2005

Poesia vírgula viva

por Armando Freitas Filho

Resumo

Para que se entenda a poesia dos anos 1970, é preciso abordar primeiro a saudável disputa que houve no início dos anos 60 entre concretistas e praxistas versus poetas independentes, muitos dos quais sobreviventes da difamada geração de 45, que pregava que as vanguardas brasileiras tinham se alienado do efervescente processo político de então. Aqueles acreditavam, com Maiakovski, que “sem forma revolucionária não há conteúdo revolucionário”, motivo pelo qual procuravam praticar, através de “saltos-conteudísticos-participantes”, uma integração não hermética entre compromisso político e novidade estética. Eram seus principais integrantes Decio Pignatari, Mario Chamie e Affonso Ávila, sendo este expoente do movimento que nasceu da revista mineira “Tendência”.

Poetas da “Civilização brasileira”, formados na ideologia populista dos CPCs, diziam-se engajados à Sartre, ou seja, defendiam a popularização do produto cultural, mesmo que em detrimento da qualidade deste. Deles, destacou-se, desde “A luta corporal” (1954), Ferreira Gullar, que passou a experimentar a poesia de cordel. Tanto que, em 1962, publica pela revista da UNE “João Boa-Morte, cabra marcado para morrer”. Tratava-se de uma manobra tática que, no caso, resultava de um recomeço a partir de um marco zero mais objetivo e contundente tendo em vista a realidade política de então. Tal manobra, quando adotada por poetas menos talentosos, resultou numa poesia demagógica e diluída, mais oportunista do que oportuna. Se o objetivo era a denúncia social, tal geração estava aquém do Drummond de “A rosa do povo” (1945), do João Cabral de “Vida e morte severina” (cordel de 1955) e do Vinícius de Moraes de “Operário em construção” (1959), obras rigorosas e eficientes, sem abdicações, concessões ou pieguices.

Se a produção de 1962/3 fracassou, a de 1968 não poderia ter sido diferente, dado que reproduziu o modelo anterior, como se verifica na primeira edição de “Poesia viva”. E isso sem o talento de Gullar, que tinha, então, retomado sua própria voz desde a “A luta corporal”. De 1968 é também o movimento tropicalista. Ele que, ao não se restringir à música popular brasileira, representa para as vanguardas o que o movimento antropofágico representou para o Modernismo de 22.  De apelo fortemente visual, havia também a Poesia processo, último movimento vanguardista a declarar a extinção do “literário”. E isso a ponto de, nas escadarias do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, rasgar livros de Drummond, Cabral etc. O impasse era – claro – radical. De um lado, as vanguardas pressionadas interna e externamente por uma maior necessidade de comunicação e participação, a ponto de abdicar da palavra em favor de signos, bolotas e triângulos, ou seja, o silêncio advindo da repressão mesma; de outro, a poesia insuficiente e artificial.

Assim, coube à contrarrevolução cultural tropicalista trazer a arte brasileira de volta ao seu chão, tal como pretendeu, anos antes, Oswald de Andrade. A diferença, então, estava na integração multidisciplinar, como num “pau-brasil” eletrificado ou num cafarnaum em que o poema não se expressava somente na página, mas também na voz, no palco, sob o som estridente das guitarras.

Também o mencionado movimento “Práxis”, voltado então não só para a vanguarda mas também para a pesquisa vocabular, libertou a palavra do mutismo concretista, de modo a reabilitar o “discurso”, o fluxo frasal, o trânsito verbal, a face subjetiva e o sonho qualificativo. Mais: influenciou outros segmentos artísticos. Notadamente: o Cinema Novo, com Carlos Diegues e Maurice Capovilla – ambos participantes da revista “Práxis” –, e as composições de Chico Buarque, a exemplo de “Pedro pedreiro” e “Construção”.

Era assim que a vanguarda desmontava-se de dentro: lutando desesperadamente pela sua sobrevivência enquanto poder, através, sobretudo, do auditório ou dos meios de comunicação de massa. Foi, pois, da tentativa de manter um casamento espúrio que nasceram as novas tendências da poesia brasileira. E, desta, mutantes em transe e trânsito, muitos dos quais embarcados na “Navilouca” de 1974.

Essa foi, com efeito, a revista que apresentou o novo Brasil ao Brasil, em que Augusto de Campos “cometia” um soneto e Caetano Veloso assinava o poema “Viva a vaia”. Antes do presente, era imperioso – como costuma acontecer com a vanguarda – descobrir o futuro. Mais: o profeta. Como anunciava Augusto de Campos, seria ele Caetano? E quais seriam os poetas reabilitados pelas prospecções na historiografia literária? Sousândrade e Kilkerry surgiam de revisões críticas de competência inegável. Junto, infelizmente, um provincianismo cultural maniqueísta, que recusava, por exemplo, um Mário de Andrade ou um Gonçalves Dias.

Fato era que a poesia de “Galáxias” de Haroldo de Campos desanimava. Verborreia tatibitate de causar inveja em Coelho Neto ou Rui Barbosa, ela, ao contrário do que julga seu autor, era de natureza pré-joyceana. Ao invés de primeira, primária. A transição seguia, contudo. Tanto que é a partir da aliança estabelecida entre concretos e tropicalistas que a nova poesia perde sua orientação. Mas há exceções, como, por exemplo, Torquato Neto e Waly Sailormoon, com seus caminhos e descaminhos, em que se encontram os mais diversos estilos. Nada de continuidades organizadas ou cronologias, já que cada poema é único, em seu único e sempre outro momento.

À margem de toda essa confusão, seguia a poesia brasileira já consagrada. Drummond publicava “Boitempo”, “A falta que ama”, “Menino antigo” e “Discurso da primavera e algumas sombras”. João Cabral lançava, em 1975, “Museu de tudo”, um balanço conciso – claro – de sua obra. Muito em função de Haroldo de Campos, Oswald de Andrade ressurgia 21 anos depois. Descobria-se a contemporaneidade de Luiz Aranha. A casualidade de Manuel Bandeira continuava elaborada. Místicos e visionários, Jorge de Lima e Murilo Mendes ainda construíam suas próprias naviloucas.

No mais, os vanguardistas mais eminentes – que, claro esteja, foram, sim, interlocutores do debate cultural – reuniam suas obras completas, a exemplo de “Código de Minas” e “Poesia anterior” de Affonso Ávila, “Objeto selvagem” de Mario Chamie, “Poesia pois é poesia” de Decio Pignatari e “Xadrez de estrelas” de Haroldo de Campos. Isso indicava o encerramento da ideia de poesia como poder, ortodoxia e sectarismo.

Sem “paideumas”, fatalidades estéticas e visões ordenadas sob prismas ou parâmetros determinados, era o momento de aproveitar a liberdade por que lutaram os modernistas. “Pluralismo” era a palavra – sob a qual se reuniram Lélia Coelho Frota, Olga Savary, Carlos Nejar, Cláudio Willer, Fernando Py, Ivan Junqueira, Octavio Mora, Gastão de Hollanda, Florisvaldo Matos, Maria Amélia Melo, Fernando Mendes Vianna, Elizabeth Veiga, Leonardo Froes, Carlos Rodrigues Brandão, Yone Gianetti Fonseca, Marly de Oliveira, Paulo Mendes Campos, Affonso Romano de Sant’Anna, Ricardo Ramos, Maria Lucia Alvim, Armando Freitas Filho, Nauro Machado, Pedro Paulo de Sena Madureira, Mauro Gama, Moacir Félix, Carlos Henrique Escobar, Adão Ventura, Libério Neves, Walmir Ayala, Armindo Trevisan, Gilberto Mendonça Telles, Mário de Oliveira, Pedro Garcia, Leila Miccolis, Jorge Wanderley, Sebastião Uchoa Leite, Ivo Torres, Hayle Gadelha, Teimo Padilha, Cleber Teixeira, Ronaldo Periassu, Luiz de Miranda, Astrid Cabral, Affonso Félix de Sousa, Gramiro de Matos, Ana Maria Miranda, Adaíton Medeiros, Alberto da Costa e Silva etc.

Paralelamente, Torquato e Waly, a que se juntou Chacal, avançavam no que se convencionou chamar de “poesia marginal”. Sob influência de Jorge de Lima e Murilo Mendes, Afonso Henriques Neto e Roberto Piva também trabalharam nesse sentido. Valendo-se de uma ambientação surreal e da enumeração “mágica” do caos, ambos prestam um independente tributo à “poesia em pânico”. No mais, “O misterioso ladrão de Tenerife”, que Afonso escreveu com Eudoro Augusto, é um livro curioso, até hoje subestimado pela crítica.

Também “marginais” foram as produções do “Grupo escolar”, Cacaso, Geraldo Carneiro, João Carlos Pádua, Bita, Antônio Carlos Brito, Luís Olavo Fontes, Carlos Saldanha e, à frente do grupo “Nuvem cigana”, Charles, Ronaldo Santos e Guilherme Mandaro.

Muitos desses nomes – note-se – vieram à tona com a antologia “26 poetas hoje”, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda.

Já a antologia “Folha de rosto” revelou César Cardoso, Marcos Vinício, Claudius H. Portugal, Adauto, Maira, Durval de Barros, Fernando, R. Arnt.

Tão importantes quanto foram as revistas “Gandaia”, “Pólen” e “Através”, sendo que estas revelaram, em tempos de feminismo, Pagu (Patrícia Galvão), Adélia Prado, Angela Melim, Ana Cristina César e Isabel Câmara.

O fim da década de 70 surpreenderia ainda com seus cinepoetas, tais como Sérgio “Azul” Santeiro (e seu “Saudades de Copacabana”), Aristides Klafke, Flávio Nascimento, Nicolas Behr e Tavinho Paes (de que se destaca “Cat xupe”). E, como letristas, os já mencionados Torquato, Waly, Capinam e Cacaso, além de Geraldo Carneiro, Tite de Lemos, Xico Chaves e Abel Silva.

Merecem ainda toda atenção Alex Polaris, com seu “Inventário de cicatrizes”, em que o Brasil da repressão e da tortura aparece por inteiro, e o manuscrito “As marcas do Zorro”, do mencionado Tite de Lemos, com sua “gota de sangue em cada poema”.


DA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA À PINDAÍBA

Em 1968, pouco antes de serem apagadas todas as luzes e começarem a bater abaixo da cintura, a editora Civilização Brasileira publicava Poesia viva 1, com introdução de Antonio Houaiss, datada de 1º de agosto. Neste texto, escrito com toda pompa e circunstância, se lia: “Primeiro, poetar é necessário; segundo, isso implica em publicação; terceiro, a editoração de poesia é, de regra, economicamente deficitária; quarto, há que superar o estrangulamento (já ajudando a matar os poetas e seus poemas, já encontrando-lhes um veículo de comunicação).” E mais adiante: “É que a experiência e bom êxito que dela derivarem irão por certo condicionar o aparecimento de Poesia viva – 2 e 3, e 4, 5 … e n.”

