Rousseau e os devaneios de um caminhante solitário
Resumo
Aparentemente associado ao ócio, o devaneio é o estado mental do conhecimento de si. Por isso, exige solidão. E o sujeito, na tentativa de recompor a lucidez de sua consciência, será o caminhante solitário que percorre os caminhos que não levam a parte alguma, exceto a si mesmo. Tal propósito exige, para realizar-se, o abandono de todos os propósitos, pois se trata de um fim que não se tem em mente, mas que retroage para o interior da subjetividade. E se os caminhos oferecem ao caminhante o espetáculo da natureza, não se trata de conhecê-la, mas de senti-la em comunhão com o próprio Eu. Essa imanência do caminhante ao caminho, ou do sujeito à natureza, muito característica de Rousseau, é a antítese do itinerário objetivo, da racionalidade produtora, que faz do percurso o meio de chegar. Por isso o caminhar identifica-se com o vagar, o andar indefinido, como a representação do sonho, que se distingue pela sua irrealidade. Assim, a recusa dos caminhos da racionalidade e da sociabilidade encaminha para a sensibilidade o sujeito que vai ao encontro de si. Na descrição das caminhadas, é a relação sensível com as coisas e consigo mesmo que orienta o sujeito, uma relação que contraria, portanto, o trabalho, o método e a ordem. A atividade que escapa da trivialidade, que atende ao impulso da sensibilidade e não da racionalidade objetivante, não produz resultado, não modifica o mundo. Mas não é necessário modificar o mundo para aquele que, sendo sensível ao mundo, já o vê de outro modo. Quando a atenção pragmática se revela inútil, a atenção a si, ou a intensidade da atenção concentrada na própria intenção de saber de si, reorganiza imaginariamente a realidade e permite a – no caso – Rousseau dizer que ele está pronto para gozar de sua inocência e encontrar a paz.
Se a definição de realidade se dá por um ardil da razão, imaginar não seria propriamente abandonar a realidade, e sim recusar compreendê-la apenas naquilo que se refere ao entendimento. E aquilo que confere ao pensamento de Rousseau a marca “antropológica” é a convicção de que o homem é a primeira referência de si mesmo, se ele se compreende subjetivamente. E se a realidade que nos é dada pela razão nos afasta dessa compreensão, o que seria mais legítimo do que buscar no exercício da imaginação a ampliação de uma realidade racionalizada ou de uma natureza objetivada?
Mas o exercício da imaginação exige o recolhimento a si, isto é, exige que o sujeito nada faça fora de si, que permaneça desatento aos afazeres, ou ao fazer na exterioridade. Que recuse a trivialidade inerente ao trabalho, à ordem e ao método, e que opte pela gravidade do conhecimento de si. Nesse sentido, o trabalho de conhecer e organizar o mundo será sempre, e finalmente, superficial, já que o sistema do mundo objetivo oculta o essencial. Trata-se, então, de apropriar-se da gravidade e da profundidade do homem e das coisas na relação sensível que salta sobre as mediações, na imaginação que rompe limites. E para isso não é preciso representar, delimitar, organizar, instituir. É preciso restituir ao sentimento a liberdade de origem para que possamos imaginar o que era o homem antes que a história o constituísse e antes que a civilização o deformasse. Ainda que isso não possa ser encontrado, é no aprofundamento da subjetividade autêntica que deve ser procurado. Os compromissos da atividade trivial impedem que por ela sejam restituídos a simplicidade e o modo franco de ser.
