Sobre repouso, inércia e estabilidade
Resumo
A noção de preguiça e seus corolários morais, teológicos, ideológicos etc. muito se prestam ao debate no campo das humanidades. Já no campo das ciências da natureza, como abordar o tema sem incorrer na superficialidade da mera analogia? Elementos colhidos na história das técnicas e nos estudos contemporâneos poderão talvez ajudar neste difícil empreendimento.
Para a antiguidade grega, o infinito era como uma planície muitíssimo vasta, de bordas indefinidamente extensas, representando um momento presente infinitamente distendido e, portanto, perfeitamente imóvel. Por outro lado, o tempo consecutivo, que é o tempo dos homens, é representado por Cronos, a divindade pré-olímpica que devora os filhos que engendrava em Gaia, a Terra. O apetite filicida encarna a descontinuidade do poder sagrado das dinastias antigas, que a tradição tratou de aplicar aos assuntos humanos como um todo. Havia ainda “kairós”, isto é, o tempo da ocasião oportuna, simbolizado pela estrada que se bifurca e reservado, nos mitos e epopeias, aos heróis e personagens trágicos.
Já em filosofia, Aristóteles parte da experiência empírica dos seres sensíveis, enquanto a razão opera de modo a abstrair as características essenciais, as propriedades gerais sem as quais os seres não seriam o que são, distinguindo-as das propriedades acidentais ou particulares, que os individualizam, sem modificar sua natureza. É, pois, através do conhecimento indutivo, que se passa das evidências particulares para uma lei geral, e acaba por decantar-se o conceito.
É precisamente essa imagem aristotélica da matéria que vigora nos círculos ilustrados do final da Idade Média: inerme e inanimada, improdutiva e inativa, simplificada e abstratizada. Há, todavia, praticantes de certo tipo de saber que valorizam exatamente o manejo empírico dos materiais e, à maneira arcaica, procuram apreender suas características específicas. São os alquimistas. A partir dos grandes centros da cultura medieval — Damasco, Cairo, Córdoba —, eruditos árabes, persas e andaluzes tanto empreenderam a crítica e o refinamento da herança helênica, romana e bizantina, como retomaram o interesse na investigação empírica. A alquimia floresce a partir desse diálogo artesanal renovado com os materiais, com base numa concepção integrada dos planos sensível e espiritual.
A crença de que é possível decifrar a natureza é uma ideia seminal na ciência. Para Galileu, todavia, ela não se faz consultando antigos pergaminhos, mas pela observação e teorização dos fenômenos tal como se apresentam a nós — ou seja, pela tradução do fenômeno em medidas, e pela sistematização dessas medidas em um modelo preditivo. O resultado desse procedimento será uma representação simbólica desse fenômeno em linguagem matemática, capaz de dar conta de sua regularidade implícita. Uma forma encarnada em uma fórmula, isto é, uma representação capaz de expressar o princípio regente dessa regularidade sob o aspecto de uma lei.
Como é sabido, a história raramente procede de modo inercial — linear, direto, uniforme. A partir do Renascimento, em meio à recuperação generalizada de noções herdadas da Antiguidade helenista, são também reintroduzidas as doutrinas havia muito esquecidas dos pensadores arcaicos que, no século XIX, serão denominados pré-socráticos. Em particular, os descendentes modernos dos alquimistas medievais, os químicos, aprofundarão a abordagem quantitativa das propriedades das substâncias, com o objetivo de compreender e controlar suas interações e reações. Ao trabalhar cada vez mais amplamente com medidas de quantidade, eventualmente esses estudiosos entrarão em contato com a antiga concepção atomista.
Se o século XIX foi, em certa medida, a ocasião de entrada da ciência na história, talvez não haja demasiado erro em sugerir que, no século XXI, está em curso a entrada da história na ciência. Ou seja, trata-se agora não de pensar os sistemas privados de sua historicidade própria, mas, ao contrário, entender que todo sistema está em processo, e esse caráter processual implica que a história mesma do sistema é parte do contexto para sua futura evolução.
A José Americo da Mota Pessanha.
Como as diversas abordagens reunidas no presente volume demonstram com clareza, a noção de preguiça e seus corolários morais, teológicos, ideológicos etc. prestam-se sobremaneira ao debate no campo das humanidades. Mas que aproximação se poderia fazer ao tema no âmbito das ciências da natureza, sem incorrer na superficialidade da mera analogia? Elementos colhidos na história das técnicas e nos estudos contemporâneos sobre os sistemas complexos poderão talvez nos auxiliar neste difícil empreendimento.
Principiemos por um jogo de palavras, um desses paradoxos engenhosos cuja ardilosa ingenuidade tanto atrai e perturba as crianças, e perguntemos: uma zebra é um cavalo branco com listras pretas ou um cavalo preto com listras brancas? A ambiguidade do enunciado não parece revestir questão de maior relevância, mas observemos que em sua formulação estão envolvidos dois aspectos característicos. O primeiro é a afirmação implicita de que as zebras, que percebemos como uma variedade de indivíduos diversos, são na verdade representantes de uma espécie, a espécie Zebra, que possui uma forma — a de, digamos, “cavalo listrado” —, a qual define o que é o ser zebra (“uma zebra é…”). Nesse sentido, essa forma ou essência, que prescreve o modo de ser cavalo listrado, se afigura simultaneamente exterior e anterior aos indivíduos zebras reais: cada zebra individual seria uma realização, mais ou menos exata, dessa essência prototípica, e mesmo se as zebras desaparecessem das planícies africanas, ou se alguém maliciosamente pintasse suas listras de preto ou de branco, nos lugares convenientes, ainda assim essa forma definidora permaneceria, inatingida, inalterada. O problema que intriga as crianças é justamente essa forma parecer ambígua, isto é, cavalo listrado ter duas versões, preto no branco, branco no preto, e não estamos certos acerca de a qual versão as zebras concretas estariam subordinadas.
Já a segunda característica, na verdade indissociável da primeira, remete ao fato de que as zebras individuais, como todos os demais entes, nascem, crescem, maturam e morrem, mas essa forma essencial, a zebridade, isto é, a equinidade listrada, parece ser invariante, ou seja, do mesmo modo que é independente da população atual de zebras, também já valia para as zebras antigas, e haverá de valer para as zebras vindouras. A zebridade gozaria, assim, de uma dupla autonomia: diante dos indivíduos existentes, que a encarnam agora, e ante a sucessão dos rebanhos que a representaram (e representarão) ao longo das eras.
Encontramos assim dois regimes temporais, duas temporalidades, envolvidas nessa concepção acerca da natureza das zebras: a perpétua impermanência do nascer, viver e morrer das zebras indivíduos, e a perpétua permanência da zebra arquetípica, da zebridade. Essa distinção e a composição entre esses dois modos temporais são de fato venerandas, pois constitutivas do sistema de pensamento que chamamos de ocidental, podendo ser remetidas, entre outras fontes, a uma das obras instituintes de nossa herança helênica: a Ilíada. Jean-Pierre Vernant assinala que a Ilíada não é senão uma exposição narrada da interligação entre dois planos ou modos de ser: o plano humano dos acontecimentos em série, dos eventos que se sucedem, dias que se seguem a noites, batalhas que se seguem a batalhas, e o plano divino da eterna univocidade, em que tudo o que para os homens já sucedeu, sucede agora e ainda sucederá, de alguma maneira se apresenta de forma compacta, integralmente, de uma só vez.
Consideremos por um momento um exemplo dessa diferença e dessa associação tão marcantes entre os tempos próprios aos imortais e aos mortais. O poema de Homero (associado ao mito da escolha de Páris, o príncipe troiano) nos conta de uma disputa entre os deuses que irá se manifestar como um conflito entre uma confederação de cidades-estado gregas e Troia, uma metrópole da Ásia Menor. Os deuses estão divididos em partidos: alguns favorecem os gregos, alguns apoiam os troianos, e assim a guerra segue indefinida já há dez anos. Porém, após Pátroclo, o protegido de Aquiles, o grande campeão grego, sucumbir às mãos de Heitor, o herói troiano, o soberano do Olimpo decide pôr fim à contenda. Zeus convoca a assembleia das divindades olímpicas e toma então de uma balança, e em cada prato dispõe o valor de Aquiles e de Heitor, ou seja, de gregos e troianos. A balança, nos relata a Ilíada, pesa contra Heitor, e Zeus determina que os deuses protetores de Troia se abstenham de intervir, enquanto os que favorecem os gregos estão livres para agir como quiserem — decisão que acabará por levar, graças ao célebre estratagema do cavalo oco, à derrota e destruição final da cidade. A descrição que Homero nos oferece é a de uma sequência de eventos — a convocação, a pesagem, o decreto —, mas, do ponto de vista das divindades, tratava-se de um único acontecimento, que já tinha sucedido, sucedia então e haveria ainda de suceder, simultaneamente. Os deuses têm, portanto, o privilégio de apreender, de uma vez só, todas as dimensões do tempo. A desgraça de Troia, que para os homens era o resultado do desenrolar de toda uma história, para os deuses ocorria desde sempre, era eterna.
Essa eterna presença, que Vernant denomina de Aiôn, era figurada pelos antigos como uma planície muitíssimo vasta, de bordas indefinidamente extensas, representando um momento presente infinitamente distendido e, portanto, perfeitamente imóvel. De fato, se o presente é estendido sem limites, o passado e o futuro são expulsos para além do concebível (diríamos nós, do infinito), e assim o presente não tem como transcorrer, não se pode tornar antigo nem se tornar novo. Por sua vez, o tempo da consecutividade, que é o tempo dos homens mortais, será representado por Kronos, a divindade pré-olímpica que devora os filhos que engendra em Gaia, a Terra. Segundo Georges Dumézil, os mitos de Kronos e seu apetite filicida encarnam uma imagem das sucessões dinásticas, momentos de descontinuidade do poder sagrado da realeza, que a tradição tratou de aplicar aos assuntos humanos como um todo. A sucessão seria, assim, o caráter essencial dos acontecimentos humanos, uma vez que em virtude de nossa mortalidade nascemos, vivemos e desaparecemos, somos devorados por nossa própria existência. Essas duas imagens do tempo, e seus entrelaçamentos, constituem a matéria-prima a partir da qual o gênio de Homero converterá kudos, a glória efêmera do feito valoroso do guerreiro durante o fragor do combate, em kleos, a glória permanente do feito celebrado em um poema.