Se os pontos abordados por Houaiss apresentavam um diagnóstico correto – e atual – da situação do poeta e da poesia brasileira, sua previsão editorial iria se revelar completamente frustrada. No fundo, acertava como crítico e falhava como profeta: Poesia viva 2, nos mesmos moldes, só viria a lume dez anos depois. A poesia mais comprometida com o debate cultural daí para frente iria continuar viva, sim, mas graças ao empenho pessoal de cada poeta, sem quase nenhum apoio ou legitimação editorial. O que se conseguiu com Poesia viva / foi prolongar e institucionalizar (para se fazer uso de um termo muito em voga na época) as experiências volantes dos Violões de rua, aparecidos nos anos de 1962 e 1963. Nesses anos ocorria uma saudável disputa entre a vanguarda estética representada principalmente pelo movimento da Poesia Concreta e Instauração Práxis versus poetas que não se filiaram a nenhuma dessas correntes, muitos desses últimos sobreviventes mais ou menos inteiros da tão justamente difamada geração de 45, e que entendiam que os movimentos de vanguarda se alienavam do processo político efervescente do Brasil de então. Concretos e praxistas usavam, cada um a seu modo, a máxima de Maiacóvski: “sem forma revolucionária não há conteúdo revolucionário” e procuravam realizar, através de esforçados “saltos-conteudísticos-participantes”, uma abordagem e uma integração mais concreta (sem duplo sentido, aqui), menos hermética, um texto político, enfim, que apresentasse um compromisso maior com a realidade circundante e que, sem perder sua novidade estética, conseguisse maior legibilidade e comunicação. Como exemplo do que foi dito, vamos citar três poemas, de poetas de vanguarda como Décio Pignatari e Mario Chamie, que representam os movimentos Concreto e Práxis, respectivamente, e Affonso Ávila, que representa o movimento dissidente da poesia concreta em Minas Gerais, que se reunia em torno da revista Tendência:

beba coca cola

babe cola
beba coca

babe cola caco

caco

cola

cloaca

(Decio Pignatari)

Adubo

Outubro,

o mês açula o povo.

Modorra

atrás, na frente esforço e moço

velho

e moça; um entrar sempre um

entrar

na luta faz de todos

(velho e moços)

a mesma hora que é do povo

em grupo

no mês que açula o povo:

outubro.

(Mario Chamie)

Carta sobre a usura

A usura gera

de seu ovo

(homem solércia

pele solércia

urso solércia

fome solércia

uso solércia)

A usura cresce

de seus embriões

(no homem calvície

na pele calvície

no urso calvície

na fome calvície

no uso calvície)

A usura veste

de seu tecido

(de homem e ornato

de pele e ornato

de urso e ornato

de fome e ornato

de uso e ornato)

(Affonso Ávila)

Os poetas da Civilização Brasileira, apoiados na ideologia populista dos CPCs, usavam outro jargão, à la Sartre; se diziam “engajados”, isto é: acreditavam eles que o produto cultural deveria ser popularizado, mesmo se isso representasse um rebaixamento estético. O sinal verde e legitimador dessa última tendência tinha sido dado por um poeta maior: Ferreira Gullar, autor de A luta corporal (1954) e referência obrigatória da poesia contemporânea brasileira, vinha de publicar, numa edição universitária da UNE, em 1962, João Boa-Morte, cabra marcado para morrer, onde, com os recursos “pobres” da literatura de cordel, abordava diretamente os problemas do camponês, como se vê neste trecho:

Que a luta não esmorece
agora que o camponês
cansado de fazer prece
e de votar em burguês
se ergue contra a pobreza
e outra voz já não escuta,

só a voz que chama pra luta
— voz da Liga Camponesa.
Mas João nada sabia
no desespero em que estava,
andando aquele caminho
onde ninguém o queria.
João Boa-Morte pensava
que se encontrava sozinho
e que sozinho morreria

Sozinho com cinco filhos
e sua pobre Maria
em cujos olhos o brilho
da morte se refletia.
Já não havia esperança,
iam sucumbir de fome.

Na verdade, Gullar, ao se apropriar, à la Duchamp, do objet trouvé da linguagem anônima e geral dos cantadores, realizava uma manobra tática que, no seu caso particular, resultava num recomeço, a partir do marco zero, de um necessário movimento de reescrita mais objetivo e contundente sobre a realidade política de então. Estrategicamente falando, significou uma marcha a ré na produção poética daqueles dias. Poetas menos dotados começaram a realizar uma poesia demagógica e diluída, plena de dós de peito, onde comiseração social e incompetência poética geravam um produto que, ao contrário das intenções, pois ao que parece se realizava de encomenda, não era oportuno, mas oportunista; por isso mesmo essa poesia perdia todo o seu gume, e na ânsia de não deixar passar o bonde ou o bode da história, os seus poetas desandaram a falar como matracas pelo povo, tematizando-o academicamente de cima para baixo, e não levando em conta os exemplos maiores, as conquistas efetivas, em nível de linguagem de, por exemplo, Drummond (Sentimento do mundo, 1940; A rosa do povo, 1945) e João Cabral (0 cão sem plumas, 1950; O rio, 1953; Vida e morte severina, 1955), que neste último texto, um Auto de Natal, usou da mesma técnica de apropriação, e fez, anos antes, o mesmo percurso de Gullar; foi à fonte popular da linguagem poética brasileira, a poesia de cordel. Um outro exemplo positivo, que não pode ser esquecido nessa busca do texto empenhado no social, foi o de Vinícius de Moraes, que, antes de cair definitivamente no samba (no que fez muito bem, diga-se de passagem), alcançou com “Operário em construção” um outro bom momento dessa poesia de denúncia:

Era ele que erguia casas

onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

ele subia com as casas

que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

de sua grande missão:

não sabia, por exemplo,

que a casa do homem é um templo,

um templo sem religião,

como tampouco sabia

que a casa que ele fazia

sendo a sua liberdade

era a sua escravidão.

De fato, como podia

um operário em construção

compreender por que um tijolo

valia mais do que um pão?

Tijolos ele empilhava

com pá, cimento e esquadria;

quanto ao pão, ele o comia.

Mas fosse comer tijolo…

E assim o operário ia

com suor e com cimento

erguendo uma casa aqui,

adiante um apartamento,

além uma igreja, à frente

um quartel e uma prisão;

prisão de que sofreria,

não fosse eventualmente

um operário em construção.

Como se vê, aqui há rigor, eficiência sem abdicações ou concessões ao pieguismo social, tão presentes na versalhada, que não podia aspirar ao palanque, pois era no mínimo chata; e nem tampouco ao livro, folheto ou volante, pois era, politicamente falando, inofensiva, previsível, e sua “mensagem” era mais bem expressa, e com muito mais vigor, pelos líderes políticos da época.

Se em 1962/63 essa linguagem ufanista, às avessas, já fracassava no seu intento de instigar, em 1968, quatro anos depois do golpe militar, seu reaparecimento, requentada e servida de afogadilho e de cambulhada em Poesia viva 1, era como um prato-feito — embora seu prefaciador seja um gourmet nas horas vagas — frio e inofensivo para qualquer paladar, mesmo os menos exigentes. Gullar, que, como já foi dito, com a força de seu talento, colocou na ordem do dia essa tendência populista e esteve presente nos Violões, já não aparece sintomaticamente neste volume, que reúne presumivelmente os “melhores” e mais “acabados” momentos daquela experiência, que teve, apesar de tudo, seu lugar, época e oportunidade. E se não aparece é por uma razão muito simples: já estava em outra. Abandonando o ready-made verbal dos cantadores, retorna, renovado, à sua própria experiência, às “raízes” de sua poética que estão todas à mostra n’A luta corporal. Só que com uma mudança, diria, de “tom”: se, na Luta, o surreal muitas vezes permeia suas mensagens e mesmo a linguagem propriamente dita, que intencionalmente “fracassa” e se desintegra, agora, no poema-livro Por você, por mim no Vietnã, diagramado e editado, em 1968, pelo saudoso Léo Victor, ela assume um definido e definitivo compromisso com o real, sem perder, em nada, uma das marcas registradas de sua poesia: sua extrema agilidade, o “corte” e montagem de seu verso verdadeiramente cinematográfico. Ler Por você, por mim é ver um filme sobre o Vietnã, um documentário, a cores, da guerra, numa época em que tais filmes ou relatos ainda não eram feitos, ainda não tinham entrado “em moda” nem pesavam na consciência dos povos, e o fragor da batalha não deixava ouvir e ver os corações e mentes, pois só a mentira oficial do agressor tinha vez e voz:

Que se passa em Hué? em Da Nang? no Delta

do Mekong? Te pergunto,

nesta manhã de abril no Rio de Janeiro,

te pergunto,

que se passa no Vietnã?

As águas explodem como granadas, os arrozais

se queimam em fósforo e sangue

entre fuzis

as crianças

fogem dos jardins onde açucenas pulsam

como bombas-relógio, os jasmineiros

soltam gases, a máquina

da primavera

danificada

não consegue sorrir.

Há mortos demais no regaço de Mac Hoa.

Há mortos demais

nos campos de arroz, sob os pinheiros,

à margem dos caminhos que conduzem a Camau.

O Vietnã agora é uma vasta oficina da morte, nos campos

da morte, o motor

da vida gira ao contrário, não

para sustentar a cor da íris,

a tessitura da carne, gira

ao contrário, a desfazer a vida, o maravilhoso aparelho

do corpo, gira

ao contrário das constelações, a vida,

ao contrário, dentro

de blusas, de calças, dentro

de rudes sapatos feitos de pano e palha, gira

ao contrário a vida feita morte.

Também em 1968, à margem dessas já antigas e defasadas competições entre literatos, explodia na música popular brasileira o movimento tropicalista, que iria representar para as vanguardas o que o movimento antropofágico representou para o Modernismo de 22. Pouco antes disso, a Poesia Processo, que foi o último carro vanguardista, já tinha sintomaticamente declarado extinta a vigência do literário; havia chegado até ao exagero de uma “rasgação”, em janeiro de 1968, nas escadarias do Teatro Municipal, dos livros de poetas consagrados, como Drummond, Cabral etc., e partia sem hesitações para a poesia visual, para o poema-objeto, de consumo e uso imediato, descartável, prolongamento mais radical e exacerbado do gesto da poesia concreta.