Por que Rousseau? Talvez seja essa a primeira pergunta de alguém que depare com a presença do filósofo no contexto do tema, algo insólito, do elogio à preguiça. Com efeito, se considerarmos no autor o que poderíamos chamar, de modo geral, de filosofia social, observaremos, de imediato, a preocupação com a organização da vida histórica, o que tem muito a ver com a divisão do trabalho e com as instituições que objetivam a vida social. Se a finalidade da ética e da política é a felicidade, a reforma a ser empreendida é a da sociedade e das formas de convivência. Rousseau seria um filósofo político e a sua reflexão se inscreveria na tradição das tentativas de elucidação da sociabilidade, aí incluídas as propostas de aprimoramento da vida social. Como essa atitude filosófica deve considerar a organização coletiva da vida, haveria uma objetividade inerente a esse trabalho de reflexão, pois o tema compreende as formas de organização social e política, na realidade com que se apresentam e também nas possibilidades abertas pelo pensamento. Pensar a política seria pensar o homem na dimensão das relações incluídas na organização sociopolítica; de alguma maneira, seria pensar o homem na esfera da generalidade, para entender como aquilo que se apresenta como o bem geral poderia atender às necessidades dos indivíduos.
Mas Rousseau é, também, um filósofo crítico. Com isso queremos dizer que ele não apenas descreve as relações entre indivíduo e sociedade, como ainda julga e avalia os resultados das formas adotadas de sociabilidade, inclusive comparando-as com possibilidades superadas pela história. O objeto da crítica de Rousseau é a civilização, isto é, as organizações políticas triunfantes ao longo do percurso histórico. A forma como essa crítica aparece em Rousseau supõe um exame em paralelo de duas questões: de um lado, o processo de civilização nas suas condições objetivas de realização, de outro, a maneira como a subjetividade vive esse processo e sofre suas consequências. Para que a reflexão aconteça nesse duplo propósito, é necessária uma profunda articulação não apenas entre indivíduo e sociedade, mas entre sujeito e civilização. Em outras palavras, é preciso entender como aquilo que o sujeito deve desejar para si mesmo se entrosa com a realidade construída no processo civilizatório. Ou, ainda, até que ponto a liberdade subjetiva se expande ou se restringe a partir das possibilidades de relação que a história da civilização realiza — aí consideradas também as possibilidades que esse processo exclui.
Considerando-se, então, que se trata da subjetividade, e não apenas da individualidade, os critérios a serem observados pela filosofia política se tornam complexos. Não seria o caso de elucidar apenas os modos de inserção do indivíduo na totalidade social, mas também de compreender as tensões que se apresentam na relação historicamente estabelecida entre as prerrogativas da subjetividade e a objetividade do sistema civilizatório. Essas tensões permanecem ao longo de todo o pensamento de Rousseau e aparecem sob vários aspectos. Simplificando os exemplos, poderíamos dizer que há uma tensão entre o sistema da desigualdade e a realização essencial do homem como sujeito livre. Haveria igualmente uma tensão entre a ordem que deve predominar numa coletividade sistematizada e as aspirações da subjetividade. Ou, também, entre as regras utilitárias da comunicação e as possibilidades da expressão subjetiva.
O modo pelo qual Rousseau visa essas tensões e reflete sobre elas depende de uma contradição que constitui o eixo de seu pensamento: a oposição entre natureza e cultura ou, talvez mais precisamente, civilização. É nesse sentido que sua posição se define como à contracorrente do progresso, supondo-se que a ideia de progresso seja forjada no âmbito do processo civilizatório com o propósito de justificá-lo. É nesse sentido que encontramos também, em Rousseau, a oposição entre progresso civilizatório e origem. Essa posição permite que a descrição do processo seja, ao mesmo tempo, a avaliação negativa dos resultados que se vão constituindo historicamente. A consideração da origem é importante porque nela encontramos critérios essenciais para formular um juízo acerca do decurso civilizatório, o que permite aquilatar a oposição entre origem e história ou atualidade.
