Pintura sem palavras ou os paradoxos de Ingres
por Jorge Coli
Resumo
Apesar da grande unidade de conjunto da obra pictórica de Ingres (1780-1867), nela se descobrem estranhas contradições. Seus quadros iniciais não se distinguem dos últimos nem pela qualidade nem pelas características, no entanto há uma espantosa variedade de estilos. Seu ideal clássico, que ele defendeu com veemência contra o romantismo de Delacroix, tende a imobilizar os gestos e é distorcido por ambiguidades maneiristas, por um realismo minucioso que o leva a privilegiar uma linha carregada de sedução e de espiritualidade, por um alongamento que desrespeita as verossimilhanças das estruturas no corpo humano. Diante de sua Grande odalisca, os anatomistas disseram que ela tinha três vértebras a mais. Ingres também desdenha a unidade de perspectiva, mas como um naïf, de maneira antes primitiva que sistemática. Para um pintor que dizia que depois de Fídias e de Rafael nada mais havia a inventar, seu neoclacissismo perverso comete audácias que mais tarde Picasso, Matisse e outros vanguardistas vão admirar. Obstinado com o acabamento e a perfeição, trabalhava lentamente, multiplicando versões da mesma obra e evitando pintar retratos porque lhe impunham um prazo. Julgava-se incompreendido em seu tempo e investiu suas esperanças numa obra, O martírio de são Sinforiano, ainda hoje vista com desconforto na catedral de Autun, na França, o mártir e sua mãe lembrando imensos pássaros de asas abertas. Enigma de uma arte que não se deixa desvendar pela palavra, mas que oferece estupendas experiências fora das palavras.
Ingres não foi homem de escritos. Em 1870, apenas três anos após sua morte, Henri Delaborde já publicava um Ingres, sua vida, seus trabalhos, sua doutrina a partir de notas manuscritas e cartas do mestre,[1] que se tornou a principal fonte para o conhecimento das reflexões do artista. Porém, estas notas manuscritas eram muito fragmentárias. Constituíam-se de frases que o pintor rapidamente anotava em cadernos e, sobretudo, de observações que seus discípulos tomavam durante suas lições.
Nada de equivalente, portanto, a projetos teóricos ambiciosos, ou a inquietações como as que engendraram o Diário de Delacroix e os milhares de cartas escritas por Van Gogh. Mas convicções afirmadas e definitivas, sem dúvidas nem hesitações, sem necessidades demonstrativas, o que provoca por vezes efeitos contraditórios. E que são, a rigor, dispensáveis para o conhecimento de sua arte.
Um homem nem de escritos, mas de prática, nem de ideias, mas de convicções, que se exprimiam de modo breve. Muitas vezes, o próprio sentido de suas palavras parece nos escapar e mesmo suas referências, seus modelos proclamados, desde que os busquemos em sua pintura, tornam-se misteriosos. Rafael, por exemplo, foi seu objeto máximo de veneração intransigente — mas não é muito fácil descobrirmos aquilo que Ingres percebia em Rafael.
Tomemos A escola de Atenas. Através dela penetremos no que é possível chamar de um logos rafaelesco: dados que nos indicam os sentidos fundamentais de sua obra e de seu processo criador.
As personagens encontram-se dispostas em grupos que se respondem, mas o rigor simétrico passa despercebido graças às variantes que são neles introduzidas, e graças à animação dialógica, que cria um encadeamento de reações e distingue a “alma” de cada grupo. A composição cuida do espaço, bastante amplo para permitir uma folgada circulação da luz e da atmosfera, mas sem excesso, para que neles os seres não se encontrem perdidos. A solenidade da arquitetura é compensada pelos efeitos de transparência que permitem descobrir o céu, e que a tornam aérea. A altíssima qualidade do desenho está aliada ao tratamento nuançado da cor e ao jogo suave das luzes e das sombras. Tudo é essencial: tudo deve ser essencial. Nenhum sacrifício é feito ao pitoresco. Nada que nos desvie da intenção maior: sutilíssimo equilíbrio de elementos capazes de engendrar urna síntese harmônica.
Comparemos A escola de Atenas com a Apoteose de Homero, de Ingres, quadro exposto no Salon de 1827, espécie de manifesto clássico oposto ao Massacre de Quios, de Delacroix, que se encontrava na mesma exposição. Homero é aqui concebido como o ancestral de todos os grandes artistas do Ocidente. Dentre os homéridas, se destaca Rafael, à direita do bardo, dando a mão a Apeles. Ele é o único moderno admitido entre os antigos, que nos são mostrados de corpo inteiro.[2] Poussin,[3] o outro grande pintor, herdeiro privilegiado da tradição clássica, surge no registro inferior, entre os modernos, diante de Corneille e La Fontaine.
