1998

Uma travessia do milenarismo ocidental

por Jean Delumeau

Resumo

Na cultura ocidental, uma crença milenarista – esperança de mil anos de felicidade na Terra – vem se mantendo desde o Velho Testamento, desde o sonho interpretado pelo profeta Daniel de que quatro reinos seriam arruinados e substituídos por um quinto que não teria fim. Com o cristianismo, essa crença se fortaleceu com o Apocalipse de são João, que fala de um tempo intermediário de felicidade antes do Juízo Final. Embora santo Agostinho tenha proposto uma leitura apenas simbólica do Apocalipse, o milenarismo ressurge no século XII com o monge Joaquim de Fiori, que divide a história em três períodos – da servidão, da dependência filial e da liberdade, ou ainda: dos velhos, dos jovens e das crianças. É ele também que anima a conquista do Novo Mundo o sebastianismo português do século XVI, quando as Trovas de Bandarra anunciam um rei ainda oculto, o Encoberto, que seria o salvador do mundo. No século XVII, o padre Antônio Vieira retoma e amplifica a ideia de um “quinto império” destinado aos portugueses. A mesma esperança está presente nas utopias e nas seitas protestantes da Europa e da América, depois se associa à ideologia do progresso, aos socialistas, ao desejo de suprimir a exploração do homem pelo homem. Mais recentemente, a New Age, embora afastada do cristianismo, sonha com uma nova era de paz e amizade sob o signo de Aquário. Segundo Teillard de Chardin, o que todos esses sonhos imemoriais da humanidade buscam é “fazer avançar num passo igual o domínio do mundo e o reino de Deus”.


Eu publicara em 1992 o primeiro tomo de Une histoire du paradis [Uma história do paraíso], sob o título de Le jardin des délices [O jardim das delícias]. Ela tentava fazer reviver a nostalgia do paraíso perdido, tal como se exprimiu em nossa civilização ocidental. Era lógico que eu compusesse em seguida uma segunda obra – que intitulei Mille ans de bonheur [Mil anos de felicidade] – sobre a duradoura esperança de reencontrar no futuro o paraíso terrestre das origens. Essa esperança pode ser qualificada de “nostalgia do futuro”. Ao redigir esse novo livro, permaneci no interior de um mesmo projeto global no qual trabalho há vinte anos e que visou explorar sucessivamente no passado os medos e a necessidade de segurança de nossa civilização, depois fazer reviver-lhe os sonhos de felicidade. A historiadora americana Marjorie Reeves teve razão de escrever: “Os sonhos dos homens constituem uma parte de sua história e explicam muitos de seus atos”.

Em minha última investigação tentei, portanto, uma travessia do milenarismo ocidental. Mas é preciso, antes de tudo, esclarecer o sentido do termo “milenarismo”. Não se trata da espera de catástrofes destinadas a marcar o ano mil ou o ano 2 mil, mas da esperança de mil anos de felicidade terrestre, tendo a cifra mil sido entendida no curso das eras ora estritamente, ora de maneira simbólica. Essa pesquisa conduziu-me das profecias do Antigo Testamento à New Age e me levou a reconstruir as passarelas, mais importantes do que se pensa comumente, que historicamente ligaram o milenarismo às utopias e à ideologia do progresso. A nostalgia de um país “sem mal nem desventura” existiu em muitas culturas, por exemplo, a dos guaranis. Mas me atenho aqui apenas à civilização ocidental:

No Antigo Testamento, numerosas foram as profecias que anunciaram ao povo judeu, em perigo, perseguido, deportado ou humilhado, um futuro radioso. As mais exaltantes foram atribuídas a Isaías:

Então o lobo habitará com o cordeiro, o leopardo se deitará junto do cabrito. O bezerro e o leãozinho serão alimentados juntos, um menino os conduzirá. A vaca e o urso terão o mesmo pasto, seus filhotes a mesma toca. O leão, como o boi, comerá forragem. O bebê brincará no ninho da cobra. A criancinha estenderá a mão sobre a cova da víbora […] O Senhor enxugará as lágrimas de todos os rostos e, portada a terra, apagará a humilhação de seu povo. Foi ele quem o prometeu. [Isaías, 11, 1-9; 25, 6-9]

Entre os textos do Antigo Testamento que marcaram profundamente o milenarismo cristão é preciso mencionar também o célebre sonho que Daniel explicou a Nabucodonosor. Uma estátua composta de quatro materiais de valor descrescente era derrubada por uma pedra desprendida da montanha. A estátua simbolizava, segundo Daniel, quatro reinos que se arruinariam sucessivamente e seriam substituídos por um quinto que não teria fim. No século XVI, o revolucionário Thomas Müntzer comentou esse texto e, no século XVII, milenaristas ingleses denominaram-se os “Homens da Quinta Monarquia”.

