1996

Sexo dá o que pensar

por Robert Darnton

Resumo

Segundo Lévi-Strauss, há povos que não pensam com abstrações, mas com coisas. Tatuagens, móveis, elementos imaginários do mito e do folclore.

Como algumas coisas são mais prazerosas de se manipular, há temas bons de serem pensados. Eles que, se dispostos em padrões, trazem à tona relações inéditas e limites mais bem definidos. Assim é o sexo.

Isso porque, cristalizados padrões culturais, o conhecimento carnal não para de suscitar pensamento, sobretudo quando associado a narrativas. O que há então são piadas sujas, bravatas masculinas, fofocas femininas, canções licenciosas e romances eróticos. Rasga-se, assim, o véu com que a moral cobre o tema para se explorar seu funcionamento interno. O sexo está, então, para as pessoas em geral como a lógica está para os filósofos; afinal, ambos ajudam a desvelar. Nesse sentido, note-se a época de ouro da pornografia artística. Ela que se estendeu de 1650 a 1800, sobretudo na França. Prova-o o “Inferno” da Biblioteca Nacional de Paris, criado em meados do século XIX. Ou seja: 1.730 livros rigorosamente fora do alcance do público – até 1980, quando então lotaram estantes inteiras das mais variadas espécies de livrarias.

Logo tornou-se incontornável saber que papel desempenhou a pornografia na história do pensamento, a começar pelo termo usado.

Ao pé da letra, “pornografia” significa “escrever sobre prostitutas”. Não caberia melhor, então, usar o termo “erotismo”? Mas como se os romances em questão descrevem tudo, e com todas as letras? Mais: violam a moral e são calculados para excitar o leitor… Acontece que, no que concerne a tais definições, as práticas e os tabus estão sempre mudando. Nos séculos XVI e XVII, por exemplo. Neles, tais livros eram banidos pela religião. Já hoje o que, nesse sentido, divide o lícito do ilícito é exatamente o sexo.

Então, se, inicialmente, a batalha era contra a religião, ela passou a ser, no século XVIll, contra as Sombras e, depois da Revolução Francesa, contra a monarquia.

Enfim: Marquês de Sade, pai de Baudelaire e Bataille. E depois? O quê? A massificação.

Em resumo: a pornografia fez história.

 


Falta ao debate corrente sobre a pornografia um elemento que pode ser expresso numa proposição derivada de Lévi-Strauss: sexo dá o que pensar. Em O pensamento selvagem e outras obras, Lévi-Strauss argumenta que muitos povos não pensam à maneira dos filósofos, ou seja, manejando abstrações. Ao invés disso, pensam com coisas — as coisas concretas da vida cotidiana, como as tatuagens e a disposição dos móveis, ou as coisas imaginárias do mito e do folclore, como Brer Rabbit** e seu canteiro de roseira-brava. Assim como alguns materiais são próprios para serem manipulados, certas coisas são especialmente boas para serem pensadas (bonnes à penser): é possível dispô-las em padrões que trazem à tona relações inéditas e definem limites antes vagos.

O sexo é, creio eu, uma dessas coisas. Ao se cristalizar em padrões culturais, o conhecimento carnal fornece material inesgotável para o pensamento, especialmente quando aparece em narrativas: piadas sujas, bravatas masculinas, fofocas femininas, canções licenciosas e romances eróticos. Sob todas essas formas, o sexo é não apenas um tema, mas também um instrumento para rasgar o véu que cobre as coisas e explorar seu funcionamento interno. Ele serve assim às pessoas comuns como a lógica serve aos filósofos: ajuda a extrair sentido das coisas. E foi isso o que o sexo propiciou na época de ouro da pornografia, de 1650 a 1800, especialmente na França.

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Por sorte, essa proposição pode ser testada: durante os últimos dez anos os editores franceses vêm republicando estantes inteiras das obras mais ilegais e eróticas do Antigo Regime. Tirando proveito das atitudes mais liberais do público e da polícia em relação ao sexo, recorreram à fonte inesgotável do Enfer [Inferno] da Biblioteca Nacional.

Os bibliotecários criaram o “Inferno” em alguma ocasião entre 1836 e 1844 como meio de escapar a uma contradição. De um lado, tinham que preservar o acervo mais completo possível da palavra impressa, de outro, queriam evitar que os leitores se corrompessem pelo contato com maus livros. A saída foi reunir todas as obras eróticas mais ofensivas de todas as coleções da biblioteca e lacrá-las num único lugar, declarado inacessível para leitores normais.

Essa política fez parte do processo de expurgo que ocorreu no século XIX: como parte desse movimento de silenciamento, bibliotecários do mundo todo puseram certos tipos de livros fora do alcance dos leitores e inventaram códigos para classificá-los: a “Caixa Reservada” do Museu Britânico, o código “Delta” da Biblioteca do Congresso, o ***** da Biblioteca Pública de Nova York e, na Biblioteca Bodleiana, a letra grega ᶲ (“phi”), que, na pronúncia oxfordiana, soa como “Fie!” [Vergonha!].
Acreditava-se que a maior dessas coleções estava na Biblioteca Nacional, uma vez que Paris — a Paris maliciosa da Regência e do rococó — passava por capital da pornografia. Embaixo, na cavernosa salle des imprimés, os leitores de vez em quando deixavam vagar seus pensamentos rumo ao andar de cima, onde, curiosamente, se encontrava o “Inferno”. Ao invés de se arrastarem penosamente pelos sermões de Bordaloue e pelas histórias de Rollin, imaginavam-se subindo dois lances de escadas rumo a um reino baudelairiano de “luxe, calme et volupté” [luxo, calma e volúpia]. O “Inferno” tornou-se algo mais que um espaço de depósito de­finido por números de chamada — a série “D2”, concebida em 1702, e a extraordinária “Y2”, que remonta a 1750. O “Inferno” fez-se Céu, uma fantasia de fuga carregada de energia poética.

Um dos maiores poetas franceses, Guillaume Apollinaire, visitou-o e catalogou seu acervo em 1911: 930 obras, cada qual aparentemente mais deliciosa que a outra. Um catálogo mais rigoroso, compilado por Pascal Pia em 1978, lista 1730 títulos, ainda que muitos sejam reedições modernas, as obras originais tendo desaparecido das estantes em várias ocasiões desde o século XVII. Como era de se esperar, o “Inferno” tinha um grande suprimento de frutos proibidos, que entretanto permaneceu fora do alcance dos leitores comuns até 1980, quando o “Inferno” foi abolido e os editores começaram a republicar seu conteúdo.

Toda essa literatura já caiu em domínio público. Pode ser encontrada em qualquer livraria parisiense, e uma ampla amostra está na antologia em sete volumes da editora Fayard: 29 romances completos, ilustrados e com introduções acadêmicas. A série da Fayard não inclui várias das obras mais importantes, como Margot la ravaudeuse, Les lauriers ecclésiastiques e La chandelle d’Arras, verdadeiros best-sellers no comércio ilegal de livros sob o Antigo Regime. Mas algumas delas podem ser encontradas na excelente antologia publicada ano passado por Raymond Trousson, Romans libertins du XVIIIe siècle: uma dúzia de romances e histórias, espremidos num volume de 1300 páginas. Já se pode então fazer um tour pelo Inferno literário da França. O que ele revela sobre a história da pornografia sobre o lugar da pornografia na história do pensamento? Tanto o termo quanto a coisa são motivo de discussão. Para alguns, termo pornografia deveria ser restringido à sua raiz etimológica (que significa “escrever sobre prostitutas”), diferenciando-o do erotismo em geral. Para outros, pornografia envolve descrições da atividade sexual que violam a moral convencional e são calculadas para excitar o leitor ou espectador. Um pós-modernista poderia argumentar que a própria coisa não surgiu antes que o termo fosse cunhado — a saber, na primeira metade do século XIX (o primeiro uso de um termo aparentado parece ter ocorrido no panfleto de Restif de la Bretonne sobre a prostituição pública, “Le pornographe”, de 1769). Só então, através de medidas como a criação do “Inferno”, o discurso público sobre o sexo começou a distinguir um gênero de erotismo particularmente digno de repressão.