Mas os gregos nos legaram ainda uma terceira figura de temporalidade, talvez a mais curiosa, que é Kairós, o tempo da ocasião oportuna, simbolizado pela estrada que se bifurca e reservado nos mitos e epopeias aos heróis e personagens trágicos. Em Kairós encontramos uma combinação de espaço e de tempo, uma síntese de lugar e de momento, de modo a encarnar uma particular constelação de circunstâncias em que pode realizar-se uma oportunidade. Estar na devida posição, e no momento azado, são condições necessárias para que a oportunidade que então se configura possa ser explorada — como bem sabem os grandes artilheiros de futebol. Se a via que se abre à direita é tomada, certos encontros futuros, certas séries de acontecimentos, se tornarão possíveis, enquanto os que porventura poderiam suceder se fosse seguida a via à esquerda são abolidos — e vice-versa. É exatamente essa associação entre uma necessidade estrita (a estrada que se divide) e uma decisão livre (a escolha do viajante sobre qual dos caminhos seguir), de destino fatal e arbítrio manifesto, que encontraremos diversas vezes nas tragédias. Advertido de que o oráculo havia previsto que mataria o pai e desposaria a mãe, Édipo procura escapar desse destino funesto abandonando Corinto, de cujos reis ele acreditava ser filho. Em uma encruzilhada, é atropelado por uma carruagem, discute com o cocheiro apressado e, no calor do conflito, o mata. Era seu pai, o rei de Tebas, em busca de ajuda contra a Esfinge que assolava as vizinhanças da cidade. Édipo toma o caminho de onde o cocheiro havia vindo, encontra e derrota o monstro, e os tebanos agradecidos então lhe oferecem o trono desocupado e a mão da rainha — sua mãe. Os heróis trágicos em sua maioria são, como Édipo, personagens kairóticas.
Como assinalamos, essas três figuras de temporalidade terão importante presença na história da cultura ocidental. Já a própria filosofia é construída por Platão tomando em conta a distinção homérica entre os tempos dos deuses e dos homens. Da mesma maneira que na Ilíada, encontramos nos diálogos platônicos a contraposição entre o plano dos seres e acontecimentos que apreendemos com os sentidos, cujo conjunto acreditamos equivocadamente compor a realidade, e o plano superior dos modelos ideais e eternos dos quais os seres sensíveis não são senão meras cópias, sombras que imitam os verdadeiros seres reais. Tais entidades ideais desfrutam de uma invariabilidade perfeitamente análoga, a Aiôn, ao passo que o cotidiano efêmero dos homens e das coisas sensíveis fica. igualmente submetido a Kronos. Como observou Claudio Ulpiano, Mircea Eliade denomina ontologia dos arquétipos esse tipo de construção idealista em que a realidade sensível resta submetida a um conjunto de modelos a-históricos, e entende que a filosofia platônica se sustenta nessa ontologia arcaísta. Encontramos aí, de fato, a raiz da objeção que já os antigos filósofos materialistas — Leucipo, Demócrito — faziam à doutrina idealista de Platão: os caprichosos deuses olímpicos foram substituídos pelas ideias ou arquétipos como instância organizadora do mundo, mas a assimetria fundamental entre os domínios natural e sobrenatural permanece essencialmente inalterada, o platonismo é ainda demasiado devedor à antiga religião.
Já Aristóteles, o mais importante pensador clássico para o tema que buscamos examinar aqui, procura evitar essa crítica ao retirar o caráter transcendente dos princípios de organização do mundo, convertendo-os em construções do pensamento. A partir da experiência empírica que temos dos seres sensíveis — as coleções de zebras com que nos encontramos —, a razão opera de modo a abstrair as características essenciais, as propriedades gerais sem as quais os seres não seriam o que são, distinguindo-as daquelas acidentais ou particulares, que os individualizam, sem modificar sua natureza, assim, através do conhecimento indutivo, passamos das evidências particulares para uma lei geral, e acaba por ser decantado o conceito de zebra, a que todas as zebras, de todas as manadas, deverão estar submetidas. Todavia, embora essas essências ou formas sejam agora construtos racionais e não mais Ideias transcendentes, persiste a assimetria: os indivíduos estão submetidos ao transcurso (Kronos), mas suas correspondentes formas, não. A zebridade, portanto, não pode evoluir.
Interroguemo-nos, porém, acerca de uma questão imediatamente conexa: como os indivíduos vêm a ser? Como se dá a gênese individual, ou seja, como os seres sensíveis adquirem tanto os aspectos individualizantes como, e principalmente, as propriedades genéricas? Para descrever esse processo de morfogênese, ou gênese da forma, herdamos de Aristóteles a metáfora da cunhagem de moedas. Eis aqui uma placa de metal macio, com uma superfície lisa e uniforme, sem marcas, de modo que nela não discernimos qualquer característica. E aqui temos uma fôrma, uma cunha de metal mais duro, onde foi esculpido um símbolo ou efígie. Cravamos repetidamente a cunha sobre a superfície receptiva da placa, e uma série de figuras idênticas é impressa. Recortamos cada uma das figuras marcadas e agora temos uma coleção de moedas de um centavo, ou de cinco, ou de dez, e assim por diante. Observemos que nenhuma substância foi transferida da fôrma para as moedas formadas, somente um conjunto de marcas, um diagrama, foi aplicado; mas onde antes havia apenas a homogeneidade indiferenciada da matéria temos agora classes bem definidas e distintas de seres, cujos membros são essencialmente idênticos. Para Aristóteles, em suma, o surgimento dos seres e coisas do mundo se dará por meio de tais associações entre uma matéria (hylé) passiva, receptiva, e uma forma (morphé) que a impregna de um diagrama diferenciador.
Dois aspectos da doutrina aristotélica do hilemorfismo serão especialmente significativos para nós. O primeiro diz respeito à origem não das coisas formadas, mas das fôrmas elas mesmas: como as fôrmas foram formadas? Podemos ser lançados aí numa típica regressão infinita: suponhamos que haveria uma matéria e uma fôrma para as fôrmas, ou seja, o hilemorfismo do hilemorfismo; mas essa fôrma das fôrmas requereria ela própria um molde, e, assim, ou a série se prolonga indefinidamente, ou eventualmente seria alcançada uma conjeturalprimeirafôrma. De todo modo, o problema da morfogênese dos seres sensíveis foi agora transferido para a morfogênese das formas elas mesmas, e sem grande vantagem. Ambas as soluções para a regressão serial infinda apresentam dificuldades: ou a origem das formas se anula no infinito, ou temos que recorrer a uma primeira fôrma que não teria origem — uma fôrma que não teve fôrma. Evidentemente, o estatuto temporal que melhor convém a essa mãe de todas as fôrmas é Aiôn.
Em segundo lugar, parece congênito a essa concepção o fato de a fôrma ser sempre externa ao formado. Dito de outro modo: a matéria é inerme, inativa, incapaz de organizar-se a si própria; não possui em seus modos de ser os recursos pelos quais pudesse espontaneamente vir a gerar e assumir formas. Uma vez que os indivíduos não podem formar-se, sua forma necessariamente lhes advém sempre do que lhes é, de algum modo, exterior. No hilemorfismo temos, portanto, uma dupla instanciação: de um lado está essa matéria infértil, incapaz de fazer surgir os diagramas de composição que irão formatar os indivíduos, de outro, estão as formas e os princípios organizadores a que estas correspondem. Assim como não há autogênese no plano das matérias, assim também os seres individuados não possuem em si mesmos os princípios que os determinariam e explicariam.
Ora, o que fica encoberto nessa concepção do processo de individuação segundo o modelo da cunhagem de moedas, o que passa ligeiro demais na argumentação, é exatamente a atividade indispensável para fazer surgir o diagrama de marcas sobre a matéria receptiva, ou seja, a ação concreta, o trabalho físico, de imprimir a fôrma na superfície da placa. Tudo se passa como se somente duas figuras-limite fossem dignas de interesse: no começo, a superfície virgem e homogênea do metal, de um lado, e a fôrma já esculpida, já acabada, de outro, no fim, a coleção de moedas prontas. O cerne do processo de cunhagem — ou seja, que antes de tudo se trata de um processo — é ignorado em favor de duas idealizações: a da matéria puramente receptiva, e a do princípio de individuação, prévio à atividade de individuação propriamente dita, que se apodera dela. Eis onde incide a aguda crítica de Gilbert Simondon à morfogênese clássica: no processo real de surgimento de um indivíduo essas idealizações simplesmente não comparecem. Se supuséssemos que a individuação não produz somente o indivíduo, diz ele, não seríamos tentados a passar tão rápido pela etapa da individuação para chegar a essa realidade última que é o indivíduo.
Simondon propõe, então, considerar-se como primordial não o princípio, mas a operação de individuação, instância autenticamente genética a partir da qual o indivíduo chega a existir, e cujo desenvolvimento, regime e modalidades ele manifesta em seus caracteres. O indivíduo constituído deixa, assim, de ser o foco (e o modelo) do problema e passa a ser visto como uma realidade meramente relativa, porque a individuação faz aparecer não somente o indivíduo, mas a polaridade indivíduo-meio. Para Simondon, o indivíduo finalizado — a moeda pronta — resulta de um estado de ser no qual não existia nem como indivíduo, nem como princípio. Para reunir os materiais que doravante irão compor um dado indivíduo, é necessário despojar desses materiais o meio em que se encontravam — para que disponhamos das moedas, é preciso esburacar a placa de metal —, e nesse meio pré-individual não há princípio ou diretriz alguma acerca do indivíduo que virá a ser produzido. Uma árvore pode ser configurada para servir de lenha ou de viga; as propriedades das fibras de celulose de sua madeira lhe conferirão tanto o poder de combustão como a resistência flexível, e os dois modos de expressão dessas propriedades — químico ou estrutural — terão exatamente o mesmo grau de realidade física.
