O silêncio é a ausência de quê?
por Francis Wolff
Resumo
A mais célebre e controvertida peça do músico John Cage chama-se 4’33’’ (Quatro minutos e 33 segundos). Ela foi escrita para o piano e é composta de três movimentos. Na partitura, nada se lê além de TACET, que significa em latim “ele se cala” e indica que tal instrumentista da orquestra deve permanecer em silêncio durante a execução de tal ou qual movimento. Mas, no caso, a peça inteira é composta de 4 minutos e 33 segundos de silêncio. Ela foi – se tal palavra couber – interpretada pela primeira vez por David Tudor, pianista, em 29 de agosto de 1952, no Maverick Concert Hall de Woodstock, Nova York.
Diante do público, ele se sentou ao piano, levantou a tampa e suas mãos pairaram acima das teclas do instrumento por 4 minutos e 33 segundos. Feito isso, Tudor fechou a tampa e levantou-se. Fim da obra. Note-se, porém, que ela não é “fechada”, e que John Cage confere grande liberdade à interpretação e à instrumentação usada. Numa nota que completa a partitura, ele propõe: “A obra pode ser executada por qualquer instrumentista ou combinação de instrumentistas e em qualquer duração”.
Entende-se a frustração dos primeiros “ouvintes” da peça. Em vez de música, eles ouviram… nada. Ou seja: quando se fez silêncio para dar lugar à música, foi esse mesmo silêncio que eles ouviram. Mas ele era outro, pois já não se resumia a uma ausência de ruído, que tornava possível a música. Era a ausência da música mesma. E essa frustração logo deu lugar aos protestos e gritos dos ouvintes, transformados contra sua vontade em espectadores.
Haveria então vários silêncios?
Os matemáticos explicam que há um único “conjunto vazio”. Há uma infinidade de conjuntos compostos de um, dois, três ou “n” elementos, mas há somente um único conjunto sem elemento. E, de fato, nada se assemelha mais entre si do que dois silêncios, se um e outro são nada. Zero igual a zero. Mas o silêncio não é apenas nada, ele é ausência; de algo, necessariamente. Assim, haveria não apenas um único silêncio, mas diversos silêncios, conforme o que eles escondem – ou as presenças ausentes neles.
Ele diz alguma algo. Diz o que ele não é. Em outros termos, o silêncio não é ausência ou negação, mas, segundo os antigos e medievais, privação. Mas privação de quê? Do ruído, da música, da palavra?
Há, pois, uma terceira maneira de considerar o silêncio. Em vez de defini-lo pela sua negação (como o branco se opõe ao preto ou o vazio ao cheio), propõe-se defini-lo pela privação – do que pode preenchê-lo. Tudo o que ele pode significar ou a tudo que ele pode remeter. É que o silêncio geralmente faz sentido. Daí não haver língua sem silêncio, já que ele se infiltra nela, entre as palavras, com suas figuras de retórica e seus jogos do expresso e não expresso, ou entre as frases, que podem significar reticência, perplexidade, desaprovação; algo implícito.
Há ainda a seguinte maneira de considerar o silêncio: não mais como o que torna possível o sentido, mas como o que o torna impossível. O silêncio é então o que impede o sentido, o que o abafa ou asfixia. Eis a ambivalência: ora o silêncio é o melhor dos remédios contra o ruído ou o mais tranquilo dos refúgios contra a agitação do mundo; ora é o pior dos venenos, quando não é mais que a impossibilidade da comunicação, a repressão da expressão, o impedimento da fala, a afasia, a censura.
Querer saber de que o silêncio é a ausência é, portanto, interrogar-se sobre o que faz sentido: dos ruídos do mundo às palavras dos homens, passando pela música, que significa sem poder dizer.
Agradeço a Adauto Novaes por seu convite. Ele me permitiu voltar mais uma vez ao Brasil a fim de, como se diz, “matar a saudade”. Dessa vez, para falar do silêncio. Que paradoxo! Falar é romper o silêncio. Fazer silêncio é abster-se de falar. Falar do silêncio é como desenhar… o vazio. É como representar… um buraco. Uma ausência. Durante mais de um mês os que compareceram ao ciclo ouviram falar do silêncio. Portanto, não ouviram muito o silêncio. Foi um silêncio muito pouco silencioso, um silêncio falante, prolixo, loquaz. Imaginem o inverso: se nos calássemos durante um mês para meditar sobre o som. Isso talvez nos fizesse bem: um pouco de calma, enfim! Mas essa meditação muda não nos ensinaria grande coisa sobre o som. Em todo caso, nada poderia nos dizer sobre a diferença entre um som e um ruído, entre um grito e um grunhido, entre os sons da fala, as sonoridades do canto, as notas da música, as pulsações do ritmo, enfim, todos esses habitantes do silêncio – e eles são numerosos e variados -, todos esses seres que têm necessidade do silêncio para se destacar, para se manifestar, enfim, para existir. Mas talvez haja tantos silêncios quantos habitantes do silêncio. Pois não há só um silêncio. Há gêneros, classes de silêncio. Às vezes até há “luta de classes” entre silêncios! E esses combates estão longe de ser sempre silenciosos.
É o que me proponho mostrar, rapidamente. Podem-se diferenciar os silêncios?
O SILÊNCIO DA MÚSICA
A obra mais célebre e a mais controvertida do músico John Cage chama-se 4′ 33″. A peça foi escrita para piano e é composta de três movimentos principais. Na partitura, cada movimento é apresentado por algarismos romanos (I, II & III) e contém apenas a palavra TACET, que em latim significa “ele se cala” e indica, nas partituras, que tal instrumentista da orquestra deve permanecer silencioso durante a execução desse ou daquele movimento. Aqui, a peça inteira é constituída desses três movimentos silenciosos. Portanto, essa música é feita de 4 minutos e 33 segundos de silêncio. A obra, se é possível chamar isso uma obra, foi interpretada, se é possível dizer interpretar, pela primeira vez pelo pianista David Tudor em 29 de agosto de 1952, no Maverick Concert Hall de Woodstock, Estado de Nova York. O público o viu sentar-se ao piano, levantar a tampa e deixar as mãos acima das teclas do instrumento. As três partes duraram respectivamente 33″, 2′ 40″ e 1’20’’. Ao final de 4’33”, David Tudor fechou a tampa e se levantou. Fim da obra. Notemos, porém, que ela não é fechada e que John Cage deixa uma parte importante à interpretação, se é possível dizer. De fato, numa nota que completa a partitura ele esclarece: “A obra pode ser executada por qualquer instrumentista ou combinação de instrumentistas e em qualquer duração”.