O problema de tais definições é que as práticas e os tabus sexuais estão sempre mudando. Na verdade, era justamente essa variabilidade que tornava o sexo algo tão bom para se pensar, já que por meio dele se podiam explorar ambiguidades e definir fronteiras. Ninguém no século XVI e no começo do século XVII pensava em banir livros por causa de uma licenciosidade que hoje seria considerada pornográfica. Era a religião — e não o sexo — que determinava os limites do lícito e do ilícito. Mas é impossível separar sexo de religião nas primeiras obras da pornografia moderna: os Ragionamenti (1536) de Aretino, onde as cenas mais lascivas são ambientadas num convento; L’école des filles (1655) e L’académie des dames (1680), que adaptam os temas de Aretino ao anticlericalismo francês; e Vénus dans le cloitre (c. 1682), onde o amor livre promove o livre-pensamento. Na maré alta da pornografia setecentista, obras de sucesso, como Thérèse philosophe (1748), empregavam o erotismo na luta pela causa iluminista. E, às vésperas da Revolução, livros de sexo, como a Correspondance d’Eulalie (1784), serviam sobretudo como veículos de crítica social.

Após 1789, a pornografia proporcionou todo um arsenal para golpear a aristocracia, o clero e a monarquia. Mas depois de se tornar política (por exemplo, em Dom Bougre aux États-Généraux, uma invectiva contra os deputados nos Estados-Gerais), ela se tornou trivial (Les quarante manières de foutre, um pseudomanual de sexo que se lê como um livro de receitas: “Tome uma coxa, adicione manteiga, cubra e leve ao fogo até ferver…”.). É bem verdade que o século termina com o marquês de Sade, que alguns já saudaram como profeta da vanguarda moderna. Mas as infindáveis permutações de corpos copulantes na obra de um autor mais típico, André-Robert Andréa de Nerciat, dão mostras de um gênero exaurido. Nos séculos XIX e XX, Baudelaire e Bataille encontraram novas maneiras de tornar o sexo algo em que valesse a pena pensar; e a nova era da alfabetização e produção em massa transformou a pornografia num fenômeno de consumo de massa.[1]

Em suma, a pornografia tem uma história. Ela surgiu num corpus literário de contornos variáveis, mas de certa coerência. As obras no “Inferno” remetem constantemente às mesmas fontes, sobretudo a Aretino e ao antigo culto fálico de Priapo; citam umas às outras, por vezes ao des­crever “bibliotecas galantes” usadas como acessórios sexuais; exploram os mesmos artifícios, em especial o voyeurismo (o leitor é obrigado a inclinar-se sobre alguém que observa por uma fechadura um casal copulando em frente a um espelho ou sob quadros nas paredes representando casais em cópula); usam as mesmas estratégias narrativas: autobiografias de cortesãs em primeira pessoa, diálogos entre veteranos sexuais e iniciantes ingênuos, pseudomanuais de sexo, e passeios por conventos e bordéis (sempre apresentados como duas versões da mesma coisa, hábito conservado na gíria abbaye, “abadia”, significando “bordel”). Em muitos casos, até mesmo as personagens têm o mesmo nome — Nana, Agnès e Suzon estavam entre os preferidos — e anunciam suas mercadorias por meio dos mesmos endereços falsos: “À Rome, de l’imprimerie du Saint Père”, “À Gratte-mon-con, chez Henri Branle-Motte” , “À Tribaldis, de l’imprimerie de Priape” , “À Cythère, au Temple de la Volupté” , “À Lèche-con, et se trouve dans les coulisses de tous les théâtres”

Mas, apesar dessas convenções, que reservavam ao leitor o papel de voyeur e orientavam suas expectativas para uma experiência erótica, a pornografia do começo da era moderna não parecia formar, aos olhos dos contemporâneos, um gênero literário distinto e bem definido. Ao invés disso, pertencia a uma categoria geral, conhecida como “filosófica”. Editores e livreiros setecentistas usavam a expressão “livros filosóficos” para designar sua mercadoria ilegal, fosse ela irreligiosa, sediciosa ou obscena. Não se importavam com distinções mais refinadas, já que a maioria dos livros proibidos eram ofensivos por várias vias. No jargão desse comércio, libre significava às vezes “lascivo”, mas evocava também o libertinismo do século XVII — isto é, o livre-pensamento. Por volta de 1750, o libertinismo dizia respeito tanto ao corpo quanto ao espírito, à pornografia e à filosofia. Os leitores sabiam reconhecer um livro de sexo quando viam um, mas esperavam que o sexo servisse como veículo para ataques à Igreja, à Coroa e a toda espécie de abuso social.

Tomemos Thérèse philosophe, uma das duas ou três obras pornográficas mais importantes do século XVIII. O romance começa com uma versão fictícia de um notório escândalo em que um padre jesuíta seduzira uma jovem que o procurara para aconselhamento espiritual. O jesuíta prega uma variedade radical de cartesianismo: ele expõe a dicotomia de Descartes entre o espírito e a matéria instruindo sua aluna, mlle. Eradice, a distanciar sua alma de seu corpo através de exercícios espirituais — como, por exemplo, levantar as saias e concentrar-se no Espírito Santo enquanto o jesuíta flagela suas nádegas. Ele lhe assegura que, caso se concentre o bastante, não sentirá dor alguma; sua alma abandonará seu corpo e ascenderá aos céus numa onda de êxtase espiritual.

Uma vez devidamente açoitada, Eradice está pronta para o exercício espiritual máximo: o intercurso sexual. O jesuíta explica que, graças ao uso de uma relíquia — um fragmento rígido da corda que são Francisco usava ao redor do hábito —, ela experimentará uma forma pura de penetração espiritual. Então, enquanto ela reza em posição quase prostrada, ele a possui por detrás. A cena é descrita por Thérèse, heroína e narradora do romance, tal como ela a presenciou de um esconderijo.

“Ah, padre”, exclamou Eradice. “Que prazer o de ser penetrada! Ah, sim, estou sentindo a alegria celestial; sinto que minha mente está completamente afastada da matéria. Mais, padre, mais! Extirpe todo o mal que há em mim! Estou vendo… os… an… jos. Meta mais… meta agora… Ah!… Ah! Meu… bom… São Francisco! Não me abandone! Estou sentindo a corda… a corda… a corda… não aguento mais… Estou morrendo!”

O episódio dá a Thérèse uma lição sobre os perigos do clero; é o primeiro passo de sua educação. Tendo aprendido como se livrar da autoridade da Igreja, ela segue o princípio do prazer através da física, da metafísica e da ética, até o final feliz na cama de um conde filosófico. Por estranho que possa parecer ao leitor moderno, sexo e filosofia caminham lado a lado por todo o romance. As personagens masturbam-se, copulam, e então discutem ontologia e moral enquanto restauram as forças para a próxima rodada de prazer. Essa estratégia narrativa fazia perfeitamente sentido em 1748 ao mostrar como o conhecimento carnal podia abrir o caminho para o Iluminismo — o Iluminismo radical de La Mettrie, Helvétius, Diderot e D’Holbach.

No final, Thérèse torna-se uma philosophe de méritos próprios. Ela aprende que tudo pode ser reduzido a matéria em movimento, que todo conhecimento deriva dos sentidos, e que todo comportamento deveria ser governado por um cálculo hedonístico: maximize-se o prazer e minimize-se a dor. Mas, além de philosophe, ela é mulher. A maior dor que pode imaginar é a da concepção, ainda mais porque sua mãe e sua antiga mentora quase haviam morrido durante os trabalhos de parto. Assim, por mais que goste de sexo e queira fazer amor com o conde que lhe faz a corte, decide que o intercurso sexual não vale o risco envolvido. Em vista da demografia e da obstetrícia setecentistas, seus cálculos são perfeitamente razoáveis, tanto quanto sua solução: primeiro a masturbação, e finalmente a prevenção da gravidez por meio do coito interrompido.

