2017

O novo inconsciente

por Lionel Naccache

Resumo

Interações de neurocientistas e psicanalistas têm frequentemente produzido “diálogos de surdos” que evidenciam disputas de egos e dificuldades em se construírem pontes que venham a beneficiar pacientes comuns às respectivas áreas. Diferenças da ordem do conhecimento, de abordagens e do discurso concorrem para esse afastamento das disciplinas. Na tentativa de estabelecer diálogos francos e autênticos, alguns aspectos nada periféricos das teorias freudianas vêm sendo questionados. Não é possível omitir o chamado “erro de Freud”, uma vez que o inconsciente é aqui o nosso assunto principal. Freud acreditava ter descoberto o inconsciente enquanto que, na verdade, “estava desvendando a essência profunda da nossa consciência”. Essa crítica ousada baseia-se em estudos da neurociência (da psicologia cognitiva e da neuropsicologia clínica, em especial) a partir dos quais foram encontrados “pontos de possível convergência”, mas também “pontos de divergência inquietante e, finalmente, aqueles que correspondem a uma oposição radical” em relação às concepções freudianas. Estudos feitos a partir de experiências com pacientes com um grau importante de comprometimento neurológico evidenciam atividade do inconsciente e alguns de seus traços característicos: 1) ao contrário do que tradicionalmente se pensava, o inconsciente é maleável e sensível às modificações dinâmicas da consciência do indivíduo; 2) não existe nenhuma região cerebral cuja atividade seja exclusiva e necessariamente reservada aos pensamentos conscientes; 3) o inconsciente é estruturado como uma “exponencial decrescente” na linha do tempo. 4) ele é rico e plural em suas representações. Consideramos que a revolução de Freud foi a descoberta de um “imenso continente psíquico”. Ele também notou a primazia da realidade psíquica sobre a realidade objetiva no homem, uma condição observada universalmente em práticas clínicas. “Por trás desse ‘erro’ de Freud, descobrimos assim a propriedade fundamental não do nosso inconsciente, mas da nossa consciência: nossa necessidade vital de inventar conscientemente ficções mentais para podermos existir.”


INTRODUÇÃO

Entre as inúmeras “mutações” que caracterizam a evolução das nossas sociedades e das nossas representações, algumas têm sua origem com o aparecimento de novos paradigmas científicos. Entre esses últimos, a exploração contemporânea da nossa vida mental, com a ajuda das neurociências cognitivas, constitui uma das fontes mais fecundas dessas mutações, devido ao fato de que o objeto dessa exploração é a nossa própria subjetividade, fonte dos dados imediatos da nossa consciência. Quais são as propriedades psicológicas objetivas desses pensamentos conscientes? Qual é o substrato cerebral desses processos de representação que nos permitem produzir significação? Uma das estratégias de pesquisa que permitem formular essas perguntas consiste em estudar, de forma espelhada, a extensão e os limites dos nossos processos cognitivos inconscientes, a fim de isolar o que é próprio da consciência. Esta epopeia científica permitiu, em cerca de quarenta anos, esboçar o retrato vivo do inconsciente contemporâneo, da maneira como ele se revela na tranquilidade de inúmeros laboratórios de pesquisa, desde o final dos anos 1970. Esse novo campo de saber originou-se de um ménage à trois cujos protagonistas são a psicologia cognitiva, o conjunto de imagens cerebrais funcionais e a neuropsicologia clínica. Desse modo, passamos de uma concepção científica de um inconsciente estúpido, automático e reflexo, para a de um inconsciente muito mais rico e elaborado, concepção moderna que reconhece, principalmente, a existência de representações mentais muito abstratas e complexas que coexistem com nossos pensamentos conscientes. Essas descobertas também permitem compreender que todas as regiões do nosso cérebro, mesmo as mais complexas e as mais recentes, de um ponto de vista filogenético, são o substrato dessa face oculta da nossa vida mental. Fazendo eco a essa riqueza do inconsciente objetivada pelas neurociências cognitivas, conhecemos igualmente os limites desses processos mentais inconscientes. Ao contrário do que aprendemos, esses limites às cogitações inconscientes não serão encontrados no nível de abstração das representações mentais, mas na temporalidade, no controle estratégico e na espontaneidade.

O objetivo desta conferência é expor com brevidade essa pequena revolução da nossa representação desse inconsciente objetivado pelas neurociências e, em seguida, formular a pergunta que não pode deixar de preocupar nossas consciências alimentadas por nossa herança cultural: que relação poderemos estabelecer entre esse corpus de conhecimentos contemporâneos e o conceito de inconsciente construído por Freud? Meu interesse por esse “confronto” se deve a duas profundas motivações. Primeiramente, o conceito de inconsciente foi amplamente difundido pela obra de Freud e, para além dos limites do campo da prática psicanalítica, suas ideias continuam a dar forma a inúmeras representações artísticas e culturais da nossa vida mental inconsciente. Elaborar um discurso contemporâneo sobre o inconsciente sem abordar uma discussão do pensamento freudiano seria, a meu ver, desprezo ou ignorância, ou seja, uma forma de barbárie intelectual. Farei um esforço para conduzir essa discussão evitando os dois obstáculos que atrapalham esse tipo de exercício: o “diálogo de surdos”, no qual neurocientistas e psicanalistas se insultam uns aos outros sem conseguirem criar uma verdadeira troca, e a “grande missa ecumênica”, que celebra a tão esperada reconciliação entre profissionais do divã e obcecados por neurônios, cultivando as analogias possíveis entre essas duas concepções e fechando os olhos, ao mesmo tempo, para os pontos de oposição radical que às vezes as distinguem. A segunda motivação que me leva de volta a Freud é mais pessoal. Não sou psicanalista e não reivindico nenhum conhecimento específico sobre a obra teórica de Freud. Sou um simples leitor, de longa data, dos escritos de Freud, cujo percurso admiro. Como neurologista e pesquisador em neurociências da cognição, não posso ignorar o mistério constituído pelo “caso Freud” que me é oferecido todas as manhãs, quando atravesso os mesmos caminhos do hospital Salpêtrière percorridos pelo próprio Freud há mais de um século. Como pôde um conhecimento neurológico e experimental tradicional, no qual eu mesmo me reconheço, levar Sigmund Freud a abandonar, com a maior serenidade, sua relação inicial com as ciências do sistema nervoso – que ainda não se chamavam neurociências – para elaborar a psicanálise? Levar a sério esse enigma significa percorrer também, um século de neurociências depois, o caminho intelectual seguido por Freud e, uma vez chegado ao final do percurso, fazer a seguinte pergunta: onde estou? O que significa hoje em dia para nós o “inconsciente” freudiano? Ficaremos então surpresos ao descobrir que o lugar fabuloso para onde nossos passos nos conduziram, ao seguirmos as pegadas de Freud, não é o mesmo para o qual ele supunha se dirigir. Em homenagem ao fundador da psicanálise, que utilizava a arte da metáfora num grau de incomparável justeza, tomarei a liberdade de, por minha vez, fazer uso dessa figura de estilo. A tese que defendo neste ensaio pode, de fato, ser ilustrada pela seguinte metáfora: Freud pode ser considerado o Cristóvão Colombo de nosso universo mental. Assim como Colombo nos deu de presente um novo continente, podemos reconhecer no “inconsciente” de Freud uma imensa descoberta psicológica que revolucionou o conhecimento que temos de nós mesmos. A analogia entre esses dois viajantes não se limita, no entanto, a esse primeiro ponto. Assim como Colombo explorava as Américas acreditando estar descobrindo as Índias, Freud também cometeu um erro. O “erro de Freud” foi acreditar que tinha descoberto o “inconsciente”, quando estava desvendando a essência profunda da nossa consciência!

DEFINIÇÃO OPERATÓRIA DO INCONSCIENTE

Comecemos pela definição operatória e descritiva daquilo que entendemos por “consciente” e “inconsciente” para dissipar qualquer mal-entendido. Assim como Freud formulava desde 1912, em “Nota sobre o inconsciente em psicanálise”, é possível partir de uma definição descritiva em negativo daquilo que entendemos por inconsciente: “Chamemos agora de ‘consciente’ a representação que está presente na nossa consciência e que é percebida por nós, e digamos que esta é a única significação do termo ‘consciente’. Quanto às representações latentes, se tivermos algum motivo para supor que elas existem na mente – como é o caso da memória –, serão designadas pelo termo de ‘inconsciente’”. À luz desse critério da “possibilidade de ligação mental”, torna-se possível buscar dissociações entre várias performances cognitivas (perceptivas, motoras, emocionais, categorização semântica, operações linguísticas…) que surgem inconscientemente, isto é, na ausência de ligação consciente. A neuropsicologia cognitiva contemporânea teve aqui um papel particularmente original ao revelar essas dissociações sob formas muito variadas em pacientes blindsight portadores de lesão do córtex visual primário, em pacientes portadores de negligência ou ainda em doentes com agnosia visual. Esses resultados, na maioria dos casos, foram generalizados e validados no indivíduo saudável com a ajuda de paradigmas astuciosos da psicologia cognitiva experimental, como o priming e o attentional blink.