Assim, à primeira vista, tudo é simples. Em vez de música, o músico não toca nada. Portanto, 4’33” não é música, é a negação dela. Qual música? Não há música! Então se interpretará facilmente o gesto vanguardista de John Cage como uma provocação travessa ou irritante, comparável aos primeiros ready-made de Marcel Duchamp. Lembremos que o ready-made é um objet trouvé qualquer considerado como objeto de arte. A invenção do ready-made por Duchamp e por seus herdeiros consiste em escolher um objeto manufaturado e em designá-lo como obra de arte expondo-o num museu ou numa galeria. Esse procedimento deu origem a uma grande parte das práticas artísticas atuais na arte dita contemporânea. Assim, Duchamp instalou um urinol num museu. Por esse gesto provocador ele entendia dessacralizar a Arte que, desde o século XIX tendera a tomar o lugar da religião; mas a arte não apenas se tornara objeto de culto, tornara-se também uma mercadoria como as outras e mesmo objeto de especulação desenfreada. Expor um urinol era mostrar a vaidade da religião e do mercado da arte. O paradoxo quis, evidentemente, que os objetos assim expostos começassem a adquirir valor mercantil pelo simples fato de terem sido expostos por Duchamp! Mas seu gesto tinha também duas significações do ponto de vista da história da arte: tratava-se de trazer à luz a indistinção entre, de um lado, a obra que se exibe e, de outro lado, o objeto que se esconde. Por que haver diferença entre as coisas que se olha (as obras de arte) e as que não se olha mais (os utensílios cotidianos banais ou desprezíveis como um urinol)? Tal é a questão que Duchamp parecia colocar. Tratava-se de questionar novamente nossas certezas sobre a arte, assim como as noções de técnica, de habilidade, de virtuosismo e/ou ainda de obra. Não é a obra apenas o que resulta do ato de expor? Duchamp completava assim a desconstrução da obra de arte: desde o final do século XIX, a representação artística primeiro se libertara da perspectiva com Cézanne, depois do ponto de vista único com os cubistas, a seguir da própria figuração com a abstração; restava-lhe dar um último passo: libertar a representação da ideia mesma de representação. Não se representa mais, apresenta-se. O quê? Não importa o quê. A apresentação é a condição da representação. Preparem-se para o que vão ver! O quê? O que vêem todos os dias sem notar: um urinol, por exemplo.
Na música silenciosa de John Cage havia certamente um pouco de tudo isso. Primeiro havia uma parte de provocação, sem dúvida. O que se confirmou pela reação da maior parte dos espectadores que, frustrados, se irritaram. No dia seguinte ao primeiro concerto, um crítico observou que, passado um momento,”[…] as pessoas começaram a cochichar, outras a sair. Elas não riram – somente ficaram irritadas quando perceberam que nada ia se produzir, e passados trinta anos ainda não se esqueceram disso”. Mas o gesto de John Cage tinha igualmente sua significação: tratava-se também de mostrar a indistinção entre, de um lado, a música (o que se escuta) e, de outro, o silêncio (o que não se escuta, o que não se escuta mais). Por que essa diferença?, parecia perguntar John Cage. Não resulta a música apenas do ato de escutar, assim como a arte resulta apenas do ato de expor? Como para os ready-made, não consiste a música, afinal, em reunir pessoas para um concerto e em fazê-las escutar alguma coisa, seja o que for? Tratava-se, pois, de completar a desconstrução da obra musical: desde o final do século XIX, a música erudita se libertara da melodia com Wagner, depois da tonalidade com Schoenberg, depois da diferença entre som e ruído com a música concreta: não restava senão dar o último passo: libertar-se da diferença entre música e silêncio. Do mesmo modo que a apresentação de um objeto é a condição de sua representação pela arte, o silêncio, parecia dizer John Cage, é a condição da arte musical. Antes da música, e para que haja música, é preciso o silêncio, pois somente o silêncio é propício à escuta. Assim como outros, por exemplo Malevitch, nos começos da abstração, passaram a pintar não mais objetos por meio das formas e das cores, mas as formas e as cores elas mesmas, isto é, os elementos constitutivos da pintura (círculos, quadrados, manchas), e antes que outros, como Robert Rauschenberg, passassem a pintar “pinturas brancas”, telas aparentemente vazias tanto de conteúdo quanto de forma, John Cage completava a desconstrução da música não fazendo mais ouvir materiais sonoros brutos, isolados, disjuntos (como nas pesquisas atonais ou concretas), mas o próprio silêncio, tão vazio quanto a tela branca, um silêncio que mostrava, ou melhor, que fazia ouvir a música ausente, a impossibilidade, a inanidade da própria música.
O silêncio, então, não seria mais que uma negação, como é deserta a tela branca do pintor conceitual, como é vazia a página branca do escritor estéril, ou como é vão o esforço desesperado em busca de fala do doente afásico. O silêncio é… nada. Absolutamente nada. Portanto, nada a ouvir. Circulem!
O SILÊNCIO: NADA OU PRIVAÇÃO?
Mas não pode ser tão simples assim. Os matemáticos nos explicam que há somente um único conjunto vazio. Há uma infinidade de conjuntos de um, dois, três ou n elementos, mas um único conjunto, o conjunto vazio, não tem elemento. Parece que o mesmo acontece com o silêncio: há uma infinidade de maneiras de ocupar o silêncio, mas uma única maneira de existir para o silêncio. E, de fato, nada se assemelha mais entre si que dois silêncios, se ambos forem nada. Zero igual a zero.
Contudo o silêncio, ele, não é somente nada, ele é claramente uma ausência: espera-se alguma coisa que não está aí. Não há nada a ouvir. O silêncio, portanto, é forçosamente ausência de alguma coisa. Então haveria não somente um silêncio, mas diversos silêncios, conforme o que uns ou outros escondem, conforme a presença que deles se ausenta. Em outros termos, o silêncio não é um nada, mas, como diziam os Antigos e os Medievais, é privação. Uma privação não é um simples nada. Um nada, ou uma negação, é inexistência de ser, é vazio. Um peixe não late, isso é uma negação, não é uma privação: ele não late porque não está em sua natureza latir, portanto não está privado disso! Mas um cachorro sem voz, sim, está privado de latido, pois normalmente deveria poder latir. O silêncio não é o nada ou o vazio, mas a privação de alguma coisa que deveria estar aí. Mas o quê?