Ora, se o indivíduo não é todo o ser — se o mundo não é apenas uma coleção de indivíduos finalizados —, então a clássica oposição entre ser e devir se transfigura aqui. O devir não é mais o negativo do ser, ou mesmo um quadro geral no qual o ser existe; o devir torna-se uma dimensão do ser, um modo de resolução de uma fase primordial rica em potenciais, um campo de tensões primeiras que uma operação de individuação irá repartir e redistribuir, promovendo a conservação dessas tensões sob a forma de uma estrutura, fazendo aparecer a dualidade entre o indivíduo produzido e o meio do qual se originou.
Simondon observa que a individuação não pôde ser pensada ou descrita de modo adequado anteriormente porque não se conheciam senão duas formas excludentes de equilíbrio: o estável e o instável. Os antigos referiam-se apenas à estabilidade ou à instabilidade, ao repouso ou ao movimento. Não concebiam o equilíbrio metaestável (ou seja, temporário, provisório), pois não tinham uma experiência de metaestabilidade que pudesse lhes servir de modelo. Assim, os pensadores clássicos insistiam em pensar os estados de ordenação em um dado sistema a partir do estado de equilíbrio estável; hoje, no entanto, percebemos que esse estado exclui o devir, porque corresponde ao mais baixo nível possível de atividade, sendo próprio de um sistema em que todas as transformações possíveis foram já realizadas, as tensões se consolidaram e os potenciais aquietaram-se. A noção de metaestabilidade, de fato, deve sua elaboração à ciência moderna, e irá por sua vez dar lugar à fascinante, e inteiramente não clássica, possibilidade de a matéria engendrar e incorporar por si mesma, autonomamente, as variedades de formas que se manifestam no mundo.
Para começar a explorar o tema, podemos neste ponto formular a seguinte questão: se tomamos a sério as objeções de Simondon, o trio de conceitos característico do hilemorfismo — matéria-prima passiva, princípio de individuação exterior, indivíduo finalizado — deve ser deslocado em função de uma concepção autenticamente processual da ontogênese. Dito de outro modo: a díade clássica Aiôn (para os princípios ou fôrmas) e Kronos (para os indivíduos formados) parece não bastar para que sejam descritas as operações materiais concretas pelas quais os seres — sempre sob o aspecto da polaridade indivíduo/meio — advêm ao mundo. Seria, então, necessário aduzir Kairós para que seja logrado um regime de temporalidade próprio aos processos de ontogênese?
É conveniente dar um passo para trás e iniciar a consideração do problema por meio de um viés histórico, mais precisamente, da história dos materiais. Há muitos milênios os homens têm conhecimento de como lidar com a variedade de substâncias oferecidas pelo mundo e fazer delas todo tipo de utensílios e artefatos. Deixando de lado o antiquíssimo manejo da pedra e o extenso uso de peles e ossos de animais, há cerca de pelo menos cinco mil anos vemos as artes do trançado e da cestaria serem suplementadas pela cerâmica, que conjuga a plasticidade da argila com o enrijecimento pelo fogo. Os egípcios manufaturavam o vidro já há quatro mil anos, e como o vidro não é um sólido, e sim um fluido muito viscoso, os vidros egípcios mais antigos hoje já estão começando a escorrer e se deformar. É a também milenar metalurgia, porém, o mais notório exemplo desse tipo de conhecimento em que o saber-fazer é adquirido no contato direto, vívido, do artífice com o seu material. Como observa Cyril Stanley Smith, o comportamento do metal sob certas condições indica ao artesão certos cursos de ação e impede outros, o trabalho do artesão, por sua vez, impõe exigências sobre as conformações do metal, e nesse diálogo empírico, manual, o metalurgista apreende algo muito concreto acerca da natureza do material e suas mudanças.
Parece natural, prossegue Smith, conjeturar que esses tipos de saber-fazer longamente acumulados, obtidos no encontro imediato com argilas, areias, pigmentos, minérios e chamas, serviram de inspiração para que fossem elaboradas as primeiras concepções acerca do estatuto da materialidade. Consideremos, por exemplo, a célebre doutrina dos quatro elementos, que Aristóteles encontrou no poema de Empédocles de Agrigento e elevou ao papel de constituinte geral de todos os seres sensíveis. Se os objetos do mundo consistem em combinações, em diferentes proporções, dos quatro elementos ou substâncias básicas — terra, água, ar e fogo —, parece razoável imaginar que deparamos aí com uma expressão, decerto numa forma um tanto alegorizada, da duradoura convivência empírica com os modos de aparição da matéria que hoje denominamos estados ou fases — sólido, liquido, gasoso — e com um princípio de atividade e transformação que hoje chamamos de energia, simbolizada pelo poder transmutador do fogo. Ou seja, teríamos herdado dos praticantes desse contato íntimo e vívido com os materiais — e, em particular, com suas transformações — as bases intuitivas para essas teorizações pioneiras.
Sucedeu, todavia, que à medida que o discurso filosófico se desenvolveu essas imagens ou metáforas intuitivas, derivadas da artesania prática, foram sendo progressivamente incorporadas a um sistema de argumentações cada vez mais formalizado e sistematizado, e assim acabaram por perder os vínculos imediatos com o acontecimento concreto, com a transformação em ato do material trabalhado. Com o tempo, converteram-se em signos genéricos, em imagens sugestivas que articulam significados num campo discursivo abstrato, e deixaram de servir como indicadores de um referente real, registros de algo que efetivamente acontece. Distanciando-se das atividades práticas que lhes deram sentido — da escolha dos minérios adequados ao calor brutal da forja, do martelar ritmado do ferreiro ao toque final do mestre laminador —, essas noções adquirem uma conotação cada vez mais abstrata: todas as terras passam a ser Terra, todos os fluíres são Água, todos os vapores são Ar, como se o que de fato importasse fosse não a singularidade objetiva, específica, de cada material, mas sua conjetural unanimidade profunda, enquanto manifestações variáveis de uma mesma conformidade natural.
Mas o artesão, em seu afazer, interessa-se principalmente pela transformação. O metalurgista não lida com minerais inermes; sua prática envolve o contato com o metal vivo, que dialoga com ele. O ceramista não maneja uma argila abstrata e indiferente; convive com a argila como uma extensão dele mesmo, e ele mesmo como uma continuidade da argila. Ao afastar-se das oficinas, forjas, cozinhas e estaleiros em que havia emergido e que eram seus lugares tradicionais de exercício, o conhecimento do mundo material perde sua proximidade vívida com os aconteceres, mas adquire em troca um enorme poder de simplificação. Privilegiam-se cada vez mais os estados estáveis das substâncias — sólido, líquido, gasoso — e suas propriedades, e dá-se menos importância às transições entre eles. Ganhou-se essa simplificação idealizadora que exalta os resultados estabilizados das transformações, mas perdeu-se a convivência íntima com essa “vitalidade” das substâncias. E então, com Aristóteles, a doutrina dos quatro elementos deixa de vez de representar a primitiva herança do conhecimento intuitivo dos materiais e passa a referir-se a uma entidade puramente abstrata: a matéria. É esse substrato simplificado, despojado de iniciativas, estabilizado, que acabará por dar lugar à hylé clássica, que tem como única característica a capacidade de ser formada, de receber e manter uma forma. Incapaz de fazer surgir de dentro de si mesma novos diagramas, novos formatos de seres, ou seja, de engendrar-se, essa matéria aristotélica é na verdade duplamente inativa: não possui os meios para se ordenar nem tampouco para animar-se, isto é, para se pôr em movimento. Esse segundo tipo de inação, de fato, será refletido numa das mais marcantes distinções do pensamento antigo: a dicotomia radical entre movimento e repouso.
Na cosmovisão aristotélica, os movimentos dos corpos terrestres são concebidos como autênticas mudanças, pois mover um corpo daqui para ali seria alterar uma de suas propriedades, submetê-lo a uma transformação. Essa nos parece uma ideia estranha porque, para nós, o lugar não pertence ao corpo. Mas para Aristóteles, como vimos, o mundo sensível não é senão uma coleção de indivíduos, sendo cada indivíduo a conjunção de uma matéria-prima e de uma forma, e o lugar em que cada coisa se encontra é entendido como um atributo de sua forma, semelhante à cor, consistência ou textura. Quando observamos os corpos e suas relações, constatamos dois fatos: primeiramente, que deixados entregues a si mesmos os corpos tendem a se manter espontaneamente em repouso, conservando assim a distribuição de suas posições mútuas; e, em segundo lugar, que quando as coisas são obrigadas a abandonar seu estado “natural” de repouso pela ação de outro corpo, tão logo cessa essa ação o corpo busca recuperar a imobilidade, retornando a sua situação de repouso. Os movimentos, por isso, não são nunca nem duradouros nem espontâneos; são mudanças, comparáveis ao envelhecimento.