ILUSTRAÇÃO DA ESTRATÉGIA EXPERIMENTAL: NÃO NEGLIGENCIEMOS PORTADORES DE NEGLIGÊNCIA

Tomaremos um exemplo surpreendente oferecido pela neuropsicologia clínica ao estudar uma afecção neurológica frequente, mas bem menos conhecida do grande público do que outras afecções, como as afasias ou as amnésias. Estou falando da síndrome da heminegligência. Todos os anos, na França, cerca de 90 mil pacientes são vítimas de um acidente vascular cerebral. Essas afecções, de inúmeras causas ou etiologias, podem atingir os diferentes territórios vasculares cerebrais. Entre as quatro principais artérias que irrigam o cérebro humano, as artérias carótidas internas cobrem, de longe, o território mais importante. Essas carótidas internas se dividem elas mesmas em várias ramificações mais finas que constituem uma verdadeira árvore arterial cuja arborescência pode ser visualizada nos exames radiológicos. De modo esquemático, quando uma das ramificações da artéria carótida interna esquerda está bloqueada por um coágulo, o paciente apresenta uma afasia, isto é, um problema de linguagem que pode tomar numerosas formas clínicas. Isto hoje é bem conhecido do grande público. Se esse coágulo migra, por outro lado, para o hemisfério direito, exatamente no nível de uma região do lobo parietal, o paciente apresentará um quadro neurológico quase tão frequente quanto as afasias, porém incrivelmente mais ignorado: o paciente ficará “negligente” da metade esquerda de seu ambiente, isto é, ele irá se comportar “[…] como se a metade do universo [que inclui o lado esquerdo do seu próprio corpo] tivesse brutalmente deixado de existir sob alguma forma inteligível”, como resume Marsel Mesulam. A observação do comportamento desses pacientes é cheia de descrições surpreendentes: diante de um espelho, o paciente só fará a barba do lado direito; à mesa, só comerá a metade direita do que está no prato; se várias pessoas estão à sua volta e uma delas, situada à sua esquerda, lhe dirige a palavra, ele responderá a uma das pessoas que estiverem à sua direita… Um século de explorações neurológicas dessa curiosa síndrome de múltiplos nomes nos propiciou uma análise rigorosa que nos permite captar o essencial em algumas frases. A negligência não se limita a uma modalidade sensorial, mas pode afetar o conjunto dos nossos sentidos e atingir nossa capacidade de agir. Um doente, por exemplo, poderá negligenciar tanto informações visuais, auditivas ou táteis quanto certos odores. Por outro lado, ele não utilizará mais o braço e a perna esquerdos, mesmo que não estejam paralisados: fala-se de “subutilização motora”, que não deve ser confundida com hemiplegias que atingiram os membros motores principais. O doente parece estar paralisado. Na realidade, ele não presta mais atenção no lado esquerdo do seu corpo e nem pensa mais em se mover! Existe então uma transformação maior do esquema corporal que pode às vezes chegar a incríveis situações nas quais o paciente não reconhece mais como seus o braço ou a perna esquerdos, e até mesmo toda a metade esquerda do seu corpo! É sempre uma situação espantosa para um jovem residente de neurologia lidar ele mesmo com essa experiência de caráter desorientador. A negligência é portanto, por excelência, uma doença da consciência que se caracteriza pela perda da consciência da existência do “lado esquerdo”: desaparecimento dos estímulos situados à sua esquerda, desaparecimento das intenções motoras relativas ao braço ou à perna esquerdos, desaparecimento da própria noção de possuir essa metade esquerda! As equipes de Eduardo Bisiach, em Milão, e de Luigi Pizzamiglio, em Roma, descobriram, há alguns anos, que esse “desaparecimento” também atingia as imagens mentais geradas a partir do interior. Na experiência, agora famosa, da praça da Catedral de Milão, Bisiach e seus colegas pediram a pacientes que se imaginassem nessa praça, de costas para a Catedral, e descrevessem os edifícios visíveis. Os indivíduos ignoravam os edifícios situados à esquerda. Na versão parisiense desse teste clínico, quando se pede aos doentes que se imaginem de pé, na Place de la Concorde, de costas para o Obelisco e olhando para a avenida dos Champs-Élysées, eles ignoram a Assembleia Nacional e o rio Sena, que ficam à esquerda… Num segundo momento, os pesquisadores italianos submeteram seus pacientes ao mesmo teste, pedindo-lhes que fizessem mentalmente um giro de 180º, isto é, ficando agora de frente para a Catedral. Dessa vez, os edifícios negligenciados da primeira vez foram citados, e os que tinham sido citados foram esquecidos. Na versão parisiense, pede-se ao paciente que se imagine de costas para o Obelisco, de frente para o Jardim das Tulherias. O rio Sena e a Assembleia Nacional não são mais ignorados, pois se encontram agora à direita dos pacientes, que negligenciam então o hotel Crillon e a rua Royale. Ou seja, aquilo que é negligenciado nessa situação de imaginação mental depende diretamente do ponto de vista utilizado pelo paciente para gerar sua imagem mental.

Em 1988, dois psicólogos ingleses, John Marshall e Peter Halligan, relataram na revista Nature um resultado espetacular que sugeria com firmeza que processos cognitivos abstratos inconscientes estavam em jogo nesses pacientes. Eles apresentaram a uma mulher portadora de negligência os desenhos de duas casas, uma embaixo da outra. Essas duas casas eram absolutamente idênticas em todos os pontos, exceto por um pequeno detalhe: o lado esquerdo de uma das duas casas estava pegando fogo! Do ponto de vista da paciente, que negligenciava a parte esquerda desses desenhos, essa diferença não era conscientemente perceptível. Quando Marshall e Halligan pediram a ela que encontrasse uma diferença entre essas duas casas, ela não foi capaz de distinguir uma da outra e afirmou, simplesmente, que as duas casas eram idênticas. Entretanto, quando lhe pediram que escolhesse a casa em que preferiria morar, a paciente respondeu sem hesitar apontando com o dedo a casa que não estava pegando fogo! Se levarmos a sério esses resultados, eles nos revelam que processos perceptivos inconscientes foram capazes de analisar o lado esquerdo dessas casas e interpretar corretamente o significado dos desenhos de chamas! Depois dessa publicação, novos exemplos de dissociações entre desempenho e consciência visual na negligência surgiram na literatura médica e científica. Apoiadas nesses resultados, inúmeras experiências permitiram generalizar essa descoberta no indivíduo sem nenhuma lesão neurológica, demonstrando, por exemplo, que palavras apresentadas de maneira subliminar podiam ser percebidas de maneira inconsciente em níveis de representação muito abstratos. No nosso laboratório, pudemos mostrar, por exemplo, que a atividade da amígdala cerebral, pequena estrutura que participa da elaboração das emoções, era afetada pelo valor emocional de palavras apresentadas de maneira subliminar. Ou seja, se a amígdala reage de modo diferente às palavras “violento” e “violino”, isso mostra que essas palavras foram inconscientemente representadas em níveis capazes de extrair as significações associadas a esses estímulos simbolicamente arbitrários. Essas experiências realizadas com indivíduos sadios ou com pacientes neurológicos, com a ajuda de métodos de psicologia experimental, combinados a conjuntos de imagens cerebrais funcionais, permitiram revelar assim a existência de codificações inconscientes, ricas e abstratas.

RIQUEZA DO INCONSCIENTE COGNITIVO

Podemos resumir essa riqueza do inconsciente cognitivo decompondo-a em três propriedades principais.

A primeira dessas propriedades é a grande variedade dos processos inconscientes que encontramos. O que é importante constatar aqui é que essas representações inconscientes não se limitam a um só tipo de domínio psicológico, como as emoções, por exemplo. Elas podem corresponder a qualquer conteúdo mental do qual também tenhamos a experiência conscientemente: encontramos representações inconscientes de rostos, palavras, números, gestos mais ou menos complexos, emoções, imagens mentais, lugares… Procurando um eventual limite para a riqueza desses conteúdos mentais inconscientes, fizemos a surpreendente descoberta de que as representações de nossos conceitos mais abstratos podem operar de maneira inconsciente. A significação dessas cadeias de símbolos arbitrários que são as nossas palavras, joias da cultura humana, pode ser apreendida inconscientemente. Contrariamente aos preconceitos recebidos como herança do primeiro encontro moderno entre as neurociências e o inconsciente cerebral, através do paradigma do reflexo, o inconsciente não é, portanto, necessariamente estúpido, e não pode ser diferenciado de nossos pensamentos conscientes do ponto de vista da riqueza do conteúdo mental que é representado.

Fazendo eco a essa riqueza do inconsciente cognitivo, as neurociências contemporâneas atualizaram a multiplicidade das regiões cerebrais que são seu teatro. Dos arcaicos circuitos cerebrais subcorticais “coliculares”, ou amigdalares, aos sistemas corticais mais evoluídos e mais recentes, no plano filogênico, observamos que todos os recônditos do nosso cérebro são capazes de produzir diversas formas de atividades mentais inconscientes. Existem, portanto, diferentes formas de codificação inconscientes, consideradas sob o ângulo de sua implementação cerebral. Essas diferentes formas de inconsciente não têm muito em comum, e é provável que escapem ao nosso conteúdo consciente por razões completamente distintas umas das outras.