Voltemos ao nosso concerto de John Cage e, em vez de ouvir o silêncio desses 4’33”, distingamos os diversos silêncios como outras tantas privações. O silêncio do concerto é tríplice.
No momento em que vai começar o concerto, o silêncio se faz. É o tornar-se silencioso da sala. O silêncio é então a ausência de ruído, ele é a condição da escuta.
Depois, durante os 4’33” do concerto, o silêncio deixou de se fazer; doravante ele existe, permanece, dura, perdura, se alonga, não acaba mais. O silêncio não é mais a ausência de ruído, dessa vez ele revela outra coisa: ele é a ausência de música. Não é mais a condição da escuta musical, mas transforma-se em seu contrário, pois não há música. Ele é privação de música.
Por isso o silêncio acaba por se romper certamente antes do final da música, isto é, dos 4 minutos e 33 segundos de privação de música. À medida que esse silêncio continua, elevam-se comentários irritados, conversações exasperadas começam, outras prosseguem. O silêncio se desfaz progressivamente. Assim ele revela que era também outra coisa: a ausência de fala.
Eis portanto, em negativo, três tipos de silêncio. De que, então, o silêncio é a ausência? Conforme o caso, e em função do que poderia nele se encontrar, é ausência de som ou de ruído, ausência de música ou ausência de fala.
Que diferenças há entre esses quatro habitantes do silêncio: o ruído, o som, a música, a fala?
O QUE É UM RUÍDO?
Parece que há várias maneiras de definir o ruído a partir do som. Pode-se tentar, primeiro, definições objetivas: um ruído é um som muito forte, ensurdecedor, muito agudo ou muito grave: por exemplo, as turbinas dos aviões quando se mora perto de um aeroporto; é algo que indiscutivelmente faz ruído! O que se quer dizer, simplesmente, é que são sons desagradáveis.
No entanto se qualificam de ruídos alguns sons que não são realmente desagradáveis. Por exemplo, um som indistinto, confuso, ou sonoridades que não chegamos a identificar: um bramido, um ronco, um rumor. “O que é esse ruído?”, nos perguntamos. É um som bizarro, estranho.
Mas na verdade nunca se consegue dar uma definição objetiva de ruído. Pois isso depende das circunstâncias. Toda definição de ruído é relativa. Em si mesmos os sons não são ruídos, mas se tornam ruídos conforme a perspectiva que adotamos. Você está num trem, por exemplo. Conversa com um amigo. Um passageiro escuta seu rádio: para ele é música, para você é ruído. Inversamente, sua conversa para você é fala, mas para ele é ruído, porque o impede de escutar a música. Prova disso é que, atrás de você, outro passageiro gostaria de ler. Sua conversa e a música daquele que ouve rádio são para ele igualmente ruído. Outro exemplo: frases trocadas numa língua que nos é estranha são apenas ruído, assim como as conversas, mesmo em voz baixa, num lugar de leitura, de meditação ou de prece: “Psiu!”, “Silêncio, por favor!”.
Em suma, o ruído não é, em geral, senão som que não tem sentido: em si, ou para nós, ou segundo as circunstâncias. Os ruídos dos carros, quando se mora perto de uma autoestrada, não têm sentido, eles incomodam; mas, se os carros fossem totalmente silenciosos, eles seriam muito perigosos. Hoje os fabricantes de carros elétricos sabem fabricar veículos que não fazem ruído algum; mas sabem também que isso inquietaria o condutor e apresentaria risco para os pedestres, que não ouviriam a chegada dos veículos. Assim eles são forçados a introduzir em seus veículos aparelhos que produzem sons em motores que funcionam sem ruído. Substitui-se o ruído pelo som para produzir sentido. O ruído, portanto, é som que não tem sentido, enquanto o som é ruído que tem sentido.
Mas qual sentido? O que é um som?
O QUE É UM SOM?
A essa pergunta, o físico responderá algo como “o som é uma vibração do ar que se propaga”. E ele acrescentaria que se pode diferenciar os sons e medi-los segundo sua frequência, amplitude, intensidade, timbre (isto é, a composição de seus harmônicos), durações etc. Certo, mas isso é o que se mede, não é o que se ouve. Ninguém ouve vibrações. O que ouvimos são sensações provocadas por vibrações. Vibrações de quê? Das coisas materiais, certamente. Sem corpos não pode haver sons. Mas a existência de corpos não basta para que haja sons. Pois as coisas materiais não são por si mesmas sonoras: o vidro, a árvore, a pedra, a água e mesmo o cachorro são silenciosos neles mesmos. Enquanto não se mexem. Mas tão logo se movem, ou assim que lhes acontece alguma coisa, isso produz ruído: o vidro se quebra, cling, o galho se parte, crac, o vento assobia, pfffiiiu, a pedra cai, ploc, a água corre, glu-glu, o cachorro late, au-au. Mas, se nada acontece, nenhum ruído é emitido. Há o silêncio. O silêncio não é o índice de ausência de objetos ou de pessoas, é somente o signo de ausência de acontecimentos. É preciso que aconteça alguma coisa no mundo para que alguma coisa seja audível. Um som, um ruído, portanto, é o indício de um acontecimento. Os sons são propriedades sensíveis dos acontecimentos, no mesmo sentido e da mesma forma que as cores são propriedades sensíveis das coisas materiais. Estas são percebidas pela visão, aqueles pela audição.
Tal é o sentido do som: identificar os acontecimentos.