Como Thérèse é uma camponesa pobre e seu amante, um conde, ela não pode nutrir esperanças de um casamento. Mesmo assim, faz um bom negócio: uma anuidade de 2 mil libras mais a gerência de seu castelo. Chega mesmo a ditar as regras no jogo amoroso — e num dos primeiros episó­dios afugenta um estuprador agarrando-o pelo pescoço. Ao invés de aceitar seu destino, Thérèse recusa o papel de mãe e persegue a felicidade pessoal em seus próprios termos — enquanto mulher materialista, ateia e liberada.

Ela era também uma invenção da imaginação masculina, pois Thérèse philosophe, como o grosso da pornografia, foi escrita por um homem — provavelmente Jean-Baptiste de Boyer, marquês de Argens, talvez por um certo D’Arles de Montigny, ou quiçá mesmo por Diderot. A própria Thérèse pertence a uma longa linhagem de narradoras femininas que se estende até a Nanna de Aretino. Todas elas expressam fantasias masculinas, e não a voz remota de um primeiro feminismo moderno. Enquanto prostitutas, concubinas e freiras, elas perpetuam o mito da mulher voluptuosa que aceita a submissão a fim de dar rédea solta à sua lascívia. Nada poderia estar mais distante dos horrores da prostituição do que a ficção da prostituta feliz.

Mas essas mulheres fictícias representavam um desafio à subordinação das mulheres no Antigo Regime. Elas desafiavam sobretudo a Igreja, que fez mais do que qualquer outra instituição para manter as mulheres em seu lugar. A pornografia está tão embebida em anticlericalismo que por vezes parece mais interessada em religião do que em obscenidades; na verdade, ela é mais irreligiosa do que as impiedades espalhadas por al­gumas das obras mais famosas do Iluminismo, como O espírito das leis, de Montesquieu, e a Enciclopédia, de Diderot. Os padres estão sempre conspurcando o confessionário para seduzir suas paroquianas; os monges estão sempre transformando conventos em haréns; curas de província sempre abusam dos camponeses, deflorando, praticando adultério e mandando suas vítimas para as cidades, onde se tornam presa de prelados; bispos e abades têm seus alcoviteiros e casas de prazer exclusivos. Mesmo assim, não conseguem se proteger das doenças venéreas, que consomem o alto clero de par com a alta aristocracia.

Esses temas podem ser expressos abstratamente como questões de corrupção e exploração, mas a pornografia os torna mais concretos ao encarná-los em histórias de sexo. A heroína de Vénus en rut, ou vie d’une célèbre libertine (1771?) cita a famosa observação de mme. de Pompadour sobre o bispo de Condom (nem mais nem menos), que havia contraído sífilis: “Por que ele não ficou em sua diocese?”, ela revela então o que fez com um bispo seu conhecido quando conseguiu trazê-lo para a cama: para fazê-lo crer que era um grande amante, exclamou enquanto ele se contorcia sobre ela: “Ah! Monsenhor, quanta volúpia!”. “Cale-se!”, respondeu ele, “ou não conseguirei gozar.” Depois de chegar com muito custo ao orgasmo, ele explica que qualquer referência a seu título — “monsenhor” — era o bastante para estragar sua ereção pelo resto da noite: “Um único ‘monsenhor’ já é o suficiente”.

Na Correspondance d’Eulalie, um bispo compra algumas noites com a concubina de um marquês. Avisado por um espião, o marquês os surpreende. Mas, ao invés de se enfurecer, ele apresenta ao bispo uma conta de 15 mil libras, a soma que gastara com a mulher nos três meses anteriores (o equivalente a trezentos anos de salário de um artesão especializado), ameaçando divulgar sua conduta caso se recuse a pagar. O bispo cede ao suborno, mas assim mesmo vira motivo de riso na roda parisiense de boatos e é obrigado a retirar-se para sua sé. Em Margot la ravaudeuse, a heroína homônima arranca ainda mais de um prelado — 24 mil libras em duas semanas — e o manda de volta a seus paroquianos com um belo caso de doença venérea, recompensa justa — diz ela —, por haver extorquido o dinheiro à gente comum.

Seria fácil achar anedotas semelhantes no anticlericalismo anterior, especialmente na vertente licenciosa de Boccaccio, Rabelais e Aretino. Mas esses autores permaneceram fundamentalmente cristãos — Aretino quase foi cardeal e escrevia tanto sobre a vida de santos quanto pornografia —, enquanto a pornografia do século XVIII usava o sexo para exprimir as ideias-chave do Iluminismo: natureza, felicidade, liberdade, igualdade. Tal como Margot, a narradora cortesã de Vénus en rut expõe o artificialismo das distinções sociais ascendendo do fundo ao ápice da sociedade sem sair da cama. Ela aprende que todos os homens são iguais tão logo estejam deitados — ou melhor, eles diferem conforme os dotes que tenham recebido da natureza: seu temperamento (onde as classes mais baixas superam as mais altas, já que três orgasmos de um criado valem mais que oito de um conde) e seu físico (mas os pênis não devem ser avaliados segundo seu tamanho — “entre dezessete e vinte centímetros deveriam bastar a qualquer mulher de bom gosto”). A conclusão é clara: “No estado de natureza, todos os homens são iguais; este é certamente o estado da cortesã”. Enquanto proposição, a ideia era bastante comum; mas ganhou força incomum por estar encarnada em histórias com linhas narrativas fortes: foi assim que o sexo ajudou os leitores a pensarem a igualdade numa sociedade profundamente desigual.

A mesma linha de raciocínio aplicava-se também às relações entre homens e mulheres. Despindo todos de suas distinções sociais, a pornografia expunha semelhanças e diferenças na sexualidade de cada um dos sexos – ao menos tal como as entendiam autores masculinos escrevendo como narradoras femininas. Em seu nível mais básico — como em Thérèse philosophe —, as diferenças reduzem-se a pouco ou nada, pois todos os humanos são máquinas compostas das mesmas partículas de matéria. O prazer simplesmente põe a matéria em movimento, primeiro através dos estímulos aos órgãos sensoriais, depois como sensação que se transmite pelo sistema nervoso, e finalmente como uma ideia a ser armazenada e recombinada no cérebro.

As diferenças entre homens e mulheres também eram mínimas na pornografia do século XVII, que recorria a Galeno e Descartes para propor uma visão fisiológica do sexo. Em L’école des filles, a vagina é um pênis invertido e completo, dotado de “testículos” e “canais espermáticos”, e as mu­lheres ejaculam o mesmo “licor branco e denso” que os homens. A fecundação ocorre quando ambas as partes chegam ao orgasmo e seus líquidos se encontram — logo, o prazer feminino é crucial para a reprodução. Mas ela pode também evitar a concepção controlando “o combate de sêmen contra sêmen” com movimentos de suas coxas e nádegas; é ainda ela que deve dirigir a ação e ficar por cima do homem sempre que quiser, tanto para maximizar o prazer quanto para estimular a “humildade” masculina. Montando seu amante, a heroína de Histoire de Marguerite (1784) “ejaculou tão profusamente que me banhou em seu sêmen delicioso do umbigo ao meio das coxas”.

Por trás da mecânica e da hidráulica da sexologia estava uma noção utópica de homens e mulheres copulando e ejaculando infindavelmente, em perfeita sincronia. L’école des filles até mesmo revivia o antigo mito que via homens e mulheres como metades divididas de um todo andrógino que busca sempre reunificar-se. As doutrinas sexuais da Igreja católica eram recusadas como absurdas, inventadas pelos homens a fim de dominar as mulheres, a despeito das verdades manifestas na ordem da natureza. Século e meio mais tarde, Eléonore, ou Pheureuse personne (1798) desenvolvia o mesmo tema numa fábula sobre o hermafrodita que trocava de sexo uma vez ao ano, transitando entre monastérios e conventos en­quanto experimentava todas as combinações sexuais concebíveis. Em suas fantasias mais desvairadas como em suas ficções mais científicas, a porno­grafia tornava possível pensar a igualdade sexual em desafio aos valores mais fundamentais do Antigo Regime.

