2005

Samba, artigo de consumo nacional

por Margarida Autran

Resumo

A década de 70 foi a década do samba. Martinho da Vila, Clara Nunes, BethCarvalho, João Nogueira e Alcione se transformaram em ídolos populares, vendendo milhares de discos. Sambistas da velha-guarda, fundadores das escolas de samba até então anônimos para o grande público, como Cartola, Donga, Monarco, Mano Décio da Viola e Dona Ivone Lara, conseguiram gravar seus primeirosLPs.

Desgastado pelo esvaziamento da cultura nacional, reflexo de sua política repressiva, o governo brasileiro precisava mudar sua orientação, em busca de uma imagem mais simpática ao povo e, a partir de 1974, decretou ser o samba a linguagem musical nacional. Para a indústria fonográfica o samba significava um investimento de poucos riscos, devido à sua boa aceitação no mercado. Mesmo na fase mais sombria que atingiu a música popular, de 1968 a 70, Martinho da Vila atingiu índices de mais de cem mil cópias vendidas. Este panorama fonográfico mostra como a máquina do disco funciona perfeitamente integrada à máquina estatal.

Foi em 1971 que o samba começaria a perder suas características regionais para se transformar em cultura de massa, vendável a todo tipo de público, destinada a plasmar a identidade nacional buscada pelo Estado. O samba começa assim a voltar à evidência, de forma quase espontânea, depois de ter sido relegado a segundo plano, na época da Bossa Nova. A ordem é sambar, decretou-se no país inteiro.

Quando os produtores das gravadoras começam a subir o morro, em torno de 1974, em busca de matéria-prima de boa qualidade e baixo custo, os compositores, até então marginais, não conheciam as regras do jogo e, na maioria das vezes, levaram a pior. Ingênuo e desorganizado como categoria profissional, o sambista não consegue o justo preço por seu trabalho e talento criativo. Para o compositor, fornecedor da matéria-prima do sucesso, o que restou foi apenas a alegria de ver sua música cantada pelo país inteiro e uma ilusória sensação de aceitação ou até mesmo de ascensão social.

Intimamente ligado ao samba, o carnaval também sofreu muitas modificações nos anos 70. As escolas de samba, fundadas por necessidade dos negros sambistas de se organizar numa época em que o samba era tido como “coisa de vagabundo, do pessoal que não prestava”, se transformaram em “coisa de bacana” e, segundo Cartola, um dos fundadores da Mangueira, este foi o seu mal. O samba das escolas foi diretamente atacado, perdendo suas características, não só pela necessidade de adaptá-lo a um novo público, como pela própria organização do desfile, cuja rígida cronometragem prejudicou até o modo de compor, tirando sua dramaticidade. “O samba não nasceu para ser disciplinado”, declarou Monarco.


Esta foi a década do samba. Martinho da Vila e Clara Nunes, acompanhados de perto por Beth Carvalho, João Nogueira e Alcione, só não superaram as marcas de vendagem dos discos de Roberto Carlos, e se transformaram em ídolos populares. Sambistas da velha-guarda, fundadores das escolas de samba até então anônimos para o grande público, como Cartola, Donga, Monarco, Mano Décio da Viola e Dona Ivone Lara, conseguiram gravar seus primeiros LPs. E, no rastro deste sucesso, surgiu o “samba de gravadora”, de Benito di Paula, Agepê, Luiz Airão e outros carbonos, que veio a desaguar na massificação da música de gafieira.

Este panorama fonográfico mostra como a máquina do disco funciona perfeitamente integrada à máquina estatal que, a partir de 1974, decretou ser o samba a linguagem musical nacional. Desgastado pelo esvaziamento da cultura nacional, reflexo de uma política repressiva que, em termos musicais, facilitou a invasão do mercado por ritmos importados, o governo precisava mudar sua orientação, em busca de uma imagem mais simpática ao povo. E, no momento em que passa a organizar a produção cultural, encampa e “amacia” as expressões culturais que, de maneira marginal e contestatória, conseguiram sobreviver à crise.