Aqui também a simetria é empregada. E a composição trata de ser rigorosa: uma frisa horizontal, um triângulo que contém e destaca Homero juntamente com as figuras da Ilíada e da Odisseia. O todo é reforçado pela arquitetura do templo, que serve de fundo e de cenário. Deslocada diante da disposição estrita, a glória alada vem coroar o grande bardo.
A simetria, entretanto, não se revela agora instrumento de delicado equilíbrio — ela é uma determinante, uma espécie de camisa-de-força à qual os elementos não podem escapar. O espaço perspectivo de Rafael, abrigando com largueza os homens, os edifícios, mas ainda a atmosfera luminosa, desapareceu. De que espaço se trata, aliás? Temos apenas alguns degraus, e um amontoado de personagens, cuja prodigiosa qualidade de acabamento pictórico faz com que elas estejam fechadas em si mesmas, prisioneiras das superfícies impecáveis que as constituem e de seus gestos imobilizados. Nesta superposição compacta de corpos, percebemos que o pintor teve que lutar para dispor os rostos de modo a que todos pudessem ser reconhecidos. E no fundo, levanta-se a frontalidade achatada do templo.
A simetria dura é contradita pelo realismo tão insistente dos retratos, que logo desviam nossa atenção e nos atraem para um jogo um pouco pueril — o de quem é quem, nessa galeria cerrada. São rostos trabalhados na autonomia das feições e das semelhanças, indiferentes ao projeto compositivo. Deste modo, aquele logos essencial, de síntese harmônica, próprio à arte de Rafael, perdeu-se. Se partíssemos dele para abordarmos o Homero de Ingres, seríamos obrigados a uma crítica impiedosa, que alguns, aliás, não se privaram de o fazer.
Deveríamos portanto descobrir qual é o logos específico a essa pintura para podermos discorrer sobre ela com pertinência. Mas isto não é tão fácil. Porque, ao avançarmos com chaves interpretativas, descobrimos contradições que as emperram, descobrimos aporias, descobrimos paradoxos.
Um primeiro. É muito clara a unidade no conjunto da produção de Ingres. Gaêtan Picon o assinala:[4] seus quadros iniciais não se distinguem dos últimos, nem pela qualidade, nem pelas características. Ingres surge, desde o princípio, como um artista que já possui todos os seus meios, e não conhecerá fases, ou evoluções. Suas viagens, o tempo que passa, não alterarão as certezas evidentes dos primórdios. É assim que A banhista de Valpinçon, pintada em 1808, pode ser reencontrada em 1863, na personagem da instrumentista de O banho turco, essa síntese erótica que o pintor conclui aos 83 anos.[5]
Inabalável unidade à qual se opõe, no entanto, “a espantosa diversidade de seus estilos”,[6] para retomarmos a exclamação de Robert Rosenblum, que enumera a coexistência nessa arte de: “o intenso realismo descritivo dos primitivos flamengos, a elegante pureza linear das pinturas dos vasos gregos, as grandiosas simetrias de Rafael, ou as sofisticadas ambiguidades dos maneiristas”.[7]
Isto tudo não traria problema se essas derivações se sucedessem no tempo, criando fases. Mas Ingres não conhece fases, e estas referências irrompem de quadro em quadro. Rosenblum tenta contornar a dificuldade atribuindo a cada “estilo” um gênero. Esta interpretação, entretanto, não é inteiramente exata. Basta examinarmos Rogério e Angélica — aqui na versão da National Gallery de Londres[8] para percebermos a justaposição de múltiplas referências formais na mesma tela.
A composição deriva claramente de um modelo maneirista, que encontramos em Saraceni e no Cavalier d’Arpino, nos quadros que retomam o tema de Perseu e Andrômeda, fonte clássica para o episódio de Ariosto, e que se encontram em Dijon e Bolonha.[9] Ele traz também, possivelmente, o eco do São Jorge e o dragão, de Paolo Uccello.[10] Mas ainda, em Rogério e seu hipogrifo, tal como Ingres os concebeu, existe a minúcia descritiva dos flamengos. E Angélica traz essa incomparável modulação sintética da linha, derivada, entre outras fontes, dos vasos gregos.