De fato, existe como que uma função natural do som. É como se os milhões de séculos que modelaram nossos órgãos auditivos tivessem tido o cuidado de garantir que possuíssemos um verdadeiro sistema de alarme permanente, que nos diz quase de imediato o que se passa, quando se passa alguma coisa; e que nos diz também se esse acontecimento nos ameaça, nos conforta, nos interessa, em suma, se nos concerne. Estar à escuta, para o ser vivo, é estar em posição de espera dos acontecimentos. Um som, um ruído, é o sinal de que algum acontecimento rompeu a regularidade tranquilizadora na qual a vida se conservava. O que pode acontecer? O que aconteceu? O que vai acontecer? Tensão da escuta, à qual sucede o repouso do retorno à calma ou à regularidade, o reconhecimento do familiar, ou o silêncio. Vejam o bebê, ele dorme. Um som o desperta, ele fica à escuta: algo se passa, de ameaçador talvez. Mas ei-lo tranquilizado, é um ser familiar. É mamãe. Ele pode voltar a dormir.
Portanto, o som serve para identificar o acontecimento. E, assim que ouvimos o acontecimento, podemos passar da identificação de sua fonte (alguém caminha) à explicação de sua causa: é mamãe que se afasta… é mamãe que volta etc. Tal é o sentido do som: esse sentido tem por causa o acontecimento, do qual o som é o signo.
Mas certos sons, além de serem signos de outra coisa (a coisa ou a pessoa que causa o acontecimento), têm um sentido neles mesmos. É o caso da música ou da fala.
Quando ouvimos música, ou quando ouvimos palavras, deixamos de ouvir sons, não ouvimos mais uma série de sons. Ouvimos diretamente o sentido. O milagre da fala é que, quando nos falam, não ouvimos sons, ouvimos o que nos dizem. O milagre da música é similar: quando ouvimos música, não ouvimos mais sons, ouvimos música.
Vejamos como o som se torna sentido na música. O que é a música?
DO SONORO AO MUSICAL
A música, qualquer música, implica primeiramente a organização a priori do sonoro. Em geral um som tem pelo menos três componentes: um timbre, uma duração, uma altura. O timbre é o que diferencia o som da minha voz do som da sua, e a sonoridade do piano da sonoridade do trompete. A duração é o tempo durante o qual o som continua. A altura do som é o fato de ele ser mais ou menos grave ou mais ou menos agudo. Os sons da natureza têm timbres quaisquer, geralmente pouco harmoniosos. No universo musical, os timbres dos sons se tornam determinados, invariáveis e harmoniosos. Não são obscuros e confusos como na vida, onde o excesso e a confusão dos harmônicos que os compõem os fazem indistintos. No universo musical os sons são produzidos pela voz humana ou por instrumentos concebidos para esse efeito: há vários milhares de instrumentos de música inventados pelos homens.
Na natureza as durações dos sons são quaisquer. No universo musical, as durações são comensuráveis entre si: a duração de um som é o duplo, o triplo ou o quádruplo de outra. É o que vai permitir a ideia de compasso, mas também de ritmo e de tempo musical.
Na natureza as alturas dos sons nunca são muito claras nem determinadas. E, sobretudo, há uma infinidade de graus possíveis entre os sons mais agudos e os mais graves. No universo musical, as alturas se tornam identificáveis. Mas sobretudo são organizadas em escalas fixas de sons desigualmente distantes uns dos outros: por exemplo, dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó – sete graus em vez de uma infinidade de graus possíveis. É verdade que não há gama nem escala universais. Mas toda música supõe uma escala (por exemplo, a gama chinesa, árabe, ocidental etc.) que substitui o continuum sonoro por alguns graus determinados e identificáveis. Quaisquer que sejam as culturas, há graus fixos, a oitava, a quinta, a quarta.
Tal é a ordem tríplice (de timbre, de duração, de alturas) que permitirá a produção da música. Chamamos notas o resultado da introdução dessa ordem nos sons. Assim como os sons são ruídos distintos, as notas são sons distintos que pertencem a um universo discreto e a priori. Diferentemente de simples sons, portanto, notas são sons com timbres determinados, durações comensuráveis e alturas definidas por uma escala a priori. Essa ordem tríplice torna possível toda produção de música.
Mas, para que haja música, é preciso uma condição suplementar. Notas não fazem uma música. Por exemplo, se meu gato andar sobre as teclas do piano, por mais que toque notas de música ele não toca música. É preciso regras que tornem certas sequências ou certos conjuntos de notas possíveis, outros impossíveis, certas sequências ou certos acordes de notas desejáveis, outros a serem evitados. Não vamos entrar nos detalhes. Essas regras são, por exemplo, as da harmonia tonal que dominou a música ocidental e quase todos os seus derivados há cerca de seis séculos.
Portanto, temos alguns elementos sonoros de base, as notas, e regras de composição dos elementos, a harmonia. Será isso música? Não inteiramente. Porque se pode conhecer tudo isso sem saber fazer música.
Mas também, inversamente, porque se pode ouvir música sem que haja compositor ou mesmo músico.
Como nasce a música para o nosso ouvido? Como ela nasce a partir dos sons da vida? Quando ouvimos música, deixamos de ouvir sons sucessivos, deixamos mesmo de ouvir notas sucessivas (como quando o gato caminha sobre o piano), ouvimos um conjunto que forma uma unidade, isto é, não uma nota seguida de uma nota e esta de outra, mas uma frase indecomponível, uma cantiga, uma melodia; em suma, dessa vez é o conjunto que tem um sentido. Qual sentido? Por ora é algo misterioso. Mas o que é certo é que, quando passamos dos sons à música, deixamos de ouvir sons, que são apenas sinais dos acontecimentos que os causaram (mamãe que chega, o gato sobre as teclas do piano), e ouvimos um conjunto único de sons que parecem se seguir naturalmente. Na música, seja qual for a música; os sons passam de fato a ser ouvidos, imaginados, pensados como sendo causados não por coisas materiais, mas pelos próprios sons, aqueles que os precederam. A tal ponto que se pode dizer: há música para um dado ouvinte quando os sons parecem constituir por si mesmos uma ordem, isto é, quando os acontecimentos sonoros, em vez de estar relacionados causalmente às coisas que os produzem e de se suceder no tempo, parecem causados por todos aqueles que os precedem e ser eles mesmos a causa de todos aqueles que os seguem.
O que é a música? É o que dá aos sons sua unidade e os torna autossuficientes.