Mas foi o Apocalipse atribuído a são João que constituiu a base principal do milenarismo cristão, sendo a expressão “mil anos” explicitamente mencionada ali. De fato, o autor vê um anjo descer do céu e acorrentar o Dragão, isto é, o mal, “por mil anos”. Então os mártires e todos os que se recusaram a adorar a Besta e sua imagem “reviveram e reinaram com o Cristo mil anos. É a primeira ressurreição […] Passados os mil anos, Satã, solto de sua prisão, irá seduzir as nações”. Então intervirão a última batalha de Deus contra o mal, depois a ressurreição geral – pois, durante o reino dos mil anos, apenas os justos eram ressuscitados – e, enfim, o Juízo Final. Portanto, o que constitui fundamentalmente a crença milenarista é a convicção de que, entre o tempo em que vivemos, com suas desgraças e seus crimes, e a eternidade posterior ao Juízo Final, situar-se-á um período intermediário de paz e de felicidade na terra. Cristo reinará então sobre ela com os “justos” ressuscitados. Esse reino será precedido e segui­ do por sequências de cataclismos e de guerras, a segunda, de resto, mais breve que a primeira.

Os cristãos dos primeiros séculos me parecem ter adotado muito amplamente o milenarismo. O que era normal em um tempo marcado por perseguições. Os mártires eram levados a crer, referindo-se especialmente ao Apocalipse, que sua morte seria rapidamente seguida de uma ressurreição, graças à qual, por uma reviravolta completa de situação, reinariam com Cristo na terra de seu suplício. O Apocalipse foi composto – e não por acaso – por volta de 90, no tempo das perseguições de Domiciano.

Entre os milenaristas cristãos dos primeiros séculos encontram-se, notadamente, Papias, bispo de Hierápolis, na Ásia Menor, que fora um ouvinte de são João; são Justino, palestino martirizado em Roma por volta de 165; santo Ireneu, bispo de Lyon morto em 208; Tertuliano, morto em 222 e, depois da “paz da Igreja”, o grande escritor Lactâncio.

Eis, segundo Ireneu, como Papias evocava o milênio:

Virão dias em que crescerão vinhas que terão cada uma mil cepas e, em cada cepa, 10 mil ramos e, em cada ramo, 10 mil brotos e, em cada broto, 10 mil cachos e, em cada cacho, 10 mil bagos e cada bago espremido dará vinte medidas de vinho. O mesmo se dará com os grãos, os frutos e todas as sementes. Todos os animais, servindo-se desse alimento que receberão da terra, viverão em paz e em harmonia uns com os outros e estarão plenamente submetidos aos homens.

Notemos os aspectos materiais e concretos da evocação feita por Papias. Quanto a Justino, afirmou que, na Jerusalém gloriosa do milênio, “não se ouvirá mais a voz do gemido nem a voz do lamento; não haverá mais criança nascida prematura, nem velho que não cumpra seu tempo [… ] Construir-se-ão casas e se morará nelas; plantar-se-ão vinhas e se comerão seus produtos”. A procriação continuará a existir, mas dela sairá uma raça abençoada.

Esta outra declaração de Justino nos revela que o milenarismo foi então uma doutrina quase oficial:

Quanto a mim e a todos os cristãos de ortodoxia integral, sabemos que uma ressurreição da carne acontecerá durante mil anos na Jerusalém reconstruída, ornamentada e engrandecida, como os profetas Ezequiel, Isaías e os outros o afirmam.

Para santo Ireneu, a Jerusalém renovada do milênio preparará a Jerusalém definitiva do céu, mas não se confundirá com ela. “Esses acontecimentos”, assegura o bispo de Lyon, “não poderiam situar-se em lugares supracelestes [… ] mas se produzirão no tempo do reino, tendo a terra sido renovada pelo Senhor e Jerusalém, reconstruída ã imagem da Jerusalém celeste.” Assim, a primeira preparará a segunda.

Enfim, Lactâncio, retórico pagão convertido ao cristianismo e precep- tor do filho de Constantino, esclareceu, por seu lado:

Depois da ressurreição, o filho de Deus reinará durante mil anos entre os homens e os governará por um governo muito justo. Os que viverem então não morrerão, mas, durante mil anos, gerarão uma multidão inumerável.

