1994

O que está vivo e o que está morto na estética de Hegel

por Gerd Bornheim

Resumo

Existem ao menos duas tentativas de Hegel de encarar o  problema de situar o sensível na intimidade da obra de arte. A primeira está ligada à estrutura da própria obra de arte, composta de dois níveis; no plano inferior, o sensível e no superior, a Ideia. A segunda tentativa é uma espécie de relativização do elemento sensível. Em Hegel, a arte reside num meio-termo, entre a pura materialidade e o pensamento ideal. Ambas se afirmam a partir do pressuposto da inferioridade do mundo sensível.

É sempre a dicotomia de matéria e forma, com sua rígida hierarquia, que atravessa toda a estética hegeliana. Em Hegel, a arte reside num meio-termo, entre a pura materialidade e o pensamento ideal.

Reconheça-se, num primeiro momento, a inferioridade da arte. A inferioridade se estabelece por uma única razão: o modo deficiente de a arte se relacionar com o ideal, em razão de sua ligação ao elemento sensível. Assim, a verdade da obra de arte exige um processo de completação; mesmo que cega, ela busca o processo de sua própria completação. As asserções feitas aproximam-nos do tema proposto, o da morte da arte.

Em Hegel a arte pressupõe uma certa relação entre o particular e o universal. Tal intimidade rompeu-se, o nosso tempo entregou-se à cultura da reflexão; tornou-se para nós hoje “necessário prender-se a pontos de vista universais e regrar segundo eles o particular […]”.Esta distância excessiva entre o universal, que se impõe como a soberania da lei, e o particular, que se faz submisso e perde a sua vivacidade, leva a deslocar a arte das funções que outrora exercia. Ou seja, a arte já não consegue instituir a necessária conexão entre o universal e o particular que definia toda a grande arte do passado.

Tudo  ronda o tema proposto, o da morte da arte. É no penúltimo parágrafo da Estética que aparece a afirmação taxativa: “die Auflösung der Kunst überhaupt”. O que complica o asserto é esse überhaupt, a dissolução da arte em geral, como um todo.

A tese da morte da arte é totalmente verdadeira, desde que se acrescente que a sua verdade se restringe à arte do passado — de todo o passado, de modo radical. O que realmente autoriza Hegel a falar em morte da arte é o fato, já consumado, de que a arte passou a enveredar por caminhos totalmente outros que os previsíveis pela noção de imitação. O que Hegel faz não vai além do reconhecimento de um tipo de arte que chegou ao fim definitivo dela mesma.


A presença da estética durante os 2500 anos em que se desenvolveu o  pensamento metafísico é de uma pobreza verdadeiramente desoladora. Mesmo nos tempos modernos, quando a arte começa a manifestar maior autonomia e enseja não poucas polêmicas, os grandes filósofos passam descuidados pelos monumentos que poderiam suscitar a sua curiosidade intelectual: um breve ensaio de Hume sobre a tragédia, dois capítulos em Kant, algumas escassas observações de Leibniz, e é preciso garimpar entre os pequenos para encontrar algum material. E no entanto, a ópera, por exemplo, já se fazia vigorosa em diversas capitais europeias. No idealismo, a meditação sobre a arte adquire um destaque inusitado, com o alentado ensaio de Schelling e, principalmente, com as extensas reflexões de Hegel já no final de sua vida. Não deixa de ser ao menos curiosa a constatação de que a meditação metafísica debruça-se sobre o tema da arte COM uma intensidade toda especial apenas em seu momento maior de abertura, com Platão e suas acirradas polêmicas sobre o lugar da arte, suas diatribes contra o educador maior que foi Homero, mas sempre comedido em admitir a veemência de uma paixão maior; já no outro extremo, as alentadas pesquisas de Hegel, a revelar uma longa e assídua frequentação das artes, uma familiaridade transida de preferência e de paixões confessas.

Entretanto, não chega a configurar um paradoxo dizer-se que todo o empenho hegeliano termina constituindo, em seu próprio núcleo, uma antiestética radical, e isso por tratar-se, simplesmente, de um pensamento que em nenhum instante recua de seus propósitos idealistas. E, nessa linha, como ceder ao mundo das aparências sensíveis? Tais aparências, em si mesmas, configuram o reino menor destinado a desaparecer pelo processo de superação dialética. E é a partir deste ponto que se começa a ter acesso ao entendimento do tema da morte da arte. Faço a seguir algumas considerações sobre o sensível.