Ao definir o samba como “uma coisa marginal”, por ser a forma de expressão mais natural da vida do morro, que “é uma comunidade de marginais”, já em 1971 Paulinho da Viola fornecia os elementos que apontariam esta manifestação cultural como o veículo ideal da nova política, no setor musical — o que mais facilmente atinge a todas as camadas da população. Em entrevista a Torquato Neto, Paulinho afirmava ser o samba um dos elementos mais importantes da contracultura que florescia na época. “Marginal é o cara que se coloca contra o vigente. O marginal, no nosso tempo, sempre, é justamente

que é vivo, o que questiona, o que incomoda. O samba, nesse sentido, continua vivo, questionando, incomodando.” (Última Hora, 28/7/1971)

Para a indústria fonográfica, espremida pela crise internacional do petróleo e da matéria-prima — que repercutia nas filiais das multinacionais que controlam a quase totalidade do mercado brasileiro —,

samba significava um investimento de poucos riscos, devido à sua boa aceitação no mercado. O ano de 1975 ficou definitivamente marcado, para as gravadoras, como “o ano do samba”. E da grande virada da indústria do disco, que não parou mais de crescer.

Na verdade, desde o início da década o samba começa a mostrar seu potencial como artigo de consumo e seus LPs já se colocam entre os mais vendidos, após o período mais violento da crise que, de 1968 a 70, atingiu a música popular de modo geral. Naquela fase mais sombria, Martinho da Vila se manteve praticamente sozinho na divulgação do samba mais puro, atingindo sempre índices de mais de cem mil cópias vendidas, mesmo enfrentando uma campanha derrotista de uma certa imprensa alternativa, que lhe prenunciava um curto fôlego.

Outro foco de resistência foi o programa do radialista Adelzon Alves, que, entre meia-noite e quatro da madrugada, transformava a Rádio Globo do Rio em sentinela avançada da música popular brasileira, apresentando sambas e sambistas. Apesar do horário, o programa de Adelzon conseguiu uma inesperada audiência.

Foi em 1971 que alguns acontecimentos aparentemente isolados propiciaram as condições para a deflagração da maciça comercialização que, mais tarde, viria a desvirtuar toda uma cultura popular comunitária, que se expressa não só através do canto e da dança, mas também da linguagem falada, de costumes e até mesmo da culinária. O samba perderia suas características regionais para se transformar em cultura de massa, vendável a todo tipo de público, destinada a plasmar a identidade nacional buscada pelo Estado.

Assim, quando Clara Nunes atinge o sucesso com um LP produzido por Adelzon, no qual se define como intérprete de sambas, ela revela às gravadoras um filão que, com o costumeiro atraso em detectar novas tendências, elas passam a explorar, lançando no mercado uma enxurrada de cópias edulcoradas, os “sambões de parada”. Outro dado importante daquele ano foi a retomada das noitadas de samba do Teatro Opinião, criadas em 1966 por um grupo de iniciados. Em 1971, passam a reunir em torno de compositores e ritmistas das escolas de samba uma plateia heterogênea e sequiosa, que vai motivar a moda das rodas de samba e sambões que se alastrou por clubes e churrascarias do Rio e de São Paulo. Paralelamente, na música de carnaval, o compositor salgueirense Zuzuca reduz as letras e simplifica a melodia de seus sambas-enredo (Pega no ganzê, em 1971, e Tengo-tengo, em 72), facilmente assimiláveis pela classe média que invadia as quadras das escolas de samba, transformando-os em êxitos comerciais.

O samba voltava assim à evidência, de forma quase espontânea, depois de ter sido relegado a segundo plano, na época da Bossa Nova, e de uma efêmera redescoberta, em meados da década de 60, quando intelectuais e compositores universitários que frequentavam a gafieira Estudantina e o restaurante Zicartola, no Centro do Rio de Janeiro, tomam conhecimento da música de Nelson Cavaquinho, Cartola e Zé Keti e promovem os shows Opinião e Rosa de Ouro.

