olor / que anda a recender / pela espinhosas florações / do meu softer!! / Vê se podes ler / nas suas pulsações / as brancas ilusões / e o que ele diz no seu gemer… / e que não pode a ti / dizer / nas palpitações. / Ouve-o brandamente, / docemente / palpitar, / casto e purpural, / num treno vesperal, / mais puro que uma cândida/ vestal!”, e assim por diante (o texto é bastante longo, Villa-Lobos utilizou-o apenas em parte). Está nas Modinhas de Catullo da Paixão Cearense, São Paulo, Fermata, 1972. Mais tarde o compositor foi processado por um tal Guimarães Martins, dono dos direitos autorais de Catullo, que o acusou de plágio, e desde então a parte coral do Choros nº 10 é cantada sem letra, apenas em vocalise (no que só saiu ganhando). Foi em torno dessa pendenga autoral, e em defesa de Guimarães Martins, que Carlos Maul escreveu o livro idiota A glória escandalosa deVilla-Lobos, Rio, Livraria Império, 2ª ed., 1960.
  59. “Fiz um dia esta pergunta / ao meu anjo inspirador: / ‘Qual seria o anel do Poeta, / Se o Poeta fosse um Doutor?’ // E o meu anjo, o meu arcanjo, respondeu-me, com calor: / ‘Nem verde, nem cor de sangue, / nem azul, nem amarelo, / nem roxo, nem de outra cor! / Seria muito mais belo: / Uma saudade, brilhando / na cravação de uma Dor” (Catullo da Paixão Cearense, “0 anel do poeta”).
  60. “Quanto ao Rasga o Coração, é uma forte composição com importante prelúdio orquestral, onde abundam os efeitos onomatopaicos de timbres em que é tão fértil a fantasia de Villa; vem depois a citação entre aspas da modinha de Catullo Se tu queres ver a imensidão do céu e mar. Villa envolveu-a de uma formidável roupagem harmônica onde sobre um fundo imperioso de marcha batida corusca fabulosamente a prismatização da luz solar. Villa foi aclamado pela plateia unânime, como de fato merecia, estendendo-se os aplausos aos seus numerosos colaboradores, entre os quais se contava a fina flor dos nossos professores, cantores e amadores, que o presentearam em cena aberta com uma baita batuta de ouro” (Manuel Bandeira, “Villa regendo”, in Andorinha, andorinha, Rio, José Olympio, 1966, p. 93. Le Choros 10 l’emporte certainement sur les précédentes compositions. Il débute par un tumulte d’orchestre d’une pâte assez strawinskiste, influence, du reste, sensible chez M. Villa-Lobos. Des lambeaux de thèmes apparaissent ensuite sur un orchestre redevenu calme. Le choeur intervient bientôt, apportant à l’ensemble une animation barbare et sauvage. D’une voix à l’autre court une mélopée puissante. La batterie sanctionne la persistance de ces tour-billonements qui évoquent les ébats de quelque horde primitive. Malgré des influences, ce Choros révèle une originalité rigoureuse et montre chez son auteur une capacité d’imagination, une maitrise tecnique, une liberté d’élan remarquables” (Paul Le Flem, “Audition d’oeuvres de M. Villa-Lobos”, Comoedia, Paris, 7.12.1927. (…) la génèse truculente d’une neuve Amérique pleine d’élans et source jaillissante des trésors mélodiques et rythmiques que les nègres et les indiens se transmettent depuis des millénaires (Pierre Lucas, Lyrica, dez. 1927).
  61. Utilizo aqui a formulação de Marilena Chauí sobre a articulação das ideias de povo e nação, desenvolvida no seminário de pesquisa promovido pela FUNARTE, O nacional e o popular na cultura brasileira, Rio, 1980.
  62. A letra completa do hino Meu País vem citada em conferência de Amarylio de Albuquerque, “Villa-Lobos visto pelo avesso”, publicado em Presença de Villa-Lobos, 4º vol., MEC/Museu Villa-Lobos, Rio, 1969, p. 46. Manuel Bandeira refere-se a este hino no mesmo texto referido à nota 29 (o hino foi executado no mesmo concerto em que se deu a primeira audição do Choros nº 10, em novembro de 1926).
  63. Antonio Pedro, Samba da legitimidade (mimeo.), tese de mestrado, São Paulo, USP, 1980.
  64. O “Samba Clássico” vem citado também por Amarylio de Albuquerque (ver nota anterior).
  65. A metáfora do olho-do-ciclone aplicada à questão do nacional-popular na cultura brasileira é ideia de José Pasta Jr., desenvolvida em seminário de pesquisa na FUNARTE, Rio, 1980.
  66. Partes deste trabalho foram publicadas no artigo “Estado, arte e política em Villa-Lobos, Vargas e Glauber”, Folhetim nº 283, São Paulo, 20.6.1982.
  67. Luiz Heitor, Música e músicos do Brasil, Rio, Casa do Estudante do Brasil, p. 380.
  68. Luiz Heitor, 150 anos de música no Brasil, Rio, José Olympio, p. 269.
  69. A principal fonte, aqui citada, é o texto “Educação musical”, de Villa-Lobos, relatório completo sobre o programa de implementação nacional do ensino de canto orfeônico nas escolas, publicado no Boletim Latino-Americano de Música, Ano VI, Tomo VI, 1ª parte, Rio, 1946. Salvo referencia outra em nota, as citadas aqui usadas são desse texto.
  70. Luiz Heitor, 150 anos de música no Brasil, p. 268.
  71. Segundo Antonio Pedro, Samba da legitimidade, tese de mestrado (mimeo.), São Paulo, USP, 1980.
  72. Citado por Antonio Pedro, op. cit., p. 90.
  73. Luiz Heitor, Música e músicos do Brasil, p. 382.
  74. “Dinamogenia”, “terapêutica musical” e arte “interessada” são termos aqui tomados de empréstimo pela pedagogia do DIP aos ensaios de Mário de Andrade.
  75. Recortes de Mário de Andrade, IEB-USP.
  76. Walter Benjamin, “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, in Os pensadores, volume XLVIII, Abril Cultural, 1975, p. 33.
  77. Dossier música y política, Barcelona, Editorial Anagrama, 1974, p. 53.
  78. Citado por Antonio Pedro, op. cit., p. 101.