Ao paradoxo da unidade e da multiplicidade, sucede-se um outro, o da certeza e da dúvida. Ingres possui verdades inabaláveis: o desenho é superior à cor; as marcas do pincel devem ser absolutamente banidas; a natureza deve ser corrigida; a arte não surge da febrilidade, mas da paciência. Estas verdades compõem o caráter extratemporal, estável, de sua obra, ao qual nos referíamos antes, e seus quadros surgem como cristalizados num acabamento absoluto, por trás de uma superfície lisa e brilhante como esmalte. Porém — e é ainda Gaêtan Picon que expõe melhor o problema — Ingres foi um dos mais torturados artistas diante de sua própria produção. Trabalhava lentamente, com bloqueios, acreditando sempre que não conseguiria fazer, que não conseguiria terminar, passando por crises sucessivas, retomando sem cessar as pinturas, mesmo depois de acabadas, de envernizadas. Esta é uma das razões pelas quais detestava o trabalho de retratista — porque este trabalho impunha prazos, e porque os quadros se iam definitivamente, escapando de suas mãos para as mãos dos proprietários, fugindo assim à sua obsessão corretora. Esta é ainda uma razão pela qual multiplica, infindavelmente, inúmeras versões da mesma obra, alterando alguns elementos, por vezes copiando-a no sentido inverso, como se a visse no espelho. Sua certeza enfrenta a contradição de que o melhor não pode ser atingido, de que não há final.
Terceiro paradoxo. Ingres é o guardião do belo ideal, é aquele que intitulava Géricault e Delacroix de “apóstolos do feio” e julgava o romantismo francês insuportavelmente carregado de realismo. Ele desenvolvera uma arte altamente depurada, que se baseava numa primazia da linha idealizadora. Ingres fala sempre no primado do desenho, mas é preciso saber que, para ele, a ideia de desenho contém, antes de tudo, a ideia de linha.
Ingres pertence, como capítulo maior, a uma história da linha na pintura moderna, que ainda está para ser feita. Esta história atravessa todo o século XIX e se espraia no nosso. Mas ela irrompe como uma preocupação internacional nos anos de 1790. Flaxman — para citar apenas um dos agentes mais destacados desta questão — retomava as lições dos vasos gregos para ilustrar a Ilíada, a Odisseia, Esquilo e Hesiodo. Consideremos, dentre elas, Leucótea socorre Ulisses.
Estabelece-se, nesta imagem, uma nova relação entre o traço e o papel.
O primeiro, tênue e preciso, emerge na luminosidade clara da folha: ele é o constituinte único da forma, que abandona qualquer modelado. Sobre o fundo abstrato, a linha encontra-se na fronteira do mundo sensível, empregando um mínimo de materialidade, apenas suficiente para que o olhar se dê conta: a forma ideal mal aflora aos olhos. É como que se pairasse, nessas experiências, um espírito neoplatônico, onde a linha impalpável, carregada de espiritualidade e desembaraçada das cargas do sensível, atingisse as fronteiras do domínio das puras formas.
Na França, uma dissidência dentre os alunos de David, a seita dos Barbudos, ou dos Primitivos, pré-rafaelitas avant la lettre, chamava a atenção para a arte anterior a Rafael, extraía dela a linearidade insistente e as superfícies simplificadas, e criava alguns quadros, poucos, de espantosa abstração geométrica, como é o caso do Ossian, de Duqueylar,[11] datado de 1797, pertencente ao acervo do museu Granet de Aix-en-Provence.
Nele, as anatomias reduzem-se ao mínimo, e um braço, ou uma perna, são tratados com o mesmo cilindro que engendra um tronco de árvore. Outro pintor, um dos mais brilhantes do período, Girodet, em 1801, saberá inventar ninfas etéreas e artificiais, na parte inferior de seu Ossian, de longos braços e pescoços, numa prefiguração de muitos nus ingrescos.
Estes anos de 1790 são os da formação de Ingres. Ele não permanece insensível ao clima criado pelos Barbudos, nem, certamente, à pintura de Girodet. Ele se inspira muito diretamente em Flaxman[12] em algumas obras,[13] copia vasos gregos, atenta para a pintura italiana anterior ao Renascimento clássico. Dos relevos de Jean Goujon — e esta sua referência está ainda para ser seriamente estudada[14] ele retoma as admiráveis ondulações femininas. Pode assim formar esses corpos idealizados, nos quais o contorno define as formas, e adquire uma quase-autonomia, em suas sinuosidades que tendem para o imaterial, como n’A fonte, quadro realizado entre 1820 e 1856. Notemos que essa trajetória da linha possui uma natureza reflexiva. Ela não segue o fluxo produzido pela dinâmica do gesto que corre, desenvolto, sobre papel ou sobre tela, seguindo suas leis próprias, intuitivas e corporais, como é o caso dos nus de Matisse. Ao contrário, ela é cuidadosamente estudada, modificada, corrigida: ela é pensada. Até atingir essa precisa vibração que se encontra numa miraculosa confluência entre o sensível e o abstrato. A própria cor, unida, materializada em superfícies esmaltadas, limitada com nitidez pelo contorno, mantém um diálogo secreto com a linearidade, que ela separa e une ao mesmo tempo.