 

AlvarodeSa

(Álvaro de Sá)

Description: _Pic5 (Moacy Cirne)

A contra-revolução cultural do tropicalismo procurava, no caos, trazer a arte brasileira para o seu chão, tal como pretendeu, anos antes, Oswald de Andrade. Tínhamos, então, toda uma geração voltada para a lição oswaldiana da retomada das “raízes”, com a diferença, entretanto, de que os produtos não eram especificamente literários, mas interdisciplinados, um pau-brasil eletrificado, ligado na tomada dos amplificadores, um cafarnaum onde o poema se fazia não apenas na página, mas no papel da voz, no palco, sob o som estridente das guitarras:

Tropicália (Caetano Veloso) — sobre a cabeça os aviões / sob os meus pés os caminhões / aponta contra os chapadões / meu nariz / eu organizo o movimento / eu oriento o carnaval / eu inauguro o monumento / no planalto central / do país / viva a bossa-sa-sa / viva a palho-ça-ça-ça-ça /…

Que fique claro que essa era, sem dúvida, a melhor solução. Nada mais interessante que observar esse trânsito: os corifeus da poesia concreta, antes tão eruditos, escrevendo capas para disco de Caetano e esse compondo canções como Batmacumba, cuja letra, como se vê, é rigorosamente um poema concreto:

Batmacumba

Gil & Caetano

batmacumbaieiê batmacumbaobá
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê ha
batmacumbaieiê

batmacumbaie

batmacumba

batmacum

batman

bat

ba

bat

batman

batmacum

batmacumba

batmacumbaie

batmacumbaieiê

batmacumbaieiê ba

batmacumbaieiê bat

batmacumbaieiê batman

batmacumbaieiê batmacum

batmacumbaieiê batmacumba

batmacumbaieiê batmacumbao

batmacumbaieiê batmacumbaobá

Fisiognomicamente representava o corpo ou a asa do morcego, bicho de mau-agouro, segundo a tradição, e que logo depois, em Gotham City, de Macalé e Capinam, aparecia, durante o IV Festival da Canção, no Maracanãzinho, anunciado pela voz de Macalé, esvoaçando “na porta principal”. Tudo muito claro e consequente: os morcegos, podemos bem imaginar quem são, só voam nas trevas e aí sim, fazia escuro, mas ainda se cantava.

Também a Práxis, um movimento sempre mais comprometido com a literatura e que dentro do bojo das vanguardas, sem abrir mão da pesquisa vocabular, tinha conseguido umhabeas corpus para a palavra, recuperando-a da prisão emudecida do poema concreto, corroborando, portanto, com o mandado de segurança impetrado, em boa hora e em desespero de causa, pelos neoconcretos que tinham conseguido, anos antes, a liminar que veio possibilitar, naqueles momentos de radicalismos estéticos, o inicialmente tímido reaparecimento do discurso, e que a Instauração Práxis, a partir de 1962, com Lavra lavra, de Mario Chamie, começou a redescobrir e a desentupir de uma vez a fonte da linguagem, atulhada, até então, de pedregulhos teóricos e práticos que em nome de impedirem, como diques, o discursivo (pedra-de-toque, palavra-de-ordem, ou mais exatamente, pecado mortal que hoje nos faz sorrir, como sorrimos diante de antigas fotos que nos mostram a “ousadia” dos primeiros biquínis), tinham calado e soterrado o fluxo das frases, o trânsito do verbo, a face do sujeito e o sonho do predicado.

As “alianças” estratégicas da Práxis, sem serem, entretanto, ostensivas, assumidas e proclamadas como a concreta /tropicalista, foram muito visíveis na produção, no resultado estético, nos textos.

Como, por exemplo, com algumas teorias do Cinema Novo, que no seu começo era predominantemente feito por autores que não escondiam suas origens literárias: Carlos Diegues e Maurice Capovilla foram colaboradores da revista Práxis desde seu primeiro número.

O mesmo ocorreu na música popular, pelo menos junto a autores mais próximos, por tendência e formação, da literatura: Pedro Pedreiro e, mais tarde, Construção, para citar, apenas, duas composições de um mesmo autor, Chico Buarque, apresentam indícios, conscientes ou não, de influência praxista:

Pedro Pedreiro — Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem / Manhã, parece, carece de esperar também / Para o bem de quem tem bem / De quem não tem vintém / Pedro Pedreiro fica assim pensando / Assim pensando o tempo passa / A gente vai ficando pra trás / Esperando, esperando, esperando / Esperando o sol / Esperando o trem / Esperando o aumento / Desde o ano passado para o mês que vem / Pedro Pedreiro penseiro esperando o trem / Manhã, parece, carece de esperar também / Para o bem de quem tem bem / De quem não tem vintém / Pedro Pedreiro espera o carnaval / E a sorte grande do bilhete pela federal /…

Construção — Amou daquela vez como se fosse a última / Beijou sua mulher como se fosse a última / E cada filho seu como se fosse o único / E atravessou a rua com seu passo tímido /…./ Amou daquela vez como se fosse o último / Beijou sua mulher como se fosse a única / E cada filho seu como se fosse o pródigo / E atravessou a rua com seu passo bêbado /…

A desmontagem das vanguardas vem, portanto, de dentro, como desesperada tentativa de sobrevivência enquanto poder, tentando, em vista disso, sua ampliação de auditório e entradas através dos meios de comunicação de massa, e, inseridas nesses outros circuitos, habitam novas frequências, procurando atuar também fora do livro para atender a um número maior de necessidades.

Desses casamentos, oportunistas e oportunos, como tantos, que os bem-pensantes poderiam julgar espúrios, é que começou a nascer a nova poesia brasileira.

Estavam lançadas as pontes. Os poetas que participaram dessa discussão transformaram-se: eram mutantes em transe e em trânsito e procuravam atravessar o Rubicon. Para isso embarcaram, alguns deles, na Navilouca, um barco que, há algum tempo, estava secretamente em construção e que só tornou visível a sua navegação em 1974, quando seu livro de bordo foi publicado, já que antes estava ruço.

De fato, essa revista que proclamadamente, em sua capa, se dizia em primeira e única edição mostrava na produção do seu elenco de colaboradores as profundas metamorfoses por que estava passando a poesia brasileira: Augusto “cometia” um soneto; Caetano realizava um poema concreto/processo: Viva a vaia.

Sonoterapia

“desta vez acabo a obra”

gregório de matos

drummond perdeu a pedra: é drummundano

joão cabral entrou pra academia

custou mas descobriram que caetano

era o poeta (como eu já dizia)

o concretismo é frio e desumano
dizem todos (tirando uma fatia)
e enquanto nós entramos pelo cano
os humanos entregam a poesia

na geleia geral da nossa história
sousândrade kilkerry oswald vaiados
estão comendo as pedras da vitória

quem não se comunica dá a dica:

tó pra vocês chupins desmemoriados

só o incomunicável comunica

(Augusto de Campos)

Neste soneto de Augusto, denunciador do que então se acusavam os concretos e — latu sensu — as vanguardas: “O concretismo é frio e desumano / dizem todos (tirando uma fatia)”, aparecia a alusão “custou mas descobriram que Caetano / era o poeta (como eu já dizia)”, uma preocupação que historicamente sempre foi o mal necessário das vanguardas: o da “descoberta” profética, do compromisso mais com o futuro do que com a urgência do presente. Indicava também uma mudança na produção da poesia concreta. Com efeito, com o passar do tempo, esses poetas, em nome do futuro, realizavam prospecções na historiografia literária; “reabilitaram” (assim como fizeram com Oswald) Sousândrade, Kilkerry, em revisões de competência crítica inegável, mas que sempre procuravam desenvolver a seu modo, sectariamente, um vínculo obrigatório que desembocava como num passe de mágica na teoria da poesia concreta. “Faziam” a história a seu favor, puxando a brasa para a própria sardinha, legislando, enfim, em causa própria. Tentavam, ainda, exercer o poder, manter o arbítrio intelectual, estar por cima da onda e da carne-seca. A evolução do processo da poesia brasileira não congregava as mais variadas influências: era, segundo eles, um ascético e coerente percurso, elitista e excludente, que culminava — obrigatoriamente — na poesia concreta. Isso gerava a deformação bem brasileira e provinciana do maniqueísmo cultural. Oswald, sim; Mário de Andrade, não. Sousândrade, somente; Gonçalves Dias, nem pensar; Kilkerry, o maior barato, enegrecido pela “maldição”; Cruz e Souza, uma espécie de Pelé: preto, mas de “alma branca”, e assim por diante. Era um constante Fla x Flu de cartas marcadas; um jogo de eleições/ressurreições fatais e de assassinatos ou sequestros súbitos. Nenhum sentido aglutinador, ecumênico. E se até a Igreja, depois do Vaticano II, procurava se transformar numa espécie de ONU do sobrenatural, por que não tentar o mesmo com a literatura que nunca foi santa? Mas isso, à revelia de quem quer que fosse, começava a ser feito. Não é por acaso que, no transcurso dessa década, a produção da poesia concreta tenha se dedicado a odes ou elegias, prolixas e discursivas, a artistas de sua preferência. Drummond, por exemplo, sempre fez isso e, para dizer o mínimo, com muito maior competência, amplitude e originalidade. Também na, com perdão das más palavras, prosa-poética, a tentativa de Galáxias (Haroldo de Campos) se revela desanimadora: perto desse metatexto, dessa verborreia tatibitate, dessa metástase verbal, Coelho Neto é pinto, Rui Barbosa é pouco. Não está, como julga o seu autor, no futuro, mas sim no passado pré-joyceano: é primário, e não primeiro. E mesmo se fosse o contrário, essas “galáxias” não serviriam para nada, pois tanto semantizaram suas palavras-estrelas, que elas se tornaram insignificantes, nubladas, de pouca ou nenhuma legibilidade. É pura modorra, um catatau massudo e desnecessário – uma verdadeira punheta e, já que estamos falando em cosmo, no caos. Mas, como dizia, a transição já tinha começado. Ironicamente, como é costume, mas sem nenhuma surpresa, a aliança estabelecida pelos concretos com os tropicalistas fez cair todo o sistema de influência, orientação e controle, que os primeiros tentavam, a custo, manter: expostos a todos os ventos, que sopravam pelas janelas ainda abertas das TVs, os que estavam acostumados ao ar condicionado de suas naves-gabinetes dançaram e caíram no vácuo; os outros, com mais propriedade, dançavam no espaço conquistado dos palcos.

