2017

Revoluções, mutações…

por Francisco de Oliveira

Resumo

Queremos aqui nos ater brevemente ao processo de mutação em curso, principalmente do que diz respeito à economia, segundo o popular nome de “globalização”, este “inter-relacionamento e hierarquização das economias e sociedades”. Mas, em substituição a esse termo, preferimos aquele cunhado por Chesnais, “mundialização”, que soa mais apropriado, conforme veremos, para definir algo que tem antes um sentido deletério. Não se trata de um processo de homogeneização ou equalização: longe disso e ao contrário disso. O que observamos é mais do que o aviltamento, de longa data, da tradicional força de trabalho pelo capital. A fase de mutação a que nos referimos atingiu hoje um novo patamar daquilo que já tinha sido analisado e predito por Marx. A partir do capitalismo galopante e do ultralibelarismo, o trabalho foi forçado a elevar sua produtividade “a tal ponto de torná-lo banal, quase supérfluo”, resultando, como sempre, no sucateamento das condições do trabalhador e de seu salário, em contraposição à valorização da especulação financeira. No relativamente recente estouro da bolha imobiliária, primeiro nos EUA e depois no Japão, seguido do Brasil, foi o nosso país periférico que, como parte do processo de mundialização, acabou por ser mais prejudicado juntamente com outros capitais da periferia do mundo. De fato, nesse efeito cascata, vemos anuladas as velhas construções histórico-sociais, como as nações, por exemplo, afinal é disso que trata essa hierarquia mundializada: manda quem pode. Continuando nessa mesma toada, no processo de “vampirização” das riquezas, quem sofre antes são as finanças públicas, as primeiras a serem desvalorizadas, conforme já havia previsto Keynes. Esse desmantelamento é avassalador, principalmente nos chamados países “emergentes”, que perdem poder de decisão relativo às suas próprias políticas econômicas. Tudo isso concorre para o já conhecido processo de sujeição da política à economia e, no contexto mundial, das economias mais fracas às mais fortes, pondo em cheque o próprio conceito de nação e de sua soberania.


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A convergência, simultaneidade, abrangência e profundidade das transformações em curso conduzem a pensar numa mutação de grandes proporções. Este ciclo dedica-se a interrogá-las. Até mesmo o conceito de revolução tende a ser abandonado; estaríamos diante de algo que parece mais capaz de ser compreendido nos termos das grandes mutações geobiológicas, como a era glacial, ou o salto – para trás? – dos dinossauros aos pássaros. A atualidade de Darwin parece sobrepor-se a qualquer outra explicação ou exploração dos fenômenos. Enumerá-las seria algo entre o óbvio e o fastidioso.

Proponho-me a algo diverso, até remando contra a corrente – pelo menos nos seus trechos mais caudalosos –, para perguntar-me pelo radicalismo da mutação: vá lá, adotemos o termo para propósitos de discussão.

Alguns aspectos são realmente assombrosos. Dentre estes, tem-se ressaltado a revolução tecnocientífica, que Laymert Garcia dos Santos chama de molecular-digital, sustentado por uma vasta e magnífica literatura. Aí estão tanto a eletrônica quanto a verdadeira – e iminente – fabricação de seres vivos; que, aliás, se reforçam e interpenetram, haja vista a codificação dos genomas, inalcançável sem os recursos da informática: a

genômica mesmo é uma ciência informática.

Noutro campo, o processo e inter-relacionamento e hierarquização das economias e sociedades, chamado de globalização – que Chesnais

prefere chamar de “mundialização” –, é também em parte movido pela revolução molecular-digital e tende a mudar a estrutura da riqueza mundial e a anular velhas construções histórico-sociais, como as nações, por exemplo.

Tudo parece indicar que a radicalismo da “mutação” é de tal porte que torna irrelevantes quaisquer experiências anteriores. Há até quem proclame uma mudança cognitiva de tal radicalismo que a forma de pensar, os conceitos e os nomes das coisas já não designam nada, tornaram-se ineficazes, instrumentos sem corte que já não dissecam os processos em curso.