Mas Ingres é também o autor do retrato de m. Bertin (1832), espécie de quintessência da imagem do homem de negócios, do burguês endinheirado dos tempos do rei Luís Filipe. Ícone social do século passado, equivalente visual de personagem de Balzac, é muito evidente que a qualidade de um retrato como este depende daquilo que é oposto à abstração, isto é, daquilo que se convencionou chamar de realismo.
Ingres possui dois tipos de realismo, de naturezas diversas.
Um deles é o herdado do neoclassicismo de David. Seria enganoso supormos que este classicismo davidiano, porque classicismo, derive de ideais formais abstratos: ele é, em verdade e antes de tudo, um realismo. Parte sempre da observação empírica do objeto que adquire, em sua transposição pictural, uma força emblemática por meio de um tratamento antes de tudo técnico. Mas este tratamento se origina e depende da observação. A isto se acrescenta o fato de que, para esta arte, os modelos oferecidos pela Antiguidade clássica não são exclusivos. Isto é, a arte de David não se confina aos modelos greco-romanos — ao contrário, ela se dirige ao mundo, a todos os fenômenos do mundo. O Iluminismo da Enciclopédia mostra aqui sua face: a arte prescinde de uma seleção entre objetos visíveis nobres, e objetos visíveis vulgares. Não há tal: todos os objetos visíveis são dignos de representação. E a arte passa a ser, numa de suas funções, um processo de conhecimento do mundo.
É a partir destes princípios que David pode realizar seu Marat assassinado (1794).
Há uma formidável força de concentração nesses objetos escolhidos, poucos, estrategicamente colocados, que compõem o quadro. Mas esses objetos, e essa personagem, foram cuidadosamente percebidos, e cuidadosamente reproduzidos. Nada de referências à Antiguidade, alegorias, ou discursos culturais. A natureza de crime político contemporâneo permanece intacta e a observação basta como origem. Os elementos banais, pertencentes a um episódio da atualidade — uma banheira, uma faca, um caixote que serve de mesinha, uma pena de ganso, o rosto desgracioso de um cadáver —, passam, com prodigiosa força, a fixar, visualmente, um momento da história contemporânea.
É este mesmo realismo neoclássico que permite o esplêndido retrato de Jean-Baptiste Belley, por Girodet, de 1797 — onde a personagem é tratada com a mesma dignidade de um tipo físico clássico, e sem que a representação de um homem de outra raça seja feita através apenas do viés pitoresco.[15] E é este realismo igualmente que preside a acuidade das imagens que Debret realizou entre nós — o neoclassicismo lhe fornecia os meios para apreender quaisquer mundos, mesmo os desconhecidos.[16]
E é assim também que o realismo neoclássico autoriza o retrato de m. Bertin. Rosto envelhecido, cabelos despenteados, mãos gordas, mas esta atitude tensa, este olhar fixo e agudo, este desdém ao apoio no espaldar da cadeira, estes braços que fazem o corpo armar-se, como que a saltar: homem de negócios enérgico, ou animal de rapina.
Notemos entretanto que Ingres não abandonou os poderes do seu desenho linear: basta atentarmos para as curvas impecáveis e penetrantes da cadeira, para as ondulações no contorno dos arcos dos braços, produzidas pelas dobras nas mangas. Como no caso d’A fonte, o resultado linear deriva de um trabalho de observação do modelo.
Este é o primeiro realismo de Ingres.
O segundo é o produto de sua frequentação dos primitivos flamengos, e em particular dos Van Eyck. Um realismo da minúcia, do esmiuçar o ínfimo, trabalhando como que com uma lupa. O retrato de Napoleão I no trono imperial nos mostra uma associação inesperada, contraditória: a de uma imagem monumental, amplíssima, hierática ao modo de um pantocrator bizantino, contudo recoberta por uma abundância de detalhes minúsculos. São rendas, bordados a ouro, franjas, metais finamente cinzelados.