Talvez os dois poetas que mais apresentavam no seu corpo e em sua bagagem as marcas dessa “viagem” fossem Torquato Neto e Waly Sailormoon; encontramos neles a representação do estilhaçamento, dos mil caminhos e descaminhos da poesia brasileira; uma verdadeira salada, um melting pot, ou melhor dizendo, um meeting das mais díspares tendências. Não há, em suas produções, nenhuma preocupação de coerência estilística, e a epígrafe do aludido soneto de Augusto de Campos, tirada de Gregório de Matos (“desta vez acabo a obra”) a eles, sim, serve como uma luva, pois nos seus trabalhos, sob qualquer critério metodológico, não existe a noção de continuidade organizada; o conceito cronológico não importa nem preocupa; cada poema é a obra, no seu único e sempre outro momento; este poema de Torquato, em 1969, que cito agora, tem influências nítidas de e.e. cummings – referência básica da teoria da poesia concreta – lido, com certeza, na tradução que Augusto de Campos fez para o MEC em 1962:

a o

rc
o

arte fa-

liz & vi-v.o.

:

auriv /ver

te,

rai

Z

Ao mesmo tempo, em outros textos, ele já demonstra ser um dos precursores do que anos mais tarde seria chamado de poesia marginal; como nesse poema de 1971:

você me pede

quer ir pro cinema

agora é tarde

se nenhuma espécie

de pedido

eu escutar agora

agora é tarde

tempo perdido

mas se você não mora, não morou

é porque não tem ouvido

que agora é tarde

— eu tenho dito —

o nosso amor michou

(que pena) o nosso amor, amor

e eu não estou a fim de ver cinema

(que pena)

Em Waly, a fusão/confusão das teorias de vanguarda que aqueceram o caldeirão tropicalista aparecem no texto Planteamiento de cuestiones:

Quueu não estou disposto a ficar exposto a cabecinhas
ávidas quadradas ávidas em reduzir tudo todo esforço
grandioso como se fosse expressão de ressentimentos por
não se conformar aos seus padrões culturais:

Meu texto não é só para ser visto numa ordem emocional
(grilado ou sem bode, numa “boa” ou numa “ruim”,
incucado ou desbundado, alegre ou triste, amor ou ódio,
etc.) porque os estados sentimentos são muito dependentes
da rareté, da insuficiência carência de condições — deve ser
visto do ponto de vista duma ordem menos impressiva,
menos passiva, mais criadora — como experimentação de
novas estruturas, novas formas de armação, como modo de
composição não-naturalista.

Alargamento não-fictional da escritura.

Também nele vamos encontrar, mais tarde, no poema Livro de contos, a mesma tendência precursora:

Alma emputecida

Sombra esquisita

Se esquiva

Entre

Laços de Família

Os “laços de família” estavam, finalmente rompidos. A “alma emputecida” solta nas ruas, se perdendo e se encontrando ao acaso, nas calçadas, sem nenhum programa preestabelecido, sem nenhum acordo ou compromisso implícito ou explícito. E já que ninguém segurava esse país, que ia à deriva ou “às direitas”, o caminho era esse, sem alternativa: ame-o ou deixe-o seria o título ou legenda mais apropriado para esse roteiro que se descobria e se inventava a cada passo, na onda de cada dia.

CORAÇÃO INCÓLUME, CORAÇÃO DIVIDIDO RASGA CORAÇÃO

À margem de toda essa confusão de alianças estratégicas declaradas ou não, a poesia brasileira dos poetas consagrados continuava sendo feita. Talvez seja preciso lembrar que Cassiano Ricardo, poeta do Modernismo, já havia legitimado o poema concreto e a Instauração Práxis. Rompeu, inclusive, com o primeiro, para integrar-se de corpo e alma à Práxis, chegando até a escrever um livro, editado pela José Olympio (1966), Práxis e 22.

Carlos Drummond de Andrade, e que se diga logo, criador principal e inesgotável da poesia brasileira moderna e contemporânea, publica, em 1969, Boitempo e A falta que ama, que na verdade é o que o título de seu livro de 1958, A vida passada a limpo, sugere; o poeta maior começa o seu balanço com poema sobre sua infância em Minas, verdadeira memória poética tão grandiosa quanto as memórias, em prosa, de outro mineiro, Pedro Nava. Essa produção tem sua sequência em 1973, com Menino antigo, e mais tarde, em 1977, com Discurso da primavera e algumas sombras. João Cabral, à sua maneira concisa, também realiza, em 75, o seu balanço: Museu de tudo é um livro que, como o próprio título indica, reúne poemas de várias épocas e parece revelar o fecho de um ciclo. Se falo em Cassiano, Drummond e Cabral é porque a poesia contemporânea brasileira, pela participação ostensiva do primeiro e influências marcadas e marcantes dos outros dois, a eles muito deve. Mas já naquela altura, o eixo tão enfatizado pelas vanguardas, drummond/cabral, começava a ser alterado; com a publicação, em 1966, da r edição das Poesias reunidas de O. Andrade, poète maudit do Modernismo, a virada para retomar a lição de 22 por um outro ângulo foi deflagrada. A “escrita” começa a incorporar e tender mais para o take, “corte” e montagem cinematográficos, estilisticamente falando, do que para a abordagem discursiva, linear e paulatina do literário. O poema-minuto, o poema-piada, relegados ao esquecimento, muito por culpa da geração de 45, que tentou engravatar a irreverência de 22 e que, no começo da década passada, a poesia concreta apertou o nó, com a sua ortodoxia formal, começam, de novo, a entrar em foco e em cena. Nada mais natural, como meu culpa, que um poeta concreto, Haroldo de Campos, prefacie essa edição e “reabilite”, 21 anos depois, para todos nós, com competência exemplar, o desbocado poeta do Modernismo:

Secretário dos amantes

Acabei de jantar um excelente jantar

116 francos

Quarto 120 francos com água encanada

Chauffage central

Vês que estou bem de finanças

Beijos e coices de amor

II

Bestão querido

Estou sofrendo

Sabia que ia sofrer

Que tristeza este apartamento de hotel

III

Granada é triste sem ti
Apesar do sol de ouro
E das rosas vermelhas

IV

Mi pensamiento hacia Medina del Campo Ahora Sevilla envuelta en oro pulverizado

Los naranjos salpicados de frutos

Como una dádiva a mis ojos enamorados

Sin embargo que tarde la mía

V

Que alegria teu rádio

Fiquei tão contente

Que fui à missa

Na igreja toda gente me olhava

Ando desperdiçando beleza

Longe de ti

VI

Que distância!

Não choro

Porque meus olhos ficam feios

Cumpre lembrar, com largueza, um outro contemporâneo de Oswald que continua, até hoje, muito pouco conhecido: seu nome é Luiz Aranha, e a sua poesia, que mereceu estudo magistral de Mário de Andrade, já mostrava nos seus livros Drogaria de éter e de sombra (1921), Poema Pitágoras (1922) e Poema giratório (1922), as marcas do que hoje é mais contemporâneo, como nesses dois poemas:

Eu lia um jornal:

Todos os telegramas todos os artigos todos os anúncios

Acontecimentos universais

Campanha da polícia contra a toxicomania…

Eu droguista não podia vender cocaína morfina e ópio

Mas poeta queria provar o suco da papaverácea como Quincey

e Coleridge!

Telegrama

Vim telegrafar

Devo partir

O telégrafo bate

Na estação

Dentro das grades do elevador o empregado é prisioneiro na sua

cela

Manobras

S.P.R.

163

A campainha manda um som tremido

E o chefe sacode a bandeirola

Apito

Os ferros gritos

Choques de vagões

Locomotiva Moloch

Na ponte lindo manto de peles

Tu não morreste por ter tocado o zaimph de Tanit como

[Salambô

WILLIAM — FOX — FOX-TROT — William-fox-fox-trot‑

[William-fox-fox-box

Locomotiva Carpentier jogando box pelo espaço

Só dás uppercuts

Com tuas luvas de ferro

As campainhas das estações marcam os rounds

Teu ring é o mundo

Xuixixixixixixx

Poeta

Sofro a vaia da locomotiva como no Teatro Municipal

Diz-se impropriamente que sou futurista

Impressões

Erros da geometria euclideana

Os trilhos não são paralelas e se encontram antes do infinito

Na porteira todos esperam

Lavadeira a mulher de Atlas suspende o mundo às costas

Pede-se trazer o dinheiro certo para facilitar o troco

Vim telegrafar

Parto pelo último trem

Espere-me na estação

(Luiz Aranha)

Outro nome consagrado juntava-se a Oswald Aranha para a releitura das novas gerações: Manuel Bandeira, melhor dizendo, a parte de sua lírica mais casual, mais cotidiana:

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro

da Babilônia num barracão sem número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Também Jorge de Lima e Murilo Mendes, que apresentavam em suas obras grande carga místico-visionária, muito coincidentes com o espírito alucinatório e surreal das Naviloucas, tinham a sua vez:

Poema do cristão

E tendo a luz eterna nos olhos, sou o maior mágico:

ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e ômega,

peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou ridículo, sou

tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado,

tenho mantos de púrpura e de estamenha, sou burríssimo

como São Cristóvão, e sapientíssimo como Santo Tomás.

E sou louco, louco, inteiramente louco, para sempre, para

todos os séculos, louco de Deus, amém!

E, sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a

medida;

sou a balança, a criação, a obediência;

sou o arrependimento, sou a humildade;

sou o autor da paixão e morte de Jesus;

sou a culpa de tudo.

Nada sou.

Miserere mei. Deus, secundum magnam misericordiam tuam!

(Jorge de Lima)

Panorama

Uma forma elástica sacode as asas no espaço

e me infiltra a preguiça, o amor ao sonho.

Num recanto da terra uma mulher loura

enforca-se e vem no jornal.

Uma menina de peito largo e ancas finas

sai do fundo do mar,

sai daquele navio que afundou e vira uma sereia.

A filha mais moça do vizinho

lá está estendida no caixão

na sala de visita com paisagem,

um cheiro enjoado de angélica e meus sentidos pêsames.

Tudo está no seu lugar

minha namorada está sozinha na janela

  • sonho está dormindo na cabeça do homem
  • homem está andando na cabeça de Deus,
    minha mãe está no céu em êxtase,

eu estou no meu corpo.

(Murilo Mendes)

Na verdade, o que se fazia era abrir o leque e rever — totalmente — sem exclusivismos a lição de todos os poetas do Modernismo. Não mais “paideumas”, fatalidades estéticas, visões ordenadas sob um único prisma ou parâmetro. Era o vale-tudo. As mãos duplas. O catch-as-catch-can com todas as linguagens, as “impurezas do branco”, o abrir as janelas para todos os insetos entrarem. A era dos caciques, caudilhos ou simplesmente xerifes literários, com suas ordens-unidas estéticas, está definitivamente encerrada. O momento de agora pede mais consensos, sindicatos (em vez de sindicâncias), e o poder é patrimônio geral, está em todas as mãos e cabeças e não há mais recibos, contas e obrigações a serem pagas e resgatadas ao tesouro da intelligentzia de ditadores ou a ditaduras de gabinete de qualquer espécie e formação.