Certamente os bem-intencionados Jorge Coutinho e Leonides Bayer, promotores das noitadas das segundas-feiras no Opinião, não contavam que seu trabalho, “quase uma catequese”, fosse contribuir para um fenômeno de massa, e até para a exploração do sambista, iludido com a possibilidade de acrescentar uns cruzeirinhos a seu magro orçamento.

“Às sextas-feiras e aos sábados, começo mais ou menos às 10 horas da noite numa churrascaria de Nova Iguaçu. Venho percorrendo clubes e churrascarias até o Bola Preta, onde dou o meu recado às três horas da madrugada. É assim que estou pagando meu aluguel e salvando o leite das crianças” — contou a Sérgio Cabral, em 1975, um compositor de escola de samba, funcionário público, com salário mensal de Cr$ 700, mais ou menos o que faturava em suas maratonas de fim de semana.

A ordem é sambar, decretou-se no país inteiro. Para Adelzon Alves, o que houve foi um esvaziamento dos clubes sociais, porque os jovens “não suportavam mais aquelas sociedades fechadas em si”, partindo então para as quadras das escolas de samba, onde, com pouco dinheiro, “tomam leite-de-onça e ainda saem com uma mulata debaixo do braço”. Preocupados com a evasão, os clubes teriam resolvido trazer o samba para suas sedes, promovendo rodas de samba. (Visão, dezembro de 1974)

Na verdade, o fenômeno não era tão simples e a divulgação do samba, apoiada pelas gravadoras, precisava do complemento de espetáculos ao vivo, onde todos pudessem dançar e esquecer o resto. E enquanto Sérgio Cabral vê o movimento como positivo, por abrir um mercado de trabalho para os músicos, Zé Catimba, compositor da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, coloca as coisas sob o ponto de vista de sua classe: “O compositor é explorado. Na escola ele não ganha, mas faz com amor. Na roda o objetivo não é dar colher de chá ao compositor.” E diante da denúncia de que os lucros da Noite do samba quente permitiram ao Cordão da Bola Preta, no Rio, fazer obras em sua sede, Zé Catimba diz que este lucro só é possível porque os compositores “não têm consciência profissional”, aceitando trabalhar por preços aviltantes.

É a tomada de consciência dos músicos quanto à desproporção da divisão dos lucros advindos de seu trabalho que vai levar 21 sambistas a criar, em 1977, O Grupo de Ouro, entidade de classe que tinha como principal finalidade acabar com os intermediários e empresar suas próprias rodas de samba. Mas a roda do consumo gira mais rápido do que a capacidade de organização dos músicos e a imposição da onda dos bailes de soul-music e das discotecas, funcionando à base de fitas, tira do circuito a grande maioria das rodas de samba.

Esta nova incursão de ritmos importados, entretanto, não agrada às autoridades e dura pouco. Mais uma vez, marcando o final da década, o samba volta a ser utilizado como modismo, através da rápida transformação das discotecas em gafieiras, divulgadas pelas novelas em todo o Brasil. Após enfatizar que “não desci do morro ontem”, a veterana sambista e ex-cantora de gafieira Elza Soares se confessa apreensiva: “Mas ninguém está me enganando. Quem sabe se não é uma mariola que estão dando e, depois, vem o gostinho do veneno? Acho até vergonha se falar em movimento em prol da música brasileira. Ela tem que existir sem movimento. Esse tal movimento não está me agradando. É feito pelas empresas, para ganharem dinheiro.” (Jornal do Brasil, 9/9/1979)

Os espetáculos ao vivo, no entanto, são apenas uma parte da odisseia do sambista, que, ingênuo e desorganizado como categoria profissional, não consegue o justo preço por seu trabalho e talento criativo. Quando os produtores das gravadoras começam a subir o morro, em torno de 1974, em busca de matéria-prima de boa qualidade e baixo custo, os compositores, até então marginais, não conheciam as regras do jogo e, na maioria das vezes, levaram a pior.