Ora, surge a pergunta: quem ou o que geraria o movimento de um dado corpo? Dizemos: foi outro corpo que o empurrou. Mas o que, então, teria produzido a movimentação desse segundo corpo? Um terceiro, ainda, e assim por diante. Esse raciocínio, mais uma vez, só pode levar a duas possibilidades: ou a série de causações regride indefinidamente (e para os gregos, essa regressão indefinida — hoje diríamos, infinita — é um absurdo intolerável); ou regride somente até uma causa última, até um primeiro agente, ele mesmo imóvel, pois não seria impelido por nada ou ninguém. O nome que a tradição atribuiu a esse primeiro motor foi Deus. Nessa concepção, Deus é a instância, logicamente necessária, para dar origem à série de perturbações que testemunhamos na Terra. Por outro lado, sem dificuldade distinguimos no mundo duas classes de corpos: aqueles que se movem somente quando impelidos por outros, e aqueles capazes de se mover por si mesmos — como os seres vivos. Ora, se o movimento é uma perturbação, sempre causada “de fora”, quem ou o que os impeliria? A explicação, diz Aristóteles, é que os seres vivos são animados, possuem anima ou alma, e é esta que dá origem a seus deslocamentos. São as almas que impelem os corpos, fazendo com que abandonem o repouso. Pelo mesmo argumento de regressão finita, a disposição das almas no mundo remete também ao primeiro motor.
Compreendemos também que numa tal concepção o vazio é impossível. Um lugar “desocupado” seria o lugar de coisa alguma, logo “nada” teria um lugar. Essa hipótese soava absurda, pois como poderia “nada” ter uma forma, e logo alguma propriedade?! A célebre sentença “a natureza tem horror ao vácuo” significa que, se retiramos um corpo que está separando outros dois, seu “lugar” viaja com ele, e os corpos restantes terão de entrar em contato; reciprocamente, dois corpos contíguos só podem ser separados se intercalarmos um terceiro. Disso resulta um mundo pleno, inteiramente contínuo; nele, o vazio não tem lugar… Uma vez que o mundo material consiste no conjunto de todos os indivíduos, o “espaço” necessariamente corresponde à reunião dos lugares desses indivíduos.
A força do sistema aristotélico, que perdurou por quase dois mil anos, reside em conseguir explicar todo tipo de movimento a partir de um número pequeno de princípios, coerentes com as intuições do senso comum que vigoram em nossa experiência cotidiana. Consideremos o exemplo do movimento balístico: tomemos uma pedra e a lancemos para cima e para adiante. Vemos um percurso aparentemente paradoxal: a pedra inicialmente sobe, alcança uma altura máxima, e depois começa a descair, até chegar ao solo e parar. Por que a pedra não cai diretamente no chão, assim que a largamos da mão? Não seria essa a sua tendência natural”, em virtude de seu peso, isto é, de sua forma “grave”? Para dar conta desse tipo de fenômeno, Aristóteles lança mão da noção de peristase (“quase-imobilidade”). Ao soltarmos a pedra, ela desloca o ar de seu lugar natural, comprimindo-o à frente e o rarefazendo atrás. Ora, o ar busca retornar a seu estado natural de imobilidade, e assim trata de compensar o desarranjo em que se encontra migrando da frente da pedra para trás, o que resulta em um empurrão contínuo do ar sobre a pedra na direção do movimento. É a combinação entre as tendências da pedra e do ar de retornar a seus devidos lugares naturais que explicará — de maneira inteiramente consistente com os princípios causais adotados, e conforme ao testemunho dos sentidos — as trajetórias balísticas.
É precisamente essa imagem aristotélica da matéria que encontramos vigorando nos círculos ilustrados ao final da Idade Média: inerme e inanimada, improdutiva e inativa, simplificada e abstratizada. Há, todavia, praticantes de certo tipo de saber que valorizam exatamente o manejo empírico dos materiais e, à maneira arcaica, procuram apreender suas características específicas: os alquimistas. A partir dos grandes centros da cultura medieval — Damasco, Cairo, Córdoba —, eruditos árabes, persas e andaluzes tanto empreenderam a crítica e o refinamento da herança helênica, romana e bizantina, como retomaram o interesse na investigação empírica — como Al-Hazen, que no século XI analisa as propriedades das lentes e descobre as primeiras leis da ótica. A alquimia floresce a partir desse diálogo artesanal renovado com os materiais, com base numa concepção integrada dos planos sensível e espiritual: se uma ordenação global, de natureza divina, impera sobre o mundo de modo que todos os acontecimentos se influenciem e imbriquem entre si, então a manipulação de substâncias sensíveis deve ter uma contraparte no domínio do espírito. Ao praticar elaborados procedimentos de mistura e separação de substâncias, carregados de significados ocultos, o alquimista objetiva experimentar em si mesmo transformações recíprocas àquelas que impõe sobre os materiais escolhidos. No decurso dessas peculiares explorações de caráter místico-experiencial foram descobertos e descritos os primeiros elementos químicos, e por essa razão os historiadores da ciência costumam encarar os alquimistas como precursores da moderna química.
As explorações dos alquimistas proporcionaram um pano de fundo cultural em cujo âmbito a noção de uma certa “vitalidade” da matéria — seguindo a sugestiva expressão de Frances Yates — pôde se desenvolver e, assim, influenciar a profunda transformação do entendimento humano sobre a natureza que teve lugar com a grande revolução científica do Renascimento. Dessa movimentação verdadeiramente tectônica de toda a cultura ocidental cabe-nos destacar, para os fins que temos em vista, o deslocamento ou ampliação de escopo da noção de forma — dos indivíduos para o comportamento dos indivíduos; e a correspondente modificação da natureza do movimento — e do repouso.
Como vimos, para os escolásticos medievais, cultores do aristotelismo, o repouso era entendido como espontâneo e o movimento como uma perturbação: os corpos materiais teriam uma tendência inerente a permanecer em localizações conformes a suas naturezas — cada corpo possuindo seu “lugar natural”, definido por sua forma, e dele sendo removido somente por ingerência externa. Os corpos pesados, por exemplo, tendem a permanecer imóveis — isto é, a manter suas disposições mútuas — na superfície da Terra, e quando são perturbados, removidos de seu lugar natural, buscam retomá-lo. Há, portanto, uma distinção fundamental entre repouso e movimento. Contudo, uma série de notáveis experimentos concebidos e descritos por Galileu Galilei (embora, para alguns estudiosos, vários deles nunca tenham sido realizados de fato, sendo assim perfeitamente análogos aos famosos Gedankenexperimente ou “experimentos conjeturais” que Albert Einstein tanto irá apreciar) resultarão numa crítica demolidora dessa concepção.
Suponhamos, diz Galileu, que um pescador esteja à beira de um cais num lago tranquilo e que um marinheiro esteja no alto do mastro de um barco que está passando bem próximo, num curso paralelo ao cais. Quando estão lado a lado e podem quase se tocar, ambos largam uma pedra, simultaneamente; o mesmo fenômeno, ocorrendo em circunstâncias muito similares. O que irá se passar? Embora as duas pedras tenham sido largadas juntas, praticamente do mesmo local, e tanto o pescador no cais como o marinheiro no barco considerem a queda da sua pedra perfeitamente vertical, uma no chão do cais e a outra no convés do barco, as duas pedras estarão afastadas, já que o barco continuou seu percurso durante as quedas. A conclusão inovadora de Galileu é que para o pescador no cais o movimento do barco para avante foi emprestado para a pedra embarcada, e reciprocamente, para o marinheiro, foi o movimento “para trás” do cais em relação ao barco que foi transferido para a pedra do pescador. Ou seja, movimentos podem ser cedidos a um corpo e se compor, adicionar-se, subtrair-se, até mesmo compensar-se; ainda mais, corpos idênticos (com a mesma forma, portanto) podem se mover de modo diferente de acordo com a composição de movimentos recebida – ou, equivalentemente, de acordo com o movimento de um observador em relação a outro.
Com esse experimento, Galileu acabou por estabelecer que os movimentos serão descritos de modo diferente conforme o respectivo estado de movimento de cada observador. Assim, grandezas associadas ao movimento de um corpo, como sua velocidade, serão relativas, ou seja, terão valores distintos para distintos observadores – embora a forma do corpo, evidentemente, seja a mesma para todos eles. Ora, nesse caso, a distinção entre repouso e movimento também será relativa – um corpo estará imóvel para um observador e em deslocamento para outro. O que para os escolásticos era uma característica absoluta, distinguindo entre situações espontâneas e constrangidas, se revela para Galileu como um mero efeito de ponto de vista.
Ainda mais significativa é a conclusão seguinte, em que Galileu anuncia que um corpo abandonado a si próprio tenderia a manter seu estado de movimento. Ele derivou essa concepção revolucionária da seguinte experiência: seja uma esfera lisa, que deixamos escorregar num plano inclinado. O que se verifica? Que a esfera adquire velocidade na descida, alcança o piso, anda um pouco – e para. Suponhamos, diz Galileu, que o piso seja bem encerado. Nesse caso, observaríamos a esfera, largada da mesma altura, alcançar uma distância maior. E se estivéssemos em um daqueles magníficos palácios florentinos, com um assoalho de mármore exaustivamente polido, a esfera iria ainda mais longe. Nesse momento, Galileu realiza um salto cognitivo e, com uma ousadia conceitual raras vezes igualada, sugere: se o piso fosse um plano idealmente liso, um plano geométrico perfeito, o corpo deslizaria perpetuamente, isto é, jamais cessaria seu movimento.
É importante assinalar que, em nosso cotidiano, sempre vemos as coisas saírem daqui e pararem ali, quer dizer, os movimentos que testemunhamos têm sempre o caráter precário, finito, que Aristóteles havia descrito. Ninguém jamais observou tal deslizar interminável suceder de fato. Galileu, portanto, não buscava simplesmente descrever um fenômeno típico do mundo sensível, e sim conceber o acontecimento “purificado”, apreendido em sua essência ou arquétipo. Revelando sua inspiração platônica, irá defender resolutamente a predominância desse “real” esquemático, abstrato, sobre a realidade concreta. Alexandre Koyré ressalta essa afirmação ardente de uma concepção idealista, de índole matemática, em oposição ao senso comum fundado na experiência sensível — como se, ironicamente, através de Galileu, Platão fosse o renovador de Aristóteles…
Mas se deslizamentos perpétuos são idealmente admissíveis, então os movimentos não seriam governados por sua extinção, como prescrevia a tradição escolástica: ambos, repouso e movimento, tenderiam a se manter. Para Galileu, o repouso é apenas um caso particular de movimento: o movimento com velocidade nula. Essa tendência universal que os corpos teriam de manter seu estado de movimento (ou, indiferentemente, de repouso) até que a intervenção de um agente externo viesse a modificá-lo será a essência do princípio de inércia, que Descartes pouco depois irá estabelecer formalmente e Newton adotará como fundamento da moderna mecânica.