Em alguns casos, esses experimentos hipotéticos aproximavam-se dos temas do feminismo moderno. Em 1680, L´académie des femmes protestava contra o código sexual distorcido que submetia as mulheres à “inumanidade dos homens”. Muito embora as mulheres tivessem maior capacidade para o prazer sexual, era aos homens que se dava maior liberdade de desfrutá-lo. Portanto, seguia o argumento, as mulheres deveriam vingar-se fingindo respeitar as convenções sociais absurdas em público, ao mes­mo tempo que, em segredo, davam rédea solta a seus instintos naturais — a saber, traindo seus maridos. Tullie, a matrona experiente em coisas mundanas, adverte Octavie, noiva ingênua, de que, no casamento, “as leis civis são contrárias às da natureza”. Mas uma esposa pode restabelecer um pouco da justiça fazendo a seu amante o que seu marido faz a ela: “O primeiro [o marido] me domina; eu domino o outro. Meu marido tem o gozo de meu corpo, e eu o do corpo de meu amante”.

Em 1740, a Histoire de dom B… condenava “o cativeiro em que o sexo [feminino] é mantido”. A mãe do herói dera um sermão admirável sobre a corte e o casamento, denunciando a moral convencional como um modo de subjugar as mulheres aos homens. E, em 1784, a Correspondance d’Eulalie brincava com uma solução fantasiosa para o problema da dominação masculina: as mulheres poderiam retirar-se para comunidades lésbicas auto-suficientes no campo. O livro repetia o tema batido da capa­cidade superior da mulher para orgasmos múltiplos, e celebrava em verso sua superioridade geral:

Par des raisons, prouvons aux hommes
Combien au-dessus d’eux nous sommes
Et quel est leur triste destin.
Nargue du genre masculin.
Démontrons quel est leur caprice,
Leur trahison, leur injustice.
Cantons et répétons sans fin:
Honneur au sexe féminin.
[2]

2

Depois de ler as obras de 150 anos de pornografia, achei difícil resistir à conclusão de que algumas feministas não entenderam bem as coisas. Ao invés de condenar sumariamente toda pornografia, poderiam ter usado algo dela em causa própria. Catharine MacKinnon pode estar correta ao associar os adeptos modernos da pornografia à ideia de que “sexo e pensamento são antitéticos”. Mas essa afirmação não resiste aos argumentos desenvolvidos três séculos atrás nos “livros filosóficos”, nos quais o sexo é “uma fonte inesgotável de pensamento”.[3] E a acusação de Andrea Dworkin à pornografia assenta numa visão incrivelmente a-histórica da cultura:

Em meados do século XX, não há nada no mundo íntimo de homens e mulheres que o torne diferente de qualquer outro século. Há apenas os velhos valores — as mulheres estão aí para serem usadas, cabendo aos homens decidir como fazê-lo. Isso é antigo e é moderno; é feudal, capitalista e socialista; vale para o homem das cavernas e para o astronauta, para o agricultor e para o industrial, para o urbano e o rural. Para os homens, o direito de abusar das mulheres é elementar, é o princípio primeiro […] Na pornografia, os homens expressam os dogmas de sua fé imutável, aquilo em que devem acreditar a respeito das mulheres e deles próprios para que se mantenham tais como são […][4]

Ao invés de recusar a reflexão histórica e restringir seus argumentos a noções culturalmente determinadas sobre as diferenças sexuais, as feministas poderiam recorrer à história da pornografia para mostrar como a dominação masculina foi exercida e desafiada ao longo do tempo. Ao mesmo tempo que afirmava o direito das mulheres de se defenderem dos homens, a pornografia do começo da era moderna frequentemente representava o macho como um predador que agarrava qualquer fêmea a seu alcance e não tinha dores de consciência por conta de um estupro. D. B… se masturba enquanto ouve confissões, e então violenta sua paroquiana mais suculenta. Sua violência e a resistência dela são descritas em detalhes torturantes. Mas, assim que ele a penetra, ela reage com paixão e chega mesmo a superá-lo em lascívia; enquanto tentava afastá-lo, ela de fato o incitava — ou seja, queria dizer sim ao dizer não, outro tema recorrente nessa literatura. Quando o primeiro amante da heroína de La cauchoise a pega com um outro homem, ele se vinga fazendo com que uma gangue a violente enquanto ele mesmo os anima. Nas histórias de prostitutas, as mulheres frequentemente acabam estupradas; e uma delas, a mlle. Rosalie da Correspondance d’Eulalie, é encontrada pendendo de uma corda no bois de Boulogne, com os seios cortados.

Alguns desses episódios aparentemente retiravam inspiração da ficção sensacionalista dos panfletos de um vintém (canards, feuilles volantes e baladas impressas). Não devem ser compreendidos literalmente, tal como não se deve ler Fanny Hill (La fille de joie, na tradução francesa pouco adequada) como um relato clínico sobre a sexualidade feminina.

Mas, tomada como literatura, a pornografia fazia supor que as mulheres estavam em constante perigo de serem violentadas, especialmente quando expostas a homens de poder e status superiores. Isso favorecia metáforas violentas: a virgindade de uma noiva é uma fortaleza a ser assaltada, a cama é um campo de batalha, e o defloramento, uma matança. L’académie des femmes descreve o hímen como “uma vítima […] que deve ser sacrificada ou massacrada e feita em pedaços com profusão de sangue”. Um noivo instrui sua noiva a render “aquela parte do teu corpo que já não é tua, mas minha”; e, ao penetrar sua vagina, ele entra “na posse de algo que me pertence”.

A dominação masculina dificilmente poderia ser afirmada em termos mais diretos. É verdade que por vezes os livros de sexo parecem tanto perdoar quanto condenar o tratamento brutal às mulheres. Mas seria tolice tentar encontrar um argumento moderno pela liberação das mulheres em textos antigos destinados primordialmente a excitar os homens. Mas ainda assim os textos propõem ideias que refutam noções simplistas de falocracia. Depois de perderem a virgindade, as heroínas dessa literatura pornográfica muitas vezes conquistam uma espécie de independência — não a autonomia legal, profissional ou social, o que era virtualmente impossível sob o Antigo Regime, mas sim uma auto-estima intelectual: tão logo descobrem que o sexo é algo em que vale a pena pensar, elas aprendem a pensar por si sós. Em L’école des filles, Fanchon continua tola e servil até fazer amor pela primeira vez. Ela então atenta para um novo poder em suas mãos: “Antes eu só servia para costurar e calar a boca, mas agora sei fazer todo tipo de coisas. Quando falo com minha mãe já consigo achar razões para apoiar o que digo; aguento firme, como se fosse outra pessoa, ao invés de ter medo de abrir a boca, como acontecia antes. Estou começando a ser esperta e a bisbilhotar em coisas que antes eram quase desconhecidas para mim”.

L’académie des femmes iguala a abertura da vulva à abertura da mente, e descreve a perda da virgindade como o primeiro passo para a aquisição de independência intelectual. Pelos cem anos seguintes, a pornografia continuou a tecer variações sobre esse tema central.

Em Vénus dans le cloître, irmã Dosithée, uma fanática religiosa, flagela-se tão violentamente que chega a ejacular, rompendo seu hímen com uma descarga do fundo de seu ventre; então, subitamente, sua mente se esclarece, ela percebe a superstição no cerne do catolicismo e se converte ao deísmo. Em Histoire de dom B…, irmã Monique liberta-se da ignorância e abre sua mente à luz da razão por meio da masturbação. E o próprio d. B… percebe pela primeira vez a ordem da natureza ao observar um casal copulando. E, em Thérèse philosophe, voyeurismo e masturbação abrem caminho por entre o falatório religioso e possibilitam a Thérèse tornar-se filósofa.