Também descobrimos o princípio da proximidade anatômica que governa as relações entre os substratos cerebrais de nossos processos mentais conscientes e inconscientes. Esse princípio permitiu que nos libertássemos daquilo que chamávamos de visões “tópicas” da consciência, visões que foram declinadas de Jackson a Milner e que postulam a existência de uma relativa vedação entre setores do sistema nervoso, cuja atividade sustentaria exclusivamente nosso pensamento consciente, e outros setores abandonados às cogitações inconscientes. Existem, provavelmente, setores anatômicos que nunca participam do nosso conteúdo consciente, mas o resultado fundamental reside no fato de que não existe nenhuma região cerebral cuja atividade seja exclusiva e necessariamente reservada aos pensamentos conscientes. A grande proximidade, e até mesmo a identidade dos circuitos cerebrais implicados na elaboração nervosa de certas representações conscientes e inconscientes é, provavelmente, a explicação da ausência de diferenças notáveis entre a riqueza de seus respectivos conteúdos. Quando elaboramos inconscientemente uma representação semântica da quantidade numérica de um número, ou uma representação visual abstrata de uma palavra, utilizamos os mesmos circuitos cerebrais que estão em uso quando percebemos conscientemente esse número ou essa palavra. Uma das consequências mais importantes dessa proximidade cerebral diz respeito à natureza das relações que nossa vida mental consciente e nossos processos inconscientes mantêm entre si. Até apenas dez anos atrás, a concepção teórica dominante considerava que os processos inconscientes eram necessariamente incontroláveis, independentes de qualquer influência consciente, e que evoluíam numa espécie de anestesia mental sem nenhuma força consciente. Aceitava-se, é claro, que esses processos inconscientes pudessem influenciar nossos processos conscientes, mas, por outro lado, eram concebidos como uma horda selvagem e incontrolável. Dez anos e algumas experiências depois, esse último reduto de resistência da herança da teoria reflexa foi pelos ares. Ainda existem, é claro, no interior do inventário heterogêneo desses processos inconscientes, alguns exemplares que respondem ao critério do automatismo psicológico tradicional, mas o que descobrimos é que existe uma camada de processos inconscientes que é extremamente sensível ao que chamamos de postura consciente do indivíduo, isto é, aquilo em que ele pensa, aquilo que ele espera, a estratégia que ele usa em determinado momento… Algumas ilustrações neurológicas e psicológicas nos revelaram assim como um indivíduo não para de moldar, sem se dar conta, a natureza de suas próprias representações mentais inconscientes, de acordo com seu “querer” consciente. Ou seja, um inconsciente maleável e sensível às modificações dinâmicas da consciência do indivíduo. Embora essa terceira propriedade tenha essencialmente sido objeto até o momento de estudos de psicologia experimental, não seria arriscado prever que essa camada de processos inconscientes sensíveis às influências conscientes contém os processos mais abstratos que repousam na atividade do neocórtex. Assim, uma outra consequência do princípio de “vizinhança cerebral” está na existência de trocas ricas entre os processos conscientes e os processos inconscientes. Podemos nos arriscar a considerar que certos saberes orientais, ou certas práticas de meditação, de ioga ou de concentração intensa repousariam sobre essa propriedade: saber que possuímos a capacidade de modificar uma parte daquilo que nos escapa, sem nunca precisar conhecer essa parte.

A concepção do inconsciente que nos é oferecida é, portanto, a de uma multiplicidade de processos mentais inconscientes que coexistem e que se distinguem uns dos outros, tanto por sua correlação cerebral quanto por sua complexidade representacional. Essas diferentes formas de processos mentais inconscientes não parecem compartilhar coisa alguma a não ser o critério negativo que utilizamos para reagrupá-los: eles são inconscientes, isto é, não são narráveis pelo indivíduo que os abriga. Nesse sentido, é incorreto utilizar o singular para qualificá-los sob o termo genérico de “inconsciente”, já que são, na verdade, uma população variada e multiforme de seres independentes. Por comodidade, continuaremos no entanto a reuni-los nesse vocábulo enganador de inconsciente cognitivo, no singular.

Limites do inconsciente cognitivo

Essas três propriedades principais que ilustram a riqueza da vida mental inconsciente devem ser confrontadas com os limites desses fenômenos: essas representações inconscientes plurais não são, sob nenhum aspecto, comparáveis a nossos pensamentos conscientes. Existem propriedades que parecem estar exclusivamente ligadas às nossas representações mentais conscientes. A capacidade de conservar ativamente uma representação durante um tempo virtualmente ilimitado precisa de um modo de elaboração consciente. O conjunto das situações de cognição inconsciente revela o caráter muito efêmero das representações mentais inconscientes que desaparecem em alguns centésimos de milésimos de segundos. A segunda grande limitação está ligada ao que chamamos de dinâmica do controle estratégico: a adoção de uma nova estratégia de elaboração da informação, a invenção de um novo modo de elaboração e a modificação do nível de controle executivo exigem que tenhamos consciência do parâmetro que justifica essa mudança. Enfim, o nascimento de um comportamento intencional espontâneo parece necessitar de uma elaboração consciente.

Aqui, vou ilustrar apenas o limite temporal de nossas representações mentais inconscientes, por meio de uma experiência realizada em 1960 pelo psicólogo George Sperling. Numa tela negra surge repentinamente um quadro constituído de 12 letras organizadas em três fileiras de quatro. Uma fração de segundo depois, esse quadro de letras já desapareceu, e a tela voltou a ficar negra. Se pedíssemos que descrevessem suas impressões subjetivas numa situação como essa, vocês afirmariam sem pestanejar que viram um quadro piscar, rapidamente, nessa tela, e que esse quadro parecia conter letras. Poderiam até citar algumas sem fazer esforço: “um A no alto, à direita, um x na segunda linha…”. Mas, se quiséssemos saber o que havia exatamente em cada uma das casas, vocês descobririam não ser capazes de dizer a totalidade das letras existentes no quadro. Se vocês não tinham consciência da posição e do conteúdo de cada uma das casas, de que exatamente teriam tido consciência, diante desse efêmero quadro de letras? Num primeiro momento, Sperling pediu a alguns indivíduos que dissessem todas as letras que haviam percebido. Em média, 5 das 12 inicialmente apresentadas foram citadas: menos da metade do total das letras. Esse primeiro resultado nos informa sobre o número máximo de objetos que podemos perceber conscientemente num simples piscar de olhos. As letras que não foram citadas pelos indivíduos simplesmente não foram percebidas conscientemente. Sperling se perguntou então qual havia sido o destino psicológico das outras letras, aquelas que os indivíduos não puderam citar conscientemente. Essas letras não citadas teriam sido representadas inconscientemente na mente dos indivíduos, ou simplesmente não foram representadas? Para responder a essa pergunta, Sperling imaginou uma variante sutil da primeira experiência. Apresentou novamente um quadro de letras a seus indivíduos. Desta vez, porém, em vez de pedir o conteúdo de sua consciência perceptiva, submeteu-os a “perguntas surpresa”. Imediatamente após o desaparecimento do quadro, Sperling produzia um som cujo timbre era agudo, intermediário ou grave. De acordo com o som tocado, os indivíduos deviam dizer as letras que haviam percebido na linha superior, mediana ou inferior.

Baseado nos resultados da primeira experiência, Sperling podia fazer o seguinte cálculo: primeiro, os indivíduos citariam espontaneamente menos da metade das 12 letras do quadro; segundo, as respostas seriam igualmente distribuídas pelas três fileiras de letras; terceiro, os indivíduos não poderiam saber qual seria o som emitido.

Logicamente, poderíamos esperar então que o número de letras citadas durante as “perguntas surpresa” acompanhadas do som fosse inferior à metade do número de letras de uma fileira, isto é, inferior a dois.

Contrariamente a qualquer expectativa, os indivíduos se mostraram, no entanto, capazes de responder quase perfeitamente a cada uma das perguntas associadas aos sons. Que o som tivesse sido agudo, intermediário, ou grave, os indivíduos citavam sorrindo todas as letras da fileira! No entanto, era impossível trapacear, colar ou receber uma dica com antecedência sobre quais fileiras recairiam as perguntas!

Esse resultado com ares de paradoxo psicológico nos mostra, na realidade, uma propriedade fundamental de nosso funcionamento mental. Quando o quadro rapidamente apresentado desaparece, nossa mente ainda conserva representações inconscientes de cada letra mostrada. Na verdade, os resultados das duas experiências podem ser resumidos da seguinte maneira: só podemos tomar consciência de um número limitado (cerca de cinco) das 12 letras do quadro. Mas temos a capacidade de escolher quais delas serão as felizes eleitas! Essa escolha diz respeito a estímulos que não estão mais diante de nós, pois a tela é uniformemente negra. Essa seleção tem então necessariamente a ver com as representações mentais inconscientes das letras. Uma vez desaparecida, a totalidade do quadro é, portanto, inconscientemente codificada na nossa mente. Como explicar então a limitação da nossa capacidade de ter consciência, se as letras do quadro estão disponíveis de forma inconsciente? Só podemos chegar a uma única conclusão lógica: essas representações mentais inconscientes são efêmeras. Enquanto tomamos consciência de uma, depois da outra, e assim por diante, até a quinta, as representações inconscientes das outras letras simplesmente desapareceram!