O MUSICAL EM ESTADO NASCENTE
Notemos, com efeito, que a musicalidade (isto é, o fato de ouvir uma sequência de sons como tendo um sentido por ela mesma) nem sempre nem necessariamente é o produto da arte. Tomemos um exemplo. Estou num trem: ele ainda não partiu. Quando ele se põe em marcha, produz-se um ruído. Fico surpreso, tenho um sobressalto. “O que se passa?” A batida, das rodas contra os trilhos me assinala o acontecimento: o trem parte. A seguir, as batidas se tornam regulares à medida que o trem ganha velocidade. Fico sossegado. Não há realmente silêncio, apenas o som regular das batidas do trem. A regularidade é tão confortadora quanto o silêncio. É como se eu não ouvisse mais nada. Posso adormecer, tranquilo. Mas posso também passar a escutar os sons como puros acontecimentos sonoros e ligados apenas entre si. Estou novamente em posição de escuta. Não ouço mais o ruído do trem, mas sim os sons de uma frase musical, de um ritmo: “ta-ta tam, ta-ta tam, ta-ta tam, ta-ta tam”. Os sons se separaram das coisas que os causavam, eles parecem pertencer a uma única frase sonora, cada batida sendo causada por aquelas que as precedem. Certamente essa escuta estética do ritmo regular dos solavancos do trem não é ainda, não realmente, escuta de música – nem que seja porque falta a primeira condição, a constituição de uma ordem sonora por notas -, mas já é escuta musical. Não é arte, mas é esse o mundo a que a arte visa e é nesse mesmo mundo que ela nos mergulha.
Uma prova? No devaneio que precede nosso adormecimento, acabamos por ouvir algo como se fosse música…
Assim como pode nos acontecer de ver, numa parede cuja tinta descasca, a imagem de um homem ou de um cavalo que se torna cada vez mais nítida à medida que nossa imaginação a separa do resto, assim também podemos ouvir na sucessão ordenada dos solavancos do trem uma ordem de sucessão temporal de sons que se tornam inteligíveis por si mesmos, e dos quais nasce uma música, pois podemos antecipar, em parte, o que vai se seguir em função do que compreendemos daquilo que aconteceu.
Eis aí como a música, isto é, sons que têm um sentido por si mesmos, nasce dos sons da vida, tão confortadora como o silêncio, tão significativa quanto a fala.
DO SOM À FALA
Pois a fala nasce quase exatamente da mesma maneira.
Assim como a música não nasce diretamente a partir dos sons, mas a partir de alguns elementos sonoros discretos, as notas (por exemplo, os sete ou doze graus das gamas diatônica ou cromática no Ocidente), a fala não nasce diretamente dos sons, mas a partir de elementos sonoros discretos, os fonemas, algumas dezenas no máximo para cada língua, os sons das vogais e das consoantes próprios a cada sistema fonético. Mas isso não basta, obviamente: assim como o meu gato não faz música quando caminha sobre o piano, por mais que conheçam todos os fonemas do francês vocês não falarão essa língua, salvo se conhecerem sua gramática, suas regras de composição sintática e semântica. De modo que, como para a música, se lhes falarem uma língua que conhecem vocês não ouvirão mais sons, nem mesmo fonemas, ouvirão sentido. Por exemplo, se eu lhes disser”…”, e vocês não falam o alemão, ouvirão apenas sons. É mais ou menos o que se passa quando ouvimos a introdução de uma raga do Norte da Índia, chamada um alâp, abertura lenta e improvisada, que terá sentido para os ouvintes exercitados que reconhecerão em seguida o espírito e o sentido da música que começa, enquanto vocês e eu não saberemos sequer que ela começou ou se os músicos estão apenas afinando os instrumentos.
Então a música e a fala seriam a mesma coisa: sequências de sons elementares, arranjados segundo regras fixas, e que deixam de ser ouvidos como sons para serem compreendidos como sentido.
Desse ponto de vista, é verdade, nada distingue as palavras e a música. Mas há uma diferença essencial. O que dá sentido às palavras é que elas nos falam do mundo, elas nos informam sobre a realidade, podem ser verdadeiras ou falsas. O que dá sentido à música é que ela não nos fala de um mundo real, mas de um mundo imaginário em que os sons se encadeiam de maneira harmoniosa, em que eles parecem se seguir naturalmente, racionalmente. A música nunca é verdadeira ou falsa, mas pode ser bela ou feia, expressiva ou não, segundo a maneira como os sons se combinam, juntos ou sucessivamente. Contudo há tal analogia entre música e fala que alguns paleoantropólogos imaginaram que houve na evolução humana um estágio, anterior à linguagem e à música, chamado “musilinguagem”, um meio único de expressão e de comunicação para os nossos antepassados: esse único instrumento teria acumulado certos traços primitivos do que chamamos linguagem, em particular sua capacidade referencial (isto é, de referir-se às coisas e aos acontecimentos reais do mundo), e certos traços do que chamamos música, em particular sua potência emocional. Dois pontos comuns atestariam essa comunhão original, sintática e semântica. Em ambos, a unidade funcional de base da comunicação seria a frase, articulação sucessiva de unidades sonoras. A frase, seja ela linguística ou musical, se opõe, assim, ao grunhido ou ao grito (animal ou proto-humano). Em ambos, um repertório muito limitado de unidades discretas (notas num caso, fonemas no outro), distintas e oponíveis entre si, é selecionado a partir de uma infinidade de elementos acústicos possíveis: as frases são engendradas a partir das combinações desses elementos sonoros de base.
Quer essa hipótese seja verdadeira ou não, o fato é que notamos claramente que é a música na fala que a torna expressiva. Suponham que eu faça desaparecer de minha fala todos os seus traços de musicalidade, diferenças de altura, de duração, de acentos, portanto de fraseado, de entonação: eu-fa-la-ria-assim-como-uma-velha-voz-de-com-pu-ta-dor. Vocês mal compreenderiam o que eu diria. Em todo caso, nada saberiam de minhas emoções, de meus sentimentos, nem dos motivos que me levam a falar, nem das atitudes que busco obter de meus ouvintes etc. Ou seja, nossa fala não tem por função apenas falar do mundo, ela também tem, secundariamente, uma função expressiva: a de criar contatos entre nós (quando as pessoas “puxam conversa”, elas falam para estabelecer contato, mesmo se nada têm a dizer). Todas essas funções secundárias da fala são essenciais na música: toca-se música, escuta-se música, canta-se junto para exprimir nossas emoções comuns, para nos sentirmos juntos e pelo prazer da comunicação.