Então o sol se tornará sete vezes mais quente do que agora. A terra manifes­ tará sua fecundidade e produzirá espontaneamente colheitas abundantes. O mel escorrerá das montanhas. O vinho correrá nos riachos. O mundo, enfim, estará na alegria, liberto do império do mal. Os animais não se alimentarão mais de sangue.

Santo Agostinho foi quem mais contribuiu para fazer recuar a crença milenarista, à qual, no entanto, aderira inicialmente. Recusou-se a afiançar perspectivas de futuro que lhe pareceram mais carnais que espirituais. Propôs então uma leitura simbólica do Apocalipse e ensinou que a encarnação de Cristo fez começar os mil anos de seu reino terrestre, que será diretamente seguido do Juízo Final e do advento da cidade celeste. Não há que esperar um período intermediário. As instâncias oficiais da Igreja ratificaram daí em diante a interpretação do Apocalipse apresentada por santo Agostinho. O milenarismo foi marginalizado. O que não quer dizer que não teve importância histórica. Meu livro esforça-se em provar o contrário.

No século XII o milenarismo voltou à tona com o monge calabrês Joaquim de Fiori que, sem empregar a palavra milênio, anunciou a vinda de um tempo do Espírito no qual a humanidade viveria em uma santa pobreza, na piedade e na paz. Para ele, a história em sua totalidade dividia-se em três períodos: o tempo “de antes da graça”, o “da graça” e, enfim, “o que esperamos, que está próximo” e será o de uma “graça maior”. Traduzamos: o tempo da lei mosaica antes de Cristo – a era do Pai; o tempo marcado pela vinda de Cristo “sob a letra do Evangelho” – a era do Filho; enfim, o tempo, doravante próximo, em que triunfará a “inteligência espiritual” :- a era do Espírito e do “evangelho eterno”.

Em sua obra mais conhecida, Concordia Novi et Veteris Testamenti,

Joaquim escrevia:

O primeiro estado foi o da ciência (isto é, aquele em que se é obrigado a aprender); o segundo é o da sabedoria; o terceiro será o da plenitude da inteligência. O primeiro foi o da servidão; o segundo é o da dependência filial; o terceiro será o da liberdade. O primeiro transcorreu sob o chicote; o segundo está sob o signo da ação; o terceiro será o da contemplação. O temor caracterizou o primeiro; a fé, o segundo. A caridade marcará o terceiro. O primeiro era o tempo dos escravos; o segundo é o dos homens livres; o terceiro será o dos amigos. O primeiro era o tempo dos velhos; o segundo é o dos jovens; o terceiro será o das crianças. O primeiro estava sob a luz das estrelas; o segundo é o momento da aurora; o terceiro será o do dia pleno. O primeiro foi o inverno; o segundo, a primavera; o terceiro será o verão. O primeiro trouxe urtigas; o segundo traz rosas; o terceiro trará lírios. O primeiro produziu ervas; o segundo, espigas; o terceiro fornecerá fermento. O primeiro é comparável à água; o segundo, ao vinho; o terceiro o será ao óleo.

Joaquim, morto em 1202, estimava que um período crítico ia começar muito em breve e duraria até por volta de 1260 e que, depois desse tempo de turbulências, a “religião monástica” faria reinar a paz no mundo. Ele evocou apenas em termos sóbrios essa futura felicidade espiritual e, não obstante, terrestre. O importante é que, rompendo com a interpretação agostiniana da Igreja oficial, ele volta à escatologia das primeiras gerações cristãs – a que intercalava um período de repouso na terra entre nossa história atormentada e o Juízo Final. Caracterizou-se sua mensagem como “um ressurgimento do recalcado escatológico”.

Para compreender como um monge pacífico pôde suscitar por vezes uma posteridade revolucionária, sublinhemos dois elementos de seu pensamento. Em primeiro lugar, ele anunciava que, à Igreja dos clérigos, ia suceder a dos contemplativos – dos monges, todos pobres. Era desferir involuntariamente um golpe na instituição eclesiástica. Em seguida, utilizou com frequência a fórmula evangélica “os últimos serão os primeiros”, que completou pela afirmação de que o tempo dos velhos e dos adultos seria seguido pelo das crianças: os parvuli reinarão no mundo e confundirão os soberbos e os poderosos. Essas fórmulas explicam o papel desempenhado pelos franciscanos, apaixonados pela pobreza, na difusão das ideias de Joaquim. Elas explicam também que espíritos menos irenistas que Joaquim tenham transformado seu pensamento em um milenarismo radical e violento.