“Todo mundo quer entrar no mundo do disco, mas de uma maneira errada”, disse Martinho da Vila, uma das raras exceções. “Tive amigos que foram contratados para fazer uma gravação e pensaram que iam ser artistas profissionais. O cara larga o emprego e no dia seguinte está a ver navios, porque o interesse não é por ele, sambista, mas pelo assunto samba, por uma determinada música. (…) Fazem isso com o Monarco e com os mais novos também. O que tem de gente numa pior não está no mapa. Quando falei pro pessoal do samba que não deveriam se iludir, ficaram cabreiros, mas é que eu conheço o processo todo.” (O Globo, 5/11/1978)

Fizeram bem os que não largaram seus empreguinhos e biscates, pois até hoje, apesar do estouro do samba e da quantidade de dinheiro que ele proporcionou às gravadoras e empresários, o compositor não consegue viver de música. Nem mesmo aqueles que, como Cartola, fundador da Estação Primeira da Mangueira e autor de dezenas de sambas, conseguiram gravar seus discos. Apesar da boa vendagem de seus três LPs — o primeiro deles gravado aos quase 70 anos de idade, em 1974 —, Cartola não dispensou sua aposentadoria como contínuo do Ministério da Indústria e Comércio. Dona Ivone Lara, que já fez até temporadas em Paris, passou a vida toda como enfermeira do Hospital do Engenho de Dentro; Alberto Lonato, da Velha Guarda da Portela e autor de vários sambas-enredo, ainda é lustrador de móveis; Nelson Sargento é pintor de paredes; Alvarenga faz vassouras para viver; Noca da Portela é feirante; Bala do Salgueiro tem uma banca de engraxate; e assim por diante.

Frustrados em seus empregos, eles não ousam deixá-los, pois sabem que, mesmo conseguindo gravar um disco, os direitos autorais manipulados pelas sociedades arrecadadoras (apesar da parcial reformulação no sistema de arrecadação e distribuição) não lhes permitiria a sobrevivência. Enfim, para o fornecedor da matéria-prima do sucesso, o que restou foi apenas a alegria de ver sua música cantada pelo país inteiro e uma ilusória sensação de aceitação ou até mesmo de ascensão social, como se observa pela declaração de Martinho da Vila:

“Se o samba e as escolas perderam a autenticidade, o sambista como pessoa física ganhou. Antes ele tinha medo, não dizia para ninguém que saía na escola, nem para a polícia. Hoje carteirinha de ala já quebra um galho, ele não é mais marginal, passou a ganhar dinheiro e pode chegar na casa mais requintada e todo mundo senta para falar com ele.” (O Globo, 5/11/1978)

Essa subserviência à autoridade constituída e à classe dominante tem origem na própria história do samba, trazido da África pelos negros escravos na forma de um batuque sensual, a umbigada, ou semba, na língua angolana, e que se espalhou do Maranhão a São Paulo, recebendo nomes diversos, perdendo alguns de seus elementos e incorporando outros pela influência local.

Mas o samba, como é conhecido hoje no Rio de Janeiro, e daqui divulgado aos outros estados e até ao exterior, surgiu nas festas promovidas pelas tias baianas, que ainda no século XIX foram trabalhar na lavoura de café do Estado do Rio de Janeiro e mais tarde se instalaram na capital, localizando-se no bairro da Saúde, na Cidade Nova e nos morros próximos ao Centro da cidade, com suas músicas e suas festas. Foi em casa de Tia Ciata, a mais famosa dessas baianas festeiras, que nasceu Pelo telefone, tido como o primeiro samba gravado. Na verdade um “tango-samba carnavalesco”, na definição de Donga, seu autor, mistura de ritmos bastante comum naquela época em que, da fusão de gêneros dançantes europeus e batuques africanos, ia nascendo a música urbana carioca.