Os vanguardistas mais eminentes e criadores de escola reuniam suas obras completas: em 1969, Affonso Ávila com Código de Minas e Poesia anterior; em 1977, Mario Chamie publica Objeto selvagem; Decio Pignatari, Poesia pois é poesia; e Haroldo de Campos, Xadrez de estrelas. Na verdade, apenas um deles, Mario Chamie, tinha publicado, em 1974, um livro novo: Planoplenário. Isso indicava, talvez, o encerramento do ciclo da vanguarda como poder, enquanto ortodoxia, já que o pluralismo das tendências de tal maneira tinha se cruzado e se imposto que qualquer sectarismo não mais seria aceito. Já em 1972 a PUC realizava a Expoesia 1, que apresentava em stands separados as principais tendências poéticas dos últimos anos. Tudo isso muito bem arrumado, enquanto a “lixeratura” — termo usado por Affonso Romano de Sant’Anna, num dos seus infelizes momentos conceituais — ficava no pátio, no maior carnaval. As “tendências”, portanto, no andar de cima, dispostas como num museu. Tudo ainda em ritmo e nível universitários. O JB, nesse mesmo ano, por iniciativa do mesmo Affonso, abria, por quatro vezes, uma página ecumênica de poesia.

Em 1973, o MAM realiza a Poemação, onde, se por um lado os stands persistiam, o espaço do pátio era de todos, terra-de-ninguém; alguns poetas frequentavam, com suas obras, os dois ambientes. O que, na PUC, era considerado, um ano antes, “lixeratura” passa a ser incorporado como manifestação, happening — o espaço universitário se confunde com o não acadêmico. O grupo da poesia concreta não participou desses eventos. Embora as razões alegadas fossem outras, acredito que, simplesmente, a ausência do concretismo se deu pelo fato de falta de pique e de projetos-impacto; o ciclo de sua produção já tinha se esgotado e seus programas e produtos não apresentavam mais invenção ou novidade. Limitavam-se, agora, a pegar “caronas” culturais em cabriolés do passado e nas naviloucas do futuro. Em vez da explosão, um outro fenômeno, o da implosão, um haraquiri intelectual, complicado, sectário e provinciano: e como auto-epitáfio, o verso final de Sonoterapia, de Augusto de Campos: “só o incomunicável comunica”. Na verdade, neste verso exemplar, todo o impasse do projeto da poesia de vanguarda, quando encarado de maneira ortodoxa, e da poesia concreta, especificamente, aparece resumido. Que não fique nenhuma dúvida que Decio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos foram poderosos e instigantes interlocutores do debate cultural, e agentes de superlativa atuação no processo de desenvolvimento da poesia brasileira; até mesmo a contribuição dos seus “erros” é muito mais valiosa do que a maioria dos “acertos” que se divulgam e proclamam. Mas o inegável canto de cisne, incompreendido e arrepiado, de “só o incomunicável comunica” por si só vale, numa segunda leitura, para além do paradoxo que encerra, numa confissão irônica mas resignada, em 1974, do fracasso de um velho problema de 1962/63 que não foi solucionado: o da tentativa de inserção no circuito mais amplo, para um maior auditório, da produção “concreta” de seus esforços. O anunciado, naqueles idos, salto-tríplice — “conteudístico-semântico-participante” — não teve o impulso e o alcance necessários.

Aquelas três iniciativas, que reagrupam a poesia brasileira, ajudaram a deslanchar o seu curso: Lélia Coelho Frota, Olga Savary, Carlos Nejar, Cláudio Willer, Fernando Py, Ivan Junqueira, Octavio Mora, Gastão de Hollanda, Florisvaldo Matos, Maria Amélia Melo, Fernando Mendes Vianna, Elizabeth Veiga, Leonardo Froes, Carlos Rodrigues Brandão, Yone Gianetti Fonseca, Marly de Oliveira, Paulo Mendes Campos, Affonso Romano de Sant’Anna, Ricardo Ramos, Maria Lucia Alvim, Armando Freitas Filho, Nauro Machado, Pedro Paulo de Sena Madureira, Mauro Gama, Moacir Félix, Carlos Henrique Escobar, Adão Ventura, Libério Neves, Walmir Ayala, Armindo Trevisan, Gilberto Mendonça Telles, Mário de Oliveira, Pedro Garcia, Leila Miccolis, Jorge Wanderley, Sebastião Uchoa Leite, Ivo Torres, Hayle Gadelha, Teimo Padilha, Cleber Teixeira, Ronaldo Periassu, Luiz de Miranda, Astrid Cabral, Affonso Félix de Sousa, Gramiro de Matos, Ana Maria Miranda, Adaíton Medeiros, Alberto da Costa e Silva etc. É claro que a listagem é incompleta. Se houve omissões, umas são conscientes, outras, não. Também é claro que muitos desses poetas tinham a sua obra em curso, principalmente aqueles que, vindos da vanguarda ou da tradição poética estabelecida, conseguiam virtualizar suas propostas e seus projetos. É sempre interessante notar que os primeiros produziam quantitativamente menos, enquanto os outros, muito mais. Talvez isso seja devido ao fato de que os poetas mais ligados à tradição do verso trabalhem sua poesia dentro das formas, como “mestres” (segundo definição de Pound), alcançadas pelos inventores. Que fique claro que a vanguarda, como é entendida por quem escreve esse apanhado, não é obrigatoriamente de ruptura. Inventores maiores para a poesia brasileira de hoje, como já ficou visto, ainda são os poetas do Modernismo, pois ainda não temos, nós, os contemporâneos, o distanciamento histórico para criarmos nossos epígonos.

Assim como nas Vanguardas há os que apenas repetem a lição ipsis litteris dos instauradores, trabalhando portanto dentro de uma forma, de um pré-moldado estético, também na poesia mais ligada à tradição existem os que não conseguem virtualizar, criar sua voz própria, e apenas passam a limpo sem maiores riscos as descobertas anteriores. Seria como ser, em ambos os casos, um reflexo das estrelas, uma realimentação desnecessária e entrópica do sistema, uma vocação apenas nostálgica. Uma literatura assim não traz data, não depende e não apresenta compromisso com a história contemporânea, não se relaciona com os debates do momento e não discute a relação — sempre necessária — da poesia com as questões político-culturais. Relaciona-se, quase sempre, com a memória, com o universo atemporal; suas estruturas são consagradas, sem surpresas e sem suspenses; as dicções são nobres, já foram conquistadas. A linguagem de que essa poesia psicografada faz uso não contém as palavras faladas por seus contemporâneos; pertencem mais às personae do que às pessoas.

A alta poesia de Lélia Coelho Frota e de Mauro Gama são significativos exemplos de virtualização e desenvolvimento. Neles temos, em plenitude, o autor que cria, e não, apenas, o ator que interpreta:

Ad Usum

O meu ofício é de palavras

que só estremecem ao rumor

do amor.

O meu ofício é de missão

secreta, sob a capa do ar:

lembrar.

O meu ofício desconhece

qualquer das formas de folgar:
sonhar?

No meu ofício é que se aprende
por dentro — terra e ultramar —
a olhar.

Sua alegria é de um minuto
e nada a pode compensar:
cantar.

Entre um minuto e outro perpassam

nuvens de tamanho esperar:

durar.

O meu ofício é de saber

morrer, de nas pedras gravar:

passar.

(Lélia Coelho Frota)

Edifício
cristais: mero mirante: mar
num último andar patamar
tonto manto de tinta e
areia suor cimento
cascalho vigas e braços
se armam se argamassam
em etapas: telas do bairro

birra de homem barra

de fome janelas — fêmea

areia suor cimento

cascalho vigas e braços

se armam se argamassam

em camadas: praça de cera

se abre no barro berro

que se perdera da massa

areia suor cimento

cascalho vigas e braços

se armam se argamassam

em andares: casa ao lado:

crimes ímpares brado

que pare corpo de cromo

areia suor cimento

cascalho vigas e braços

se armam se argamassam

em alicerces: se cravam

estacas — toques — se lixam

na terra — taques — se fixam

(Mauro Gama)

DA PINDAÍBA À CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Mas voltemos à Arca de Noé, ou melhor dizendo à Navilouca. Parece que um dos últimos a entrar para essa viagem foi Chacal. E foi sem dúvida o primeiro a sair. O preço da passagem é de 1972 e o seu título aqui é empregado no seu sentido simbólico e não por sua razão real: custear uma viagem para Londres. Nos parece evidente que a linha média Torquato, Waly e Chacal prepara o aparecimento do que mais tarde se convencionou chamar de poesia marginal. Este último, aliás, declarou numa entrevista concedida a Márcio Almeida, e que aparece publicada no suplemento literário do Minas Gerais de 1º de setembro de 1979, o seguinte: “A gente tem o lance de 22, de 45, da vanguarda dos concretos. Eu fiz Poesia Concreta, faço e farei. Agora, a posição dos concretos é que eu discuto profundamente.” A afirmação é verdadeira: no encarte que vinha solto do corpo da Navilouca, como se fosse um passageiro clandestino, aparece o seguinte texto de Chacal:

ludo iludo ludo
iludo ludo iludo
ludo iludo ludo
iludo ludo iludo
ludo iludo ludo
iludo ludo iludo
ludo iludo ludo

que, sendo iniludivelmente um poema concreto, pode servir como ars poética, tanto no que se refere ao texto, mas também, e talvez principalmente, ao comportamento, do que já começava a aparecer na poesia brasileira. Toda uma geração de poetas muito moços começava a criar uma rede Peg-Pag para a poesia. O que Affonso Romano chamava pejorativamente, como foi lembrado, de “lixeratura” era, na verdade, a criação de um circuito alternativo, fora da ditadura das editoras, e que se impunha ao ar livre, como já vinha ocorrendo com a chamada imprensa nanica. Acho que já é hora de dizer, de público, que todos nós da geração anterior devemos pelo menos uma coisa a esses “marginais”: eles nos devolveram o orgulho de sermos apenas poetas, de irmos, sem vergonha, para as ruas apregoando essa condição e vendendo nossa produção. O outro eixo de influência já apontado (Jorge/Murilo), não tão ocorrente, quantitativamente falando, como o primeiro(Oswald “Aranha” Bandeira), tinha seus melhores representantes em Afonso Henriques Neto e Roberto Piva. O primeiro, aliás, co-autor juntamente com Eudoro Augusto de um curioso livro, até hoje não suficientemente observado, publicado em 1972, O misterioso ladrão de Tenerife, no qual ambas as influências apareciam muito bem delineadas. Em Affonso e em Piva a ambientação surreal, a enumeração “mágica” do caos prestam tributo, com independência, à “poesia em pânico”, na beira do abismo, de Jorge Murilo Mendes de Lima:

Assim

Vomitaram trinta estrelas nesse charco

de líquidos corpos empoçados.