Sabe-se que o capítulo inaugural da Fenomenologia do Espírito, dedicado à consciência, inicia com uma análise do que Hegel chama de “certeza sensível”, ou seja, busca-se saber da gênese do próprio Espírito. Se o itinerário fenomenológico chega a seu termo ao alcançar o saber absoluto, através da superação da separação entre sujeito e objeto, a experiência do Absoluto já se faz presente no ponto de partida do itinerário, com a diferença de que essa experiência não se reconhece como tal, insciência essa que empresta caráter de necessidade ao processo. Assim, de certo modo, a fenomenologia parte de uma experiência que é anterior à dicotomia sujeito/objeto. Hegel pretende afastar-se da parcialidade de seus antecessores, de Fichte, que via no sujeito o ponto de partida, e de Schelling, que fazia tudo arrancar do inconsciente da natureza. E mais importante ainda é que, em sua análise inaugural, Hegel formula a sua primeira crítica à hegemonia kantiana da dicotomia: é o Absoluto que está no ponto de partida, e a experiência da separação surge apenas em um segundo momento. Sabe-se como os avanços do Espírito se realizam, já em seus inícios, através da conquista do universal, isto é, aquela “certeza” desentranha-se, segundo a instigante análise hegeliana, através das mais primevas manifestações dos universais: do isto, do aqui e do agora; substância, espaço e tempo delineiam o primeiro perfil da frequentação do elemento universal.

Acontece que, neste primeiro passo, tudo acontece como que embebido no meio sensível, o que quer dizer que toda a análise paga tributo ao sensível, sem o sensível o processo sequer poderia principiar. Mas, cumprida a sua missão, faz-se evidente que o que interessa a Hegel é a certeza, os caminhos que levam à cultura do universal. Cabe, então, perguntar: qual o destino reservado ao elemento sensível? O sensível é simplesmente deixado para trás, digamos que ele é esquecido, e acrescentemos que tal “esquecimento” está na gênese de toda filosofia idealista ocidental, a começar já pelo idealismo platônico. E a questão que se impõe é: pode o elemento sensível ser preterido de maneira aparentemente tão inadvertida? Não há de ser por acaso que a preocupação possivelmente mais importante do último Hegel girasse justamente em torno da estética, ou seja, que ele volte a defrontar-se com o sensível, disposto agora a levá-lo a sério. Quero dizer que a estética de nosso filósofo acoberta um drama maior, que é a própria legitimação do idealismo. Pois Hegel não consegue elidir um fato: a necessária e essencial vinculação da arte à esfera do sensível. E a alternativa termina verificando-se de fundamental significado: ou bem o idealismo resolve de vez a questão do sensível, ou então é a própria tese idealista que sai combalida precisamente em seu desiderato mais secreto. Há que decifrar, pois, o enigma dessa esfinge.

Longe de Hegel querer minimizar a importância da arte, ainda que, em definitivo, sua justificação se faça em termos, digamos, excessivamente genéricos. É que tudo o que existe integra o processo da verdade, e a arte não poderia furtar-se a essa participação do triunfalismo da realização da Ideia. Por isso, Hegel afirma incisivo:

Pois na arte, não se nos depara apenas um espetáculo agradável ou útil, mas quer-se liberar o Espírito do conteúdo e das formas da finidade, busca-se a presença do Absoluto e a sua conciliação com o sensível e as aparências; a arte atém-se ao desdobramento da verdade, pois esta não se esgota na história natural, mas manifesta-se na história universal, da qual a arte é a mais bela dimensão e a melhor recompensa para o duro trabalho na realidade e para os amargos esforços do conhecimento.[1]

É com este elogio da arte que Hegel encerra a sua Estética.

Ou será que o elogio não configura apenas um modo, talvez até um tanto desajeitado, de pedir desculpas? Pois no parágrafo imediatamente anterior lê-se a terrível e controvertida fala sobre a “dissolução” da arte: o destino da arte seria a morte? Mas antes de entrar nesse momentoso tema, faço uma breve digressão sobre esta outra questão, que consiste em saber como justifica Hegel a arte precisamente em sua relação com o sensível.