Assim, nascido negro e escravo e cultivado durante décadas por moradores dos morros e bairros pobres, em sua maioria negros e mulatos, o samba na década de 70 subiu de status ao galgar as paradas de sucesso, mas os sambistas ficaram para trás, a não ser um número tão reduzido que dá para contar nos dedos de uma mão: o próprio Martinho, que não é mais da Vila, escola que nem mais frequenta, mas de uma confortável casa do Grajaú; a mineira Clara Nunes, ex-operária tecelã e hoje dona de um teatro na Gávea; Beth Carvalho, que sempre morou nas imediações de Ipanema, onde não conseguiu passar incólume aos apelos da bossa nova; João Nogueira, ex-malandro do Méier e hoje bem instalado na Barra da Tijuca; e Alcione, que saiu de São Luís do Maranhão para cantar em até quatro boates por noite no Rio de Janeiro e que, ao voltar à terra, foi recebida pelo prefeito com banda de música, carro de polícia e de bombeiro e ainda ganhou a chave da cidade.

Eles vendem bem o ano inteiro e, desde que Martinho incluiu o samba-enredo e o partido alto em suas gravações, tornaram-se os maiores divulgadores do samba tipo escola de samba, gênero até esta década circunscrito aos terreiros e aos quatro dias de carnaval. “São todos iguais e com aquele estribilho fácil de pegar e depois vender muito disco”, diz Martinho a respeito dos sambas-enredo compostos agora. “Se fui eu mesmo que mudei o samba-enredo e ele foi dar nisso, eu estou arrependido. As gravadoras deviam selecionar mais os discos de samba que estão lançando. Do jeito que a coisa vai, gravando qualquer samba só porque é moda e vai dar dinheiro, o negócio acaba cansando. Feito o iê-iê-iê.” (Veja, 12/1/1977)

Aqui cabe um esclarecimento: os sambas-enredo de Martinho, embora modificados, não perderam suas características fundamentais, o que não acontece com os sambas tipo Zuzuca, mais próximos do samba de embalo, que não só tiveram influência altamente negativa na produção das escolas como mataram, definitivamente, a música de carnaval de salão, a marchinha carnavalesca, originária não da música negra, mas de ritmos europeus como o xote, a polca e a valsa. Na década anterior chegaram a ser lançadas 1.500 marchinhas por ano, mas diversos fatores contribuíram para sua extinção: as gravadoras não se interessam em gravá-las porque têm um período de vida limitado, o que representa pouca rentabilidade; as rádios deixaram de divulgá-las (os disc-jóqueis exigiam parceria e cobravam por sua execução, a ponto de alguns compositores chegarem a fazer uma cooperativa para comprar horário nas emissoras); os sambas-enredo pós-Zuzuca, cantados nos ensaios, aos quais comparecem de cinco a 10 mil pessoas por semana, ocuparam o vazio; a censura passou a proibir as letras das marchinhas que, tradicionalmente, tratam de temas maliciosos ou fazem crítica política, econômica e social (Tem mutreta, vencedora do concurso promovido pela Secretaria de Turismo de Brasília, em 1979, teve sua divulgação proibida). Assim, nem mesmo tentativas como a Convocação Geral, que contava com a máquina da TV Globo, conseguiram ressuscitar a música de carnaval.

Quando até ritmos de discoteca passaram a ser tocados nos bailes carnavalescos, seus frequentadores se deslocaram definitivamente para as quadras das escolas, onde encontram divertimento bom e barato, e o carnaval de salão desapareceu. Nesses dez anos, o carnaval de rua também sofreu muitas modificações. Substituindo as manifestações espontâneas, como os blocos de sujo, os mascarados da zona rural e os foliões isolados, desenvolveu-se uma nova maneira de brincar, já regulamentada pela Riotur: as bandas de bairro, que, a partir da Banda de Ipanema, se espalharam pela cidade do Rio de Janeiro e pelo país inteiro. Sem música própria, elas cantam os sambas-enredo das escolas e velhas marchinhas. Os blocos subvencionados pelo Estado também passaram a ocupar um espaço maior entre as manifestações ao ar livre e, em 1979, havia 480 inscritos na Confederação dos Blocos Carnavalescos do Rio. Os dois maiores, o Cacique de Ramos e o Bafo da Onça, chegam a reunir um contingente de dez mil pessoas cada um. Sua música, embora contagiante, encontra problemas de divulgação pelos meios de comunicação. Mas este ano, o samba do Cacique, Vou festejar, por ter sido gravado por Beth Carvalho antes do carnaval, foi a música mais cantada no Brasil inteiro.