A fim de confirmar que se tratava efetivamente de uma efemeridade das representações mentais inconscientes do quadro, Sperling variou o intervalo entre o desaparecimento do quadro e a reprodução do som. Quando o quadro desaparecia, Sperling deixava passar um certo tempo antes de especificar qual das três fileiras de letras deveria ser citada. Os indivíduos não podiam portanto adivinhar que letras seriam citadas antes que Sperling o indicasse com o som. Nessa variante experimental, Sperling observou que quanto mais o tempo passava, mais o desempenho dos indivíduos diminuía: quanto mais o intervalo aumentava, menos os indivíduos conseguiam citar o número total de letras contidas na fileira pedida. Quando o intervalo passava de meio segundo, os indivíduos só podiam citar uma letra ou duas letras por fileira.

De acordo com o pequeno cálculo que fizemos acima, isso significa que, nessa situação, os indivíduos tomaram consciência espontaneamente de cinco letras repartidas pelo quadro sem poder utilizar o som para orientar sua atenção de maneira eficaz. Ou seja, basta apenas meio segundo depois do desaparecimento do quadro para que as representações mentais inconscientes das letras ainda não citadas tenham desaparecido

completamente da nossa mente. Várias repetições e variantes dessas experiências permitiram criar um modelo matemático dessa degradação temporal da relação consciente sob a forma de um decréscimo exponencial.

Vamos resumir: na experiência de Sperling, as representações inconscientes de cada uma das letras do quadro são potencialmente acessíveis imediatamente após o seu desaparecimento. Algumas serão conscientemente apreendidas e citadas pelo indivíduo, enquanto outras irão per-dendo rapidamente a qualidade e desaparecerão em alguns segundos.

Parafraseando Jacques Lacan, cujo gosto pela matemática e pela geometria era bem conhecido, podemos então afirmar, graças a George Sperling, que o inconsciente é estruturado, se não como uma linguagem, pelo menos como uma exponencial decrescente!

Inversamente, podemos observar que as letras que tiverem sido conscientemente citadas poderão permanecer na memória ativa de maneira ilimitada durante várias horas, dias, como assim o indivíduo o desejar! Isso também não é desprezível: quando estamos conscientes de uma informação, sua representação mental está livre das contingências temporais, e seu destino não segue mais as leis inexoráveis do decréscimo exponencial! A longo prazo, a memorização na memória chamada de episódica, isto é, a elaboração das lembranças de algumas de nossas experiências conscientes, é uma faculdade que está bem evidentemente reservada apenas às nossas representações mentais conscientes. Não nos lembramos nunca de uma coisa da qual não tenhamos tido antes a experiência consciente!

O maravilhoso resultado experimental de Sperling não diz respeito apenas, evidentemente, aos quadros de letras, mas ao conjunto de processos perceptivos inconscientes visuais ou oriundos de outras modalidades sensoriais, e, de modo mais geral, esse resultado parece governar todas as formas de representações cognitivas inconscientes conhecidas, sejam

elas perceptivas ou não.

RELEITURA DO CONCEITO DE INCONSCIENTE FREUDIANO

Quando relemos os escritos de Freud sobre o inconsciente, considerando a evolução particular de seu pensamento (por exemplo por meio dos dois tópicos), é possível destacar os pontos de convergência mas também os focos de divergência, até mesmo de oposição radical, entre o sistema inconsciente, por exemplo, e o conjunto dos processos cognitivos inconscientes objetivados pelas neurociências contemporâneas.

O ponto de partida da concepção psicanalítica do inconsciente em Freud foi de ordem descritiva. Tudo que acontece na minha mente, mas que escapa à minha consciência, no momento presente em que me exprimo, constitui meu inconsciente. De certo modo, Freud considerava então que o objetivo principal do trabalho analítico consistia em ajudar o indivíduo analisado (o analisando) a ter consciência das representações mentais inconscientes, geralmente de forte conteúdo emocional, que têm um papel importante no seu comportamento e na sua personalidade. Seguro desse primeiro inconsciente puramente descritivo, Freud sentiu rapidamente a necessidade de avançar sua teoria, introduzindo uma distinção no próprio interior daquilo que respondia a essa primeira definição muito geral da noção de inconsciente. Entre os processos mentais inconscientes, Freud opôs aqueles que podem chegar ao nosso conteúdo consciente, mas que não ficam permanentemente ali (o pré-consciente), aos que estão ativamente afastados dali por um mecanismo inconsciente de recalque (refoulement) e que correspondem a um espaço psíquico distinto da consciência. Apenas esses dois últimos foram conservados nessa segunda definição de inconsciente que surgiu no enunciado da primeira concepção tópica de Freud. Tratava-se de uma reviravolta teórica importante, pois ele enunciava, pela primeira vez, a ideia de três sistemas psíquicos diferentes que mantêm relações dinâmicas e complexas. De um lado, um duplo sistema consciente-pré-consciente (Cs-Pcs) e, de outro, o sistema inconsciente (Ics) propriamente dito que é, por natureza, radicalmente diferente dos outros dois. De passagem, assinalemos que Freud havia explicitamente se questionado sobre a significação neurocientífica desses três sistemas: seria possível encontrar uma correspondência entre essas áreas mentais e regiões anatômicas cerebrais? Ele foi evoluindo nas suas respostas a essa pergunta, preciosa para nós, de uma maneira muito coerente, ao longo da sua obra. No devido tempo, usaremos a evolução das suas ideias a esse respeito. A introdução de uma dimensão tópica no aparelho psíquico teve consequências quanto ao objetivo do trabalho analítico. A partir daí, não era mais possível tornar consciente ou pré-consciente o território inconsciente, pois este último não é considerado uma qualidade das representações, mas um estado fundamental particular que difere daquele que é próprio da consciência. O trabalho analítico se orientava então para o estudo da circulação de certas representações mentais de uma região física para outra e, principalmente, para um trabalho da consciência do indivíduo que tenta perceber e inferir certos elementos importantes dessa organização mental oculta. Essa concepção tópica do inconsciente levou então, explicitamente, a enterrar a ideia de que se possa tornar qualquer parte do inconsciente acessível à consciência. Freud se perguntou, aliás com frequência, sobre o que acontece a uma representação inconsciente quando ela se torna pré-consciente ou consciente: essa representação seria duplicada com um exemplar original e bruto que permanece na região psíquica do inconsciente, e com um segundo exemplar de qualidade diferente existente entre os espécimes do sistema Pcs-Cs? Ou será que devemos considerar que só existe, o tempo todo, uma única representação, cujo estatuto é modificado qualitativamente e que “pula”, desse modo, de um lugar para o outro? Podemos ainda consultar as cogitações de Freud sobre isso. Foi por estar às voltas, principalmente, com essas dificuldades conceptuais oriundas do estudo da dinâmica psíquica das representações mentais de um sistema para o outro que Freud modificou, outra vez, profundamente, em 1922-1923, sua teoria do aparelho psíquico, conservando a ideia central dos três tópicos, mas modificando completamente seu conteúdo. Em vez de atribuir um lugar psíquico ao Inconsciente, um outro ao Pcs e um outro, finalmente, ao sistema Cs, Freud propôs uma organização “perpendicular” mais complexa: o primeiro lugar psíquico seria o do ego, o segundo, do id, e o terceiro, do superego. A novidade residia no fato de que o próprio ego tem conteúdos conscientes ou pré-conscientes, mas também todo um conjunto de representações mentais inconscientes previamente categorizadas no sistema Inconsciente. Esse segundo tópico deu lugar a numerosas interrogações e discussões, em Freud, quanto ao conteúdo exato de cada um desses três lugares, principalmente durante o desenvolvimento da criança e nos doentes neuróticos ou psicóticos.

Munidos desse mapa de navegação elementar, é chegado o momento de estabelecermos o retrato falado do inconsciente, ou melhor, dos inconscientes de Freud. As descrições freudianas do inconsciente podem ser classificadas em três categorias, de acordo com o grau de coerência com aquelas que são apresentadas pelas neurociências da cognição. Proponho, então, que examinemos, sucessivamente, os pontos de possível convergência entre Freud e o inconsciente cognitivo, em seguida os pontos de divergência inquietante e, finalmente, aqueles que correspondem a uma oposição radical entre essas duas concepções teóricas.