A cosmovisão medieval era tão bem integrada que bastou o abalo em um de seus fundamentos — como a abolição da diferença de natureza entre repouso e movimento — para implicar a derrocada de toda a construção. Os medievais diziam: a Terra é imóvel. Como é possível demonstrar essa imobilidade? Simples, vamos até o alto de uma torre e de lá lançamos um corpo pesado. Se a Terra estivesse em movimento, ela se deslocaria por debaixo do corpo durante a queda, de modo que o corpo cairia sempre longe do pé da torre, e não na vertical, como notoriamente acontece. Portanto, o fato de que os corpos caem na vertical é uma comprovação de que a Terra está imóvel.
Essa demonstração se baseia nas noções aristotélicas de que o movimento é uma transformação à qual o móvel resiste, que o movimento busca extinguir-se, que o movimento não é mantido pelo corpo. É essa também a experiência sensível imediata, indiscutível, que temos desse fenômeno. Mas eis que chega Galileu, proclama que os corpos tendem a manter seu movimento, e se agora vamos até o alto de uma torre e de lá lançamos um corpo pesado, o que observamos? Que o corpo, como sempre, cai no pé da torre. Mas se, por hipótese, a Terra estivesse girando, a torre também giraria, bem como nós mesmos e o corpo que seguramos; assim, o corpo compartilharia e manteria esse movimento, girando em sincronia com a torre — e a Terra! Uma vez que o corpo simultaneamente cairia e giraria em uníssono com a torre, isto é, com a Terra, seria perfeitamente compreensível que caísse na vertical.
Vemos aqui, com clareza, que os fatos, neles próprios, não são suficientes para definir um sentido para os acontecimentos. Um mesmo fenômeno — a queda de um corpo — pode servir para validar explicações completamente distintas, dependendo de como é contextualizado e interpretado. Somente a inserção dos fatos em uma rede de princípios, ou seja, sua conjunção com uma teoria, é que pode proporcionar a elaboração de uma visão de mundo integrada e eficaz. Um novo conceito (a composição de movimentos) transforma o sentido do fato (a queda vertical do corpo), em consequência, o deslocamento da Terra torna-se consistente com as evidências do senso comum — e a “hipótese simplificadora” de Copérnico, de que era o Sol e não a Terra o centro imóvel dos movimentos celestes, pode doravante ser admitida como válida. Uma única ideia é modificada, e a Terra pode se mover…
A crença de que é possível decifrar a natureza é uma ideia seminal na ciência moderna que então principia a se instalar. Para Galileu, todavia, ela não se faz consultando antigos pergaminhos, mas pela observação e teorização dos fenômenos tal como se apresentam a nós — ou seja, pela tradução do fenômeno em medidas, e pela sistematização dessas medidas em um modelo preditivo. O resultado desse procedimento será uma representação simbólica desse fenômeno em linguagem matemática, capaz de dar conta de sua regularidade implícita. Uma forma encarnada em uma fórmula, isto é, uma representação capaz de expressar o princípio regente dessa regularidade sob o aspecto de uma lei.
Consideremos a descoberta fundamental de Galileu, a lei da queda dos corpos. A observação empírica — a repetição, em condições controladas, de medições das características de um fenômeno — permite comprovar que um corpo qualquer, ao ser largado de certa altura, demora um certo tempo até chegar ao chão e, ao atingi-lo, está se movendo com certa velocidade. Três são as grandezas relevantes: altura, duração, velocidade, e essas três quantidades estarão correlacionadas por uma fórmula, ou seja, encarnarão uma forma expressa em linguagem matemática. Do corpo que cai — cada um movendo-se de acordo com suas qualidades, ou seja, segundo sua forma — passamos à queda dos corpos, uma regra universal à qual o comportamento de qualquer corpo estará sujeito, em função da operação de uma mesma causa. Galileu encontra a inscrição de relações matemáticas no mundo dos acontecimentos naturais, e daí pôde dizer, celebremente, que “Deus escreveu o livro da natureza em linguagem matemática”, isto é, na linguagem das fórmulas quantitativas e não das formas qualitativas.
Em vez de estabelecer uma hierarquia de formas, Deus redigiu um texto. Trata-se então de proceder à decifração desse texto divino que é a natureza, e a tarefa do pensador será a de encontrar essas formas-fórmulas, ou leis, que expressam, por meio de relações matemáticas quantitativas, as causas que presidem o desenrolar dos fenômenos. Tal programa de elaboração de leis da natureza era até então estranho à compreensão do mundo natural: leis serviam para reger as relações humanas, sociais, jurídicas e politicas, mas a partir do Renascimento foram transladadas, estendidas, para abranger os acontecimentos físicos, como se os seres da natureza obedecessem a códices ou tábuas de regras. No dizer de Koyré, rompem-se as bordas do mundo fechado medieval, entra em cena o universo infinito moderno; dito de outro modo, substituem-se as qualidades pelas quantidades, o mundo do mais-ou-menos pelo universo da precisão. O programa teorético-empírico iniciado por Galileu será desenvolvido com as obras de dois outros gigantes, Descartes e Newton, e com tal programa a matéria irá adquirir um mínimo de atividade: uma tendência inerente a se mover de modo uniforme, ou inércia.
Com efeito, a tematização revolucionária da realidade física empreendida por Galileu terá seu passo seguinte com a contribuição de Descartes, talvez o último grande filósofo-cientista. Descartes vai radicalizar a postura de Galileu de abandonar as amarras da cosmovisão finalista e globalizante que dominava a época medieval e investigar apenas os fatores que diretamente incidem sobre um dado fenômeno. Para se descrever o movimento de um corpo não importam sua cor, ou cheiro, os sons que o cercam etc., apenas o seu caráter de ocupar um dado espaço e sua capacidade de, dessa posição, deslocar-se para outra, segundo certa lei quantitativa. Descartes leva ao limite essa desvinculação, identificando matéria e extensão: de um corpo material, tudo o que importa dizer — tudo que é indispensável dizer — é que se estende por certa largura, comprimento e profundidade. Opera-se aqui uma identificação extraordinária: um corpo e a região que ocupa, matéria e extensão, são uma e a mesma coisa.
Em seguida, Descartes enuncia a assim chamada “lei da conservação da quantidade de movimento”: todo corpo livre, isto é, que não está sob a ação de outros corpos, tem conservada a quantidade de movimento que lhe está associada, que só será alterada se outro corpo qualquer lhe ceder ou retirar movimento. A lei da conservação da quantidade de movimento vai estar intimamente associada ao chamado princípio da inércia, que constitui a primeira das três leis da mecânica que Newton irá sintetizar meio século mais à frente. Inércia é a medida da resistência que um corpo oferece ao ter seu movimento modificado pela ação recebida de outro corpo, e a grandeza correspondente a essa medida é a massa. Quanto maior é a massa de um corpo, maior tem de ser o impulso externo recebido para que seja realizada a mesma modificação de sua quantidade de movimento.
O princípio da inércia afirma que, quando não houver agentes externos operando sobre um corpo, esse corpo realizará um movimento retilíneo e uniforme, com velocidade constante, ou seja, a intensidade, a direção e a natureza do movimento serão mantidas. Descartes separa esses três aspectos do princípio da inércia: a quantidade de movimento ser invariante, o corpo manter a direção e o movimento ser retilíneo. Mas, para nós modernos (para nós, cartesianos), esses três aspectos na verdade são um só: um corpo deixado entregue a si mesmo move-se espontaneamente em movimento inercial, ou seja, retilíneo e uniforme. A noção de inércia irá fundamentar a metáfora do mundo físico como o análogo de uma máquina, a metáfora-matriz da modernidade, e verificamos que, se adquiriu um mínimo de atividade inerente, o movimento inercial, a matéria homogeneizou-se ao extremo: para as leis da mecânica, a única propriedade relevante de um corpo — de qualquer corpo — é a medida de sua inércia, ou seja, sua massa.
Newton recebe os conceitos renovadores propostos por Galileu e Descartes e os promove a um patamar ainda mais abstrato em sua grande síntese das leis dinâmicas, a mecânica. Se o comportamento espontâneo dos corpos, quando deixados entregues a si mesmos, é o movimento inercial, então todo movimento que se afaste de um percurso retilíneo com velocidade uniforme é o sintoma de que uma ação externa está incidindo sobre o corpo sob exame. O gênio de Newton foi o de prescrever, por meio da linguagem do cálculo, o modo de depreender da forma da trajetória seguida pelo corpo em movimento não inercial a expressão quantitativa da causa operando sobre ele (ou força); e, reciprocamente, o modo de deduzir da fórmula de uma dada força a modificação do movimento inercial que resultaria de sua aplicação sobre certo corpo. Ora, a concepção de causalidade acarretada pela nova mecânica ou ciência do movimento de Newton, consubstanciada por suas três leis da dinâmica, exige que a cada causa (ação de certa força sobre um dado corpo) corresponda um e só um efeito (a trajetória não inercial seguida por ele), e reciprocamente. Esse tipo de causação biunívoca é chamado de determinismo estrito e tem como consequência a equiparação dos movimentos dos corpos físicos à movimentação das engrenagens de uma máquina.