É constatação aceita em todas as análises hegelianas que a arte não pode dispensar as suas ligações com a esfera do sensível. Mas, neste caso, na medida em que se endossa a arte e em que se quer, ao mesmo tempo, permanecer fiel aos desígnios do idealismo, como justificar aquela necessidade do sensível, ou, ao menos, como situar o sensível na intimidade da obra de arte? De fato, existem ao menos duas tentativas de Hegel para defrontar com o problema, e ambas se afirmam a partir de um pressuposto que lhes é comum, o surrado tema da inferioridade do mundo sensível. Pois, além de ser em si mesmo inferior, o sensível prende a arte ao plano das particularidades múltiplas, frustrando, desse modo, toda a sua possível abertura para o universal.

As duas considerações de Hegel são as seguintes. A primeira prende-se à estrutura da própria obra de arte, composta de dois níveis, que se oferecem hierarquizados; no plano inferior, topamos com o sensível e no superior com a Ideia. A arte é sempre e necessariamente expressão da Ideia, e a especificidade da arte é que a expressão se faz através do elemento sensível; e aí reside também a limitação da arte, porquanto “a arte não é o modo mais elevado e absoluto de tornar o espírito consciente de seus verdadeiros interesses”. A limitação decorre toda do sensível: “O sensível imediato macula e esconde o verdadeiro”. No máximo, cabe admitir que apenas um certo setor da verdade pode ser representado pela obra de arte, precisamente o setor ligado ao sensível. Por isso mesmo, “deve pertencer à determinação da própria arte de exteriorizar-se no sensível”.[2] Essa inferiorização pertence, de resto, à índole profunda de idealismo hegeliano. Veja-se, por exemplo, o texto seguinte: “A existência sensível quer dizer tão-somente o ser-fora-de-si do conceito, do conceito que se perde na confusão e na transitoriedade da aparência”.[3]

No fundo, é a velha dicotomia de matéria e forma, com sua rígida hierarquia, que atravessa toda a estética hegeliana. É bem verdade que Hegel não considera tanto a dicotomia em si mesma, o aspecto original de sua abordagem deriva de seu empenho em superar a matéria e nisso reside a segunda tentativa de nosso filósofo. Ele procede, por exemplo, a uma espécie de relativização do elemento sensível: “O sensível da obra de arte só deve ter existência na medida em que existe para o espírito do homem, e não na medida em que o sensível existe para si mesmo”.[4] Assim, a arte reside num meio-termo, entre a pura materialidade e o pensamento ideal. E veja-se a maneira de Hegel falar: a obra de arte “ainda não é puro pensamento”, e “já não é mais apenas existência material”.[5] Trata-se, pois, de deixar a matéria e esposar o plano ideal. Então, minimize-se ao máximo o teor do sensível: se a obra de arte não pode prescindir do elemento sensível, ela o reduz “a mera superfície e aparência do sensível”. Mais um pequeno passo, e Hegel sente-se autorizado a asseverar que “o sensível na obra de arte já pertence ao ideal [ist selbst ein ideelles]”.[6]

No entanto, por estes caminhos, os esforços de Hegel revelam-se inúteis: o sensível não se aquieta, não se deixa anular. Na arte, a tendência ascensional não alcança jamais a sua própria consecução, tudo permanece atado ao mundo da natureza, e neste sentido o sensível se faz medida. Um interessante exemplo, entre tantos de que lança mão Hegel para comprovar a sua tese, está na música, ou melhor, na “unidade individual” do tom, este ponto do tom tudo teria a ver com o processo de idealização: “[…] o ponto é em si a superação concreta e ativa, no interior da materialidade, enquanto movimento e tremor do corpo material em si mesmo, em sua relação consigo mesmo”.[7] Teríamos aqui algo como a “idealidade inaugural na matéria”, a material, no ponto do tom, conseguiria liberar o ideal, e isso através desse tremor que habitaria a própria intimidade material. Aqui, Hegel está sem dúvida respaldado numa vetusta tradição, que se fez até mesmo popular. Mas por que não tentar o caminho oposto, e ver naquele ponto do tom a invenção da volúpia, a exaltação do próprio sensível? A novidade das análises de Hegel está em dinamizar a tese tradicional das relações entre matéria e forma, e ele o faz, claro está, sempre obediente aos moldes metafísicos de seu idealismo.