Mas sua influência ultrapassou os meios extremistas. Dante o qualificou de “profeta”. Cristóvão Colombo e Campanella citaram-no várias vezes. No século XIX, Hegel e Auguste Comte retomam sua divisão da história em três períodos. George Sand o coloca no centro de seu romance, Spiridion, que prevê o advento de uma religião da humanidade. Michelet vê nele o anunciador da “idade do livre espírito e da ciência”. Ainda em 1921 o marxista alemão Ernst Bloch o classifica entre os que fizeram “brilhar a ardente centelha que não se extinguirá”.

Um fato histórico importante a sublinhar é que a mensagem de Joaquim de Fiori, mais ou menos bem compreendida, combinou-se, desde o século XIII e, em seguida, durante muito tempo, com uma outra tradição escatológica que é preciso evocar agora, voltando atrás. No século IV, depois novamente no século VII, foram redigidos textos proféticos designados sob o nome de “sibilinas cristãs”. Eles anunciavam que, durante cerca de uma centena de anos – mas cem anos, para as pessoas de antigamente, eram muito mais longos que para nós -, um rei ou um imperador cristão – o soberano dos “últimos dias” -, instalado em Jerusalém, unificaria sob seu cetro a terra habitada, lhe traria a paz e converteria toda a humanidade à religião de Cristo. No fim de seu reinado, deporia sua coroa no Gólgota. Seguir-se-iam a última ofensiva do Anticristo e o fim do mundo.

As “sibilinas cristãs” circularam durante toda a Idade Média e foram impressas no fim do século XV. Veiculavam, como o milenarismo tradicional, o anúncio de que antes do Juízo Final teria lugar uma idade de ouro cristã. Daí o amálgama que se produziu entre essas duas perspectivas escatológicas.

A esperança de ver o soberano dos “últimos dias” reinar em Jerusalém sustentou a empresa das cruzadas. Em seguida, os reis da França, os imperadores da Alemanha, os soberanos espanhóis e os de Portugal tentaram simultânea ou sucessivamente fazê-la atuar em seu favor. Ela estava presente no círculo de Carlos VIII da França e explica, ao menos em parte, sua expedição de 1494 na Itália, que deveria ser seguida pela reconquista de Jerusalém. Ela foi uma das ideias fundamentais de Cristóvão Colombo, que esperou financiar a retomada de Jerusalém, pelos soberanos da Espanha, graças às riquezas dos países que descobrira. Milenarismo e violência foram frequentemente associados. Daí o livro, aliás notável, de Normann Cohn, publicado em francês sob o título de Les fanatiques de l’Apocalypse [Os fanáticos do Apocalipse]. As mais fortes explosões desse milenarismo revolucionário foram o movimento dos radicais tchecos nos anos 1420; a revolta dos “camponeses” da Turíngia, da qual Thomas Müntzer tomou a frente em 1525; a ocupação de Münster, em 1534-35, por anabatistas exaltados que acreditaram que Cristo ia descer ali para fazer dela a nova Jerusalém – episódio evocado notadamente por Marguerite Yourcenar em L’oeuvre au noir -; enfim, os complôs urdidos na Inglaterra, na metade do século XVII, pelos “Homens da Quinta Monarquia”. Relembrei todos esses fatos em meu livro, fornecendo notadamente sobre os extremistas tchecos do século XV documentos desconhecidos até então fora da Boêmia. Também pude fornecer uma análise detalhada de uma obra estranha, o Livro dos cem capítulos, redigido por volta de 1500 por um exaltado alsaciano anônimo que se costuma chamar de “o revolucionário do Alto Reno”. No entanto, quis mostrar sobretudo a importância e a variedade do milenarismo bem além dos movimentos sediciosos igualitaristas.

Não se sabe bastante, fora dos países lusitanos, que Portugal foi atravessado, do século XV até o XVII inclusive, por profundas correntes milenaristas, sem o conhecimento das quais a história desse país permanece incompreensível. Pôde-se escrever que, em Portugal, “a persistência do messianismo animando a mentalidade de um povo, durante um tempo tão longo e conservando-lhe a mesma expressão, é um fenômeno que, com exceção da raça judia, não tem equivalente na história”.

A pesquisa recente mostrou que era preciso dar uma significação escatológica aos projetos e às expedições além-mar de Manuel, o Venturoso. Ele pensava em uma espécie de realeza universal e messiânica, o quinto império de Daniel, que veria Portugal trazer para a religião de Cristo todas as nações não cristãs.