Nas tocas iluminadas os que se iniciam na morte

fantasmas de si mesmos

fecundam ritmos e bússolas e fracassos.

Há desgosto e música na atmosfera branca

negra.

Vomitaram trinta estrelas talvez mais

mas o buraco se fecha.

Em silêncio algumas flores resistem

nas verdes gramas do sol.

(Afonso Henriques Neto)

Poema de ninar para mim e Bruegel

“Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante”

(Murilo Mendes)

Eu te ouço rugir para os documentos e as multidões

denunciando tua agonia as enfermeiras desarticuladas

A noite vibrava o rosto sobrenatural nos telhados manchados

Tua boca engolia o azul

Teu equilíbrio se desprendia nas vozes das alucinantes

madrugadas

Nas boites onde comias picles e lias Santo Anselmo

nas desertas ferrovias

nas fotografias inacessíveis

nos topos umedecidos dos edifícios

nas bebedeiras de xerez sobre os túmulos

(Roberto Piva)

Travessa Bertalha, primeiro conjunto de poemas de Charles, poderosa vocação poética, é, ao que eu saiba, anterior ao Preço da passagem. Com este poeta, cujo estilo lembra um bang-bang, começamos a ver o cotidiano do Rio, a velocidade de sua violência:

Colapso concreto

vivo agora uma agonia:

quando ando nas calçadas de copacabana

penso sempre que vai cair um troço na minha cabeça

Ou:

o operário não tem nada com a minha dor

bebemos a mesma cachaça por uma questão de gosto

ri do meu cabelo

minha cara estúpida de vagabundo

dopado de manhã no meio do trânsito

torrando o dinheirinho miudinho a tomar cachaça

pelo que aconteceu

pelo que não aconteceu

por uma agulha gelada furando o peito

(Charles Peixoto)

Neste último também podemos ver que o Poema tirado de uma notícia de jornal, de Manuel Bandeira, citado anteriormente, ganhava a sua mais perfeita virtualização: o que Bandeira compunha na página de um livro Charles como que rasgava da folha de um jornal.

Em 1973 sai postumamente o livro Os últimos dias de Paupéria, obra infelizmente completa de Torquato Neto, organizada por Waly Sailormoon. Sua publicação ajuda a acelerar o processo que tento descrever. No ano seguinte a Coleção Frenesi reúne um conjunto de poetas vindos de variadas tendências.

Francisco Alvim, autor, em 1968, de Sol dos cegos, que tem ecos da geração de 45, rasga a fantasia Na salinha e proclama em Passatempo:

Nós temos um problema de feed-back

Nossa entropia cada vez aumenta mais

Você pergunta a um cara daqui

o que é entropia

o que é feed-back
e ele te responde: é a mãe

Antônio Carlos de Brito, que em 1967 lançava A palavra cerzida, onde, na nota introdutória, José Guilherme Merquior assinalava que “a poesia de A.C. de Brito é, declaradamente, tributária da rica tradição poética do Modernismo”, realiza o seu salto.

Não quero os sóis que praticam

as mil fotos do objeto, a noite sempre

nascendo da noite em revelação.

Preciso

da palavra que me vista não

da memória do susto

mas da véspera do trapezista.

E entra em cena com Grupo escolar, livro em que o título parece ser uma homenagem ao Primeiro caderno do aluno de poesia O. de Andrade, presente no Grupo, em todas as salas, acompanhado por Manuel Bandeira, sendo que curiosamente o primeiro não aparece arrolado na nota de Merquior, como influências visíveis no livro anterior de Cacaso: lá os nomes são os de Drummond, Cecília, Murilo Mendes, Schmidt e João Cabral. Roberto Schwarz, crítico de grande competência (A sereia e o desconfiado) com Corações veteranos, e Geraldo Carneiro, com Na busca do Sete-Estrelo, engrossam a tendênciaOswald “Aranha” Bandeira. Motor, de João Carlos Pádua & Bita, mantendo predominantemente as mesmas características estilísticas, apresenta, contudo, um certo tributo às vanguardas e aos “marginais”, não só pela programação visual (é o único que não constitui um volume; é apresentado dentro de um envelope), como O preço da passagem (de Chacal), como também por esse texto, um poema “neoconcreto”.

O PÁSSARO

O

PÁSSARO

PASSA/LI/GEIRO

ALTO PLENO

PASS AR INHO

PLENO ALVO

(João Carlos Pádua & Bita)

A Coleção Frenesi, portanto, cristaliza a mudança de eixo antes apontada (Drummond/Cabral) para Oswald/Manuel; e pelo seu apuro gráfico apresenta, revela e desperta para um maior número de pessoas a produção ainda muito esparsa e não sistematizada dos “poetas marginais”. Isso se dá, também, pela razão de que os cinco autores que compõem Frenesi possuem uma bagagem já reconhecida pela crítica de melhor nível. Não querem ser, mas são, para os bem-pensantes, a legitimação cultural de Charles, Chacal e Cia.

Em 1975, a Coleção Vida de Artista realiza a primeira mixagem: Beijo na boca, de Antônio Carlos de Brito, onde a presença de Bandeira é fortemente notada no posfácio de Clara Andrade Alvim; América, de Chacal; Segunda classe (o título relembra, mais uma vez, Oswald), de Luís Olavo Fontes e Antônio Carlos de Brito; e Aqueles papéis, de Carlos Saldanha. É o ano também do aparecimento dos primeiros títulos da hoje tão conhecida coleção, “marginal, com muita honra”, Nuvem Cigana: Creme de lua, de Charles, e Vau e Talvegue, de Ronaldo Santos.

Mas foi em 1976, com a antologia 26 poetas hoje, de Heloisa Buarque de Hollanda, que toda essa produção, emergentes uns e ainda submersos outros, veio à tona, e ganhou uma definida, necessária e merecida divulgação. O livro foi editado pela Labor, já que nenhuma editora brasileira teve peito e sabedoria para bancar este best-seller. Na introdução, de novembro de 1975, Heloisa fixa com clareza e pioneirismo os novos rumos da poesia brasileira. Mas não fecha questões, já que lida com a contemporaneidade: “A seleção realizada não registra apenas uma tendência de renovação na poesia de hoje mas, também, procura sugerir alguns confrontos entre as várias saídas que ela adotou.” No mesmo ano, numa coletânea resumida da primeira, de apenas dez poetas, publicada na revista Tempo Brasileiro (n° 42/43), sob o título de Antologia da poesia brasileira hoje, novamente Helô ressalta o caráter de abertura: “Os poetas aqui apresentados não oferecem, ainda, sequer um painel da poesia atual, mas, certamente, abrem um leque de caminhos e tendências de um momento cultural que merece ser observado e analisado mais de perto.”

As Artimanhas (a primeira durou três dias, 1976), o lançamento dos Almanaques Biotônico Vitalidade (o primeiro, em 1976; o outro, em 1977) foram realizados com todo o Charme da Simpatia (o cartaz data de 77), no MAM, antes do incêndio, no Parque Lage, hoje, infelizmente, desaquecido, e na Livraria Muro — que (como a falecida Folhetim), ao contrário das outras, é ponto de venda de toda essa produção alternativa — locais esses que vieram a ser, nesta década, pontos de encontro dos “deserdados”. Enquanto os eventos anteriormente citados nos anos 72/73 — a Expoesia 1 e a Poemação — serviram para reunir, sem cronologias, a poesia até então dispersa, e foram a base para essas posteriores badalações; o que se via então, como é natural, era o acampamento de uma nova geração, formada não tanto por critérios etários, mas sim por padrões de comportamento. Assim como os “marginais” tiveram seus veículos nos Almanaques, a revista Anima (cujos dois números saíram em 1976 e 77), uma espécie de Navilouca passada a limpo, em águas mais calmas e conhecidas, dirigida por Abel Silva e Capinam, representou, anos mais tarde, o veículo que recolheu o prolongamento da produção tropicalista. Também a poesia que pagava um maior tributo à tradição teve em José (que alcançou nove números de 1976 a 77), dirigida por Gastão de Hollanda, assim como também com Alguma poesia, dirigida por Luiz Carlos Lima, nos seus dois números de 1978 e 79, lugar e espaço para a sua divulgação.

A revista Escrita, dirigida por Wladyr Nader, em São Paulo (de todas as citadas a que alcançou vida mais longa e permanente, com vinte e nove números de 1975 a 79), vem mantendo seu fluxo de existência. É publicação aberta, bem ou mal, a todas as tendências e caracteriza o pluralismo atual da poesia brasileira.

E já que estamos falando dessas revistas não custa dizer que o Brasil de hoje só tem, ao que eu saiba, cinco (!) suplementos literários. O “espaço cultural” nos meios de comunicação de massa é — e isto é regra geral — poluído por interesses exclusivamente de mercado. Uma pornochanchada qualquer merece críticas desfavoráveis, é certo, mas em três laudas! Falem mal, mas falem de mim, parece ser o caso. Um bom livro de poemas é comentado em sessenta linhas, se tanto, e olhe lá. Mas nós, poetas, não estamos nem um pouco agradecidos com essa colher de chá, como parecem acreditar os editores dessas publicações.

Os “grandes” jornais como, por exemplo, O Globo e o Jornal do Brasil mantêm duas páginas semanais, mas apenas para resenhas de livros. Os best-sellers estrangeiros, bons ou ruins, abundam, para dizer o mínimo, nesses privilegiados e disputadíssimos espaços.

O suplemento do Minas Gerais, órgão oficial, sustenta-se, sabe Deus como, e divulga, apesar de tudo, poetas e poesia.

Aqui no Rio, o suplemento da Tribuna da Imprensa, primeiramente dirigido por Lúcia Miners e, agora, por Maria Amélia Melo, é um exemplo heroico nesse panorama que merece ser ressaltado com toda a ênfase, pois mesmo tendo, por quase toda a década, sua redação ocupada pelos meganhas da censura, manteve, com independência, a flama da poesia acesa, num esforço de reportagem, em meio a esses sinistros bombeiros, e alcança, em 79, sete anos de vida e de resistência sem concessões.