Daniel Boorstin observa que a fabricação e difusão, a partir do século XIII, dos relógios mecânicos foi um acontecimento fundamental para o posterior desenvolvimento da concepção mecanicista do mundo natural e sua instalação, inclusive por fornecerem a metáfora nuclear de que o Universo seria comparável a uma grande máquina, isto é, uma vasta série de mecanismos concatenados, cujo funcionamento conjunto é rigorosamente determinado (e, por conseguinte, inteiramente predizível) em virtude da coordenação exata de suas peças, de suas partes simples. Assim como em uma cadeia de engrenagens os movimentos da última peça estão precisamente definidos pelos da primeira (uma vez que a transmissão do movimento impresso a uma roda dentada para outra, por exemplo, é regulada tão somente pela razão entre os raios das rodas), não podendo aquela realizar nenhuma ação que não seja a exata consequência da concatenação dos movimentos das peças intermediárias, também na natureza como um todo vigoraria uma determinação estrita: processo algum haveria que escapasse das imperiosas leis mecânicas que governariam, de instante a instante, os estados de coisas no Universo.
Implícita nessa imagem maquínica do mundo está a noção, que seria tão cara ao século XIX, de que nenhum acontecimento natural é “livre”, pois cada parte da grande máquina universal está determinada, está condicionada a mover-se de acordo com o movimento das outras peças. Na verdade, nenhuma arbitrariedade (ou liberdade), nenhuma escolha (ou invenção) seriam de fato possíveis. Cada estágio da “história cósmica” (as mudanças na constelação dos corpos) determina (e é equivalentemente determinado por) todos os estágios precedentes e subsequentes. Se conhecermos uma configuração do conjunto das engrenagens num dado momento, poderemos em princípio prever qualquer configuração futura ou retroceder a qualquer configuração passada.
Se, por exemplo, conhecermos a posição da Lua hoje, aplicando as leis da mecânica clássica poderemos prever a posição da Lua daqui a um mês ou rever a posição que ocupava no mês passado, com a exatidão que desejarmos. Assim, se fosse possível tirar fotografias da totalidade — recordemos que fotografias, antigamente, se chamavam “instantâneos” —, a história universal, a história do cosmos, poderia ser reduzida a uma série de “instantâneos”, cada um retratando uma dada configuração, uma dada distribuição dos corpos no espaço. Isso corresponde à ideia de que o tempo é uma sequência universal de instantes, e cada instante, correspondentemente, é também universal, é o mesmo em todas as partes. A mesma badalada ressoa em todos os confins do Universo, o infinito do espaço habita o infinitésimo do tempo. Kronos impera absoluto sobre esse Universo concebido como uma máquina, como um conjunto de engrenagens perfeitamente ajustadas e azeitadas que, ao se movimentar, assumem a cada momento uma disposição coletiva diferente. Isso torna discutível a aplicação do termo “história” — na medida em que este denota uma autêntica progressão evolutiva dos sistemas materiais — ao cosmos determinista do mecanicismo, em cujo âmbito a vida e o pensamento, com seus repertórios de contingências, criações e imprevisibilidades, assumem sem dúvida a feição de anomalias.
Como é bem sabido, a história raramente procede de modo inercial — linear, direto, uniforme. A partir do Renascimento, em meio à recuperação generalizada de noções herdadas da Antiguidade helenista, são também reintroduzidas as doutrinas havia muito esquecidas dos pensadores arcaicos que, no século XIX, serão denominados pré-socráticos. Em particular, os descendentes modernos dos alquimistas medievais, os químicos, aprofundarão a abordagem quantitativa das propriedades das substâncias, com o objetivo de compreender e controlar suas interações e reações. Ao trabalhar cada vez mais amplamente com medidas de quantidade, eventualmente esses estudiosos entrarão em contato com a antiga concepção atomista, ou seja, de que as substâncias não são compostas por misturas de somente quatro elementos abstratos, idealizados, mas por combinações de toda uma variedade de espécies químicas básicas, que hoje conhecemos como elementos químicos.
As explorações pioneiras dos alquimistas já haviam identificado algumas dessas substâncias simples, e sucessivos avanços na análise de diferentes materiais revelaram que se tratavam de compostos em que tais elementos simples entravam sempre na mesma proporção, sugerindo que cada um deles consistia em unidades fundamentais idênticas — ou átomos. A ideia é clara e poderosa: identificando os elementos por suas propriedades específicas e colecionando suas regras de combinação, seria em princípio possível explicar as propriedades de seus compostos, que são as diferentes substâncias e materiais que encontramos na natureza. Lavoisier, e em seguida Dalton, Davy e muitos outros, seguem essa abordagem analítica, que resultará na extraordinária síntese de Mendeleev, com a Tabela Periódica dos Elementos, e em última instância contribuirá para consolidar (com os trabalhos seminais de Einstein e Perrin, já em pleno século XX) a imagem atomista que temos hoje da matéria. Reencontramos aqui um empreendimento de simplificação, uma busca por uma elementarização dos complexos sistemas naturais, análoga ao reducionismo mecanicista: para obter conhecimento sobre um fenômeno como um todo, devemos separá-lo em partes constituintes sucessivas até que essas partes sejam simples, ou seja, dotadas de um mínimo de atributos’. Conhecemos esgotantemente as características dessas partes simples — rodas dentadas, elementos químicos — e seus modos de relação, e então reconstituímos as propriedades do conjunto ou do composto.
Haverá imensos ganhos com o desenvolvimento da química analítica. Por exemplo, a facilidade conseguida no manuseio de componentes conduzirá à produção bem regulada de materiais muito homogêneos, como o aço e o concreto. Ao contrário da irregularidade de composição frequentemente encontrada nas matérias-primas naturais, aço e concreto podem ser produzidos em grande quantidade com exatamente a mesma composição. Essa homogeneidade os tornará materiais de uso muito variado, pois basta definir a forma que devem adquirir, e portanto a função que devem realizar, que a uniformidade de sua composição lhes garantirá uniformidade ‘de comportamento. Em contrapartida, o operário ou trabalhador que lida com aço e concreto não precisa ter conhecimentos especializados; não é requerido que tenha vivido com esses materiais e adquirido conhecimento por experiência. Do mesmo modo que a própria substância, o manejo desses materiais homogêneos é extremamente estandardizado: basta repetir as instruções do manual. E na mesma medida que a automação mecânica, a homogeneização dos materiais de construção irá contribuir decisivamente para o surgimento do mundo industrializado moderno, o mundo de Tempos modernos, em que Chaplin nos demonstra que o afazer do operário consistirá tão somente na repetição automática de gestos sem sentido, gestos que são como partes mecânicas de uma cadeia industrial de produção, atuando sobre uma matéria neutralizada, sem qualquer característica específica, sem qualquer viés histórico.
Novamente, o que resta abandonado é o conhecimento que resulta da intimidade do artífice com sua matéria-prima, que em certa medida podemos chamar de tradicional. Mas ainda mais importante é observar que, quando se focaliza o plano dos componentes elementares e se objetiva a produção de materiais homogêneos, perde-se de vista o fato de que as propriedades mais interessantes das substâncias não estão nos elementos, e sim nos compósitos, nas ligas, nas misturas. As propriedades realmente significativas da madeira ou da argila não estão no carbono ou nitrogênio presentes em sua composição, mas num plano estrutural superior, muito mais sofisticado, correspondente às fibras de celulose ou aos agregados de silicatos — como a atual ciência dos materiais não se cansa de comprovar.
Como toda boa história, a história do pensamento é muito rica em imprevistos e, por conseguinte, em viradas irônicas do enredo. Uma de suas supremas ironias adveio do insuspeitado rumo que tomaram as pesquisas em mecânica de Henri Poincaré, um dos maiores matemáticos de todos os tempos. Em fins do século XIX, Poincaré dedicou-se ao exame de uma questão enganosamente inocente, o chamado “problema dos três corpos”. Bem, o sistema mecânico mais simples que se pode ter, a menos no caso trivial de um corpo isolado, é o da relação entre dois corpos — por exemplo, entre a Terra e a Lua. Seguindo a prescrição de Newton, se conhecermos a natureza da força que atua entre ambos, suas trajetórias poderão ser determinadas; no caso da Lua e da Terra, a força que os governa é a gravitação, e sabemos descrever o padrão elíptico (quase circular, na verdade) de movimento que a Lua desempenhará em sua revolução mensal em torno da Terra. Como se costuma dizer, tudo funciona como um… relógio. Mas se agora um terceiro corpo for incluído, algo inteiramente inesperado acontece: não apenas a solução das trajetórias revela-se de dificílima elaboração, como resulta ser efetivamente impossível de ser determinada. Foi a essa desconcertante conclusão que chegou Poincaré.
Poincaré examinou uma versão reduzida do problema, envolvendo dois astros de grandes dimensões em comparação ao terceiro; assim, a influência recíproca do corpo menor sobre os maiores podia ser desprezada, simplificando as fórmulas. Ao procurar descrever a trajetória a ser seguida pelo corpo pequeno sob a ação dos grandes, constatou que mínimas diferenças na posição inicial do astro satélite acabariam por se acumular, ser ampliadas e produzir, a longo prazo, órbitas inteiramente distintas. Um número tão grande de possibilidades de percurso poderia ocorrer que, na prática, o comportamento do sistema não poderia ser suficientemente prescrito. O sistema gravitacional de três corpos resulta ser, num sentido rigoroso, incalculável! Ainda que o conjunto de equações que ele satisfaça seja classicamente determinista, ou seja, que sua evolução seja em princípio perfeitamente determinável, uma vez que não se consegue realizar os cálculos necessários para que essa determinação se efetive, para todos os fins práticos trata-se de um sistema indeterminado. Poincaré havia descoberto um dos mais peculiares conceitos das ciências contemporâneas: o caos determinístico.