Ingres leva o rigor deste realismo ao ponto de fazer refletir, na base polida do trono de ouro, o desenho do tapete, que representa os signos do zodíaco inseridos em círculos. Apenas o último destes círculos é diferente: ele reproduz a Virgem da cadeira de Rafael. E ela parece bem necessária para testemunhar o amor que Ingres nutria pelo grande pintor de Urbino. Porque se ela não estivesse ali, nada no quadro permitiria suspeitar desse amor.
Ingres, o grande representante da tradição clássica, o Rafael moderno, nos lança um outro paradoxo: o do primitivismo em suas obras. Primitivismo e classicismo naturalmente se excluem. Mas Ingres é capaz de fazer um quadro como Paolo e Francesca (aqui na versão do museu de Angers, datado de 1819),[17] genialmente pré-rafaelita, e ao mesmo tempo tão claramente ingresco: basta percebermos como o pintor procedeu com o corpo de Paolo, que se desenrola, quase vegetal, até sua boca atingir, no apogeu de um estiramento, a face de Francesca. São as linhas que compõem a imagem de Paolo que chegam até Francesca. Ele próprio está imobilizado por este acabamento que cristaliza. A pintura de Ingres não comporta a representação do movimento: o livro que Francesca deixou cair paira, fixo no ar, interrompido na sua queda.
Voltemos porém ao corpo de Paolo, que desafia todas as leis da anatomia em seu alongamento. Estamos diante de uma das características mais célebres da arte de Ingres: seu desrespeito às verossimilhanças das estruturas do corpo humano. A grande odalisca, do Louvre, de 1816, foi objeto de críticas imediatas, e de perplexidades: onde se articula a perna esquerda? E esse braço direito, desossado, absurdamente longo? E essa anca imensa acoplada às espáduas estreitas? Mas essa mulher tem três vértebras a mais!, gritam os anatomistas. E eles têm razão: do ponto de vista das proporções do corpo humano, ela é sem dúvida um monstro. De uma beleza suprema, no entanto: as linhas serpenteiam, inefavelmente; as matérias possuem texturas preciosas e sedutoras; e o antiquíssimo tema do nu feminino é aqui renovado com contribuições definitivas.
Originalidade e monstruosidade: aconteceu algo de estranho com a. formação neoclássica de Ingres. David levara como fundamental procedimento de escola o estudo das partes que deveriam constituir um quadro. O mundo e os corpos eram trabalhados em seus elementos: cada objeto, mas também um nariz, uma boca, um pé, um gesto, uma expressão. Uma vez que esses estudos parciais tivessem chegado a um ponto satisfatório, as partes eram reunidas para constituir o todo. Ingres, a partir deste método, trabalha cuidadosamente, obsessivamente, as partes: ele deixou belas pranchas de estudo, como as do Martírio de são Sinforiano.
David, porém, tinha uma exigência fundamental para a formação de um pintor: o estudo aprofundado da anatomia, que garante a unidade coerente dos corpos. David exigia mesmo que todas as personagens fossem primeiro representadas nuas, dentro de um rigor anatômico estrito. Esses estudos eram transpostos para a escala maior do quadro através do processo do desenho quadriculado — como é o caso de seu estudo que figura o papa Pio VII, uma das personagens da Sagração de Napoleão.
Um quadro inacabado de David, O juramento do jogo de péla, permite compreender uma outra etapa deste processo. As cabeças foram terminadas. Os corpos permaneceram desenhados, em seu estado inicial, isto é, nus. Eles deveriam ser vestidos posteriormente. Tudo isto formava uma disciplina estrita de execução que evitava, justamente, a geração de monstros.
Ora, se, por um lado, Ingres, herdeiro de David, desenvolve exacer-badamente o princípio do estudo das partes, num perfeccionismo obsessivo, por outro, desdenha os instrumentos da unidade anatômica. Deste modo, ele perverte a disciplina neoclássica que, em suas mãos, se torna aberrante. Por exemplo, um estudo para o Banho turco revela a hesitação na postura dos braços. Primeiro, Ingres desenha o braço direito apoiado sobre o joelho. Em seguida, o imagina dobrado para trás, com a mão apoiando a nuca. Será esta a posição definitivamente escolhida e transportada para a tela. Ingres, entretanto, não se preocupa em corrigir as mudanças anatômicas que a nova atitude determinaria — isto é, não se importa em fazer as alterações que seriam necessárias, no ventre, no seio.[18] Basta uma continuidade linear e a questão está resolvida.