Como haver-se, então, com uma realidade tão ambígua quanto a obra de arte? Reconheça-se, num primeiro momento, a inferioridade da arte. Realmente, “a arte não é o modo mais elevado para apreender o concreto espiritual”.[8] A inferioridade se estabelece por uma única razão: o modo deficiente de a arte se relacionar com o ideal, em razão de sua ligação ao elemento sensível. Em outro contexto, afirma Hegel: “A forma, a subjetividade que o artista empresta à sua obra é apenas exterior, não é a forma absoluta do auto-saber-se, da autoconsciência”.[9] Digamos que a arte permanece no nível do velado, e não cabe a ela a menor iniciativa em qualquer tipo de processo de desvelamento. Um texto já citado diz que o sensível imediato macula, suja (verunreinigt), e esconde o verdadeiro; pelo sensível, a arte se deixa arrastar para uma passividade fundamental, e qualquer iniciativa desvelante deve vir de outras paragens. A verdade em relação à arte apresenta dois níveis. No primeiro, inferior, a verdade tem o sentido da correção (Richtigkeit), ela trata de “tornar adequada a representação com o objeto conhecido”. Neste caso, a arte nada tem a ver com a “lei da beleza”. Para alçar-se a esse nível, a arte deve estabelecer “a concordância do objeto com o seu conceito, com a Ideia”. E nisso está o sentido mais elevado da verdade, através do qual se verifica a manifestação, ou a “exteriorização do conceito”, que é o próprio conteúdo da arte, “conteúdo este que se refere aos elementos substanciais, gerais, às essências e poderes da Natureza e do Espirito”.[10] Não cabe falar propriamente em processo de desocultação ou de desvelamento; trata-se muito mais de uma espécie de parousia, de um processo de presentificação, próxima ao sentido platônico, de manifestação da divindade.

Assim, a verdade da obra de arte, mesmo em sua acepção superior, exige, longe de qualquer forma de desocultamento, um processo de completação, exigência esta que brota com a força da necessidade desde dentro da própria arte; mesmo que cega, ela busca o processo de sua própria completação. É o que assevera o filósofo: “A obra de arte, enquanto não se sabe a si própria, é em si incompleta, e necessita, porque a autoconsciência pertence à Ideia, de completação”.[11] Em verdade, ou em nome da verdade, a grandeza possível da arte aponta para além dela mesma. A ideia de processo é aqui essencial: “Justamente quando a arte consegue alçar-se a seu mais alto nível, ela vai também além de si mesma; ela abandona o elemento conciliador de sensibilização do Espírito, e transfere-se da poesia da representação para a prosa do pensamento”.[12]

As asserções feitas aproximam-nos do tema proposto, o da morte da arte. Aliás, toda a Estética pode ser vista como uma introdução à dissolução da arte. A afirmação que se encontra no fim da obra já se anuncia COM toda a clareza e de diversas maneiras na Introdução do livro — Introdução, diga-se, que é uma magnífica sinopse de tudo o que se vai ler detalhadamente .

Sublinhe-se mais uma vez a insuficiência da arte: “A arte não é tão inadvertidamente para si própria, pois ela é essencialmente um problema [eine Frage] […]”,[13] ainda que ela não se saiba problema, que ela tateie no escuro, pressentindo-se como anunciadora de uma luz que está além dela. Mas a análise da situação contemporânea da arte indica em tudo que ela está prestes a desfalecer, ela se esvai a olhos vistos. Hegel nos dá, assim, a par de sua análise especulativa, também o exame da situação da arte de seu tempo, o que não deixa de pretender ser uma comprovação das afirmações especulativas. Resta saber, claro está, qual o alcance de tais comprovações.