Por razões óbvias, a magnitude das mudanças e o limitado alcance de meu campo de investigações obrigam-me a destacar algumas daquelas que considero as mais importantes para tentar ao menos arranhar sua complexidade. Destacarei particularmente o que chamamos “globalização”.

As grandes transformações societais tiveram por fulcro o trabalho, seu estatuto, sua centralidade, ou sua superfluidade. Parece que a mutação em curso simultaneamente potencializa o trabalho humano a um ponto em que ele se torna supérfluo. Enorme paradoxo?

Mesmo se fizermos a clássica distinção – cara aos marxistas como eu, e aos herdeiros de Aristóteles – entre opera e labor, a revolução molecular-digital parece torná-las indistinguíveis.

Tudo ainda é uma “passagem na neblina”, ou, em termos gramscianos, o choro dos bebês e o lamento dos velhos parecem o mesmo, mas o novo está aí, apenas não o distinguimos, não conhecemos sua face, seus contornos definitivos. O mais radical: talvez jamais venhamos a vê-los, pois a velocidade da descartabilidade dos processos nos dá apenas a chance de ver fantasmasgorias.

A “mundialização” – prefiro Chesnais, como é evidente – é um processo real de fusão das economias – e sociedades – que elevaram o poder do capital a dimensões imensuráveis, quase fora do alcance da percepção de todos nós. Fora do alcance da percepção mesmo dos seus possuidores, como já previra Marx. Ela, a mundialização, não é um processo de homogeneização ou equalização: longe disso e ao contrário disso. É processo do capital fictício, nem sequer do capital financeiro, como se diz comumente: até mesmo Chesnais chama-a de “acumulação à dominância financeira”. Essa crise em movimento o mostra: começou com o estouro da bolha imobiliária nos EUA e logo se estendeu a todas as partes: de Nova York a Tóquio e de lá a São Paulo, e a todos os setores. A resposta dos bancos centrais – e o Brasil ficou quieto porque isso é “briga da cachorro grande”, e não porque nossa economia é sólida – foi jogar gasolina para apagar o fogo, porque se trata de desvalorizar tanto o capital fictício que já não compensa comprá-lo, ou, em termos de Marx, já não compensa realizar o valor. É isto que significa a taxa de juros negativa do Fed, do Banco Central europeu e do Japão.

Um breve parêntese: a “economia sólida” do Brasil tinha reservas de 160 bilhões de dólares, que é menos do que os bancos centrais citados torraram em seis dias de combate ao fogo financeiro! O paradoxo da globalização: enquanto suas taxas de juros já são negativas em termos dos lucros reais do sistema produtivo, no Brasil as taxas de juros são altamente positivas, e como! É o movimento de engolir os capitais da periferia, ou, como prefere Leda Paulani, da transformação das periferias em plataformas de valorização do capital financeiro: trata-se, rigorosamente, de um epifênomeno do mesmo capital fictício! Capital fictício é, pela lição de Brecht, a ficção do capital. Juntemos Marx e Brecht e o enigma fica resolvido, mas não o problema.

Na sua origem, o capital fictício emana do capital produtivo, mas, como na homeopatia, sua diluição é tal que apenas guarda a memória de sua origem produtiva, assim como a diluição na homeopatia guarda a memória do princípio ativo.

O capitalismo, ao tornar a ciência uma força produtiva, elevou a produtividade do trabalho a ponto de torná-lo banal, quase supérfluo. Com isso, o aumento das forças produtivas definitivamente separou a realização do valor da distribuição do valor, o clássico problema da realização já apontado por Marx em O capital.

Durante o período chamado “estado do bem-estar”, ou os “anos gloriosos”, o problema das desproporções assinalado foi resolvido mediante o recurso às riquezas públicas como um “antivalor”, melhorando substancialmente a distribuição da renda e com isso a realização do valor.