Várias ideias importantes parecem comuns a essas duas concepções teóricas. A riqueza do inconsciente, a condição originariamente inconsciente de cada representação mental, o papel da atenção na conscientização e, finalmente, a divisão do espaço inconsciente em várias categorias qualitativamente distintas nos pareceram elementos de aproximação indiscutíveis. Entretanto, para cada um desses argumentos “consensuais”, um exame atento e rigoroso nos trouxe várias dúvidas quando à solidez desses pontos de passagem entre os conceitos de inconsciente freudiano e inconsciente neurocognitivo. Ao argumento da reconhecida riqueza do inconsciente veio se associar uma possível discordância sobre os limites dessa riqueza: nos limites claramente enunciados pela psicologia cognitiva, o discurso freudiano nos pareceu menos categórico e portador de várias ideias heterodoxas que seriam pontos de ruptura imediata com os projetos de aproximação. Quando Freud formula a ideia da constituição originariamente inconsciente de toda representação mental, ele chama a atenção para um mecanismo de recalque (refoulement) inconsciente que nos pareceu ser ainda uma discordância importante entre os dois discursos estudados. Se o reconhecimento comum do papel da atenção no mecanismo da conscientização foi para nós uma surpresa inesperada, rica em numerosos prolongamentos, sua utilização por Freud para associá-la à função da linguagem fez surgir uma nova diferença importante. Enfim, a descrição de diferentes níveis de inconscientes através da sutil diferença estabelecida por Freud entre sistema pré-consciente e sistema inconsciente explica um fenômeno fundamental. Mas a explicação teórica usada para descrevê-lo está no outro extremo daquela que é proposta pelas neurociências. A importância atribuída por Freud ao conceito hipotético de recalque (refoulement), imaginado como uma instância inconsciente de controle, vem acabar com essa aproximação possível. Resumindo, esses elementos de “convergência” em torno do conceito de inconsciente permanecem limitados! É de fato curioso observar que todas as vezes que descobrimos um elemento de convergência, ele só se referia a uma “mínima porção” do discurso freudiano. A riqueza própria do discurso freudiano não é a definição do pré-consciente, nem a do papel da atenção, ou a proclamação da riqueza do inconsciente. Como logo veremos, essas diferentes ideias brilhantemente explicitadas por Freud não são, essencialmente, a coisa mais importante do seu pensamento, mas já aparecem de maneira explícita na literatura psicológica e neurológica dos séculos XVIII e XIX. As criações científicas próprias de Freud, em termos de inconsciente, são o conceito de recalque (refoulement), a definição tópica do Inconsciente e o conteúdo psicodinâmico das representações mentais que ele possui. Para cada um dos elementos de convergência estudados, tínhamos sempre dificuldades toda vez que aparecia uma dessas ideias que se encontram no cerne do pensamento freudiano.

Quando buscamos compreender o que ocupa o sistema Inconsciente postulado por Freud, a própria ideia da possibilidade de uma troca entre o discurso neurocientífico parece se dissipar brutalmente. Basta consultar as múltiplas formulações unívocas do conteúdo do sistema Inconsciente em Freud para ficar convencido disso. No “Homem dos ratos”, por exemplo, Freud escreve que o inconsciente é o “infantil recalcado”. Esse conteúdo do sistema Inconsciente é afirmado por Freud em várias ocasiões. Em “Uma dificuldade da psicanálise”, texto publicado em 1917, Freud povoa o inconsciente exclusivamente de conteúdos pulsionais sexuais. Os conceitos que encontramos ali parecem estar situados a anos-luz dos protótipos das representações mentais com as quais lidamos até aqui em pacientes neurológicos ou em indivíduos sadios que participaram dessas diversas experiências de psicologia cognitiva e de imagens cerebrais funcionais. De onde Freud tirou essa relação exclusiva do sistema Inconsciente com a primeira infância do indivíduo? Por que a dimensão sexual das representações mentais constitui, repentinamente, um atributo primordial dos objetos do sistema Inconsciente? O tom levemente ingênuo das nossas perguntas não é leviano. Evidentemente, sabemos que as construções de Freud derivam essencialmente de um rico material clínico psicopatológico no qual a dimensão afetiva das representações mentais tinha um papel fundamental. A leitura e o tratamento clínico de pacientes neuróticos, fóbicos, histéricos ou obsessivos colocam necessariamente o clínico diante de questões psicoafetivas e emocionais. Entretanto, o que questionamos aqui não é a natureza do material utilizado por Freud, mas a orientação unívoca de sua construção teórica. Desse modo, o sistema Inconsciente conteria apenas material recalcado, vestígios de pulsões sexuais da primeira infância do indivíduo! Dito isto, o que deveríamos enterrar não é necessariamente a validade e a pertinência do conteúdo das teorias freudianas, mas a possibilidade de confrontá-las com as nossas teorias neurocientíficas da consciência e do inconsciente.

A segunda grande divergência entre o inconsciente freudiano e o inconsciente cognitivista diz respeito à questão da linguagem. Em múltiplas ocasiões, Freud insiste no papel fundamental da linguagem no mecanismo da conscientização, afirmando que a representação consciente compreende, ao mesmo tempo, a representação de coisa associada à representação de palavra aferente, enquanto a representação inconsciente é a representação só de coisa. O papel atribuído à linguagem por Freud é bastante problemático por duas razões principais. Primeiro, esse aspecto do pensamento de Freud sugere que ele não concebe a ideia de representações inconscientes de palavras, mesmo que aquilo que é visado por essa expressão permaneça bem enigmático. A representação de palavra parece ser, em Freud, necessariamente consciente, ou pré-consciente. Entretanto, tivemos a ocasião de descrever várias ilustrações de ativações inconscientes de representações mentais verbais em níveis tão variáveis quanto a forma visual abstrata de uma palavra, sua morfologia, sua fonologia ou até mesmo seu conteúdo semântico. Essas ativações verbais inconscientes não se distinguem, na nossa opinião, dos outros conteúdos representados. Não existe condição especifica para as representações de palavras, em comparação com todas as outras categorias de objetos mentais representados, conscientemente ou não. É claro que não estamos questionando o importante papel da linguagem, principalmente da linguagem interior, na verbalização de nossos conteúdos conscientes, por meio das relações que estabelecemos para nós ou para os outros. No entanto, e esse é o segundo ponto problemático da condição das representações mentais em Freud, existe, hoje em dia, bastante evidência clínica e experimental para afirmar que um conteúdo mental consciente não é necessariamente verbal. Ou seja, contrariamente à posição aparente de Freud, um pensamento pode ser consciente, isto é, pode se relacionar a ele mesmo ou a outros, sem estar associado a representações de palavras.

Até agora, o estudo do inconsciente freudiano através do prisma de nossos conhecimentos neurocientíficos contemporâneos nos levou a destacar, na obra de Freud, algumas intuições profundas relativas aos fenômenos mentais inconscientes, assim como numerosos pontos de divergência que, quase sempre, dizem respeito à interpretação teórica desses fenômenos, interpretações que são quase sistematicamente desautorizadas pelas neurociências da cognição. É surpreendente constatar o caráter visionário dessas intuições que vão esperar às vezes mais de um século o aparecimento de novos paradigmas científicos – como este trazido pelas ciências cognitivas ao introduzir a teoria da informação para descrever as operações mentais –, e novas tecnologias, à frente das quais está o conjunto das imagens cerebrais funcionais, antes de serem reformuladas e redescobertas pelas neurociências. Até agora, portanto, os fenômenos mentais inconscientes descritos por Freud nos pareciam relativamente coerentes com a descrição feita pelas neurociências, e só as interpretações teóricas pareciam introduzir uma distância abissal das nossas teorias contemporâneas. Existem, no entanto, três propriedades do inconsciente freudiano que estão em franca e radical contradição com a nossa concepção da vida mental. Cada uma dessas três propriedades representa um papel fundamental no edifício freudiano, e sua reunião constitui de certo modo o “cerne” da definição freudiana do inconsciente.

No interior desse “cerne do inconsciente freudiano” o conceito de recalque (refoulement) se distingue tanto por sua originalidade quanto por sua importância determinante, o que faz dele a verdadeira “pedra angular” das diferentes teorias freudianas. O papel mais importante que atribuímos ao recalque foi, no seu tempo, reconhecido pelo próprio Freud, ao longo da sua obra. Em um texto clássico redigido em 1914 como um manifesto da história oficial do nascimento da psicanálise, Freud escreve: “O recalque (refoulement) é, atualmente, o alicerce sobre o qual repousa o edifício da psicanálise” (“Uma contribuição à história do movimento psicanalítico”). Já fizemos referência, em várias ocasiões, a esse conceito sem nos aventurarmos por suas entranhas. O que é então o recalque (refoulement) para Freud? A ideia geral do recalque é a de um processo psicológico que lutaria ativamente contra a erupção, no interior da consciência do indivíduo, de certas representações mentais desagradáveis. Com seu talento para a metáfora, Freud colocou em cena esse processo utilizando a imagem de um personagem incomodativo retirado por guardas da sala que representa o espaço consciente do indivíduo. Já em 1909, Freud usa essa metáfora por ocasião de uma conferência feita em Worcester:

Ilustrarei o processo do recalque e sua relação necessária com a resistência através de uma comparação grosseira. Suponham que na sala de conferência, na minha plateia calma e atenta, se encontre, no entanto, um indivíduo que se comporta de maneira a me perturbar e que me atrapalha com risos inconvenientes, conversas, ou batendo com os pés. Direi que não é possível continuar dessa maneira; nesse momento, alguns dos presentes, fisicamente mais fortes, irão se levantar e, depois de uma breve luta, colocarão o personagem para fora. Ele será “excluído” (refoulé) e poderei continuar minha conferência. Mas para que o fato não se repita, caso o excluído queira voltar para a sala, as pessoas que me ajudaram irão colocar as cadeiras de encontro à porta e formar assim uma espécie de “resistência”. Se transportamos agora para o plano psíquico os acontecimentos de nosso exemplo, se transformarmos a sala de conferência no consciente e o vestíbulo no inconsciente, teremos uma boa imagem do recalque (Freud).