Um outro quadro, Antioco e Estratonica, aqui na versão do museu de Chantilly,[19] de 1840, mostra, na sublime figura feminina, um defeito anatômico que os críticos contemporâneos já assinalavam:[20] é impossível adivinhar onde está o braço esquerdo, cuja mão parece sair do nada. Mais: as proporções das personagens, suas relações com o espaço compartimentado, como baldaquim, com as colunas, com os desenhos geométricos do solo, são estranhas, aproximativas. Elas se encontram em situações imprecisas. Além da unidade anatômica, Ingres desdenha a unidade perspectiva.
Não há aqui, entretanto, espírito de sistema, e as deformações, justaposições eclodem além daquilo que é intencional. Temos a impressão que elas “acontecem” nos quadros de Ingres. Ele não possui o pressuposto básico dos maneiristas, de um Pontormo, por exemplo, que é o do jogo proposital com as regras da anatomia e do espaço. Por isso, Ingres é único em seu tempo por sua prática: ela não pode ser imitada, ela não pode ser ensinada.
Tudo isto deveria falar à pintura do futuro. São fenomenais audácias — embora Ingres certamente recusasse com horror tal palavra. E Manet, Renoir, Seurat, Matisse, Picasso, viriam sucumbir ao fascínio dessa arte. E eis Ingres, o reacionário que se afirmava contrário a toda novidade em arte, que acreditava na natureza extratemporal da arte, que proclamava não haver depois de Fídias e Rafael mais nada a inventar e que a função dos artistas seria a de “manter o culto do verdadeiro e perpetuar a tradição do belo”, retomado, admirado, louvado pela vanguarda que o sucedeu! Ingres, o acadêmico, patrono de Picasso.
Como entender tantas contradições? Poderíamos fazer apelo, talvez, a um princípio básico na arte de Ingres, algo que chamaríamos de colagem. Seu neoclassicismo perverso permite ajuntar partes sem o rigor da escola. Estas partes, porém, podem possuir não apenas formas, mas tratamentos distintos. Diante de Júpiter , de torso fortemente modelado, descobrimos uma Tétis com tão pouco relevo que mesmo o ombro, visto de perfil, desapareceu, para que a personagem toda se transformasse em linhas trabalhadas tão poeticamente.
Mais ainda: essas partes podem possuir naturezas culturais diversas: é assim que, no Voto de Luís XIII , de 1824, o pintor cita Rafael na imagem da Virgem, e Philippe de Champaigne na figura do rei.
Lionello Venturi escreveu, a partir deste quadro, algumas das páginas mais cegas sobre Ingres, e sua acusação fundamental é a da ausência de unidade. É verdade que essas colagens parecem justapostas sem preocupações de síntese que as justifiquem. Mas o logos de Ingres não contém a unidade. O artista dispõe imagens sobre uma superfície, bastando-lhe um trabalho sobre elas que se reduz quase ao artesanal, trabalho lento, concentrado no acabamento, na perfeição da parte, que guarda, cada uma, um princípio de autonomia, e possui uma certa indiferença em relação às outras. Os elementos não se harmonizam entre si — articulam-se como podem, às vezes pelo meio admirável da linha conduzida, às vezes pela simples concomitância.
Não é inútil assinalar aqui um traço biográfico: a origem de Ingres é modesta, sua formação muito pouco intelectual. Seu pai era artesão, escultor de ornamentos, dourador. Isto pode ser um dado para a compreensão de uma pintura que busca seus caminhos através de uma prática, em cujos princípios encontra-se, de maneira forte, o respeito pelo trabalho perfeitamente acabado. Outro ponto é que esta ausência de cultura poderia conduzi-lo a um discurso ingênuo, feito de simbolismos e mensagens pessoais, não muito longe de certos processos da arte naïf, e que pôde estar presente na obra de Courbet — mas isto, em Ingres, não aconteceu, pois ele se fecha em seus procedimentos, e não busca estruturas mentais explicativas.
Ingres, em seu tempo, julgava-se um incompreendido. Exilou-se voluntariamente na Itália durante longos decênios, em reação à crítica e ao público de seu país. Foi admirado sobretudo por seus desenhos e por seus retratos. Mas ele queria o respeito por suas pinturas mais ambiciosas e complexas. Investiu suas esperanças numa obra que considerava máxima: O martírio de são Sinforiano, de 1834. Que foi um fracasso, de crítica e de público.
Ingres esperava que a posteridade o vingasse. Até hoje isto não aconteceu — São Sinforiano é o quadro mais mal amado do pintor. O recado, entretanto, foi claro: era esta a obra-prima.