Mas o recurso transformou-se numa espécie de Aids, um vírus autoimune, pois, justamente pela não destruição do capital e melhoria da renda, o crescimento das forças produtivas foi gigantesco. Do que resultaram a chamada “financeirização” e, por consequência, uma expansão ilimitada do capital fictício, jogando sempre para diante a realização do valor.

Como um imenso vórtice ou um “buraco negro”, todas as formas de riqueza são capturadas, vampirizadas; e, em primeiro lugar, as finanças públicas, que são sempre a primeira linha de desvalorização do valor, prevista por Keynes e, até certo ponto por Marx, que a chamava de “acumulação primitiva”, mas fora do circuito do dinheiro. A desestruturação das finanças públicas é avassaladora, e principalmente os países chamados “emergentes” perdem inteiramente a autonomia em suas decisões de política econômica, especialmente na área monetária. Pelo ralo desaparecem as nações, e sobram apenas os poderes de polícia do estado de exceção.

Veja-se o caso do Brasil: falemos de corda em casa de enforcado. Reservas de 160 bilhões de dólares, irrisórias comparadas às cifras jogadas para sustentar as bolsas. Todos reclamam da taxa cambial, e o governo nada pode fazer. Quando se valoriza o real, é o mercado; quando se desvaloriza, como aconteceu no círculo virtuoso que empurrou as exportações de commodities, também é o mercado. Nenhum analista arrisca uma previsão para dez dias: ou se prevê o amanhã, ou se diz que a crise vai durar. Quanto? Tarefa para Nostradamus.

O crescimento das forças produtivas é espantoso. A China continua bombando a 10% ao ano, e a Índia quase no mesmo patamar. Como foi possível? Mediante a combinação marcante nesta revolução/mutação: o uso poderoso da tecnologia disponível que criou imensos exércitos de trabalhadores antes na reserva agora na ativa com salários aviltados. Quem poderia pensar que os poderosos e imensos contingentes populacionais da China e da Índia se tornariam mão de obra industrial?

No meu modo de ver, a revolução em curso ainda não atinge a escala das grandes mutações. Até o momento, ainda estamos num sistema capitalista, a riqueza continua sendo apropriada privadamente, e o trabalho banalizado colocou à disposição imensos contingentes de mão de obra que, ao mesmo tempo, deslocaram o sujeito do trabalho do seu lugar central na sociedade. Na expressão já clássica de Robert Kurz, trata-se de sujeitos monetários sem dinheiro.

O estágio atual, um rosto ainda por definir-se melhor, é da soberania do capital fictício, da irrelevância das nações, de uma sociedade sem polí

tica, uma espécie de piloto automático, incontrolável, classes sociais em desaparição, sendo substituídas pela pobreza, uma sociedade de controle total: nos termos de Foucault, a biopolítica do biocontrole, e, para homenagear uma velha marchinha carioca, “mais de mil palhaços no salão”, chamem-se calheiros ou lulas.

O novo ainda tem muito trabalho de destruição para realizar, até que o velho seja inteiramente liquidado. Mas, se esse rosto ainda é indiscernível em suas sutilezas, uma coisa é certa: será uma sociedade – se é que ainda podemos encontrar algo que aglutine as pessoas em grupos, menos que mônadas – abundantemente rica e escandalosamente pobre. Índia e China de enorme proporções, ou Brasil e África do Sul exponenciados. Movida por ciência e tecnologia: um “admirável mundo novo”, salve Huxley e Orwell.

BIBLIOGRAFIA

Aldous Huxley, O admirável mundo novo. Francisco de Oliveira, Os direitos do antivalor. François Chesnais, A mundialização do capital. George Orwell, 1984.

John Maynard Keynes, A teoria geral do emprego, da renda e do dinheiro.

Karl Marx, O capital.

Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã. Laymert Garcia dos Santos, Politizar a tecnociência. Leda Paulani, Brasil delivery.

Notas

  1. Ciclo de Palestras: Rio de Janeiro, 21; Belo Horizonte, 22; São Paulo, 23 de agosto de 2007; Salvador, 13 de setembro de 2007.

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