O tema aparece em toda a pornografia da época. A literatura do “Inferno” tem mesmo um termo específico para designá-lo: déniaiser, perder a ingenuidade através do conhecimento carnal. No outro extremo do processo, as heroínas das histórias de sucesso sexual tornam-se savantes — não aquela espécie de femmes savantes satirizada por Molière, e não necessariamente eruditas, mas crítica e intelectualmente independentes. “Tornei-me savante” — declara a narradora de La cauchoise depois de um relato de sua iniciação nos mistérios do sexo; a partir daí ela rejeita a religião e se recusa a aceitar “qualquer autoridade que não a da natureza”.

A narradora de Vénus en rut avança ainda mais no conhecimento da natureza quando seduz um médico e o força a dar-lhe aulas de fisiologia, incluindo modelos em cera do funcionamento interno dos órgãos sexuais. As heroínas de Margot la ravaudeuse e La correspondance d’Eulalie es­tabelecem seus próprios salões e imperam sobre o mundo literário. Nem todas abraçam a causa do Iluminismo, mas todas perseguem um interesse pessoal esclarecido e ascendem ao topo do Antigo Regime recusando-se a aceitar seus preconceitos e explorando sua corrupção.

O sexo acaba por se mostrar útil para pensar a exploração masculina das mulheres e a ela resistir, e também para fazer oposição à exploração em geral. A pornografia procede assim a uma acusação generalizada ao Antigo Regime, seus cortesãos, senhores rurais, financistas, coletores de impostos e juízes — além de seus padres. Todos os que vivem do trabalho do povo levam alguma pancada em alguma passagem da narrativa. Não que os livros de sexo clamassem por uma revolução; alguns deles — como Lucette ou les progrès du libertinage — até mesmo satirizavam livres-pensa­dores e filósofos. Mas, ao desenvolverem temas padrões como a ascensão de uma rameira ou a corrupção da juventude provincial, eles expunham a trama de poder e influência que constituía le monde, a todo-poderosa elite francesa. La correspondance d’Eulalie, por exemplo, pode ser lida como um mapa do monde, bem como chronique scandaleuse ou jornal ilegal; o livro oferece um comentário no calor da hora sobre peças e óperas, exposições de quadros, intrigas ministeriais, problemas externos e toda espécie de acontecimentos coevos, lado a lado com a vida sexual dos ricos e poderosos. O sexo serve meramente como veículo de crítica social em várias direções, e não apenas ao longo da grande barreira entre os sexos.

Concentrando-se exclusivamente na vitimização das mulheres, as críticas feministas da pornografia deixaram de perceber o papel que ela desempenhou ao expor outros tipos de abusos sociais. Mas a história também confirma alguns de seus argumentos centrais, sobretudo o de que “a pornografia é acessório de masturbação”.[5] Obras como Thérèse philosophe não apenas tomavam a masturbação como um tema central, mas ainda estimulavam os leitores a se masturbarem junto com as personagens das histórias. Como o conde de Mirabeau o disse da forma mais crua em sua introdução a Ma conversion ou le libertin de qualité (1783): “Que a leitura [deste livro] faça todo o universo bater uma boa punheta”.

Tais observações fazem supor um público masculino, ainda que não excluam necessariamente as mulheres. Ao se declararem voltados para a educação das moças, L’école des filles e Lucette ou les progrès du libertinage tentavam provocar comichões na imaginação dos homens. Mas La cauchoise incluía as criadas em sua descrição mais direta do público leitor; e a narradora de Eléonore ou l’heureuse personne referia-se de passagem às “minhas leitoras”, como se esperasse ter algumas. Documentos iconográficos, como o famoso Le Midi, de Emmanuel de Ghendt, mostram mulheres usando livros como estímulo à masturbação, e os próprios textos enfatizavam a masturbação feminina, frequentemente em ligação com a leitura. As freiras de Vénus dans le cloître excitam-se lendo L’académie des dames, enquanto as prostitutas da Correspondance d’Eulalie o fazem lendo Aretino, as filósofas de Thérèse philosophe lêem Histoire de dom B…, e as lésbicas de Progrès du libertinage preferem Thérèse philosophe. “Bibliotecas galantes” são amiúde descritas nos romances. As referências mútuas entre os textos são tão densas e tão embebidas de auto-erotismo que este pode ser sentido a cada página, ainda que não se possa dizer que faça referência exclusiva aos homens.

3

Não se trata então de saber se a pornografia visava excitar o desejo sexual em geral ou apenas o desejo masculino, mas sim de saber se podemos reduzi-la a sua função de material de masturbação. Para tornarem seu argumento mais convincente, as feministas poderiam procurar aliados inesperados no campo da teoria literária, sobretudo no trabalho de Jean Marie Goulemot, que representa o que há de melhor nos estudos acadêmicos atuais sobre a pornografia.

Goulemot argumenta que a pornografia setecentista acercou-se mais do que qualquer outro gênero da meta de toda a literatura pré-Mallarmé — a de criar um “efeito de realidade”, e no caso tão forte a ponto de pa­recer eliminar a distinção entre literatura e vida.[6] Nos romances pornográficos, ao contrário de outras formas de narrativa, as palavras impressas sobre o papel produziam uma reação imediata e involuntária no corpo do leitor. A ficção agia fisicamente, como se pudesse insinuar-se na carne e no sangue abolindo o tempo, a linguagem e tudo o mais que separava a leitura da realidade. O argumento de Goulemot encaixa-se perfeitamente na alegação de Catharine MacKinnon, para quem “a pornografia é mais sexualmente eficaz do que a realidade que ela apresenta, mais sexualmen­te real do que a realidade” .[7]

Mas a tese tem seus inconvenientes. Ela combina teorias do gênero e da recepção para propor a noção de um tipo ideal, algo como uma pornografia “pura” que operaria exclusivamente sobre a libido do leitor. Qualquer disrupção (brouillage) — como desenvolvimento maior do enredo, complexidade psicológica, filosofia, humor, sentimento ou comentário social — acaba por mitigar o efeito e afasta o livro da “pureza” pornográfica. Infelizmente para a teoria, a pornografia da época consistia principalmente de brouillage, ou seja, daqueles mesmos ingredientes que deveriam criar impurezas. Seus grandes sucessos, Histoire de dom B… e Thérèse philosophe, ganharam destaque ao conduzir seus leitores por complexidades narrativas e filosóficas. E Aretino, o pai-fundador, transitava entre o sexo e a crítica social em seus Ragionamenti.

É verdade que Aretino era famoso pelas descrições explícitas de técnicas de cópula em seus Sonetti lussuriosi. Mas é improvável que os sonetos tenham sido tão amplamente lidos na França, e é incorreto afirmar, como faz Goulemot, que Aretino “foi incansavelmente traduzido e retraduzido” para o francês durante o Antigo Regime. Afora alguns de seus escritos religiosos e um único fragmento dos Ragionamenti, os franceses não publicaram nenhuma tradução de sua obra entre 1600 e 1800. Ao invés disso, publicaram e republicaram L’Arétin moderne, de Henri-Joseph du Laurens (primeira edição em 1763, com pelo menos treze outras antes de 1789), uma coleção de escândalos feita de três partes de fofoca para uma de sexo. O “Aretino moderno” da França setecentista de fato tinha muito em comum com seu ancestral italiano do século XVI, mas era so­bretudo um líbelliste — isto é, um especialista em denegrir figuras emi­nentes da Igreja e do Estado. Tal como acontecia com a irreligião, é difícil distinguir difamação de pornografia nas obras “filosóficas” do Antigo Regime. Se a pornografia é um gênero, é um gênero tão heterogêneo que qualquer tentativa de definir o gênero “puro” acaba necessariamente falhando. E eram suas impurezas que forneciam os elementos que torna­vam o sexo algo tão bom para se pensar.