As consequências desse avanço não poderiam ser mais profundas. Como o próprio Poincaré irá observar, o aparecimento de configurações de evolução imprevisível no coração mesmo da mecânica obrigará os físicos a abandonar a pretensão de descrever o comportamento de um sistema mecânico com exatidão absoluta, ao longo de sua história evolutiva; essa tarefa, resume Poincaré, é irrealizável. Consideremos mais uma vez o exemplo que citamos acima, do sistema Terra-Lua, ou seja, um problema de dois corpos. Digamos que medimos a distância entre a Lua e a Terra (ou entre os centros de cada astro), com uma precisão de um quilômetro. Fazemos a evolução dinâmica do sistema, ou seja, resolvemos as equações correspondentes, e obtemos as posições da Lua no futuro. A pergunta é: o quanto no futuro? Porque a incerteza da posição inicial também evolui e, decorrido um prazo suficiente, será ampliada até o tamanho da órbita da Lua — dito de outro modo, não saberemos onde a Lua estará! Tratamos então de refinar a precisão de nossas medidas: que a distância agora seja conhecida com precisão de um metro. Repetimos o procedimento e… verificamos que, decorrido um prazo proporcionalmente maior, a incerteza volta a equiparar-se à própria separação. Centímetros ou milímetros, não importa: sempre haverá uma imprecisão em medidas reais, feitas com instrumentos reais — e as equações estritamente deterministas da mecânica propagam essa imprecisão, projetando-a sobre a evolução futura dos sistemas materiais. Caso considerássemos sistemas mais complexos — os três corpos de Poincaré, ou os milhares de planetas, satélites, asteroides, cometas, meteoritos e poeiras que compõem o sistema solar — a presunção de descrevê-los de modo estritamente determinista é claramente uma insensatez.
Reconhecendo o golpe que acabara de desfechar sobre a tradição de sua própria ciência, Poincaré nos convida a abandonar a presunção, que se revelou desmesurada, de prever com exatidão acontecimentos específicos, e nos aconselha a considerar outro tipo de descrição, focada em certos padrões de acontecimentos. Tomemos o exemplo de um lance de dados: há certamente um número enorme de maneiras pelas quais o dado pode sair de nossa mão e cabriolar à vontade pelo ar, até pousar sobre a mesa. Seria em princípio possível, realizando medições suficientemente acuradas, fixar as condições específicas presentes em cada lançamento, em seguida determinar as trajetórias decorrentes, e assim determinar qual o resultado a ser esperado (para desgosto dos cassinos, é claro!). Só que essa imensa tarefa, ainda que realizável, seria totalmente desnecessária para que outro tipo de previsão fosse feita: a de que todos os percursos convergem para seis, e apenas seis, configurações finais — correspondentes, obviamente, a cada uma das seis faces. Miríades de lançamentos, inumeráveis trajetórias, mas apenas seis resultados. Esse fato permite concluir que não importa o lançamento que seja feito, cada face tem um sexto de chances de vir a ser escolhida; inversamente, se fazemos uma série de lançamentos, os resultados devem tender a convergir para uma média de um sexto das vezes para cada face (ou desconfiaremos do dado…). Os lances de dados não são, assim, processos previsíveis, mas são estáveis.
Vamos então tratar de expandir esse entendimento e acompanhar Poincaré na procura de padrões universais não de comportamentos definidos, mas de configurações tendenciais. Se não dispomos de meios de prescrever o estado final específico que resultará da evolução dinâmica de um dado sistema, procuramos tendências de estabilização inerentes a essa evolução; dito de outro modo, deixamos de considerar trajetórias individuais e procuramos identificar traços coletivos, comuns a feixes de trajetórias. Em termos técnicos, passamos a buscar caracteres topológicos, atributos globais que definem a natureza de todo o espaço dos caminhos evolutivos possíveis. Poincaré examina casos bastante gerais de sistemas dinâmicos e acaba por concluir que todos os caminhos evolutivos possíveis para esses sistemas desembocarão em três, e apenas três, padrões de estabilidade final. Ou seja: se temos de abandonar a presunção de determinar estados futuros, podemos no entanto nos dar conta de que a evolução do sistema sucederá segundo três regimes de estabilização, rumo à configuração final. Esses regimes são às vezes chamados de ponto fixo, ciclo e caos, e correspondem a padrões universais de evolução dinâmica.
O regime de ponto fixo pode ser exemplificado quando largamos uma bola de gude em uma cavidade em forma de cuia. Não importa de onde a bola seja largada, ou com qual impulsão. depois de deslizar pelas paredes da cuia por tempo suficiente ela acabará se dirigindo ao fundo da cavidade e lá se imobilizará. Se, agora, procuramos removê-la dessa situação de atividade mínima, sacudindo-a, invariavelmente veremos a posição central ser retomada — ou seja, essa configuração é resiliente frente a perturbações. Podemos em seguida imaginar o lançamento de um satélite, que sobe em um foguete até que alcança certa altura, ou distância da Terra, e então entra em órbita. Como Newton havia intuído, a partir da lei da queda dos corpos de Galileu, o satélite encontra-se doravante num processo de queda permanente, em que sem cessar busca retornar à Terra, sem jamais reencontrá-la. Estar em órbita significa que ele entrou em um regime de ciclo, que também é estável. Fazendo uma analogia com o primeiro caso, é como se agora a bola de gude estivesse dotada de um impulso que não se esgota e a faz circular interminavelmente a certa distância do fundo da cavidade.
O terceiro tipo de regime, por fim, remete à curiosa característica chamada caos, que Poincaré encontrou no estudo do problema dos três corpos e pode ser representado pelo peculiar comportamento de um satélite de Saturno chamado Hipérion. À primeira vista, apesar de seu pouco harmonioso formato de batata, Hipérion não parece exibir características singulares: orbita em torno de Saturno seguindo uma elipse bastante excêntrica, mas seu percurso é perfeitamente regular. Quando inspecionamos mais de perto, porém, somos surpreendidos pelo fato de a rotação de Hipérion em torno de si mesmo ser altamente irregular, como se seu eixo de rotação realizasse cambalhotas interminavelmente, sem jamais retornar a uma situação já ocorrida — o que deve fazer das irrepetíveis auroras e crepúsculos em Hipérion espetáculos inesquecíveis.
Em suma, por prodigioso que possa parecer, é possível classificar os regimes estáveis de evolução dos sistemas dinâmicos nos três tipos de padrão universal deduzidos por Poincaré. Esse novo tipo de padrão universal de comportamento é ainda mais geral que os das leis dinâmicas tradicionais, como a lei da queda dos corpos, por remeter a aspectos qualitativos da evolução do sistema — sua gestalt, por assim dizer. Mas a constatação de que há padrões universais de estabilização dinâmica abre possibilidades conceituais extremamente interessantes. Consideremos, inicialmente, o caso exemplar de uma bolha de sabão. Aristotélicos incorrigíveis que somos, diríamos de pronto: o sabão, ou melhor, a solução saponácea, enquanto matéria inativa, foi apoderada e moldada por uma forma esférica. Chamaríamos, talvez, de bolhosidade ao princípio esfericizante abstrato que adentrou a solução e fez surgir nela as bolhas redondas. Ou então tomemos um cubo de sal de cozinha: em uma solução salina, ocorre uma reação entre moléculas de cloro e de sódio e vemos surgir um cristal, que exibe a forma inequívoca de um cubo. Novamente, sempre aristotélicos, diríamos que a solução é uma matéria informe e receptiva, que recebeu as marcas correspondentes a um formato cúbico, derivadas de uma fôrma primeira, digamos, a cubidade. Ninguém confundiria, pois não, a bolhosidade saponácea com a cubidade salina; trata-se obviamente de princípios ou essências muito diferentes.
Todavia, se examinarmos os processos envolvidos mais de perto, constataremos que as moléculas de sabão que compõem a bolha tendem espontaneamente a se alinhar com as vizinhas, de modo a minimizar uma grandeza chamada tensão superficial. Podemos comparar o comportamento dessas moléculas ao de uma série de gangorras ligadas entre si, de tal maneira que cada gangorra que alcança a posição de equilíbrio induz suas vizinhas a também se equilibrar. Ao se generalizar a tendência de minimização de tensões, à medida que as moléculas vizinhas progressivamente se alinham, as regiões perdem distinção e o resultado é uma configuração altamente simétrica ao longo de toda a superfície da bolha — a forma esférica. A minimização da tensão superficial é um processo dinâmico, e esse processo produz o formato esférico a partir da solução ela mesma, não de fora. Por sua vez, quando as moléculas de sódio e cloro se associam na solução salina, ocorre um processo de minimização de outra grandeza, chamada energia de ligação. Em virtude das afinidades entre as camadas eletrônicas mais externas das duas espécies de átomos, essa energia é minimizada quando os átomos de cada substância se distribuem, alternadamente, nos vértices de um arranjo cúbico. A forma cúbica do cristal de sal emerge, novamente, de um processo dinâmico interno à solução salina.
Mas, nesse caso, tanto a bolhosidade como a cubidade não passam de manifestações macroscópicas, exteriorizadas, de um mesmo tipo de processo microscópico interno que satisfaz um princípio de mínimo, ou seja, que procede rumo a uma estabilização sob o regime de ponto fixo. Ambas as formas, esférica e cúbica, são produzidas por uma minimização desde dentro dos sistemas e, portanto, não são adquiridas de fora. No que concerne ao processo dinâmico envolvido, a bolha de sabão e o cubo de sal são formados de modo idêntico. A conclusão é a de que as diferentes formas geométricas produzidas, esférica ou cúbica, são de menor importância perante a mesma forma topológica, isto é, o regime de estabilização por minimização que presidiu suas aparições. Como queria Simondon, o princípio de individuação a partir de um modelo externo prévio e alheio é substituído por operações de individuação que exprimem caracteres dinâmicos inerentes aos próprios sistemas, às matérias em si mesmas.