Discuto o tema com dois exemplos. Para o primeiro, veja-se este passo: “Passaram-se os belos dias da arte grega e os tempos dourados da Idade Média tardia”.[14] Parece que, hodiernamente, aquela beleza e aquele dourado fizeram-se impossíveis, e eis a razão que, para explicar isso, oferece Hegel: é que a arte pressupõe uma certa relação entre o particular e o universal; no passado, a relação se instaurava a partir de uma grande aproximação entre estes dois elementos — Hegel chega a falar em identidade:

Para os interesses da arte como para a sua produção exigimos de modo geral mais uma certa vivacidade, na qual o universal não se ofereça como lei ou máxima, e sim que atue de modo a identicar-se com o ânimo e a sensibilidade; como também na fantasia: realiza-se a unidade entre o universal e racional com a aparência concreta sensível. Por isso, o nosso tempo, segundo a situação geral, não é favorável à arte.[15]

Ou seja: aquela intimidade entre o universal e o particular rompeu-se, o nosso tempo entregou-se à cultura da reflexão; tornou-se para nós hoje “necessário prender-se a pontos de vista universais e regrar segundo eles o particular […]”.[16] Esta distância excessiva entre o universal, que se impõe como a soberania da lei, e o particular, que se faz submisso e perde a sua vivacidade, leva a deslocar a arte das funções que outrora exercia. Com outras palavras: a arte já não consegue instituir a necessária conexão entre o universal e o particular que definia toda a grande arte do passado.

O segundo exemplo é o seguinte. Hegel chama a atenção para a profunda afinidade que se verifica, ao menos em certo nível, entre a arte e a religião, e fala, a propósito, em analogia: “No reino análogo da religião, com o qual a arte, em seu nível mais elevado, permanece imediatamente associada […]”.[17] Aqui, o nosso filósofo acerta em cheio: toda a grande arte do passado oferece uma vinculação em tudo essencial com o elemento religioso. Mas acontece que justamente essa “analogia” de repente desaparece, e afigura-se impossível que Hegel não se tenha dado conta do assunto; aliás, a hegemonia da “cultura da reflexão”, referida acima, liga-se precisamente ao aumento daquela distância entre o particular e o universal; o fator que mais anula a distância está exatamente na cultura religiosa. A passagem do barroco para o rococó cavou uma separação abissal entre arte e religião; deve-se mesmo asseverar que o barroco configure o último período da história da arte em que a religião assenhoreou-se de praticamente todas as dimensões possíveis da arte. Entretanto, Hegel cala sobre o tema; mas parece impossível, repito, que ele não tenha ao menos vislumbrado a radical revolução que se apossava da arte na passagem do barroco à arte que lhe foi imediatamente subseqüente. O barroco foi o último período em que a religião integrava o que Hegel chama de substância objetiva: a arte era religiosa a partir de suas própria bases já antes de qualquer possibilidade de escolha, e essas bases desaparecem, o tema da religião desaparece na arte subsequente, ou só aparece a título de convicção meramente subjetiva por parte do artista, e mesmo nesse nível a arte religiosa se faz mais e mais escassa. Isso tudo significa, precipuamente, que é todo o esplendor da arte da imitação que cai por terra: esse tipo de arte entra em vertiginosa decadência, e logo, logo se faz radicalmente impossível.

Volto por um instante àquela “cultura da reflexão” acima aventada. A análise de Hegel sobre o tema é muito breve, mas ela representa, possivelmente, de toda a sua Estética, o ponto que mais avança em direção ao futuro. Depois de afirmar que a arte permanece para nós, hoje, algo do passado (ein Vergangenes), arremata o filósofo: “Por isso, ela perdeu para nós a autêntica verdade e a vivacidade, tendo sido deslocada mais para a nossa representação, ao invés de afirmar no contexto do real a sua antiga necessidade e ocupar o seu elevado lugar”. E mais: “A ciência da arte é em nosso tempo muito mais uma necessidade do que no passado, quando a arte oferecia, já como arte, plena satisfação. Hoje, a arte nos convida para uma contemplação afeita ao pensamento, e isso não com a finalidade de tornar a arte novamente presente, e sim para saber cientificamente o que a arte é”.[18]