No final das contas, a teoria literária é incapaz de captar as características que definem a pornografia do início da era moderna. Jean Marie Goulemot chega a quase reconhecer esse fracasso na conclusão de seu livro, quando brinca com a fantasia de uma “época áurea da leitura”. Ele a localiza na França do século XVIII, quando os leitores podiam mergulhar nos textos como adolescentes, livres das inibições produzidas pela consciência crítica da literatura. Com seu apaixonado primitivismo, talvez eles tenham usado a pornografia como um modo de ceder a seus impulsos mais selvagens. Conta-se que alguns bibliotecários já encontraram traços de esperma, datados possivelmente do século XVIII, nas folhas de livros de sexo daquela época. Um pesquisador moderno poderia seguir os passos desses leitores há muito olvidados e, despindo-se de sofisticação excessiva, reagir da mesma maneira que eles? A prova do êxito seria, para falar abertamente (mas Goulemot sabe contornar tamanha rudeza), um orgasmo. Nesse caso, os livros do “Inferno” poderiam funcionar como máquinas do tempo, projetando seus leitores na direção de sensações que se extinguiram dois séculos atrás; e a pornografia poderia oferecer aos historiado­res a chance que até agora não tiveram: um acesso direto às paixões do passado.

4

Essa fantasia não deveria ser levada muito a sério, mas ilustra bem um forte obstáculo à compreensão da história da pornografia: a ilusão de imunidade ao anacronismo. Por erótico que seja, é muito difícil que um texto afete os leitores de hoje exatamente como fazia com os de séculos anteriores; pois a leitura hoje ocorre num mundo mental que, em seus pressupostos, valores e códigos sociais, difere fundamentalmente do mundo do Antigo Regime. Ao invés de vasculhar a literatura pornográfica antiga à cata de paralelos das variedades modernas de dominação masculina, poderíamos tomar o caminho inverso e lê-la em busca do que ela pode dizer a respeito de mentalidades que não existem mais. Basta adentrar um romance obsceno francês dos séculos XVII ou XVIII e já se está numa paisagem pouco familiar. Leiam-se várias estantes deles e o leitor estará embrenhado numa viagem etnográfica através de um grande museu de costumes estranhos. Também por essa via o sexo dá o que pensar — não somente para os primitivos do Antigo Regime, mas também para quem quiser compreendê-los.

Considere-se a questão da beleza. Tal como os nativos em muitos países atrasados, as personagens das obras pornográficas adoravam a gordura, tanto em geral como em determinados lugares — nos braços, por exemplo, ou na altura dos rins. A gordura nas costas produzia dobrinhas na chute de reins, um ponto sensual logo acima das nádegas imortalizado por Boucher em pinturas com sua famosa modelo, mlle. O’Murphy. Era justamente a “admirável chute de reins” de Eradice que a tornava tão irresistível para seu confessor jesuíta em Thérèse philosophe, enquanto os braços de Lucette faziam sua fortuna em Les progrès du libertinage: “Seus braços rechonchudos faziam Cupido sorrir; não há quem não deseje colar-lhes a boca e ser esmagado por sua suave opressão”. As mulheres usavam mais os braços do que as pernas como meio de sedução. “Monsieur certamente gosta de ver o movimento de um braço nu”, diz mme. C… para excitar seu amante em Thérèse philosophe. Mas as pernas também tinham sua importância, em especial para os homens, já que as calças de então deixavam expostas as panturrilhas e as mulheres não gostavam de panturrilhas magricelas. Daí o desprezo populista que Margot sente pelas pernas de um de seus clientes em Margot la ravaudeuse: “Ele tinha as pernas de um homem de classe quer dizer, magras e descarnadas”. Também os homens sentiam repulsa pela “horrível magreza”. Achavam seios e nádegas fascinantes, mas tão-somente quando abundantemente recheados: quanto mais carne, melhor, muito embora preferissem o aspecto roliço (embonpoint) típico de Boucher à obesidade no estilo de Rubens. A heroína de Vénus en rut expressou sucintamente o ideal quando se descreveu como “uma bolinha de gordura”.

É claro que há que reconhecer o papel das convenções literárias na descrição de belas mulheres. Não é portanto de surpreender que a narradora de Vénus en rut apresente a si mesma como possuidora do “frescor de uma rosa nova”; mas ela logo passa a elogiar seus dentes. Os dentes se destacam em todas as descrições, provavelmente por causa do predomínio de arcadas apodrecidas e hálitos fedorentos no começo da era moderna. Em Le rut ou la pudeur éteinte (1676), Dorimène tem a pele de um lírio, a boca semelhante a uma rosa e “seus dentes eram brancos, tão iguais e perfeitamente alinhados que apenas essa parte de seu corpo teria sido suficiente para inspirar amor em uma alma menos sensível que a dele [Celadon]”.

E o que fazem essas duas almas sensíveis, uma vez concluídos a auto-apresentação e o rodeio preliminar? Organizam uma orgia com dois outros casais na prisão em que o herói, Celadon, cumpre pena depois de ter sido condenado por um sórdido advogado. A fim de poder remexer-se com mais liberdade, um dos galantes apoia seus pés contra um armário. Mas os impulsos que toma são tão fortes que o armário tomba sobre uma das mulheres, Hiante, que copulava no chão e tinha algumas dificuldades com seu amante, Le Rocher, incapaz de manter a ereção, até porque ela exibe uma gravidez imensa. Ao cair, o armário a atinge com tanta força que a faz abortar instantaneamente. As mulheres então se retiram, enquanto os homens dão início a um concurso de poesia.

Le Rocher vence o concurso improvisando todos os tipos de versos, inclusive um soneto sobre o pobre desempenho de seu pênis: este perdera a força — explica-se em estilo perfeitamente petrarquista — ao penetrar Hiante e dar de cara com a Morte esperando-o no fundo do ventre. Enquanto nossos poetas cortejam a musa, o cão de guarda da prisão come o corpo do bebê (com exceção da cabeça) e morre de indigestão na hora.

Os poetas percebem o que aconteceu quando vêem o gato da prisão brincando com a cabeça como se fosse uma bola. “Este espetáculo lhes causou grande prazer”, observa o narrador, além de despertar seu apetite e sua criatividade. Pedem uma lauta refeição e inventam epitáfios para o cachorro, improvisando rimas sobre o tema do nascimento e da morte. Finalmente, mandam um lacaio pregar a cabeça do bebê à porta da frente da casa do advogado.

Quando o advogado olha pela janela na manhã seguinte, vê uma multidão reunida à frente de sua porta. Supondo que querem linchá-lo, ele confessa todos os crimes que já cometeu às custas dos camponeses locais. Só então nota a cabeça pregada e percebe que a multidão não é mais que um grupo de aldeões “contentes” em ver algo de estranho. Ele retira a confissão e explica que a cabeça viera de um macaco que seu irmão caçara na floresta — uma criatura que andara pulando de árvore em árvore perto de Alençon. Os aldeões se dispersam, felizes por terem visto, de graça, o tipo de curiosidade que lhes teria custado alguns centavos numa feira camponesa.

O que torna o episódio tão estranho para o leitor moderno não é sua violência — já vimos mais que isso na pornografia de hoje —, mas seu humor. Não há dúvida de que o texto tinha intenção cômica. No mesmo passo em que faz desfilar um horror atrás do outro, o texto descreve os incidentes como “cômicos”, “engraçados” e “bufos”. Se tivermos absorvido um número suficiente de novelas picarescas, reconheceremos alguns temas. Se conhecermos Shakespeare e Cervantes o bastante, começaremos a nos localizar. Mas hoje nenhum de nós seria capaz de rir com essas piadas. Nossa incapacidade de fazê-lo deveria ser indício suficiente da dificuldade de “captar” uma cultura fundamentalmente diferente da nossa — por mais superficialmente familiar que ela pudesse nos parecer ao figurar num manual de história ocidental como “Renascimento” ou “Barroco”.