Intervindo mais diretamente no carnaval de rua, a Prefeitura do Rio passou a promover banhos de mar à fantasia, batalhas de confete e bailes populares nas praças, tentando assim impor o renascimento de brincadeiras espontâneas, que o próprio povo superou. “Carnaval para mim é esculhambação, é oportunidade de irreverências e de críticas, desde o tempo do entrudo”, disse Fernando Pamplona durante simpósio patrocinado pela Riotur, em 1979, para discutir as perspectivas do carnaval. “Entrando o poder, tudo tem que entrar na ordem, quando o importante do carnaval é ir contra a ordem. Os subsídios tornam as agremiações dependentes dos recursos oficiais, que reprimem a força do carnaval.” Para ele, o carnaval não admite a lei e a ordem, “senão a ordem do povo, que é maravilhosa”.

Em novembro de 1975, os presidentes da Riotur e da Associação das Escolas de Samba assinaram um contrato, no qual as escolas são obrigadas a participar de todas as atividades programadas no calendário oficial de turismo da cidade e, para desfilar por iniciativa particular fora do calendário, terão de obter autorização prévia da Riotur, que nos desfiles oficiais arrecadará 60% da renda resultante. Era o decreto de morte da festa, para o sambista e para o povo.

Nascida da necessidade dos negros sambistas de se organizar, numa época em que o samba era tido como caso de polícia, “coisa de vagabundo, do pessoal que não prestava”, a escola se transformou em “coisa de bacana” e, segundo Cartola, este foi o seu mal. “A gravadora paga uma porcaria — nem todo samba-enredo é bom — e manda pra frente. Chega o turismo e faz o que faz com as nossas escolas. Ninguém de dentro delas tem mais autoridade. A separação do samba e do povo só vai prejudicar os dois.” (Jornal do Brasil, 20/4/1974).

Certamente, qualquer tentativa de organização do povo nunca é bem vista pelo poder. Assim, desde a década de 30 o governo interfere diretamente dentro das escolas. A questão foi apenas agravada nesta década em que o samba das escolas foi mais diretamente atacado, perdendo suas características, não só pela necessidade de adaptá-lo a um novo público, como pela própria organização do desfile, cuja rígida cronometragem prejudicou até o modo de compor, tirando sua dramaticidade. “A partir do momento em que se mexer no samba-enredo e que o compositor da escola não for o único, absoluto e total dono do samba-enredo, a coisa vai desmoronar perigosamente”, afirmou o jornalista Antero Luiz durante o simpósio promovido pela Riotur.

As queixas dos velhos sambistas são unânimes. “O samba não nasceu para ser disciplinado”, disse Monarco. “A gente escrevia as letras aprofundando o enredo, buscando no fundo dele seu significado. Hoje, larga o refrão e está pronto. Dizem que isto é samba-enredo. Eu não me convenço”, afirmou Cartola, que, desgostoso, deixou de frequentar a Mangueira. “Não é por mal, sabe? É que tem um cara novo lá que meteu na cabeça de querer me ensinar. E eu tenho medo de desaprender.”

Procurados pelas gravadoras, quando estas perceberam que era mais fácil e barato utilizar o trabalho dos criadores originais do que produzir cópias, os sambistas das escolas usaram seu instrumento de trabalho para levantar seu protesto. E fizeram sambas como este, de Nelson Sargento: “Samba / inocente, pé no chão / A fidalguia do salão / te abraçou, te envolveu / Mudaram toda tua estrutura / Te impuseram outra cultura / E você não percebeu.” (Agoniza mas não morre). Ou este outro, de Neném e Pintado: “Depois que o visual virou quesito / Na concepção desses sambeiros / O samba perdeu a sua pujança / Ao curvar-se à circunstância / Imposta pelo dinheiro / E o samba que nasceu menino pobre / Agora se veste de nobre / No desfile principal / Onde o mercenarismo impõe sua gana / E o sambista que não tem grana / Não brinca mais o carnaval / Ai, que saudade que eu tenho / Das fantasias de cetim / O samba agora é luxo importado / Organdi, alta costura / Com luxuosos bordados / E o sambista / Que mal ganha pra viver / Até mesmo o desfile / Lhe tiraram o prazer de ver” (Visual).