É desse modo que a noção de bom selvagem não é a designação de uma situação, mas o nome da origem na complexidade do seu significado. Tal complexidade deriva de que na ideia de origem não está apenas suposto o começo temporal, mas a originalidade de um princípio, isto é, a originalidade da humanidade. E o juízo que se fará, por via da comparação entre origem e decurso do processo civilizatório, levará à constatação de uma deturpação da originalidade humana. Esse fenômeno inclui tanto o esquecimento da origem como a perda de um princípio que deveria permanentemente manter o homem em sua humanidade. Muitos entendem essa conclusão como um juízo moral. Mas é preciso considerar também o alcance de uma reflexão que logra associar ética, política e história, e o enlace dessas dimensões constitui a filosofia como antropologia. Com efeito, o que está em questão é uma definição de ser humano; mas a reflexão que se dirige para essa definição é, ao mesmo tempo, o reconhecimento da perda irremediável da realidade originária, lugar de uma possível apreensão da essência. Por isso, a origem estaria aquém da história; e é por isso também que não se pode esperar uma recuperação histórica do que foi perdido.
Essa impossibilidade está fortemente ligada a outra: a do desempenho da subjetividade segundo a liberdade originária. De alguma maneira, portanto, estamos diante de uma filosofia política que deve considerar a possibilidade da sociedade organizada no contexto de uma humanidade esgarçada. É diante dessa contradição que se deveria compreender a medida de uma filosofia política em sua eventual positividade. É também diante dessa contradição que se deveria considerar a singularidade da antropologia rousseauniana.
A esta altura, voltemos à ideia, exposta anteriormente, da relação entre subjetividade e a objetividade do sistema civilizatório. Do ponto de vista da formação de ambas as instâncias, o que se pode observar é a. assimilação, pelo sistema, da originalidade subjetiva. A desigualdade tornada sistema absorve o indivíduo livre e anula a liberdade que somente se realizaria num contexto igualitário. O desenvolvimento do sistema das línguas absorve a liberdade poética da expressão originária. A formação do sistema torna-se também a formação do sujeito — ou a sua deformação como indivíduo socialmente constituído, mero produto das convenções que pautam a civilização em progresso. É difícil apreender ou definir os traços constituintes da civilização no plano da realidade de um fenômeno complexo e multifacetado. Mas o juízo que faz Rousseau, sendo, como já vimos, simultaneamente ético, histórico e político, atinge um significado essencial. O predomínio do artifício ou das convenções proporciona uma associação entre atividade e trivialidade que define o indivíduo civilizado e constitui o seu perfil ético, histórico e político. O êxito dessa construção civilizatória depende da exclusão da subjetividade autêntica. Consequentemente, no contexto da associação identificadora entre atividade e trivialidade, não se pode falar de ação subjetiva. Dessa forma, a pergunta quem age?” só encontra resposta na dimensão inautêntica do indivíduo convencionalmente produzido, cuja atividade, por mais intensa que seja, ocorre necessariamente no âmbito do artifício e da trivialidade. Isso significa que o sujeito não age, porque ao longo do processo civilizatório ele foi substituído por um preposto construído segundo as conveniências de um sistema social convencional.
É importante entender que convenções e artifícios formam o sistema, porque isso nos ajuda a avaliar a força da deformação civilizatória. Não se trata apenas de uma associação aleatória de circunstâncias, mas de uma coesão sistêmica de regras objetivas introjetadas que constituem a individualidade social, ao mesmo tempo que esvaziam a subjetividade. Esse sistema é vivido ativamente, mas sem a densidade de uma experiência subjetiva. Essa é a razão pela qual a manifestação da subjetividade é imediatamente sufocada no âmbito da representação “natural” do sistema. A manifestação da subjetividade autêntica é ocasião de sofrimento. Eis por que a incompreensão de que Rousseau constantemente se queixa (e as consequências persecutórias) não pode ser reduzida a paranoia ou atitude romântica, mas vincula-se ao diagnóstico da civilização, e o “pessimismo” decorre de uma reflexão que ocorre com densidade nos aspectos ético, histórico e político.