Enquanto isso, a Nuvem Cigana publica mais dois títulos: Perpétuo socorro, de Charles, e Hotel de Deus, de Guilherme Mandaro. As publicações e coleções se sucedem, as edições Folha de Rosto publicam uma antologia composta pelos poetas César Cardoso, Marcos Vinício, Claudius H. Portugal, Adauto, Maira, Durval de Barros, Fernando, R. Arnt, que demonstra as novas tendências influindo no meio dos cursos de letras universitários, geralmente tão reacionários. A revista Gandaia, que já começa a acertar pelo nome, é veículo de grande importância e deve ser mantido a todo pano e a todo risco, pois é a válvula de escape contra o sufoco dos currículos acadêmicos, cada vez mais imbecilizados, já que preferem, em vez de “estudar” a literatura através dos seus produtos, fazê-lo apoiados em sofisticadas e importadas muletas teóricas, que não se adaptam ao nosso clima e ao nosso chão, e via de regra robotizam a leitura e aleijam a escrita. A revista Pólem, no seu único número, que estava pronto muito antes, só veio a conhecer a luz do sol em 1974; quatro anos mais tarde, ela como que tem sua continuidade nos dois números da revista Através (1978). Ambas publicações são os encaminhamentos das soluções que a vanguarda, representada pela poesia concreta, conseguiu realizar; inclusive os concretos, muito adequadamente nesses tempos de feminismo declarado, ressurgem agora agarrados às saias de Pagu (Patrícia Galvão), um verdadeiro e fascinante travesti de Oswald. A poesia feminina se liberta de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, que — segundo as más-línguas e os conceitos vigentes pré-feministas — escreviam “tão bem quanto qualquer homem”, e ganha nova dicção: com Adélia Prado, em Bagagem e Coração disparado, Angela Melim, com Das tripas coração, e Ana Cristina Cesar, em Cenas de abril, o primeiro de 1976, os outros dois de 1978 e o último, de 79, e com Isabel Câmara, desencadeadora desse novo “estilo”:

Ninguém me ama

Ninguém me quer

Ninguém me chama

De Baudelaire.

(Isabel Câmara)

Solar

Minha mãe cozinhava exatamente:

arroz, feijão roxinho, molho de batatinhas.

Mas cantava.

(Adélia Prado)

lh

de mulher

molhado

fundo

difícil

ulh: musgo,

dentro,

coisa muito funda,

muito.

(Angela Melim)

“Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares”

Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse… Ai que enjôo me dá o açúcar do desejo.

(Ana Cristina Cesar)

Em 1978, Sérgio “Azul” Santeiro publica Saudades de Copacabana, um verdadeiro cinepoema — político e violento como um filmepoema de Godard — de longa-metragem, escrito e filmado, com a caneta na mão e uma câmara na cabeça, em menos de um mês. E se a Civilização Brasileira publica a Poesia viva 2, video-tape, dez anos mais tarde, de um filme que já foi visto, incorporando ao seu elenco um dos fundadores das edições Pindaíba — Aristides Klafke —, a geração Peg-Pag responde com seus best-sellers nos drive-ins da vida: Flávio Nascimento com o seu cine-poeira-portátil, numa caixa mágica de imagens, onde os textos são dramatizados através de ilustrações e sonoplastia com inteireza lírica e comunicação instantânea; Nicolas Behr e Tavinho Paes, cujo último livro, Cat xupe, todo escrito no verso de panfletos, volantes, comunicações, junta, com a urgência necessária, num mesmo gesto, o cotidiano político da “abertura”, o devaneio e o patos lírico-patafísico da burguesia. A poesia brasileira que no Modernismo apelou para a Kodak para descobrir os instantâneos da vida hoje realiza o poema-polaroide, de revelação instantânea, e “elabora” um estilo e uma estética do inacabado, do “surpreendido” pelo acaso da interferência do poeta. Mas isso não tem nada a ver com o que se convencionou chamar ultimamente de “estética do fragmento”, conceito, diria, construtivista, cerebrino e “fechado”, enquanto o fenômeno que descrevo, a meu ver, é de outra espécie: sua raiz começa no sexto sentido que é o instinto ou no seu instante aberto e casual. Essa tendência, tão marcada atualmente, sempre esteve nas mãos dos nossos poetas modernos. Os exemplos que se seguem, de autores de diferentes épocas e formações, são a sua melhor comprovação:

Pensão familiar

Jardim da pensãozinha burguesa.

Gatos espapaçados ao sol.

A tiririca sitia os canteiros chatos.

O sol acaba de crestar os gosmilhos que murcharam.

Os girassóis

amarelo!

resistem.

E as dálias, rechonchudas, plebeias, dominicais.

Um gatinho faz pipi.

Com gestos de garçom de restaurant-Palace

Encobre cuidadosamente a mijadinha.

Sai vibrando com elegância a patinha direita:

— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

(Manuel Bandeira)

Ao rés-do-chão

Sobre a cômoda em Buenos Aires

o espelho reflete o vidro de água de colônia

Avant la Fête (antes,

muito antes da festa), reflete

o vidro de Supradyn, um tubo

de esparadrapo,

a parede em frente, uma parte do teto.

Não me reflete a mim

deitado fora do ângulo como um objeto que respira.

Os barulhos da rua

não penetram este universo de coisas silenciosas.

Nos quartos vazios

na sala vazia na cozinha

vazia

os objetos (que não se amam),

uns de costas para os outros.

(Ferreira Gullar)

Luz

Em cima da cômoda

uma lata, dois jarros, alguns objetos

entre eles três antigas estampas

Na mesa duas toalhas dobradas

uma verde, outra azul

um lençol também dobrado livros chaveiro

Sob o braço esquerdo

um caderno de capa preta

Em frente uma cama

cuja cabeceira abriu-se numa grande fenda

Na parede alguns quadros

Um relógio, um copo

(Francisco Alvim)

a área interna é um lugar muito frio

onde as roupas secam

o sucesso toca

uma criança chora

a empregada

um passarinho uma gaiola um cachorro

o sol fica lá no alto

(Guilherme Mandaro)

O sol, sem dúvida, ficava lá no alto e sua luz iluminava apenas os quartos da solidão e do exílio em Buenos Aires, Brasília e Rio. Os girassóis resistiam. Mas todos já sabíamos, embora se apregoasse o contrário em alto e bom som, nos rádios e nas TVs, que o Brasil não era feito por nós.

ENVOI, AVIÃO – TORPEDO

Em 1968, Caetano cantava no Tuca de São Paulo É proibido proibir. Mais importante do que a própria música foi o “discurso” com que o cantor, em cena aberta, se defendeu da vaia com que o público “politizado” recebeu a canção. Tão importante que esta fala ficou sendo parte integrante da mesma:

Nós não entramos no festival desconhecendo tudo isto. Nunca ninguém nos viu falar assim. (…) Tivemos coragem de entrar em todas as estruturas. (…) Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! (…) O problema é o seguinte: estão querendo policiar a música brasileira.

Este foi talvez o primeiro pronunciamento contra as hoje tão conhecidas e comentadas “patrulhas ideológicas”. Mas, acredito, é proibido proibir também esse patrulhamento. Quem sofrer seu assédio que se defenda, no ato, como Caetano, berrando mais alto e se fazendo ouvir no meio das sirenes. Pois a cultura jamais foi pura, e sim, historicamente falando, puta. E das boas, das que se prestam a todas as manipulações e abordagens. Não deixa de ser engraçado que Carlos Diegues, que vive graças ao bom Deus e ao financiamento pontual da Embrafilme, é que tenha cunhado essa expressão — patrulha ideológica. Logo ele, que mantém um fluxo de produção dos mais regulares, e cá entre nós até excessivo, no panorama cultural brasileiro. Talvez por isso mesmo, por estar de fora, conseguiu, num pronunciamento que tem muito de operístico, denunciar um “patrulhamento” que ele na verdade não sofre.

Eu já enfrentei a polícia em diferentes situações; tenho sete filmes que foram todos censurados; e, sinceramente, quando eu ouço essas pessoas falarem, parece que estou vendo os policiais que encontrei na Censura, em outras circunstâncias. Eu não vou dar satisfações ideológicas para a polícia. Não dei para os fardados: vou dar para os paisanos?(Estadão, 31 de agosto de 1978).

Embora a censura possa ter existido, o fato é que Cacá não ficou com nenhum filme na cabeça e com nenhuma ideia na mão, como é o caso de por exemplo Rogério Sganzerla, e, para voltarmos ao âmbito do literário, Tavinho Paes, entre tantos outros, que poderiam falar melhor, com mais conhecimento de causa e com mais competência, dessas questões. Mas eles não estão nem aí. Não têm tempo a perder para denúncias. Têm mais é que se virar, e como se viram, para, subindo na contramão, driblar as errepês e os camburões. São, salvo sejam, os pivetes do espírito e sem nenhum heroísmo fátuo ou declamatório, transformam, a cada passo e carreira, a aventura da arte em arte da aventura. Por todas essas razões é que não devemos alimentar vocações puristas e nostálgicas. As patrulhas passam, as caravanas também e os cachorros, idem. Repetir procedimentos culturais não dá pé. Prefiro a Ebulição da escrivatura (1978) à Poesia viva 2 (1978), pois aquele livro, com todas as suas deficiências e ingenuidades, sacode a poeira e, se não dá a volta por cima, rasga de qualquer maneira uma janela tosca no edifício editorial.

Preferiria que a Revista da Civilização, em sua nova fase, se chamasse, em vez de Encontros, Desencontros da Civilização Brasileira. Como preferiria também que o Violão de rua 4, que vem por aí, incorporasse no seu canto por exemplo de maneira ampla, geral e irrestrita os melhores exemplos da poesia “política” da década, isto é, a poesia de Mario Chamie em Plano plenário (1974), que consegue, como se vê, magistralmente, levantar o discurso tecnocrático do poder:

Poesia vírgula viva 197

O tribunal

antes do

veredito, a veracidade do dito. o bico do urubu, a gola desta

toga.

o adro. o pórtico das colunas, a pena de pavão no capacete
desta águia.

o patamar, o topo desta escada, o posto desta guarda em vossa
honra.

as rótulas, esta entrada, o corredor do centro, o lustre desta
luz. a vossa sombra.

as alas. o teto de teu anfiteatro, as aras. o altar de vosso
magistrado.

o estrado, os autos sobre a mesa. a defesa, o libelo no corpo

deste jurado.

o cenáculo, o pêndulo da balança, a venda nestes olhos, o altar

de vossa deusa.

a espada, o escudo, os brasões deste varão, o bronze deste

busto, vossa cabeça.

a baioneta, o veludo, o carmim, o clamor, o tambor, o clarim

de teu juízo.

o benigno, o temor, o tumor, o siso do meritíssimo nas tramas
deste cipó. nosso nó.

o teu amparo, a vossa cautela, o rosto do censor na janela

deste espelho.

o teu reflexo na vítima, o sósia de vosso povo sob a aura sob

o freio deste conselho.

Ou do sempre indispensável Gullar no Poema sujo (1976), onde, a pretexto de rememorar sua infância e a cidade de São Luís, sua poesia consegue impecavelmente nos trazer o retrato falado de todo um Brasil provincial, carente e expectante:

viver, mesmo

no salão de bilhar, mesmo

no botequim do Castro, na pensão

da Maroca nas noites de sábado, era pouco

banhar-se e descer a pé

para a cidade de tarde

(sob o rumor das árvores)

ali

no norte do Brasil

vestidos de brim.