Imagem poderosa, onde os gestos amplos dialogam entre si, fazendo com que o mártir e sua mãe lembrem imensos pássaros de asas abertas, luminosos diante do acúmulo de seres que se amontoam num triângulo, São Sinforiano concentra os segredos da arte de Ingres.[21]
Nós começamos nos perguntando qual seria o logos dessa arte, e avançamos cada vez mais dentro da natureza inacessível que é a dela. Ingres parece exemplar em seu radicalismo porque, justamente, não se deixa reduzir a um logos. Seria tão fácil, tão cômodo, se encontrássemos alguma razão fundamental: a harmonia, a unidade, a expressão, a força, um projeto coerente de construção, ou de destruição do mundo visível. Mas Ingres é, decididamente, um pintor desconfortável. São Sinforiano, enigma máximo da esfinge, fica a distância, na catedral de Autun, indecifrável.
Ingres não se entrega, e desafia o logos — desafia o próprio princípio do logos. Sua arte não se deixa desvendar pela palavra. Ela nos conduz justamente ao mistério, à exasperante impossibilidade de nomear. Mas nos oferece, em contrapartida, estupendas experiências fora da palavra.
Notas
- Henri Delaborde, Ingres, sa vie, ses travaux, sa doctrine d’après les notes manuscrites et les lettres du maitre, Paris, Plon, 1870. ↑
- Dante também se encontra de pé, mas no plano inferior, sob a mão protetora de Virgílio, no alto. Ele constitui ali um elo histórico entre o passado e o presente clássicos. ↑
- Poussin está no primeiro plano, e indica Homero, com um gesto do braço esquerdo, isto é, a fonte clássica absoluta, modelo e origem. No desenho conhecido por Homero deificado, pertencente ao museu do Louvre, o quadro é retomado por Ingres para servir de base a cópia em gravura. O desenho foi realizado entre 1840 e 1865, momento de radicalização do combate antimoderno de Ingres, que procede a certos remanejamentos iconográficos. Um deles é a introdução de David, seu mestre e restaurador recente das verdades clássicas, inserido atrás de Poussin e, aos pés de David, o retrato do próprio Ingres em criança. A natureza simbólica da filiação se torna evidente: Ingres, o último herdeiro e paladino das tradições clássicas. Assinalemos ainda o caráter enumerativo da iconografia que, apesar da erudição com a qual se reveste, toma o sentido de manifesto pessoal, discurso mais ou menos cifrado que uma certa ingenuidade do artista do inculto impõe ao seu público. Neste sentido, A apoteose de Homero (ou o Homero deificado) possui certa equivalência com O ateliê do pintor, de Courbet. E neste quadro também um garotinho participa dos jogos simbólicos. Porém, o menino de Courbet é o exato contrário do de Ingres, pois ele contempla uma paisagem — isto é, um quadro em princípio desprovido das altas referências eruditas da pintura de história — contrariando a ideia de uma filiação à cultura clássica — ou a qualquer cultura literária — e ligando a inocência da infância à inocência da observação da natureza. ↑
- Gaêtan Picon, Ingres, Genebra, Skira, 1967. ↑
- Vários outros nus próprios ao universo interno de Ingres se superpõem à referida personagem de O banho turco e A banhista de Vcapinçon. Entre eles A pequena banhista, do museu do Louvre. ↑
- Robert Rosenblum, Ingres, Londres, Thames and Hudson, 1967. ↑
- Idem, ibidem. ↑
- Afora as três versões que retomam o personagem de Angélica, da qual a mais completa é a do Museu de Arte São Paulo, Ingres realizou três versões do quadro. A do museu do Louvre, em formato horizontal, é a mais ampla, menos concentrada, e por isso mesmo, talvez mais quattrocentesca. As da National Gallery de Londres e do Museu de Montauban, muito mais sintéticas, reencontram claramente esquemas compositivos formais do maneirismo (vide nota 9). ↑
- Carlo Saraceni, Andrômeda acorrentada, libertada por Perseu, Musée des Beaux-Arts de Dijon; Cavalier d’Arpino, Perseu e Andrômeda, Pinacoteca Nazionale de Bolonha. A questão está sendo estudada por José Roberto Nocite Filho, que deverá publicar um artigo sobre Rogério e Angélica de Ingres na Revista de História da Arte e Arqueologia, da Unicamp. ↑
- Como o assinalou Rosenblum em “Ingres”, Revue de l’Art, n° 3, 1969, pp. 101-3. ↑