A pergunta que se pode fazer a seguir diz respeito à possibilidade de resistir a essa situação. E a resposta parece surgir do que foi dito: seria preciso recuperar a dimensão de sujeito, isto é, de agente livre, aquele que detém o senhorio ético de seus atos, isto supondo que se possa encontrar, na origem esquecida lá no fundo da subjetividade, a originalidade que a civilização ocultou. Ora, o sistema tira sua força da racionalidade — ou da racionalização — que parece comandar a construção das convenções e garantir a sua eficácia. Com efeito, a civilização parece pautada pela racionalidade: a razão seria o instrumento eminente de todas as elaborações que resultam nessa totalidade sistêmica que seria a representação dos elos entre indivíduo e sociedade, aí incluídas as mistificações históricas e a moralidade convencional, que nada main é do que a corrupção racionalizada. A racionalidade sustenta a objetividade de uma sociedade que se realiza nas regras, isto é, dos indivíduos que realizam a individualidade na esfera das convenções impostas e aceitas — numa espécie de subjetivação deturpada que resulta no contrário da subjetividade. A amoralidade traz com ela a exigência de uma grande atividade no plano da objetividade convencional, isto é, da alienação, mesmo quando esta inclui, na sua aparência, o trabalho de modificar o mundo, visto como expressão eminente das capacidades humanas.
Ora, se a filosofia política permite chegar a esse diagnóstico, e se o filósofo político é um escritor, a resistência será pela escrita, mas concebida de outra forma. Toda a negatividade acumulada ao longo da reflexão que denominamos filosofia social poderá talvez gerar o impulso para outra escrita, que seria a manifestação resistente da subjetividade. E é claro que essa outra conduta do escritor implicará a recusa da sociedade e das convenções da civilização. É isso que explica, ao longo da obra de Rousseau, os momentos de exposição da subjetividade — Confissões, Cartas, Rousseau e Jean-Jacques — e, finalmente, a tentativa de realização completa dessa exposição, que é ao mesmo tempo uma interiorização, a volta à autenticidade subjetiva: as Revêries, Os devaneios do caminhante solitário.
Eis-me, portanto, sozinho sobre a terra, sem outro irmão, próximo, amigo ou companheiro que a mim mesmo. L.] Buscaram nas sutilezas de seus ódios que tormento poderia ser mais cruel para minha alma sensível e romperam com violência todos os laços que me ligavam a eles. […] Agora, portanto, são para mim estranhos, desconhecidos, por fim insignificantes, pois assim o quiseram. Mas e eu mesmo, afastado deles e de tudo, o que sou? Eis o que me resta buscar [1].
O caráter autobiográfico dos Devaneios faz com que Rousseau não se furte a reiterar o lamento acerca da perseguição de que seria vítima e que teria resultado na solidão em que se encontra. Entretanto, como já indicamos, mais do que os traços psicológicos que poderíamos encontrar, interessa-nos o aspecto da exclusão que atinge aquele que quer agir como sujeito, isto é, afirmar-se a si mesmo a partir da subjetividade, o caráter primário, e assim recusar o construto derivado, secundário, produto do sistema social e civilizatório. Nesse sentido, a solidão precisa ser compreendida numa chave de maior alcance. É claro que a solidão foi produzida pelos outros, mas ela resulta, sobretudo, do divórcio entre a história da civilização e a história do sujeito. A inserção que poderia existir da história subjetiva na história geral e objetiva foi substituída pela absorção da subjetividade no processo civilizatório e na transformação do sujeito em indivíduo socialmente produzido. Não se trata, portanto, somente da deliberação de inimigos, rivais e invejosos, mas de um vetor intrínseco à construção de uma sociabilidade corrupta. Essa é a causa real de que toda uma vida dedicada à afirmação da subjetividade tenha sido vivida em vão.
Entretanto, mesmo que se admita aí uma derrota, é possível atribuir a ela outra significação: a solidão e o abandono como ocasião para repor a pergunta: “o que sou?”, cuja resposta exige, de alguma forma, a solidão e o abandono. Porque essa condição coincide com o afastamento de um mundo governado pela associação entre atividade e trivialidade. Com efeito, há um sentido de resistência que envolve um pacto com aquilo a que se resiste.
Por muito tempo, debati de maneira tanto violenta quanto inútil. […] Por fim, sentindo inúteis todos os meus esforços, tomei a única decisão que me restava tomar, a de me submeter a meu destino sem mais resistir ao inevitável[2].