E por ser pouco

era muito,

que pouco muito era o verde

fogo da grama, o musgo do muro, o galo

que vai morrer,

a louça na cristaleira,

o doce na compoteira, a falta

de afeto, a busca

do amor nas coisas.

Não nas pessoas:

nas coisas, na muda carne

das coisas, na cona da flor, no oculto

falar das águas sozinhas:

que a vida

passava por sobre nós,

de avião.

Também Affonso Ávila, excelente poeta, não devidamente lembrado pela crítica, seria presença obrigatória na poesia de engajamento social e que nem por um minuto deixa cair o tom de sua nobre, nova e incisiva dicção:

façamos a revolução
antes que o povo a faça
antes que o povo à praça
antes que o povo a massa
antes que o povo na raça
antes que o povo: A FARSA

  • senso grave da ordem
  • censo grávido da ordem
  • incenso e o gáudio da ordem

a infensa greve da ordem

a imensa grade DA ORDEM

terra do lume e do pão
terra do lucro e do não
terra do luxo e do não
terra do urso e do não
terra da usura e DO NÃO

mais da lei que dos homens
mais da grei que os come
mais do dê que do tome
mais do rei que do nome
mais da rês que DA FOME

libertas quae será tamen

liberto é o ser que come

livre terra do sertanejo

livro aberto será a trama

LIBERTO QUE SERÁ O HOMEM

Ou ainda na produção de poetas que apareceram posteriormente surge uma outra linha de “participação” e “engajamento”, que nos parece ter a mesma eficácia, contundência e originalidade: ela atua em dois níveis — no livro e na canção. Assim, na corda bamba, entre a página e o palco, caem também no samba, como Vinícius, e mais para trás, bissextamente, o onipresente Bandeira, Torquato, Waly, Capinam, Geraldo Carneiro, Tite de Lemos, Cacaso, Xico Chaves e Abel Silva, que dão seu recado com o microfone numa das mãos e a caneta noutra. Bom exemplo disso pode ser o de Capinam, que, em meados de 60, publica Inquisitorial, alcançando uma espécie de lirismo desatinado e perturbador:

Quando um soldado capenga

surgir em cena,

não compreenda, e, se compreender,

não ria — porque não estamos

ante um soldado nem ante o III Reich.

Quando um tanque se precipitar

da ponte,

não cante, e, se cantar,

não dance — porque não estamos

ante a firmeza do tanque e a verdadeira ponte.

E quando um gueto se sublevar

e for morto heroicamente,

não comente, e, se comentar,

não glorifique — porque não houve heróis,

só houve homens no III Reich.

Na canção, o mesmo se dá, num outro tom, metafórico, alegórico e alusivo, onde o subtexto captável vale tanto quanto o texto aparente (técnica, aliás, naqueles tempos de sufoco, amplamente usada em todas as áreas — da linguagem jornalística, que a imprensa nanica aperfeiçoou, ao poema), temos Gotham City, letra de Capinam, que a música e o canto aberto e destemido de Jards Macalé acompanham:

Gotham City (uma homenagem a todos os homens-morcegos) — Aos quinze anos eu nasci em Gotham City / Era um céu alaranjado em Gotham City / Caçavam bruxas no telhado em Gotham City / No dia da independência nacional / Cuidado, há um morcego na porta principal / Cuidado, há um morcego na porta principal / Eu fiz um quarto quase azul em Gotham City / Sobre os muros altos da tradição de Gotham City / No cinto de utilidades as verdades: / Deus ajuda a quem cedo madruga em Gotham City / (estribilho) / No céu de Gotham City há um sinal / Sistema elétrico nervoso contra o mal / Meu amor não dorme / Meu amor não sonha / Não se fala mais de amor em Gotham City / (estribilho) / Só serei livre se sair de Gotham City / Agora vivo o que vivo em Gotham City / Mas vou fugir com meu amor de Gotham City / A saída é a porta principal / (estribilho) / Cuidado, não se fala mais de amor em Gotham City / Cuidado, vou fugir com meu amor de Gotham City / Cuidado, a saída é a porta principal / Cuidado, há um abismo na porta principal.

A boa poesia de Alex Polari, a seu modo, realiza essa interação entre o poético e o político. No seu livro Inventário de cicatrizes, de 1978, o testemunho e o documento de todo um período de pauleira, tortura e barra pesada nos aparece inteiro:

Amar em aparelhos

Era uma coisa louca

trepar naquele quarto

com a cama suspensa

por quatro latas

com o fino lençol

todo ele impresso

pelo valor de teu corpo

e a tinta do mimeógrafo.

Era uma loucura

se despedir da coberta

ainda escuro

fazer o café

e a descoberta

de te amar

apesar dos pernilongos

e a consciência

de que a mentira

tem pernas curtas.

Não era fácil

fazer o amor

entre tantas metralhadoras

panfletos, bomb as

apreensões fatais

e os cinzeiros abarrotados

eternamente com o teu Continental,

preferência nacional.

Era tão irracional

gemer de prazer

nas vésperas de nossos crimes

contra a segurança nacional

era duro rimar orgasmo

com guerrilha

e esperar um tiro

na próxima esquina.

Era difícil

jurar amor eterno

estando com a cabeça

a prêmio

pois a vida podia terminar

antes do amor.

Convém contudo lembrar, para que não nos apareça uma enxurrada diluidora, cheia, é claro, de boas intenções infernais, como ern 1968 com Poesia viva 1, tipo “por que eu não me ufano do meu país”, que quanto mais a poesia de hoje fizer uma convocação urgente das falas do presente, mais ela conseguirá uma real inserção e atuação na realidade atual. Não se conseguirá nada se elegermos temas tipo “povo, praça e condor”, que já tiveram sua vez, e programarmos grandiloquentemente “poemas de esquerda”, “poesia de protesto”, ou coisa que o valha, como antigamente se falava. Toda essa transa deve se dar no nível da linguagem, e seus problemas, isto é, em vez de impressões, expressões, fora do vale de lágrimas e das lamúrias, e somente através dela, a linguagem, repito, entendida e apreendida no coloquial do seu dia-a-dia, conseguiremos trazer o documento que transcende a mera circunstancialidade e se transforma em testemunho atuante e aberto a todos os ventos, como a meu ver é a boa e direita lição daqueles poetas que citei entre outros, linhas acima, como exemplos exemplares. Para o pessoal que chega e que desembarca das naviloucas e dos aviões de carreira, depois da longa, trevosa e tumultuada travessia, apenas um pedido: que a nuvem cigana, que tão bem enxergaram do alto da gávea e da cabine, não se transforme em nuvem de marfim: fiquem com a cabeça no ar, mas ponham pelo menos um dos pés no chão nosso de cada dia, o que equivale dizer: voem, mas não sejam avoados, e que, de resto, os gaviões e as ciganas se multipliquem e se locupletem para o bem de todos e felicidade geral da nação. Pois a poesia deve ser encarada como um fenômeno coletivo; está nas ruas, nos muros, não mais como a pátina dos tempos, mas no spray que conjuga gesto e palavra em suas páginas de pedra e cal, em constante e acelerado processo de acumulação, aviso e reparo.

Assim, sem profetizar, mas torcendo nas gerais e na arquibancada, é que entendo o que está por vir: as Marcas do Zorro, feito, à mão livre, e publicado, em 1979, por Tite de Lemos, traz, neste final de década, na sua capa, a última letra do alfabeto, e uma gota de sangue do próprio poeta. “Há uma gota de sangue em cada poema” de hoje (pelo menos em alguns), e se o Z é também o de zênite, onde estamos esperando o filme que ainda não vimos, ele está, como marca e cicatriz, em toda parte e nos mostra que o

exercício para letras gothicas

dona Irene foi quem me aplicou

quando ponho um pé na catedral sinto que um oceano me

assassina

o que isso tem a ver com o futuro? entrementes

uns índios guaranys incendeiam ervas sagradas ali logo na

esquina.

E entendo finalmente com esse poema de Tite que, graças a Deus e ao diabo, nesse tempo de abertura que pode arrebentar e prender, o outrora sagrado, estético, secreto coração da literatura já não existe mais — ele está

…bordado,

em pleno vôo,

na camisa do peito.

Agradecimento e dedicação: a Maria Helena Torres e a Tite de Lemos, colaboradores inestimáveis e amigos do coração, ofereço este trabalho.

Declaração: a prestimosidade e competência de Lúcia Mousinho e Such Nunes Neiva no levantamento de títulos, autores, cronologia e consequente mapeamento dos roteiros da produção poética de 70 facilitaram sobremaneira o autor em sua tarefa.

25 anos depois:

Há 25 anos minha casa estava em obras e eu só tinha um dia para acabar de escrever esse apanhado sobre a poesia dos ’70. Era o último prazo, já que tinha perdido o primeiro e o segundo. Na verdade, acabar de escrever era um eufemismo, pois o que eu tinha em mãos era um maço de papéis com muitas notas que Ana Cristina Cesar tinha me ajudado afazer, notas estas sem nenhum desenvolvimento maior. Me lembro que era um domingo à tarde, quando me atirei (o termo é exato) para a redação final. Talvez por ser a primeira vez que ia ganhar dinheiro com algo escrito por mim (e me lembro que era uma boa grana) estava inquieto achando que não ia dar conta. O fato é que escrevi à mão, como sempre faço, de meio-dia e pouco até as onze e tanto da noite, quase ininterruptamente. Quando acabei a maratona estava com uma espécie de dor de dente no braço ou algo parecido: doía muito, doía tudo. Sozinho na casa em reformas, abro um jornal qualquer para descansar, e dou com um anúncio discreto: “Massagem: atendimento a domicílio”. Aquilo tinha caído do céu, sem dúvida. Telefonei, gemendo, e pedi urgência. Cerca de uma hora depois, a campainha bate; saltei da cama como pude e abri a porta para a massagista. Ela me curou, milagrosamente. Era uma senhora massagista.

Por ter sido o último (assim me diziam) a entregar o texto não tive direito de revisá-lo. Quando agora, em 2004, me foi oferecida essa oportunidade, pretendia fazer uma revisão em regra. Não do conteúdo, é claro, mas, em algumas passagens, da maneira de dizê-lo. Mas qual o quê. Estou aqui numa madrugada de domingo escrevendo afobado, para entregar tudo na segunda, tal como na vez anterior. Só ficou faltando a massagista. A revisão foi feita como Deus é servido, e o que estava escrito assim ficou, “biblicamente”. No fundo, acho que foi melhor manter o atropelo e o passionalismo daquele manuscrito é ser fiel à época que buscava retratar e àquele redator que se despedia do que ainda sobrava da juventude.

/comentário de Armando Freitas Filho!

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