- Paul (ou Paulin) Duqueylar, pintor de grande interesse e muito pouco estudado, foi autor de obras poderosamente abstratas — no sentido que Rosenthal dá a esta palavra. Elas configuram o conjunto mais radical e expressivo do espírito que animava a seita dos Barbus. O quadro a que nos referimos é bastante precoce dentro da iconografia ossiânica. O nome do pintor não se encontra arrolado nos principais dicionários, enciclopédias e histórias da pintura referentes ao período. Ele não foi mencionado no catálogo da importante exposição de 1974, “De David à Delacroix, la peinture française de 1774 à 1830”. Menção em E. J. Delécluse, Louis David son école et son temps, 11 ed., Paris, Didier, 1855, ed. reimpressa por Macula, 1983, pp. 61-2, e 95-6, onde se encontra uma rápida biografia, da qual extraio esta passagem: “Il exposa, en 1797, un tableau répresentant Ossian chantant ses vers, ouvrage qui sans doute n’était pas sans énergie, mais dont l’aspect était si sauvage et si bizarre qu’il ne trouva d’indulgence qu’auprès de quelques-uns de ses amis, dont d.eux ou trois devinrent ses admirateurs fanatiques”. Breve menção ainda em Jean-Pierre Mouilleseaux, “David et ses élèves”, Beaux-Arts Magazine, n? 5, Paris, pp. 54-9, set. 1983. Este artigo traz imprecisões, em particular no que concerne a algumas datas citadas. O museu Granet, de Aix-en-Provence, possui a maior parte das obras desse artista. ↑
- Entre outros estudos, ver, para a relação Ingres-Flaxman: Ferruccio Ulivi, “Flaxman, l’ideale e il suo calco”, Flaxman e Dante, Corrado Gizzi, Milão, Mazzotta, 1986. ↑
- É oportuno lembrar que, em seu Homero deificado, versão em desenho da Apoteose de Homero, que atualiza iconograficamente suas referências clássicas, Ingres inclui Flax-man entre os homéridas modernos. ↑
- A admirável caligrafia que traça o contorno das ninfas de Jean Goujon possui afinidades estreitas com o desenho de Ingres, que nutria grande admiração pelo escultor da Fonte dos inocentes. Jean Goujon é citado por Ingres em Don Pedro de Toledo beijando a espada de Henrique IV, que reproduz as cariátides da tribuna do Louvre, e surge entre os homéridas no Homero deificado. Não há dúvida que Ingres procedeu a uma meditação sobre a linearidade desse artista maior do Renascimento francês, para constituir os próprios caminhos de seu traço. ↑
- Dentre as figurações de tipos exóticos deixadas pelo neoclassicismo, bastante numerosas, cito aqui uma outra, por sua altíssima qualidade, o soberbo Retrato de negra, de mme. Benoist, datado de 1800 (Louvre), onde a pose altiva da personagem mescla-se com uma notável sensibilidade erótica. ↑
- Um certo nacionalismo mal informado quer ver nessas obras de Debret uma ruptura com sua formação neoclássica causada por uma interferência determinante do meio brasileiro que, por alguma obscura virtude subversiva, transformasse seu modo de ser artístico. Este raciocínio ignora dados elementares, dentre os quais esta característica fundamental do realismo neoclássico, que dava aos pintores o poder de retomar quaisquer imagens, de quaisquer mundos, e de incorporá-las por via de instrumentos já perfeitamente possuídos de antemão. É puerilidade ideológica imaginarmos que a paisagem brasileira tenha sido fator de transformações dos procedimentos artísticos de Debret. ↑
- Ingres realizou sete versões desta obra. ↑
- Jacques Rivière, em “Ingres”, Etudes, Paris, Gallimard, 1925, notou, p. 33, essa aberração. ↑
- Ingres realizou quatro versões desta obra. ↑
- Assim, esta citação extraída do verbete Stratonice, do Grand Dictionnaire Universel Larousse du XIXe. siècle: “Cette figure de Stratonice, a dit T. Thoré, est admirable de simplicité et de calme. La tête est appuyée sur la main droite, à la manière des statues antiques qui symbolisent la pensée ou la méditation intime. La draperie, d’un bleu fin argenté, est d’un ensemble très gracieux, quoiqu’elle ne laisse pas assez transparaitre le modelé de la forme. Par malheur le bras gauche est perdu et la main vient on ne sait d’oú. ↑
- Quadro sem dúvida de ressonâncias picassianas, guernicanas, pela alta proclamação dos gestos, pela fixação das expressões. ↑