Será, no entanto, essa submissão uma resignação irrevogável e a simples entrega de si ao destino? A resposta será negativa se entendermos que a desistência significa, na verdade, outra resistência, aquela que se fará pela meditação e pela escrita, que buscarão responder à pergunta “o que sou?”.
Aproximar-se de si e distanciar-se do mundo: mas com a consciência — com a lucidez —, que corresponde a uma experiência negativa da manifestação da subjetividade, pois um mundo corrupto não aceita a autenticidade subjetiva. Mais do que isso: é preciso recusar todas as racionalizações, é preciso fugir a qualquer tentação de explicação da subjetividade pela objetividade (é inútil debater), é preciso recusar o jogo e suas regras. Enfim, é preciso entender que lucidez e autenticidade estão mais próximas do sentimento do que da razão, sobretudo de uma razão historicamente corrompida. Por isso, a resposta que se pretende dar à pergunta “o que sou?” não pode seguir uma linha, digamos, racionalista, na elaboração reflexiva e na expressão, isto é, no encontro da resposta e na sua escrita. E isso se deve a uma hipótese plausível: a origem e a originalidade, de que já falamos, estariam mais preservadas na esfera do sentimento do que no plano da racionalidade. Desnecessário advertir que isso não significa atribuir a Rousseau a pecha de irracionalista, mas simplesmente entender que a sua posição critica envolve certa desconfiança da razão na sua historicidade. Com efeito, os usos que se têm feito da razão no decorrer do processo civilizatório justificam que não utilizemos idêntico procedimento quando se trata de atingir aquele núcleo da subjetividade que foi ocultado pela progressiva corrupção nas aplicações da razão.
Uma vez tomada a decisão de “resignar-se ao destino”, com as ressalvas que fizemos, trata-se de entender as condições para isso. O distanciamento em relação à racionalidade do mundo e suas implicações, numa palavra, a sua produtividade, será então causa desta outra atitude: o devaneio.
Uma situação tão singular com certeza merece ser examinada e descrita, e é a este exame que dedico minhas últimas distrações. Para fazê-lo com sucesso, seria preciso proceder com ordem e método: mas sou incapaz deste trabalho, e ele inclusive me afastaria de meu objetivo, que é perceber as modificações de minha alma e seus encadeamentos. […] Faço a mesma empresa de Montaigne, mas com um objetivo em tudo oposto ao seu: escrevia seus Ensaios apenas para os outros, enquanto escrevo meus devaneios apenas para mim[3].
Atividade singular e em nada trivial: escrever apenas para si mesmo é o que permite medir o alcance da “empresa”. E escrever devaneios é o que constitui a diferença entre o “trabalho” “com ordem e método”, do qual Rousseau se considera incapaz, e o empreendimento de se conhecer, o mais relevante entre todos aqueles a que alguém se poderia dedicar. É deveras importante que esse conhecimento se efetive através do devaneio: a gratuidade aparente revela, na verdade, que conhecer-se a si mesmo é, sobretudo, sentir, isto é, fazer a experiência da interioridade. De alguma maneira, isso equivale a uma inversão: a subjetividade, que a ordem das coisas fez mergulhar no esquecimento, virá agora à tona, e a ordem das coisas, isto é, o mundo das convenções, governado pela razão produtiva, será esquecido. Dito de outra maneira, o trabalho com ordem e método, ou as injunções da razão objetiva, dará lugar à liberdade de devanear. Essa volta a si é, ao que parece, mais radical do que o empreendimento de Montaigne, pois nela só a subjetividade estará presente: Rousseau escreve para si mesmo. Se for ainda possível pensar em alguma finalidade, esta será, ao mesmo tempo, a mais elevada no plano do espírito “subjetivo”, e a mais inútil no plano do espírito “objetivo”.