Tomemos a seguir o caso de um processo cíclico típico: o passar do ano. Desde nosso ponto de vista terráqueo, o movimento de revolução de nosso planeta em torno do Sol se manifesta de modo visível no deslocamento diário das auroras. Escolhendo um equinócio como ponto de partida, e de acordo com a sequência das estações, o nascer do Sol se movimenta para o norte, até atingir o solstício, retorna rumo ao sul, passa pelo equinócio seguinte, atinge o outro solstício, retoma novamente a jornada rumo ao equinócio, e da capo. Todavia, se escolhermos iniciar nosso exame a partir de outro equinócio, veremos que o deslocamento contínuo da posição da aurora repete-se identicamente. Como, então, distinguir um ciclo de outro? Se não dispusermos de algum tipo de referente externo pelo qual possamos assinalar os sucessivos ciclos, não há meios de diferenciá-los. Essa é, evidentemente, uma característica comum a todo processo cíclico. A solução é correlacionar diferentes ciclos, de modo que possamos usar o período de um deles como medida para o período do outro — como os humanos fazemos, há milhares de anos, ao elaborar calendários. Depois de 365 repetições do ciclo dia-noite (mais uns quebrados), cumpre-se um ciclo anual — isto é, usamos a enumeração de sucessivas rotações da Terra em torno de seu eixo como referência para estimar o movimento de revolução solar. Ao final desse período, celebramos o primeiro dia de um novo ano, e a ciranda recomeça.
Bem, há certo tipo de cigarras, no Canadá, que têm um ciclo de vida muito curioso. Elas passam 17 anos enterradas sob a forma de larva, nutrindo-se de pequenos organismos, até que sofrem uma metamorfose, emergem à superfície em grandes quantidades, durante algumas horas realizam os protocolos de acasalamento, as fêmeas depositam seus ovos sobre o solo, todos realizam uma última dança esvoaçante, e então morrem. Ao eclodirem, os ovos se transformarão em larvas, que migrarão para dentro do solo para aí viver, pelos próximos 17 anos, suas vidas obscuras. Podemos nos interrogar sobre a conveniência, ou não, de denominar a espécie com base nas efêmeras horas que passam ao ar livre, e não nos longos anos subterrâneos, mas a pergunta realmente interessante é: como é que elas sabem contar 17? Mais ainda: por que 17? 0 que haveria de especial com esse número, para que fosse adotado pela seleção natural? A resposta, diz Hugh Raffles, é que 17 é um número primo, ou seja, não é divisível por nenhum outro número, senão ele mesmo e a unidade. Portanto, caso um predador procurasse se especializar nessa espécie de cigarras, para acompanhar seu ciclo de eclosão teria ou de ajustar seu próprio ciclo reprodutivo ao período de 17 anos, ou reproduzir-se anualmente (e passar os 16 anos seguintes jejuando). Assim, faz todo o sentido uma espécie usar ciclos vitais em números primos para dificultar a vinculação com os ciclos de seus predadores, mas a pergunta permanece: como as larvas-cigarras contam 17? No Canadá a passagem das estações envolve fortes alternâncias de calor e frio. Depois de serem congeladas e aquecidas por 17 vezes seguidas, as cigarras tratam de, muito literalmente, botar as asinhas de fora.
Para isso, têm de ajustar um relógio interno a essa sequência de temperaturas que lhes serve de meio de contagem ou de marcas num calendário. Esse relógio bioquímico (que muitíssimas espécies exibem) se baseia em certas reações chamadas de catalíticas. Essencialmente, temos duas substâncias químicas que reagem, formando um produto. Contudo, pode haver outra substância que, caso esteja presente, tem a faculdade de facilitar ou dificultar a reação original, acelerando ou freando a formação do produto. Essa substância, chamada de catalisador, não se mistura com os reagentes; tem uma função semelhante à de um regente que, diante de uma orquestra, dirige o andamento da execução da partitura, mais rápido ou mais cadenciado. Imaginemos agora uma cadeia de reações de catálise, isto é, uma situação em que o produto da primeira reação é um catalisador de uma segunda reação, e assim por diante. Caso haja suficientes matérias-primas para cada reação, eventualmente conseguiremos que se estabeleça um loop, um novelo de catálises consecutivas em que uma reação potencializa a seguinte, até que o círculo se feche. Emerge assim um processo periódico, em que diferentes concentrações de reagentes vão se sucedendo numa certa cadência, ciclicamente. Ao encaixarmos as atividades catalíticas de cada uma das etapas da reação, vemos se formar um tipo de anel reativo, e esse anel é um relógio químico.
Processos semelhantes, de fundo bioquímico, comparecem em uma variedade de organismos e são os responsáveis pela capacidade das cigarras de se metamorfosear sincronicamente — bem como participam em migrações, ciclos reprodutivos e inúmeras outras capacidades vitais. O que é significativo aqui é reconhecermos que um acoplamento de ritmos emergiu e se estabilizou, concatenando ciclos de natureza muito diversa. E a principal conclusão a que chegamos com esta análise é a de que deparamos com processos formativos, em que se engendram cadências e estruturas, que são inerentes aos sistemas materiais. Essa matéria não é de modo algum inerte, ou melhor, só é inerte em termos estritamente mecânicos — se deixada entregue a si mesma desempenhará um movimento inercial, mas é plenamente capaz de engendrar, autonomamente, endogenamente, formas estáveis. Trata-se, assim, de uma matéria autoformadora. Humberto Maturana e Francisco Varela elaboraram o conceito de autopoiese para dar conta dessa capacidade automórfica. Em grego, poiese é produção; esses autores procuram, então, estabelecer uma teoria geral dos sistemas autoprodutivos, aptos a gerar sua própria conformação.
Os requisitos que identificam para que um dado sistema material possa exercer essa capacidade são, primeiramente, possuir recursos dinâmicos que permitam uma estabilização endógena, espontânea, de seus fluxos de atividade; em segundo lugar, que evoluam por deriva, isto é, possam mudar a própria regra de estabilização por um desvio, ou um excesso, ou uma casualidade. Quer se trate de uma reação autocatalítica que fornece a base para um relógio biológico, ou da constituição de um ecossistema em que inúmeras espécies diferentes estabelecem redes de laços comportamentais em conjunto, encontramos sempre a consolidação de certa forma a partir de processos internos de estabilização; mas essa forma estabilizada não é inflexível ou perpétua — se variam as circunstâncias o regime de estabilização pode derivar, daí resultando a emergência de novas variantes para a conformação do sistema. E o que é realmente decisivo aqui é o entendimento de que as formas (ou fôrmas) elas mesmas não são universais, mas o são os padrões de estabilização a partir dos quais emergem. Assim, não importa a classe ou a composição do sistema sob exame, podemos estudar a geração autogênica de formas empregando os mesmos recursos teóricos: sedimentação de rochas, cadeias alimentares em ecossistemas, formação de mercados de trocas, evolução das línguas, disparos de populações de neurônios…
Com efeito, Miguel Nicolelis nos ensina que a atividade cerebral que chamamos de pensamento tem por base uma verdadeira sinfonia neural, em que vastas populações de neurônios disparam de modo síncrono, compondo redes de atividades que continuamente se formam e reformam, à maneira da execução de uma música por uma orquestra. Temos aqui bem mais que uma metáfora, porém: ao se reformar a rede de que participam, em algumas horas é modificada a própria morfologia de cada neurônio, e esse processo metaestável de atividade coletiva é que permite que percebamos, e daí em diante recordemos, um particular tom de vermelho, ou a tessitura suave ou áspera de certa superfície, ou os contornos angulosos ou arredondados de um dado corpo. A rigor, no plano molecular, essas redes de disparo nunca se repetem exatamente, nunca são as mesmas, mas o que sempre se repete é o padrão. Demasiadas variáveis, envolvidas em demasiados processos, coordenando demasiados ciclos — mas esse fluxo caótico se estabiliza em um resultado final a que chamamos ato de pensar.
Chegamos muito além, portanto, da concepção tradicional de uma matéria deprimida, insípida, improdutiva. Em vez de verificar a incapacidade da matéria de engendrar formas, vemos por toda parte, em toda sorte de domínio natural, a potência de fazer surgir arquiteturas processuais que dão lugar a diagramas estáveis. Longe da aniquilação das transformações em estados de equilíbrio derradeiros, finalizados, encontramos uma potência de composição de durações. Não importa o suporte específico que esteja encarnando um processo dinâmico, padrões universais de estabilização haverão de governá-lo. Se, como assinala Ilya Prigogine, o século XIX foi em certa medida a ocasião de entrada da ciência na história, talvez não haja demasiado erro em sugerir que, no século XXI, está em curso a entrada da história na ciência. Ou seja, se trata agora não de pensar os sistemas privados de sua historicidade própria, mas, ao contrário, entender que todo sistema está em processo, e esse caráter processual implica que a história mesma do sistema é parte do contexto para sua futura evolução. Um Homero chamado Heráclito já nos ensinou: Panta Rei, tudo flui. As populações de zebras hoje ensejam uma espécie, uma Zebra, mas breve haverá uma deriva, algumas das zebras vão ficar maiores, ou mais pálidas, algumas eventualmente até se esquecerão de ser listradas, e assim a Zebra devirá Outra. O período dessa deriva é certamente inumano, mas, como afirma David Christian, o que costumamos chamar de permanência, longa duração ou imobilidade é de fato inteiramente relativo. Se ampliarmos o olhar, o que passaremos a distinguir não são indivíduos ou espécies, e sim fluxos de biomassa, o fluir das matérias vivas engolindo-se, assimilando-se, transformando-se sem cessar. Perante essa visada ampliada, os solos, as montanhas, os continentes, tudo isso que para nós transmite a imagem de perpétua impassibilidade não são senão enrugamentos, vincos, endurecimentos temporários da crosta terrestre. Basta passarmos o filme mais rápido e nos daremos conta de que essas imensas dobraduras e protusões serão fatalmente reabsorvidas pelos fluxos básicos de magma, do qual emergiram eras atrás. E nosso próprio planeta não passa de uma aglutinação sempre provisória, sempre metaestável, dos fluxos cósmicos de plasma estelar. Em toda parte, o que reconhecemos é uma natureza inventiva, expressiva, curiosa — e certamente bem pouco preguiçosa. O século XXI não poderá ser o mesmo, porque Kairós, o tempo da síntese de necessidades e acasos, está chegando.