OS HABITANTES DO SILÊNCIO
Façamos um resumo. O silêncio é privação de ruído, de som, de fala ou de música. Mas o ruído, ele próprio, é também uma privação: ele é um som privado de sentido. O mesmo acontece com o grito. O grito está para a fala assim como o ruído para o som. O grito é a fala impossível, a fala impedida, a fala muda, da qual resta apenas a expressão vazia, a pura expressão que não diz nada senão a perturbação, a emoção, o pavor, a dor, o sofrimento, o insuportável sofrimento. O ruído ou o grito são as piores maneiras de habitar o silêncio. Mais vale o silêncio, evidentemente. O som é o segundo habitante do silêncio. Ao contrário do ruído ou do grito, necessariamente desagradáveis, o som é neutro. Mais, ele já é sentido: é um sinal de outra coisa que não ele mesmo, ele nos informa sobre os acontecimentos. Quando não é música nem fala, ele tem claramente um sentido, mas esse sentido é apenas o do acontecimento que o causa. Há um segundo nível de sentido e um terceiro tipo de habitante do silêncio. Pois uma série de sons, cada um tendo um sentido, é ela mesma privada de sentido, a menos que os compreendamos em seu conjunto, a menos que os ouçamos em sua unidade. Mas então, justamente quando ouvimos os sons desse modo, não ouvimos mais sons, ouvimos música ou ouvimos fala; sentido que se refere ao mundo é a fala, verdadeira ou falsa; sentido que exprime emoções é a música, agradável ou não. A música e a fala são os únicos habitantes propriamente humanos do silêncio, os únicos hóspedes desejáveis e mesmo mais desejáveis que o silêncio. Eles são sentido feito com sons.
O limite entre essas três privações, isto é, a separação conceitua! entre esses três tipos de silêncio (o silêncio como privação de ruído, de música ou de fala) não é evidentemente absoluta, e pode-se distinguir uma infinidade de nuanças. Por três razões.
Primeiro porque o silêncio não está apenas fora da música ou fora da fala, como um corpo estranho ou como um fundo sobre o qual se destacam formas, ou como a tela virgem que o quadro vem preencher; o silêncio também está sempre na música, assim como está na fala, faz parte integrante delas. Há o silêncio que precede, a música e do qual ela se separa para alçar voo, mas há também o que segue a música e do qual se diz, segundo uma expressão célebre, e no caso pertinente, atribuída a Sacha Guitry, que o silêncio que segue uma peça de Mozart é ainda de Mozart; mas há sobretudo os silêncios que estão na música, entre as notas, os que são marcados na partitura (a pausa, a semipausa, o suspiro, o meio suspiro, o quarto de suspiro), sem os quais a música não seria mais que um fluxo sonoro contínuo dificilmente suportável, em todo caso sem tensão nem descanso temporal porque sem ritmo, já que o ritmo supõe a articulação ordenada de sons entendidos e de silêncios subentendidos.
Do mesmo modo, há um silêncio que faz parte integrante da fala e que torna possível a articulação fonadora, mas há também a pontuação verbalizada ou ainda a conversação: os diretores de teatro e os atores sabem bem que é preciso dizer os silêncios tanto quanto as falas. Eis, portanto, uma nuança a dar à nossa segunda definição. O silêncio não é apenas ausência de ruído, de fala ou de música, ele é parte integrante da presença, isto é, do ser da fala e da música.
Segunda nuança: em realidade, não há distinção nítida entre música, fala e ruído. Não apenas porque há evidentemente músicas com falas (é o caso da maioria delas: a ópera, a cantata, o rock, o rap), do mesmo modo, aliás, que há falas musicais, como a poesia, mas os ruídos também podem, às vezes, fazer parte da música, a partir do momento em que se integram à continuidade da linha musical e não impedem sua compreensão.
Terceira nuança: é preciso o silêncio para que a música ou a fala sejam ouvidas. O silêncio deve fazer calar o ruído a fim de tornar possível o som. É preciso que o silêncio se imponha ao ruído para que o próprio sentido se imponha ao silêncio. Em outros termos: o silêncio é ao mesmo tempo a condição de possibilidade e de impossibilidade do sentido. Não há sentido sem o silêncio. Mas não há sentido no silêncio.
Daí a ambivalência do silêncio: ele é ora o melhor remédio contra o ruído, contra tudo aquilo que faz ruído, ora é o pior dos venenos, quando não é senão o vazio de sentido, a impossibilidade da comunicação, a repressão da expressão, o impedimento da fala, a afasia, a censura. O silêncio ora marca a sufocação do sentido que busca se dizer, ora remedeia essa mesma sufocação do sentido que é o ruído. Daí sua dupla função contraditória: permitir o sentido com a condição de que o sentido o rompa. Ele é a melhor e a pior das coisas.
A POSITIVIDADE AMBÍGUA DO SILÊNCIO
Assim, o silêncio não é apenas privação de algo. Ele é também, positivamente, algo em si mesmo.
Voltemos mais uma vez à obra de John Cage. É apenas silêncio que há nessa música? Essa obra silenciosa é somente desconstrução da música? Em todo caso, não é o que Cage diz de sua obra, não é em absoluto o que significa para ele essa composição.