A pornografia que estamos examinando desenvolveu-se a partir de uma cultura que nos parece impensável hoje, tal como, daqui a três séculos, os acidentes automobilísticos e tiroteios da nossa televisão parecerão desconcertantes aos pesquisadores. No século XVII, obras como Le rut ou la pudeur éteinte faziam parte de um mundo rabelaisiano, que combinava a confusão das ruas com a sofisticação da corte. No século XVIII, a cultura das ruas continuou a deixar suas marcas nos livros licenciosos, mas seu caráter modificou-se: ela se concentrou nos boulevards que, substituindo as muralhas medievais de Paris, formavam o cenário de um novo teatro popular e de um novo tipo de prostituta, a grisette que ascendia das lojas de roupa da rua Saint-Honoré aos apartamentos elegantes atrás dos boulevards, nas ruas Tiquettone e De Cléry.

Todas as histórias de prostitutas posteriores a 1750 levam seus leitores para passeios por esse território, descrevendo a comida dos bistrôs, a mobília dos bordéis, a música dos salões de dança, os gestos nas pantomimas e as farsas nos teatros. La correspondance d’Eulalie pode ser lida em algumas passagens como um guia de viagem, incluindo notas de rodapé para a edificação moral de provincianos ignorantes. A certa altura, mlle. Julie, cortesã de luxo, diverte-se saindo com um homem de condição mais baixa do teatro de vaudeville de Nicolet. Ela o faz pensar que “era uma daquelas garotas dispostas a aceitar um jantar num bom bistrô de boulevard como preço de seus favores”. Ela o manda pedir uma refeição chez Bancelin e então desaparece. Uma nota de rodapé explica que Bancelin é o mais famoso taverneiro do boulevard e que para “esquentar” a refeição é possível encomendar canções libertinas das joueuses de viele (cantoras de rua que acompanhavam o próprio canto com vielas de roda), que também prestam serviços sexuais. Num outro ponto, Julie sai para jantar no boulevard e pede uma rodada de baladas apimentadas, que ela então transcreve em sua narrativa, e assim por alguns momentos as memórias da prostituta transformam-se numa antologia de música de rua.

É esse o ambiente de onde mais tarde surgiriam o mundo balzaquiano de Splendeurs et misères des courtisanes, o mundo boêmio de La bohème e o mundo poético de Les enfants du paradis. Mas no século XVIII esse meio permanecia distante dos sentimentos que até hoje encontram eco em nós. Nas Mémoires de Suzon, a própria Suzon torna-se dançarina de uma taverna de boulevard. Certa noite, a caminho de casa, ela dá de encontro com dois soldados, que a arrastam para um lugar ermo na estrada de Montmartre e a violentam. Trata-se de um acontecimento corriqueiro, não fosse pelo fato de um dos soldados ter um pênis tão monstruoso que não o consegue introduzir nela. No caminho de volta, eles percebem uma pedra de afiar em um carrinho de mão deixado do lado de fora de uma estalagem por algum afiador de facas itinerante, e Suzon sugere uma solução para o problema do soldado. Ela se equilibra por cima do carrinho de mão e urina sobre a roda a fim de reduzir a fricção enquanto o soldado desgasta seu pênis até um tamanho utilizável. Essa “cena engraçada” — conforme diz Suzon — diverte a multidão de duzentos espectadores, mas não parece nada engraçada para o leitor moderno. O mesmo acontece com outras experiências de Suzon nos boulevards: sexo grupal com alguns acrobatas espanhóis e cópula “cômica” por trás das cortinas com o arlequim e o pierrô de uma pantomima.

Igualmente sem graça são os defloramentos que proporcionam um alívio cômico à tensão sexual em toda essa literatura. As prostitutas estão sempre pilheriando dos adstringentes que tomam para simular a virgindade e assim levar seus clientes a pagarem um suplemento. Uma delas, a mlle. Felmé de Correspondance d’Eulalie, retira-se para a província sob nome falso, casa-se com um magistrado e descreve sua noite de núpcias burlesca com a experiência de uma profissional: a bolsinha de sangue escondida em sua vagina, o tratamento com vinagre, a fuga para debaixo dos lençóis, a insistência em apagar as velas, a resistência fingida, a frigidez fingida e o grito triunfal do marido na manhã seguinte, quando acha o sangue falso na roupa de cama: “Ah! minha mulher era virgem! Que felicidade!”.

Não é difícil perceber onde está a piada, mas é igualmente difícil rir com ela — o mesmo acontecendo com o adultério e a transmissão de doenças venéreas, duas outras fontes inexauríveis de riso nos livros de sexo. Para ver algo mais nessa espécie de humor, é indispensável saber mais a respeito dos roteiros sérios para as noites de núpcias, que também podem ser encontrados nos livros de pornografia. O melhor dentre muitos exemplos vem de L’académie des dames e tem lugar na casa dos pais da noiva. Sua mãe despe-a na frente do noivo, leva-a nua para a cama e junta-se ao resto da família no aposento ao lado, fechando a porta atrás de si. Depois de se despir, o noivo puxa os lençóis e certifica-se da virgindade da noiva metendo o dedo em sua vagina. Ela se enregela, e depois resiste enquanto ele a beija e acaricia; aos poucos ele a força a abrir as pernas e a penetra. Enquanto ele força sua entrada, ela grita de dor e medo, para grande satisfação de sua família, que ouve tudo logo ao lado.

Um orgasmo preliminar arrefece temporariamente o noivo. Mas seu segundo “ataque” vai mais fundo, até que o terceiro rompe o hímen e a “fortaleza” é tomada. O noivo exige que a vagina, “toda quebrada e rasgada”, reconheça seu pênis “como seu soberano”. Ele então ataca mais uma vez, fazendo a cama ranger e a noiva gritar tão alto que, quando o quarto finalmente silencia, a mãe entra de novo. Ela oferece ao noivo um vinho aromatizado e o reconhece formalmente como filho: “Meu filho, como lutaste bravamente! És um herói! Os gritos de minha filha são testemunho inquestionável de sua derrota. Eu te congratulo pela vitória”.

No mesmo livro, uma outra noite de núpcias segue o mesmo roteiro, descrito com a mesma profusão de imagens militares. Quando a mãe chega com a bebida, ela diz: “Bravo soldado… Agora te reconheço como meu filho e genro”. E, mais tarde, um terceiro noivo deflora a noiva conforme o mesmo ritual — desta feita apresentado parodicamente. Ela é uma moça camponesa simplória, e ele é criado de uma senhora aristocrática, que o usa como garanhão doméstico. A fim de usar seu poder e pregar uma peça, a senhora doutrina a moça com informações invertidas sobre como se comportar na ocasião. Ao invés de se encolher, a moça agarra o pênis do noivo, remexe as nádegas freneticamente e levanta as pernas para o ar. Ela dá todos os sinais errados, como se fosse uma prostituta e não uma virgem: é esta a piada, que só é engraçada para os que compartilham o mesmo código cultural.

Vale lembrar que L’académie des dames é um livro de sexo, e não o caderno com as anotações de campo de um etnógrafo. O livro dá uma versão de uma noite de núpcias ideal tal como o século XVII a imaginava, não um relato confiável de como as pessoas se comportavam na cama. Mas esse ideal ainda servia como alvo de piadas um século mais tarde. Ainda que não tenha correspondido fielmente ao comportamento real, esse ideal definia certa mentalidade, um mundo que (por sorte) perdemos — e tão completamente que temos que consultar a literatura pornográfica para poder entrevê-lo.
Como exemplo final da estranheza dessa literatura, consideremos a Histoire de dom B…, o maior e mais ultrajante de todos os livros do “Inferno“. Dessa vez, excepcionalmente, o narrador é um homem, o monge d. B… (o “B…” significa bougre, “sodomita”, mas seu verdadeiro nome é Saturnin). Quando é ainda um adolescente obcecado por sexo e dado a espiar por um buraco na parede, Saturnin vê sua mãe copulando com um monge. Ele logo quer fazer o mesmo com sua irmã Suzon (mais tarde descobre-se que nenhum deles é parente de sangue, mas o texto brinca com todas as variedades do tabu do incesto). A fim de excitar Suzon, ele a traz até seu posto de observação, e, enquanto ela observa a rodada de cópula seguinte, ele se agacha para olhar por debaixo da saia dela. Então ele vai levantando a mão pela perna dela, seguindo o ritmo de suas coxas que se contraem e relaxam conforme o ritmo no quarto ao lado. Finalmente ele força a entrada em sua vagina: “Te peguei, Suzon; te peguei!”.