E como a atividade trivial ocorre no meio social corrompido, o devaneio para se conhecer exige a solidão, e o sujeito, na tentativa de recompor a lucidez de sua consciência, será o caminhante solitário que percorre os caminhos que não levam a parte alguma, exceto a si mesmo. Tal propósito exige, para realizar-se, o abandono de todos os propósitos, pois se trata de um fim que não se tem em mira, mas que retroage para o interior da subjetividade. E se os caminhos oferecem ao caminhante o espetáculo da natureza, não se trata de conhecê-la, mas de senti-la em comunhão com o próprio Eu. Essa imanência do caminhante ao caminho, ou do sujeito à natureza, muito característica de Rousseau, é a antítese do itinerário objetivo, da racionalidade produtora, que faz do percurso o meio de chegar. Por isso o caminhar identifica-se com o vagar, o andar indefinido, como a representação do sonho, que se distingue pela sua irrealidade. Assim, a recusa dos caminhos da racionalidade e da sociabilidade encaminha para a sensibilidade o sujeito que vai ao encontro de si. Na descrição das caminhadas, é a relação sensível com as coisas e consigo mesmo que orienta o sujeito, uma relação que contraria, portanto, o trabalho, o método e a ordem. A atividade que escapa da trivialidade, que atende ao impulso da sensibilidade e não da racionalidade objetivante, não produz resultado, não modifica o mundo. Mas não é necessário modificar o mundo para aquele que, sendo sensível ao mundo, já o vê de outro modo. Quando a atenção pragmática se revela inútil, a atenção a si, ou a intensidade da atenção concentrada na própria intenção de saber de si, reorganiza imaginariamente a realidade e permite a Rousseau dizer que ele está pronto para “gozar de minha inocência” e encontrar a paz.
Se a definição de realidade se dá por um ardil da razão, imaginar não seria propriamente abandonar a realidade, e sim recusar compreendê-la apenas naquilo que se refere ao entendimento. E aquilo que confere ao pensamento de Rousseau a marca “antropológica” é a convicção de que o homem é a primeira referência de si mesmo, se ele se compreende subjetivamente. E se a realidade que nos é dada pela razão nos afasta dessa compreensão, o que seria mais legítimo do que buscar no exercício da imaginação a ampliação de uma realidade racionalizada ou de uma natureza objetivada?
Mas o exercício da imaginação exige o recolhimento a si, isto é, exige que o sujeito nada faça fora de si, que permaneça desatento aos afazeres, ou ao fazer na exterioridade. Que recuse a trivialidade inerente ao trabalho, à ordem e ao método, e que opte pela gravidade do conhecimento de si. Nesse sentido, o trabalho de conhecer e organizar o mundo será sempre, e finalmente, superficial, já que o sistema do mundo objetivo oculta o essencial. Apropriamo-nos da gravidade e da profundidade do homem e das coisas na relação sensível que salta sobre as mediações, na imaginação que rompe limites. E para isso não é preciso fazer nada: não é necessário representar, delimitar, organizar, instituir. É preciso restituir ao sentimento a liberdade de origem para que possamos imaginar o que era o homem antes que a história o constituísse e antes que a civilização o deformasse. Ainda que isso não possa ser encontrado, é no aprofundamento da subjetividade autêntica que deve ser procurado. Os compromissos da atividade trivial impedem que por ela nos sejam restituídos a simplicidade e o modo franco de ser.