Ele conta que, por volta do final dos anos 1940, fora visitar a câmara à prova de sons da Universidade de Harvard. Esperava ouvir o silêncio quando entrou na câmara, mas, como escreveu mais tarde, “ouvi dois ruídos, um agudo e um grave. Quando discuti a esse respeito com o engenheiro encarregado dessa câmara, ele me informou que o som agudo era o da atividade do meu sistema nervoso, e que o grave era o sangue que circulava em meu corpo”. Cage permaneceu a vida inteira incrédulo quanto ao fato de ser possível ouvir seu próprio sistema nervoso. A lição que tirou disso é que, mesmo num lugar feito para obter artificialmente um silêncio total (assim como outros físicos se esforçam por criar assintomaticamente o vazio ou chegar à temperatura do zero absoluto), verifica-se que há, mesmo assim, ruído. Ele acrescentou: “Até minha morte haverá sempre ruídos e eles continuarão a me acompanhar mesmo depois”. Foi nesse momento que decidiu compor sua peça 4’33”. E assim como as pinturas brancas de Robert Rauschenberg, aparentemente vazias, mudavam em realidade de tom em função da luminosidade da sala onde eram expostas ou em função da sombra das pessoas que as olhavam, os 4’33” de silêncio da obra, conta Cage a propósito de sua primeira audição, eram preenchidos: o primeiro movimento, pelo sopro do vento no exterior, o segundo, pelo pingar das gotas de chuva caindo no telhado, e durante o terceiro movimento “as próprias pessoas começaram a fazer todo tipo de ruídos interessantes ao falarem ou ao irem embora”[1]. De modo que, segundo um comentador de sua obra[2], os ouvintes da peça, em vez de ouvirem apenas os 4’33” de silêncio (isto é, de privação de música), puderam realmente ouvir a obra como constituída pelos ruídos acidentais que se produzem no aparente silêncio, e portanto ouvi-los e até mesmo escutá-los como se fossem o produto de uma intenção criadora, ou seja, considerá-los como se comportassem uma ordem, uma unidade, em suma, como se tivessem um sentido, o mesmo que atribuímos ao que ouvimos comumente como música. De maneira mais geral, sempre é possível escutar o silêncio não apenas como uma ausência, como a negação de algo que lhe falta, mas como certa presença, certa maneira de remeter a algo diferente: e essa presença se encontra nele, talvez, como sua negação – sons quase imperceptíveis, por exemplo -, mas se encontra mais seguramente fora dele – é o sentido que lhe atribuímos.
De fato, o silêncio não é apenas negação nem privação de sentido. Com frequência ele comporta um sentido: no caso de Cage, trata-se de um sentido relativo à música que ali não se encontra, mas que esperamos encontrar nele e que deveria estar ali. Ele significa nossa expectativa, nossa decepção, isto é, nossa escuta frustrada ou, ao contrário, despertada, redespertada – como o queria Cage. Pois o silêncio, se é privação de som, geralmente não é privação de sentido. Na maioria das vezes, está mesmo, como dizem, “carregado de sentido”. O vazio de som… está cheio de sentido.
Somente os oximoro (isto é, expressões que parecem contraditórias) permitem dizer esse sentido do silêncio – por exemplo, o de Montaigne: “ó calar que fala e bem inteligivelmente”[3]. É que em realidade há outra maneira de considerar o silêncio. Em vez de defini-lo pelo que não é e, portanto, como uma negação (como o branco se opõe ao preto, o cheio ao vazio, a negação à afirmação), em vez de defini-lo pelo que deveria ser e, portanto, como uma privação (como o vazio se diferencia em tantos tipos quantas são as maneiras de preenchê-lo), pode-se defini-lo por aquilo a que ele remete, por aquilo que ele significa. E aí não estamos mais numa relação diádica, mas triádica: o signo, presente; o referente, ausente, mas que o signo representa; e o intérprete para quem o signo faz sentido, isto é, aquele para quem a “coisa presente” (aqui, paradoxalmente, o silêncio) remete a algo distinto dele, mas que ele pode legitimamente re-presentar. Para que o silêncio seja significativo, para que seja signo positivo e não mais apenas negação ou ausência, para que se torne presença, é preciso que, por uma transmutação, a ausência que ele é se transforme em presença, não dele mesmo, mas de alguma outra coisa.
Em vista disso, a verdadeira questão não é, ou não é mais: o silêncio é a ausência de quê? Mas: ele é o signo de quê? Com a nuança de que, nesse caso preciso, de maneira curiosa e paradoxal, não é uma presença sonora que faz signo (como a palavra ou como a nota), mas, ao contrário, é uma ausência que faz signo. Daí o oximoro.
Tomemos um exemplo. Sartre usa muito essa figura do oximoro – é um traço de sua escrita, mas também de sua filosofia. Uma passagem de As palavras é particularmente saborosa a esse respeito. Lembrança de infância do jovem Jean-Paul:
Era festa. No Instituto das Línguas Vivas, a multidão batia palmas sob a chama movente de um bico de gás Auer, minha mãe tocava Chopin, todos falavam francês por ordem do meu avô: um francês lento, gutural, com graças avelhentadas e a pompa de um oratório. Eu voava de mão em mão sem tocar no chão; sufocava contra o seio de uma romancista alemã quando meu avô, do alto de sua glória, soltou um veredicto que me atingiu o coracão: “Falta alguém aqui: é Simonnot”. Escapei dos braços da romancista, me refugiei num canto, os convidados desapareceram; no centro de um anel tumultuoso, vi uma coluna: o próprio sr. Simonnot, ausente em carne e osso. Essa ausência prodigiosa o transfigurou. Muita gente não havia comparecido ao Instituto: alguns alunos estavam doentes, outros haviam se escusado; mas eram apenas fatos acidentais e negligenciáveis. Somente o sr. Simonnot faltava. Fora suficiente pronunciar seu nome: naquela sala repleta, o vazio penetrara como uma faca. Fiquei maravilhado com o fato de um homem ter seu lugar marcado .[4]
A ausência em carne e osso do sr. Simonnot é comparável ao silêncio ensurdecedor da música de Cage. O sr. Simonnot não está apenas ausente, sua ausência se torna presença para o avô de Sartre a quem ele falta, do mesmo modo que a expectativa frustrada da música, a espera ansiosa de alguém, a nostalgia do país, o luto do amado, não são somente ausências de alguém ou de alguma coisa, porque essas ausências, enquanto faltam a alguém, significam para ele alguma coisa. Essa ausência oximórica em carne e osso do sr. Simonnot é também comparável à apóstrofe febril de Bérénice ante o mutismo de Titus: “E o que diz esse silêncio?”. Essa fala diz o estupor de Bérénice diante da impossível fala de Titus[5], incapaz, por amor de Bérénice, de confessar o adeus inelutável, impotente em dizer que ele deve querer deixá-la sem poder querer deixá-la. Sim, esse silêncio quer dizer: “Eu te amo e te deixo; devo querer o que não posso querer; devo te dizer o que não quero te dizer; quero te dizer o que não posso te dizer”. Todas essas tensões, todas essas contradições se transformam necessariamente num silêncio no qual se ouve: “Nada posso te dizer, nada mais posso dizer”; e esse silêncio quer dizer a necessária impossibilidade do amor, a impotência total do poder absoluto, e a expressão oximórica de Bérénice – “O que diz esse silêncio?” – não é senão o reflexo simétrico da inexpressão contraditória do silêncio de Titus.