Enquanto Suzon continua colada ao buraco na parede, Saturnin a masturba e arranca suas roupas. Ela afasta as pernas e ele tenta possuí-la por detrás. Mas a posição é inviável, de modo que ele a arrasta aos rodopios para a cama. Ele a penetra, ela se contorce, e justo quando ambos começam a arfar de êxtase a cama rui sob os dois. A mãe irrompe no quarto, furiosa; mas, quando percebe a ereção de Saturnin, ela muda de conversa e o puxa para a cama no outro quarto, enquanto o monge toma o lugar de Saturnin com Suzon. Assim, depois de violar a virgindade da irmã, Saturnin trai o pai e se volta para os leitores, concluindo em tom de desafio: “Aqui há muito para dar o que pensar aos leitores cujo temperamento glacial não sentiu jamais as fúrias do amor! Adiante, messieurs, refleti, dai vazão a toda vossa moral! Eu vos abandono o campo, e só desejo dizer uma coisa mais: se tivésseis um tesão tão insuportável quanto o meu, quem iríeis foder? O próprio demônio”.

Muito bem, diria o leitor de hoje, eis aqui um pouco de baixaria setecentista; o que há de tão surpreendente? O resto do romance prossegue na mesma tônica, num ritmo de tirar o fôlego, empilhando crítica social anticlerical entre uma orgia e outra. Cada episódio supera o anterior, até que todas as inibições parecem destruídas. A escalada sexual arrebata tudo a sua frente, e no final abandona o herói num prostíbulo particularmente sórdido. Ali, depois de anos de separação, ele reencontra Suzon. Depois de ter sido seduzida e abandonada por um padre, ela sobrevive a um aborto quase fatal, a uma estadia num pestilento asilo de pobres e a uma terrível carreira como prostituta. Agora ela se encontra no estágio terminal de um caso maligno de sífilis.

Mas Saturnin a ama. Ele sempre a amou, com uma paixão visceral que jamais deixou sua alma, e por isso ele quer fazer amor com ela uma vez mais. Ela recusa, sabendo que o mataria com sua doença. Mas ele insiste, e os dois unem seus corpos pela última vez, durante toda a noite, no fun­do de um bordel decrépito. Nenhum palavrão no texto; nenhum indício de lascívia.

Subitamente, a polícia invade o local. Suzon é aprisionada. Saturnin abate um dos policiais com um golpe de ferro de lareira, mas os outros o arrastam escada abaixo, deixando-o inconsciente. Suzon desaparece numa prisão, onde logo morre de sua doença. Saturnin desperta em outra, febril com os primeiros sinais da sífilis; desfalece novamente e novamente desperta, desta vez acordado por uma dor entre as pernas. Ele se apalpa com as mãos e descobre que foi castrado. No fundo de suas entranhas, forma-se um som que lhe sobe pela garganta e explode num grito que ecoa no teto: Saturnin já não é mais homem, não tem mais por que viver.
Uma cirurgia o salva, ainda que agora ele queira morrer, sabedor que é da morte de Suzon. Ele não sabe a quem se dirigir ou o que fazer com sua nova liberdade. Põe-se a caminho entregando o destino à Providência. Vai dar a uma cartuxa, e subitamente tem uma visão da vida a ser levada longe da agonia das paixões. Depois de ouvir sua história, o superior do monastério o admite; e Saturnin torna-se d. B…, porteiro dos cartuxos: “Espero aqui pela morte, sem temê-la ou desejá-la. Depois que ela me libertar do mundo dos vivos, gravarão em letras de ouro sobre minha tumba: “Hic situs est dom Bougre, fututus, futuir “[Aqui jaz d. Bougre, fodido, ele fodeu].

É uma história escabrosa, que merece um lugar entre Manon Lescaut e La nouvelle Héloise. Nela, o erotismo é tragado pelo ascetismo, a pornografia pela religiosidade. É claro que o epitáfio burlesco deixa tudo em suspenso. A nota de paixão no final poderia ser mais um truque dos pa­dres, a moral poderia ser especiosa. Mas o caráter aberto da história é parte de seu desígnio. O sexo pode levar ao amor, o amor à salvação, e a salvação à conclusão de uma narrativa de surpresas crescentes. Ou talvez tudo seja uma piada. O romance é rico o bastante para permitir várias leituras. Mas, se for uma piada, será de espécie tal que só será compreendida por alguém com alguma ideia do que tenha sido a devoção agostiniana, especialmente em sua variedade jansenista, durante os séculos XVII e XVIII.
Vista a essa luz, a história inteira leva a um espetacular non sequitur: o monastério, ao invés de ser um bordel, acaba por se mostrar um genuíno refúgio dos tormentos da carne; e Saturnin, depois de ter praticado todas as formas concebíveis de pecado sexual, encontra sua verdadeira vocação de monge. Estará ele redimido ou, como diz seu epitáfio, meramente fodido? Quer seja uma refutação ou uma confirmação da religião, sua história ilustra a precariedade do esforço de achar algum sentido para a vida, tanto em meados do século XVIII, quando jansenismo e Iluminismo ameaçavam anular um ao outro, como hoje: pois não há como fechar uma obra-prima pornográfica como L’histoire de dom B… sem pensar que sexo dá o que pensar.

(*) Este texto foi publicado originalmente no caderno Mais! do jornal Folha de S. Paulo de 9 de julho de 1995. (N. O.)
(**) Brer Rabbit: personagem folclórico norte-americano, popularizado no filme animado The song of the South, dos estúdios Disney. É o arquétipo da esperteza que vence a força bruta. No caso citado, o coelho faz um urso atirar-se num espinheiro. (N. T.)

NOTAS

[1] A melhor história geral da literatura erótica ainda é a de Paul Englisch, Geschichte der erotischen Literatur, Stuttgart, J. Püttmann, 1927. Como exemplo dos estudos contemporâneos, veja-se Lynn Hunt (org.), The invention of pornography: obscenity and the origins of modernity, Zone Books, 1993, especialmente os excelentes capítulos de Lynn Hunt e Paula Findlen.

[2] “Por meio de argumentos, provemos aos homens/ como lhes somos superiores/ e qual é seu triste destino./ Vergonha ao gênero masculino!/ Demonstremos como é grande seu capricho,/ sua traição, sua injustiça/ Cantemos e repitamos sem parar:/ Honra ao sexo feminino.”

[3] Catharine MacKinnon, Only words, Harvard University Press, 1993, p. 17, e L’école des filies (1655), republicado em L’Enfer de la Bibliothèque Nationale, Fayard, 1988, vol. p. 274.

[4] Andrea Dworkin, Pornography: men Possessing women, Putnam, 1981, p. 68.

[5] Catharine MacKinnon, op. cit., p. 17.

[6] Jean Marie Goulemot, Ces livres qu’on ne lit que d’une main: lecture et lecteurs de livres pornographiques au XVIIIéme siècle, Paris, Alinea, 1991, pp. 134 e 153-5.

[7] Catharine MacKinnon, op. cit., p. 24.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
L’Enfer de la Bibliothèque Nationale, 7 vols., Paris, Fayard, 1988.
Raymond Trousson (ed.), Romans libertins du XVIIIéme siècle, Paris, Laffont, 1993.
Jean Marie Goulemot, Ces livres qu’on ne lit que d’une main: lecture et lecteurs de livres pornographiques au XVIIIéme siècle, Paris, Alinea, 1991.

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