Freud introduz assim, com seus “guardas da paz mental”, a ideia de um processo de controle dotado da capacidade de inibir ou excluir certas representações mentais com base em decisões estratégicas. Todos os dias, temos a experiência de fenômenos de rejeição ativa, consciente e deliberada, de certas ideias que nos incomodam, que expulsamos da nossa consciência, ou que tentamos esconder de nós mesmos. Hoje, já começamos a dispor de um grande conjunto de dados experimentais e clínicos que permitem desenhar modelos teóricos sofisticados e realistas desse fenômeno geral do controle mental. Por que então o conceito de recalque seria um tema de oposição radical com as neurociências cognitivas? Em razão de um ponto fundamental: os mecanismos de controle cognitivo, como estes que acabamos de descrever, são o apanágio exclusivo do funcionamento consciente. As belas experiências de Merikle ou de Kunde nos mostraram como um estímulo não percebido conscientemente não poderia estar na origem de uma estratégia de controle. Jacoby foi o primeiro a ter a ideia de que, quando nos são apresentadas palavras escritas e que devemos explicitamente nos recusar a utilizá-las para responder a determinadas perguntas do pesquisador, conseguimos, sem dificuldade, “excluí-las” ativamente apenas se tivermos consciência dessas palavras. Quando essas palavras nos são inconscientemente apresentadas, de maneira subliminar, ou utilizando outras técnicas mais recentes como o attentional blink, não podemos evitar usá-las. Ou seja, o desencadeamento estratégico desses mecanismos de controle cognitivo que governam os processos de rejeição ativa de uma representação é necessária e exclusivamente consciente.

O problema com o conceito de recalque freudiano é que ele é explicitamente definido como um processo inconsciente que atuaria sobre representações inconscientes. Se as neurociências contemporâneas conseguem estudar os mecanismos de defesa conscientes, a ideia de um recalque, no sentido freudiano, parece em total contradição com os dados experimentais e os modelos teóricos mais pertinentes. Os alicerces do edifício ameaçam ceder quando consideramos o inconsciente freudiano uma construção psicológica científica.

A segunda das três propriedades que me parecem definitivamente condenar qualquer tentativa de encontrar, na obra de Freud, uma psicologia cientifica do inconsciente, diz respeito à duração de vida de nossas representações mentais inconscientes.

A terceira e última das três propriedades do inconsciente freudiano que nos parecem ser um problema diz respeito à causalidade do inconsciente, isto é, aos princípios que determinam e governam o curso dessa vida mental inconsciente. Por que essa representação mental seria confrontada com as instâncias de recalque? O que guiaria a evolução desse processo de censura inconsciente? Freud nunca hesita em responder a essas perguntas, atribuindo a todos os elementos do inconsciente intenções, desejos e afetos. Se essa representação é confrontada com o recalque é porque ela “deseja penetrar na consciência”, se ela toma uma ou outra forma disfarçada é porque ela tenta se esconder e prosseguir mascarada, para não ser reconhecida pelo “guarda”, que também é, lembremos, totalmente inconsciente! Da mesma maneira que Freud atribui a nossas representações mentais inconscientes a capacidade de pensar estrategicamente e de se conservar por muito tempo numa forma ativa, ele também postula, muito seriamente, a existência de verdadeiras intenções e desejos inconscientes. Entretanto, aí também nos deparamos com aquilo que nos parece hoje, de um ponto de vista científico, uma incrível confusão entre a própria essência da consciência, de um lado, e, de outro, a das nossas representações mentais.

O INCONSCIENTE FREUDIANO É POR DEMAIS CONSCIENTE

Ao final dessa leitura comparada do inconsciente freudiano com aquele que hoje temos a possibilidade de observar por meio das neurociências da cognição, o que podemos constatar é, ao mesmo tempo, radical e original. O inconsciente freudiano é bastante incompatível com o inconsciente cognitivo. Se existem pontos de convergência, basta um mergulho, mesmo rápido, no seu conteúdo para trazer à tona profundas divergências sobre as explicações teóricas dos fenômenos inconscientes em questão. Além dessas primeiras divergências, o próprio cerne da psicanálise freudiana do inconsciente, isto é, o conceito de recalque (refoulement) e certas propriedades das representações mentais inconscientes postuladas por Freud estão em total contradição com aquilo que conhecemos hoje sobre o funcionamento mental e sua psicologia. Entretanto, o que constitui para mim um problema na concepção do inconsciente de Freud não tem muito a ver com os argumentos que são tradicionalmente apresentados pelos seus adversários. Onde vários críticos puseram em dúvida a extrema riqueza da concepção freudiana da vida mental inconsciente, nós reconhecemos uma profunda intuição de Freud. Essa intuição teve que esperar mais de um século de esforços científicos antes de encontrar sua demonstração definitiva, através do destaque de processos mentais inconscientes que culminaram nos níveis mais abstratos de representação mental. O que alguns desprezavam, como sua metáfora da dinâmica incessante entre os aspectos conscientes e inconscientes de nossa vida mental, nós podemos aplaudir, à luz do que sabemos hoje sobre a grande proximidade psicológica e cerebral de nossos pensamentos conscientes e inconscientes. O que definitivamente me incomoda no inconsciente freudiano não é sua riqueza, mas sua estranha e suspeita semelhança com a nossa consciência! Na sua descrição do inconsciente, Freud não hesita em atribuir ao inconsciente uma coleção de atributos que nos parecem próprios da consciência: modo de pensamento estratégico, tempo de duração das representações mentais inconscientes, liberado das contingências da transitoriedade temporal, característica intencional e espontânea. Esses atributos não são pequenos pontos que podemos tirar da obra de Freud sem desnaturá-la. Pelo contrário, constatamos que cada um deles ocupa um lugar central no próprio interior do conceito de inconsciente

freudiano. Em seu magnífico esforço de descoberta do inconsciente, me parece que Freud fracassou na tentativa de ultrapassar a consciência, ultrapassagem, porém, da qual ele foi o mais vigoroso dos apóstolos.

DESCARTES E HUSSERL EM SOCORRO DE SIGMUND

Como isolar a forma do discurso freudiano sobre o inconsciente do conteúdo de suas proposições? Uma solução consiste em fazer uso de um método filosófico genial descoberto por Descartes e reutilizado depois, de maneira extremamente aprofundada, por Husserl. É o método da redução fenomenológica (epoché) ou o “parêntese”. A fim de aplicarmos essa “redução” ao discurso freudiano sobre o inconsciente, é preciso começar livrando-o do seu conteúdo. Coloquemos entre parênteses todos os atributos que já exploramos. Deixemos de lado o recalque, a concepção tópica do inconsciente, seu conteúdo sexual infantil, sua natureza fantasmática originária, sua imortalidade psíquica… Esqueçamos, durante essa “redução”, todas as significações próprias da mensagem freudiana. Essa primeira etapa consiste, então, em colocar de lado todos os resultados reivindicados pela psicanálise freudiana, todas as suas proposições teóricas, todas as suas conceituações, seus tópicos, seu complexo de Édipo, passando por suas múltiplas formulações sobre as relações psicodinâmicas do Inconsciente, do id e do ego… O fato de fazer esse “parêntese” permite que não nos preocupemos diretamente com as condições de verdade desses resultados em cujo interior já identificamos contradições com a nossa conceituação do mental. A segunda etapa da “redução” consiste em fazer a seguinte pergunta: “O que resta da psicanálise quando esse parêntese foi feito?”. Se ainda restar alguma coisa da psicanálise freudiana do inconsciente nesse estágio do raciocínio, poderemos identificar essa “alguma coisa” como o fundamento não revogável de uma possível elaboração entre neurociências e psicanálise. Se não restar nada, esse trabalho estará definitivamente encerrado. Será que a psicanálise resiste a essa redução? Sem dúvida alguma que sim. O que poderemos então isolar pela “redução”, na psicanálise, uma vez que não consideramos mais o conjunto das teorizações freudianas? O que se oferece a nós, em sua verdade nua e crua, é a postura do psicanalista, sua postura de indivíduo consciente que interpreta o mental, que não para de procurar e construir significações e causalidades em tudo que provém da vida psíquica do seu paciente, dele mesmo e, mais amplamente, de todo indivíduo humano. Essa postura não é banal. Não é óbvia. Constituir um olhar psicológico, não sobre um discurso descritivo, que seria a base primeira e prévia de toda elaboração posterior, mas sobre um olhar primitivamente interpretativo, isto é, sobre um tipo de pensamento que considera que a realidade profunda da vida psíquica procede, necessariamente, da construção de uma significação para o indivíduo, isso não é comum. A singularidade desse olhar freudiano repousa inteiramente sobre esse processo de criação e no sentido de “ficcionalização” da existência psíquica. Onde a maioria, se não a totalidade, das outras abordagens psicológicas começa descrevendo o mental antes de começar a interpretá-lo à luz de um ou outro sistema conceitual, o discurso de Freud não deixa espaço para essa “primeira camada” descritiva. Freud aborda o mental interpretando-o diretamente. Quando Freud se interessa por um sonho, por exemplo, não é o conteúdo próprio ou “objetivo” do sonho que o interessa. Primitivamente, é a forma que o narrador do sonho dará ele próprio à sua experiência onírica que terá importância e constituirá o verdadeiro material de elaboração psíquica. O discurso de quem sonha em torno de seu sonho, isto é, a interpretação que ele já construiu, é isso que conta para Freud. Da mesma forma, quando se interessa pelas fantasias sexuais infantis de seus pacientes, ele não se importa com a realidade biográfica dos episódios narrados. Ele escreve, em 1916-1917:

Não conseguimos até hoje destacar uma diferença nas consequências, quando se trata da fantasia ou da realidade ligada a esses acontecimentos da infância […]. Essas fantasias possuem uma realidade psíquica que se opõe à realidade material, e aprendemos, pouco a pouco, a compreender que, no mundo da neurose, o que é determinante é a realidade psíquica.

Que se dane a realidade objetiva! Aos olhos de Freud, o que é determinante é aquilo que faz sentido para o indivíduo, e apenas isso. Os erros que identificamos na sua construção do conceito de inconsciente vêm desse princípio. Em vez de procurar descrever os fenômenos mentais inconscientes, como tinham começado a fazer os primeiros pesquisadores do século XIX, e como farão mais tarde os neurocientistas, Freud apreendeu diretamente esses fenômenos interpretando-os. Na maioria das passagens que citamos, Freud adota assim essa postura interpretativa que caracteriza a psicanálise. Seu distanciamento contínuo e progressivo do discurso científico me parece sintomático dessa postura. De certo modo, Freud foi, gradualmente, se liberando da questão da condição de verdade das proposições que ele manipulava, e acabou só atribuindo pertinência a esses processos interpretativos que lhe pareciam deter uma parte considerável da organização psíquica de seus pacientes e de seus congêneres. A única coisa que importa para ele é a realidade psíquica compreendida como essa interpretação consciente primitiva e essencial.

Desse modo, a meu ver, aquilo que constitui a única mas inestimável herança do pensamento freudiano, relativa ao inconsciente, é precisamente essa postura consciente interpretativa, não o conteúdo das suas interpretações, que me parecem errôneas. Essa postura, adotada pela primeira vez de maneira totalmente explícita por Sigmund Freud, constitui uma das descobertas científicas mais importantes das neurociências da mente. Indo assim ao encontro da sabedoria popular – aliás incorreta – que identifica Freud ao descobridor do “Inconsciente”, penso, de minha parte, que a grande descoberta de Freud, escondida sob esse vocábulo de “Inconsciente”, não é nada mais do que uma das propriedades fundamentais da… nossa vida consciente! Freud deve ser considerado o Cristóvão Colombo da vida mental e o descobridor de um imenso continente psíquico, o da interpretação consciente ficcional que, erroaneamente, ele chama de “inconsciente”. Esse continente é, a meu ver, uma das peças que estão faltando nas nossas teorias contemporâneas da consciência!

AS ELUCUBRAÇÕES DE UM HEMISFÉRIO DESCONECTADO

Apreciaremos toda a grandeza do gênio freudiano mergulhando, pela última vez, no universo da neuropsicologia clínica, a fim de descobrir aí a confirmação do papel vital que representa a interpretação na organização do nosso funcionamento mental consciente. A observação atenta de pacientes neurológicos permite ainda compreender princípios fundamentais do nosso psiquismo. Façamos uma viagem pelo pensamento, em 1977. Estamos num laboratório americano de psicologia no qual estão sentados o pesquisador Michael Gazzaniga e, diante dele, um paciente neurológico apresentando uma desconexão inter-hemisférica. Esse paciente apresentava uma epilepsia refratária aos tratamentos médicos disponíveis na época. Para diminuir a frequência e a intensidade das crises de epilepsia, esse paciente submeteu-se a uma intervenção neurocirúrgica durante a qual o corpo caloso, espesso feixe de fi bras brancas que liga nossos dois hemisférios, foi seccionado no seu comprimento. Depois de uma intervenção como essa, os dois hemisférios de um mesmo cérebro não são mais capazes de se comunicar e trocar informações entre si. Essa situação provoca sintomas raros mas bem conhecidos pelos neuropsicólogos clínicos: por exemplo, se este paciente fechasse os olhos e lhe déssemos um isqueiro na mão esquerda, ele conseguia pegar corretamente o isqueiro, acendê-lo, e tudo no comportamento de sua mão esquerda levaria a crer que o indivíduo sabia que segurava um isqueiro. No entanto, se perguntássemos o que ele estava segurando na mão esquerda, ele era absolutamente incapaz de responder corretamente! Esse sintoma de “anomia tátil esquerda” é, na verdade, uma das consequências diretas e obrigatórias da desconexão inter-hemisférica da qual esse paciente fora vítima. Quando ele segurava o isqueiro na mão esquerda com os olhos fechados, as únicas informações relativas a esse objeto eram as informações táteis enviadas por sua mão esquerda a seu hemisfério direito. O hemisfério direito desse paciente era perfeitamente capaz de identificar esse objeto, de reconhecê-lo e de realizar as sequências gestuais adaptadas para manipular o isqueiro. Esse hemisfério direito, aliás, manifestava uma consciência do isqueiro, mas, por outro lado, era incapaz de nomeá-lo. De fato, as capacidades linguísticas do hemisfério direito são extremamente limitadas, e, quando nos expressamos, são as conexões cerebrais da linguagem, enroscadas no nosso hemisfério esquerdo, que atuam, na maioria das pessoas. Ou seja, quando colocamos um isqueiro na mão esquerda de um indivíduo sadio que tem um corpo caloso não seccionado, assim que seu hemisfério direito recebe informações táteis, algumas dessas informações são transmitidas a seu hemisfério esquerdo. As representações mentais desse objeto podem igualmente circular de um hemisfério ao outro. Então, se pedirmos a um indivíduo sadio para dizer o nome desse objeto, seu hemisfério esquerdo pode responder sem dificuldade: “Isqueiro, é um isqueiro!”. Por outro lado, no paciente cujo corpo caloso foi seccionado, estudado por Gazzaniga, quando lhe faziam a mesma pergunta, só seu hemisfério esquerdo, desconectado do direito, respondia verbalmente. Visto que esse hemisfério esquerdo não recebera informações relativas ao isqueiro, o paciente não podia responder corretamente. Essa prova do isqueiro permitiu revelar assim que sob o crânio desse paciente que, à primeira vista, parecia ser um indivíduo único, exatamente como nós mesmos pensamos ser, escondiam-se dois hemisférios separados e portanto duas mentes disjuntas, mas que habitavam o mesmo corpo! Às vezes, um “paciente caloso” ou calotomizado – como dizem os neurologistas – apresenta assim dois comportamentos voluntários simultâneos e contraditórios: um paciente pode abrir a porta de um refrigerador com a mão direita para pegar uma garrafa de água fresca sob o impulso do seu hemisfério esquerdo, enquanto com a mão esquerda baterá violentamente a porta do refrigerador para fazer outra coisa, sob o comando de seu hemisfério direito, que também é dotado de uma vontade consciente! Gazzaniga elaborou em seguida uma experiência surpreendente. Pediu ao paciente para olhar uma tela situada à sua frente. De repente, sem aviso prévio, surge um verbo durante alguns décimos de segundo à esquerda da tela: “walk” (ande). Essa ordem verbal, apresentada no campo visual esquerdo do paciente, foi recebida apenas pelas regiões visuais de seu hemisfério direito. Esse hemisfério direito era capaz de compreender sem poder pronunciar essa ordem que cabia em uma palavra. Gazzaniga ficou em silêncio. O paciente se levantou e começou a andar em direção à porta da sala. Quando chegou na soleira da porta, Gazzaniga perguntou a ele, de repente, isto é, a seu hemisfério esquerdo que sabia falar mas ignorava aquilo que sabia e fazia o hemisfério direito: “Aonde você vai?”. Imediatamente, o paciente respondeu: “Vou até em casa pegar um suco de frutas”. O que nos revela essa experiência, repetida de várias maneiras com inúmeros pacientes calotomizados, desde 1977? Ela nos ensina que, quando o hemisfério esquerdo desse paciente se conscientizava de um comportamento que afetava seu corpo – aqui, o fato de andar até a porta –, ele logo elaborava uma interpretação consciente desse comportamento que permitia atribuir-lhe um significado. Em vez de responder a Gazzaniga: “Bom, eu estava saindo desta sala, mas não sei bem por quê, é estranho não é?”, o paciente dava sua própria resposta com uma força de convicção desconcertante. O paciente construía imediatamente uma interpretação do seu comportamento, exatamente no instante em que se conscientizava desse comportamento, mas sem perceber que essa interpretação era só uma qualquer. Nesses pacientes, cujo cérebro está dividido (split-brain), descobrimos então que seu hemisfério esquerdo dotado das faculdades de linguagem não para de elaborar conscientemente histórias que dão sentido ao real. Essa faculdade de criar uma história para o real significa considerar essas produções mentais conscientes autênticas obras de ficção! Em vez de considerar, num primeiro momento, os dados objetivos do seu próprio comportamento e depois discutir, racionalmente, diferentes hipóteses para explicá-lo, o paciente constrói, sem nenhum distanciamento, uma causa fictícia desse comportamento, e não abandona mais essa explicação, que para ele tem a força de uma crença! Vejam só, o paciente split-brain coloca então, debaixo dos nossos olhos, aquilo que tínhamos acabado de considerar sobre o inconsciente freudiano: a dimensão fictícia das nossas construções mentais conscientes! Do ponto de vista do próprio indivíduo, isto é, do ponto de vista de seu discurso consciente elaborado na primeira pessoa, as representações mentais que são manipuladas nada mais são do que construções fictícias às quais ele atribui uma condição de crença profunda. O paciente de Gazzaniga não se pergunta simplesmente por que estava saindo da sala, e também nem pensou em discutir uma ou outra hipótese, mas forjou uma interpretação causal na qual não podia deixar de acreditar firmemente. Aquilo que isolamos nesses pacientes, com a ajuda dessas pequenas experiências, não é nada mais do que um acesso privilegiado a certas regiões de sua “realidade psíquica”, para usar os termos de Freud. Essa realidade psíquica nos parece estar aqui completamente dissociada da realidade objetiva: o que faz verdadeiramente sentido para o paciente é uma construção mental fictícia. Essa ficção, que a realidade objetiva pode perfeitamente contradizer, é só uma construção mental com uma força de certa forma mais tangível e mais forte para a organização mental do paciente do que a realidade “experimental” da qual ele é, no entanto, o objeto. Sem dúvida alguma essas ficções são os verdadeiros habitantes do pensamento consciente desses pacientes. Inúmeros outros exemplos de neuropsicólogos confirmam esse resultado fundamental.