É fácil perceber que a posição de Hegel, aqui, se revela ambígua, já que ele toma a palavra ciência no sentido em que ele a entende: essa crise da arte seria a porta de entrada para assegurar a hegemonia do Conceito, para estabelecer em definitivo a vitória do idealismo. Entretanto, convém chamar a atenção para dois pontos. O primeiro está em que, deixando-se de lado as pretensões da cientificidade na acepção hegeliana, é forçoso reconhecer que, a partir da crise da metafísica — crise à qual em boa medida Hegel já pertence —, o empenho filosófico no avanço das questões estéticas conheceu uma intensidade inédita na história do pensamento. O segundo ponto está naquele deslocamento da arte para a sua representação. Também aqui, evidentemente, deve-se deixar de lado a especificidade da terminologia hegeliana. Mas faz-se mister indagar se a representação não se apodera da arte de nosso tempo, e isso em toda a sua extensão. Quero dizer que a representação funciona agora à maneira de uma mediadora no processo de criação artística; um Cézanne já não pinta mais simplesmente um tema, o texto se faz pretexto, e o que ele pinta é a própria pintura; digamos que há um tipo de estética, justamente a da representação, que permanece imanente ao ato de pintar, e o que o pintor pinta é essa representação. A importância desses temas reclama uma consideração mais ampla, e pretendo voltar a eles em outra oportunidade. Por ora, basta lembrar o significado essencial da observação de Hegel.

E seja como for, tudo o que foi dito até aqui já ronda o tema proposto, o da morte da arte. Se o tema já se anuncia, e de diversos modos, como foi dito, na Introdução, é no penúltimo parágrafo da Estética que aparece a afirmação taxativa: “die Auflösung der Kunst überhaupt”.[19] O que complica o asserto é esse überhaupt, a dissolução da arte em geral, como um todo. A argumentação de Hegel neste trecho final de sua obra nem é muito convincente. Decisivas, em verdade, são as diversas considerações, analisadas aqui, que permeiam a Introdução ao livro.

A análise conclusiva, como se sabe, discute o teatro, primeiro a tragédia, depois a comédia. E a esta última cabe a responsabilidade por aquela dissolução. A grandeza da tragédia, que repousa na presença do universal concreto, desaparece na comédia; nela, o universal se faz ausente e a ação se contenta com a “casualidade exterior”.[20] Se “a finalidade de toda arte” consiste em apresentar, de algum modo, “o eterno, o divino, o em e para si verdadeiro”,[21] a comédia já nem poderia mais ser oferecida propriamente como arte, já que, nela “o presente e a atuação do Absoluto não aparecem mais numa unidade positiva com os caracteres e as finalidades da existência real”;[22] a “forma negativa” que assume a comédia condena-a a ser precisamente o agente da dissolução da arte em si mesma, como tal, como um todo.

Digamos que a responsabilidade atribuída por Hegel à comédia acaba parecendo um pouco pesada demais. Realmente, se as observações feitas acima sobre o destino conclusivo do barroco estiverem corretas, então cabe inferir que a responsabilidade pela dissolução da arte releva muito mais do estado da arte considerado em sua generalidade, na medida em que a arte, depois do barroco, faz exatamente aquilo que nosso filósofo restringe apressadamente à situação da comédia — é toda a arte que passa a ignorar o programa de presentificação do elemento divino.

Mesmo se limitarmos o alcance da análise hegeliana aos gêneros teatrais, parece que cabe fazer uma observação em tudo judiciosa. Sabe-se que, em sua evolução moderna, o drama burguês desenvolveu um terceiro gênero, apelidado de drama, e que consiste numa espécie de síntese híbrida da tragédia e da comédia, colhendo elementos numa e noutra para moldar uma nova forma de unidade. E os autores costumam atribuir a Victor Hugo a primeira defesa incisiva do novo gênero, nos prefácios das peças Cromwell e Hernani. Mas não é apenas curioso observar que a questão já fora colocada com toda a clareza por Hegel. De fato, Hegel não só equaciona o tema como também lhe faz a crítica, mostra os perigos e os limites desse gênero intermediário. No mais, o filósofo pensa que essa tentativa de obliterar as “diferenças” é de “importância menor”.[23] Surpreendente é que Hegel vê esse gênero intermediário florescente já no teatro antigo; os espetáculos satíricos dos gregos ter-se-iam caracterizado precisamente por esse empenho, e, no caso, é bem possível que a constatação de importância menor tenha certa procedência. No entanto, as coisas se tornam mais controversas se atentamos o exemplo que desse terceiro gênero Hegel encontra no teatro moderno — nada menos que a Efigênia, de Goethe. E Hegel poderia ter enriquecido os seus pontos de vista com muita outra coisa, a começar com Shakespeare, e isso ao menos por uma razão negativa: é que após os tempos áureos dos antigos gregos, a tragédia, naquele sentido, simplesmente deixa de existir. Mas, neste caso, não se percebe por que lançar sobre a comédia todo o peso do diagnóstico da morte da arte, porquanto o drama — que Hegel chama de “terceiro gênero principal” (Hauptart) —, dada a excelência dos exemplos, vem ampliar os dados do problema, para além da tipificação excessivamente redonda da tragédia e da comédia. Talvez Hegel use a tragédia e a comédia como um análogo às famosas “figuras da consciência” que definem o andamento da Fenomenologia do Espírito, o que poderia tornar a hibridez do drama algo suspeita. E então, como na obra anterior, a transparência histórica do processo termina prejudicada. Mas quero aqui apenas dizer que a argumentação final de Hegel revela-se insuficiente.