O descontentamento chegou a tal ponto que, em 1977, um grupo de sambistas liderado por Candeia, com o apoio de Paulinho da Viola, Elton Medeiros e do ator Jorge Coutinho, entre outros, juntou-se para criar uma nova escola onde pudessem fazer seus sambas como antigamente. E assim nasceu a Quilombos, que mais do que escola de samba pretende ser um núcleo de resistência à descaracterização da arte popular brasileira de origem negra. A Quilombos não está ligada à Riotur e não participa do desfile oficial.

“Há uma destruição quase sistemática da cultura brasileira”, acredita Elto Medeiros, e continua: “Povo sem cultura é mais fácil de dominar. E país sem cultura própria é país sem alma, que existe apenas como fantasma de si mesmo” (Veja, 3/3/1976).

Já no final de 1979, surge outra entidade independente com a finalidade de defender nossa música: o Clube do Samba, presidido por João Nogueira. Além de promover bailes, pretende ocupar o lugar deixado vago pela Sociedade de Música Brasileira (Sombras) na luta pelos direitos do músico. Sua primeira iniciativa nesta área foi enviar aos ministros da Educação, das Comunicações e da Comunicação Social um documento denunciando a violação da legislação que estabelece a obrigatoriedade de execução de música brasileira nas emissoras de rádio, questão que até hoje ninguém conseguiu resolver.

Assim, se a década foi do samba, o mesmo não se pode dizer do sambista, que continua tão explorado e desprotegido quanto antes, com a agravante de ter visto sua música invadida, deturpada e reduzida a uma pasta unificada que hoje é servida ao Brasil inteiro na forma abrasileirada da discoteca: a nova gafieira, à qual o povo não tem mais acesso.

Angela Maria, que começou sua vida profissional como crooner do legendário Dancing Brasil, foi recentemente convidada para cantar na inauguração de uma gafieira, a Granfinagem (que não é outra senão o próprio Dancing Brasil adaptado à nova ordem). E ficou surpresa com o que encontrou: “No meu tempo de gafieira, elas eram frequentadas por gente simples, empregadinhas domésticas. Agora, eu olhava em cima das mesas e, em vez da cachaça, da cerveja, só via garrafas de Chivas e outros uísques importados. Na porta, só tinha Pumas e Miuras.”

25 anos depois:

Arraial do Cabo, inverno de 1979. Em cima do sofá de alvenaria da casinha de pescador, refúgio daqueles anos de tensão e resistência, pilhas e pilhas de livros e recortes de jornais e revistas, organizados por temas: indústria fonográfica, censura, direitos autorais, discografias, política cultural… e entrevistas, muitas entrevistas. Sobre a mesa, a valente Lettera 22, confidente desta e de outras causas.

Foram meses de pesquisa para recolher informações e amarrar um balanço dessa década em que a cultura era proibida de se expressar. E foi nas costas da música popular que o chicote bateu mais forte, até porque nenhuma arte tinha, como ela, tamanha capacidade de mobilização. A música lotava estádios, tinha torcidas, levantava esperanças. Os compositores traduziam os recados do povo, que vibrava com cada sutileza, cada rasteira passada na censura. Eram heróis populares. Mas eram humanos, e como tal também tinham seus limites.

No início dos anos 70, de toda uma geração de talentos que foi revelada nos festivais, restavam por aqui muito poucos pra contar a história. Foi aí que a classe média foi apresentada ao samba e ao choro, e é disso que trata essa pesquisa. Para mim, foi também um balanço de uma década de atividade na grande imprensa, acompanhando o dia-a-dia dessa batalha.

Santa Teresa, outono de 2004.

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