INTERPRETO, LOGO SOU!

Ao chegarmos a este ponto da nossa reflexão, vocês já devem ter adquirido os mecanismos do modo de pensar de todo neuropsicólogo em potencial. Vocês se perguntarão, com todo o direito, se aquilo que descobrimos nesses inúmeros pacientes de quadros clínicos tão diferentes e com lesões cerebrais tão variadas também se aplica ao mais comum dos mortais. Seríamos todos intérpretes conscientes que nada sabem a seu próprio respeito? Mal formulamos essa pergunta e não nos é difícil imaginar que cada minuto de nossa vida consciente se traduz em interpretações que não cessamos de elaborar. Estão esperando por alguém que se atrasa para o encontro? Imediatamente, várias histórias que permitem explicar as causas desse atraso são representadas no palco das suas consciências: o despertador não tocou, o carro enguiçou, um enorme engarrafamento, um acidente, um falecimento inesperado… Estão tentando imaginar de que será feito o amanhã? Adivinhar o que pensa de vocês determinada pessoa que conhecem?… Se prestarmos atenção ao espaço ocupado na nossa vida mental pelo componente interpretativo, a lista não para de aumentar, e logo vemos que ela alimenta, de maneira mais ou menos visível, cada um dos nossos pensamentos conscientes. O aspecto que nos diferencia dos pacientes neurológicos que acabamos de descrever não está então tanto nessa faculdade mental de interpretação consciente que temos em comum com eles, mas na capacidade de incorporar os outros dados do mundo real e utilizá-los para estar sempre corrigindo essas histórias mentais. Onde os doentes neurológicos fracassam, por diversas razões, em utilizar essas informações suplementares para revisar suas construções conscientes, nós conseguimos atualizar sem dificuldade nossas ficções para que elas possam adquirir melhor os contornos do real. É, portanto, mais difícil para nós imaginar o caráter ficcional dessas construções conscientes. Ou seja, às vezes, é difícil atualizar a parte de interpretação que está, acredito eu, sempre presente no interior de nossos pensamentos conscientes, quando a distância que os separa do real parece ínfima. Imaginemos que estejam vendo uma rosa num vaso sobre uma mesa. Vocês afirmarão estar “vendo uma rosa num vaso”, mas o que aprendemos com nossos pacientes neurológicos é que, mesmo numa afirmação aparentemente tão banal, neutra e “objetiva”, nossa palavra tem, na realidade, o valor de uma interpretação, à qual creditamos uma certa crença. Ao nos externar a existência dessas interpretações, quando elas estão totalmente desconectadas do real, os pacientes neurológicos nos revelam um segredo fundamental: nossa realidade mental consciente é, antes de tudo, um universo ficcional que construímos à luz da realidade objetiva, mas que preexiste a ela e não se resume nela. É fascinante quando nos debruçamos sobre as crenças que elaboramos na ausência de suporte de informação exterior e imediato. Quando cem pessoas neurologicamente sadias veem a rosa no vaso, cada uma delas relata ver conscientemente essa rosa, e esse relato consciente estará acompanhado de um valor de interpretação e de crença que será difícil evidenciar. Por outro lado, se interrogarmos cada uma delas sobre suas convicções religiosas, teremos um conjunto de crenças disparatadas e cheias de nuanças. No primeiro caso, os dados objetivos do mundo real, da maneira como se imprimem, de forma idêntica, nos cem cérebros normais considerados no nosso exemplo, limitarão as interpretações da percepção, e uma interpretação perceptiva consensual surgirá. No nosso segundo exemplo, quando a interpretação dada não está mais limitada por um grupo de dados tão rígidos, a riqueza do componente interpretativo surgirá com toda a sua força, e na sua liberdade relativa ao real. De certo modo, quando expomos nossas crenças religiosas, místicas, mas também várias outras crenças sociais e interpessoais, parecemos com aqueles pacientes neurológicos que expõem suas interpretações protegidos por regiões inteiras da realidade que eles não consideram. Nessas diferentes situações, elaboramos interpretações do universo que lhe tragam causalidade, acreditamos nessas interpretações, e a realidade exterior não nos envia informações decisivas que permitem validar ou invalidar essas interpretações. O que acontece então? Em vez de duvidar ou nuançar nossas opiniões, continuamos a atribuir uma crença, frequentemente forte, a essas interpretações que nada contradizem de modo irrevogável. É sintomático considerar que as trocas racionais sobre essas questões, ou as tentativas de resolução de conflitos interpessoais por meio de argumentos lógicos, quase sempre não têm efeito sobre a força de convicção das crenças consideradas.

As interpretações conscientes fictícias são portanto crenças extremamente fortes em todos os pacientes que acabo de evocar, mas também em cada um de nós. Sem exagero, todas essas descrições proclamam em alto e bom tom que a vida consciente repousa sobre esses processos de interpretação e crença. A máxima das nossas existências poderia ser: “Interpreto, logo sou!”. Uma vez formuladas, essas ficções alimentam o curso de nossos pensamentos e são utilizadas para guiar nossas decisões e para ajustar nossos comportamentos: enfim, essas crenças, que no entanto são fictícias, estão na origem dos efeitos, esses bem reais, que afetam o curso da existência desses doentes neurológicos e de cada um de nós. Essas interpretações ficcionais constituem, portanto, um aspecto importante da realidade psíquica, isto é, daquilo que representa efetivamente um papel causal na nossa vida mental. Ficções do real e realidades da consciência, assim se constituem essas interpretações mentais.

CONCLUSÃO

Nessa busca do inconsciente descrito hoje pelas neurociências, percorremos nosso caminho a fim de desmascarar a identidade do sistema Inconsciente de Freud, e formulamos a surpreendente hipótese de que este não era outro senão a consciência do indivíduo que interpreta sua própria vida mental e inconsciente, à luz das suas crenças conscientes. Por mais fictícias que sejam essas interpretações conscientes, elaboradas com convicção pelo indivíduo, elas nos parecem ser o coração da realidade psíquica do indivíduo e, desse modo, um “espaço vazio” da nossa teoria moderna da consciência. Essa reflexão nos levou, finalmente, a considerar o papel fundamental dessa camada de representações mentais conscientes, representações fictícias e autênticos suportes de crença, na organização psíquica de certos doentes e, mais do que isso, na de todos os indivíduos conscientes. Por trás desse “erro” de Freud, descobrimos assim a propriedade fundamental não do nosso inconsciente, mas da nossa consciência: nossa necessidade vital de inventar conscientemente ficções mentais para podermos existir. Desse modo, Freud nos abriu, talvez sem se dar conta, as portas das neurociências da arte da ficção, faculdade fundamental da nossa atividade mental consciente, arte da ficção que estamos apenas começando a explorar de maneira científica.

Tradução de Hortencia Lencastre

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