Entretanto, é preciso convir, o devaneio chega depois — talvez depois de tudo, e Rousseau lamenta não ter despertado mais cedo para si mesmo, de ter permanecido tanto tempo com a atenção voltada para o mundo, ainda que esse interesse estivesse orientado para a transformação do indivíduo e da sociedade. O devaneio é bem-vindo, a imaginação apascenta as inquietações, mas persiste, mesmo na serenidade, certa dramaticidade, talvez derivada do fato de que a lucidez é uma consciência tardia, um estado de espírito que foi, pelo menos em parte, gerado pela resignação e pelo cansaço. Uma resistência passiva, como a de quem resiste em si mesmo e não mais diante dos outros. Afinal, foi preciso um longo caminho para que o caminhante encontrasse o seu caminho, como se houvesse uma exigência de desorientação para que pudesse ocorrer a passagem de uma dolorosa vigília ao devaneio. De certo modo é mais fácil, por ser mais habitual, cultivar a linearidade dos pensamentos do que libertar a imaginação. Isso significa que, ao mesmo tempo que Rousseau encontra a liberdade, ele responde a uma necessidade: recusar a alienação intelectualista do trabalho racional de instituir o mundo e voltar-se para a origem mais íntima de si mesmo. Como escritor, ele descobriu que o princípio é a primeira pessoa, porque cada um pertence, antes de mais nada, a si mesmo. A singularidade é anterior à ordem racional — cientffica e social. A subjetividade é irredutível. Talvez o teor dramático que perpassa o texto dos Devaneios esteja ligado ao caráter tardio da descoberta de que o núcleo da subjetividade consiste no livre impulso do sentimento.
E esse impulso afetivo se expressa narrativamente. O texto dos Devaneios é todo entremeado de narrativas, e pode-se dizer também que é, em si mesmo, uma narrativa. Como poderia ser outra coisa? Não seria certamente uma análise do Eu à maneira de Descartes. Tampouco seria uma crítica à metafísica da subjetividade, como em Hume. A narrativa exige uma pausa no ritmo habitual da vida. Aquele que narra e aqueles que ouvem mantêm em suspenso o encadeamento da vida na sua racionalidade prática. Suspendem também os outros gêneros da busca de conhecimento. A narrativa ocupa certa temporalidade, e o faz de modo exclusivo, como se o tempo da percepção desaparecesse diante do tempo da memória e da imaginação. Durante o tempo da narrativa, nada se faz senão narrar e ouvir. E durante esse tempo em que nada se faz, a experiência ganha corpo, densidade, sentido, muito mais do que no tempo da produção. Por isso a narrativa exige uma disposição especial do narrador e dos ouvintes, uma disposição que não se define pelo aprender ou pelo apreender, mas pelo ato comum de compartilhar, que fortalece a experiência. E se a narrativa se dá a partir do devaneio, o que se coloca em suspenso é o tempo da produção ordenada da realidade. Essa suspensão do tempo comum é exacerbada pela solidão do narrador, pelo fato de que ele pretende ser o único ouvinte de sua própria narrativa. E também pela condensação do tempo vivido por um narrador que se vê diante da morte e que faz da narração um último ato. Narrar a própria vida a si mesmo é uma experiência em que a subjetividade se afirma, ao mesmo tempo que adquire doçura.
Se em meus últimos dias, próximo da partida, eu continuar, como espero, com o mesmo estado de espírito em que me encontro, sua leitura [dos devaneios] me lembrará da doçura que experimento ao escrevê-los e, fazendo assim renascer o tempo passado, duplicará de certo modo minha existência[4].
Como uma narrativa que não estava destinada a qualquer interlocutor pode nos comover é, quem sabe, um mistério da escrita e um privilégio da literatura. A compreensão dos Devaneios sempre estará sujeita à fragilidade da representação sonhada que extrapola os limites da racionalidade do Eu, a fortaleza vazia (E. Subirats)[5] construída de ilusão e orgulho. Rousseau, que viveu no Século das Luzes, suspeitou que a luz da razão poderia tornar o homem estranho a si mesmo, presa da tarefa interminável de construir o mundo, alheio à edificação de si próprio, mais familiar ao que faz e ao que tem do que ao que é e deveria ser. Esse autor que viajou pela razão instituinte para chegar ao centro de si mesmo, ao sentimento como disposição fundamental da alma, personifica assim um percurso que termina na invenção da exploração afetiva do Eu: da audácia científica que desvelou os segredos da natureza à audácia da investigação de si mesmo.
Então, finalmente, retomemos a pergunta inicial: por que falar de Rousseau quando se faz o elogio à preguiça? Talvez porque a sua longa e diversificada trajetória tenha terminado com a descoberta de uma diferença de valor: mais importante do que o trabalho da razão, é o desfrutar do pensamento.