O silêncio, portanto, nunca é apenas ausência de som, ausência física de som, é sempre também presença de sentido, presença humana de sentido. Mas, como só se manifesta fisicamente pelo vazio e pela ausência, ele pode significar tudo – e o seu contrário -, como bem sabem todos os pacientes estendidos no divã e que espreitam, ansiosos, o sentido de suas próprias palavras no silêncio ambíguo do psicanalista.
O silêncio é ora morte, ora vida, ora vício, ora virtude, ora imposto, ora escolhido.
Há quem afirme que o silêncio é signo de virtude, por exemplo a virtude exigível do eterno feminino (a mulher deveria ser discreta, contida, reservada), ou ainda a virtude dos humildes ou dos habilidosos (os que sabem conter sua língua), pode-se opor que o silêncio é também sintoma de um vício de caráter (é o caladão, o taciturno, o retraído, o introvertido, o segredista, o dissimulado, o sorrateiro, o velhaco…).
Há quem afirme que o silêncio é signo de sabedoria (o sábio é recolhido, ele reflete em silêncio e só fala com conhecimento de causa), pode-se retorquir que ele é signo de loucura (é a angústia, o abatimento, o autismo, o sofrimento profundo dos grandes melancólicos).
É o silêncio signo de um espírito meditativo, a condição do recolhimento, o resultado de um pensamento interior tão rico que se abstém de toda formulação exterior? Ou o resultado de um espírito vazio, de um pensamento infecundo, estéril, incapaz de produzir qualquer expressão que seja?
É o silêncio signo de uma sensibilidade muito forte (“ele está aturdido diante de tantas desgraças”, “ela emudeceu de horror”) ou, ao contrário, é signo de uma total insensibilidade (“ele é surdo aos gritos de dor”, “ela nada tem a dizer a esse respeito”)?
É o silêncio uma manifestação de força? De fato, o tirano ordena laconicamente, abstém-se de falar, comanda o mundo com um olhar, impõe-se a todos com um sinal. É o silêncio, ao contrário, uma manifestação de impotência? De fato, o escravo está condenado ao silêncio, o prisioneiro é obrigado a se calar.
O “silêncio dos intelectuais”, do qual se fala de tempos em tempos quando a esquerda está no poder, significa sua aprovação tácita ou sua desaprovação muda? Não indica ele a confusão dos que não podem nem aprovar (porque o papel do intelectual deve sempre ser crítico) nem desaprovar (porque o papel do intelectual não é favorecer o “retorno da reação”)?
Diz-se que “quem cala consente”; mas com frequência se fala também de um “silêncio desaprovador”.
O luto se diz melhor no silêncio ou nos gritos dilacerantes das carpideiras?
Sabemos também o duplo uso contraditório do silêncio no cinema de suspense ou de horror: ora o silêncio parece tranquilizador (“ufa, a terrível tempestade por fim se acalmou, o monstro horrível por fim foi embora”), ora parece inquietante (“onde se esconde então o perigo? para onde foi esse monstro que de repente ficou silencioso?”).
A essa questão do silêncio, Pascal responde, perscrutando o céu: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”. Que seja. Mas o que é que o apavora? Que o Céu seja vazio ou, ao contrário, repleto de um Deus incompreensível? E o silêncio do próprio Deus, durante a catástrofe ou no momento do triunfo do Mal, que significa? Que ele se retirou do mundo ou que o habita em toda parte, à sua maneira? Esse silêncio, enfim, é signo da ausência absoluta ou da presença do Absoluto?
O silêncio é por natureza ambivalente. Ele diz necessariamente alguma coisa, mas pode dizer qualquer coisa. É sempre signo, mas nele mesmo nada significa. A razão é simples, ela reside na oposição entre nossas duas definições do silêncio: ele é ausência de som e presença de sentido. O sentido se diz aqui por uma ausência física, enquanto geralmente ele se diz por uma presença física (gráfica ou sonora…) e se constrói por confrontação, por diferença, com todos os outros signos de uma língua ou de um código qualquer. Mas silêncio nenhum pode, enquanto ausência, se diferenciar fisicamente dos outros silêncios; por isso essa ausência pode dizer tudo, pode representar qualquer coisa. Uma ausência, consequentemente, que não apresenta nada, mas que, consequentemente também, pode representar tudo – tal é o silêncio.
Onde encontrar a melhor ilustração disso? Talvez num último retorno aos 4’33” de John Cage. Que significa então o silêncio dessa música? Não que toda música é silêncio, mas que toda música é escuta e que toda escuta é silenciosa. Que não se pode ouvir a não ser no silêncio. Mas ela nos diz também outra coisa. Que toda ausência é também presença, enquanto signo, como a ausência do amado cantada pela alma do poeta místico San Juan de la Cruz:
La música callada
La soledad Sonora
La cena que recrea y enamora[6]
Conheço poucas línguas capazes de exprimir o oximoro que o silêncio é nele mesmo: praticamente apenas as duas línguas ibéricas, a espanhola e a portuguesa, são capazes, ambas, dessa expressão intraduzível: música callada/música calada). Há também certas músicas, em particular a de Beethoven, que fazem surgir, do fundo de seu próprio silêncio e da solidão de sua surdez então completa, a música mais sonora, sensível e significativa que se possa ouvir, ao mesmo tempo música calada e solidão sonora. Mas conheço apenas a língua portuguesa para dizer, mais que pelo silêncio, todas as ausências com uma única palavra, que é também uma música: saudade.
Tradução de Paulo Neves.
Notas
- Citado por Stephen Davies. “John Cage’s4’33”: Is it music?”. Australasian Journal of Philosophy. Australia: 1997, v. 75, n. 4. Retomado em: Idem, Themes in the philosophy of music, New York: Oxford University Press, 2003, p. 12. ↑
- Idem, ibidem, pp. 14-15. ↑
- Michel de Montaigne, Essais, 11, 12. ↑
- Jean-Paul Sartre, Les mots, Paris: Gallimard, 1964, p. 75. ↑
- Jean Racine, Bérénice, ato II, cenas, verso 627. ↑
- San Juan de la Cruz, Canciones entre el alma y el esposo: “La esposa”. ↑