E no entanto, a tese da morte da arte termina se revelando rigorosamente correta. Isso, ao menos por duas razões. Parece-me que a primeira foi suficientemente discutida aqui. De fato, a tese revela-se rigorosamente coerente com o sentido geral do pensamento hegeliano. Esse sentido como que exige a morte da arte, tal é o preço imposto pela realização coerente do sistema, sem a superação efetiva do elemento sensível, é o próprio idealismo que titubeia em suas bases. Evidentemente, a coerência metafísica, por gigantesca que tenha sido a ginástica do filósofo, não poderia alcançar os seus objetivos. E o que Hegel realmente termina fazendo é a incriminação do despropósito do sistema. Quanto à arte, querendo ou não, Hegel contribuiu para desanuviar os horizontes para as novas aventuras que a criação artística já começara a armar.

Mas há uma segunda razão que confirma a tese de Hegel. É que a tese da morte da arte é totalmente verdadeira, desde que se acrescente que a sua verdade se restringe à arte do passado — de todo o passado, de modo radical. O que Hegel afirma atinge em cheio os pressupostos de sua própria estética, a começar pelo mais importante deles todos, que é o conceito de imitação e os seus vínculos com a determinação metafísico-teológica dos universais concretos, ou seja, com o que Hegel chama de Ideia, objeto exclusivo, segundo ele, da arte. O que realmente autoriza Hegel a falar em morte da arte — e é a primeira vez na história que isso acontece — é o fato, já consumado, de que a arte passou a enveredar por caminhos totalmente outros que os previsíveis pela surrada noção de imitação. Querendo ou não, o que Hegel faz não vai além do reconhecimento de um tipo de arte que chegou ao fim definitivo dela mesma, através de um processo histórico que compromete a sua exaustão interna com todo o complexo da causalidade histórica inventado pela revolução burguesa. E Hegel, em nome dessa mesma revolução, continua tendo razão: é enfrentando a morte, olhando-a nos olhos, que se cria a vida, ou seja, os novos endereços da arte.

Notas

[1] G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Ástbetik, vol. III, Frankfurt, Suhrkamp, 1970, p. 573.

[2] Idem, ibidem, vol. I, p. 23.

[3] Idem, Berliner Scbriften 1818-1831, Frankfurt, Suhrkamp, 1970, p. 549-50.

[4] Idem, Vorlesungen über die Ástbetik, vol. i, p. 57.

[5] Idem, ibidem, vol. I, p. 60.

[6] Idem, ibidem.

[7] Idem, vol. I, p. 121.

[8] Idem, ibidem, vol. I, p. 102.

[9] Idem, Vorlesungen über die Pbilosopbie der Religion, vol. I,Frankfurt, Suhrkamp, 1969, p. 137.

[10] Idem, ibidem, vol. I, p. 136.

[11] Idem, ibidem, vol. I, p. 137.

[12] Idem, Vorlesungen über die Ástbetik, vol. I, p. 123.

[13] Idem, ibidem, vol. I, p. 102.

[14] Idem, ibidem, vol. I, p. 24.

[15] Idem, ibidem, vol. I, p. 25.

[16] Idem, ibidem.

[17] Idem, ibidem, vol. I, p. 116.

[18] Idem, ibidem, vol. I, p. 25-6.

[19] Idem, ibidem, vol. III, p. 572.

[20] Idem, ibidem, vol. III, p. 521.

[21] Idem, ibidem, vol. III, p. 572.

[22] Idem, ibidem, vol. III, p. 573.

[23] Idem, ibidem, vol. II, p. 531.

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