Fato particular em Portugal: as Trovas, especialmente as do inspirado sapateiro Bandarra, compostas entre 1530 e 1546, anunciavam o próximo aparecimento de um rei ainda oculto – o Encoberto – que seria o salvador do mundo. A esperança do reaparecimento do rei Sebastião, desaparecido em 1578 por ocasião de uma batalha contra os “mouros” no Marrocos, inscreve-se nessa tradição. O sebastianismo, no século XVII, transformou-se em um autêntico milenarismo, e isso graças especialmente a Antônio Vieira.

O jesuíta Antônio Vieira (1608-97), o mais célebre pregador português de seu tempo e que se incluiu em seu país entre os grandes nomes da literatura barroca, era de fato um autêntico milenarista. Nascido no Brasil, ali passou uma parte de sua vida e ali morreu. Foi um infatigável defensor dos índios. Partidário da independência de Portugal em relação à Espanha, saudou em João IV de Bragança o restaurador da pátria e viu nele o “rei oculto” anunciado pelas Trovas de Bandarra.

Independentemente dos sermões de caráter escatológico, Vieira exprimiu suas concepções milenaristas em três principais escritos: as Esperanças de Portugal (l659); a História do futuro, começada provavelmente em 1649 e nunca terminada; enfim, a Chave das profecias (em latim), da qual ele falou pela primeira vez em 1663, obra também interrompida e da qual restam apenas fragmentos. Vieira, em seus livros, passou muito tempo a provar que as profecias de Davi, Isaías e Daniel anunciavam o quinto império do mundo e viu nas viagens de descobertas até os extremos da terra o início de seu advento.

Vieira, depois de ter demonstrado que haverá um quinto império, faz a pergunta: será neste mundo ou no outro? Ele responde categoricamente: “É sentimento comum dos santos, aceito e seguido por todos os comentadores, que esse reino e império de Cristo, profetizado por Daniel, é um império da terra e na terra”. Na concepção de Vieira, Cristo não reinará diretamente sobre o mundo regenerado, mas exercerá sua soberania por seus dois representantes, o papa e o rei de Portugal, tendo a Igreja atingido então seu último estado de perfeição. Jerusalém será restaurada em toda a sua glória. O pecado desaparecerá pela conversão dos infiéis e pela morte antecipada dos pecadores que recusam converter-se. Nessa quinta monarquia a vida continuará como hoje, com agricultura, indústria e comércio, mas sem guerra. Esse estado de perfeição durará mil anos, antes do retorno do Anticristo e do fim do mundo. Lisboa estará no centro desse império de Cristo na terra, pois é, dizia ele,

o sítio mais harmonioso e mais apto à destinação que escolheu para ela o Supremo Arquiteto […] Ela espera entre seus dois promontórios, que são como dois braços abertos […] a voluntária obediência de todas as nações que descobrirão sua solidariedade, mesmo com as populações das terras ainda desconhecidas hoje e que terão perdido a injúria desse nome.

Enquanto o papa será o único pastor espiritual da humanidade, o rei de Portugal, tornado imperador do mundo, será o árbitro universal. Porá fim a todos os conflitos pelos quais hoje as nações destroem umas às outras e “manterá o mundo inteiro na paz de Cristo cantada pelos profetas”.

Deixemos Portugal. Na França muitos ignoram, mesmo em meio protestante, que Jurieu, o grande adversário reformado de Bossuet e o animador, desde Roterdã, da resistência a Luís XIV, era milenarista. Quanto à história inglesa do século XVII, é ininteligível se não se dá às expectativas escatológicas todo o seu lugar. O milenarismo desempenhou um papel importante além-Mancha, na época de Cromwell. De uma maneira mais geral, o nascimento e o desenvolvimento do protestantismo permitiram às correntes milenaristas manifestar-se mais aberta e mais amplamente do que antes, embora seja verdade que os grandes reformadores, notadamente Lutero e Calvino, permaneceram fiéis à interpretação agostiniana do Apocalipse. Existiu globalmente um elo certo entre milenarismo e ”heresia”.

Por outro lado, a entrada em cena da América deu um novo impulso à esperança milenarista. Marcel Bataillon e Georges Baudot mostraram bem que os primeiros franciscanos que chegaram ao México em 1524 estavam impregnados das ideias de Joaquim de Fiori e acreditavam estar próxima a “última era do mundo”, isto é, um período de paz, de reconciliação e de conversão geral ao cristianismo, que precederia o fim da história. Os dois franciscanos mais conhecidos da “conquista espiritual” do México no século XVI, Motolonia e Mendieta, tiveram em comum a convicção de que iam poder reconstituir a idade de ouro da Igreja primitiva além-Atlântico, longe da cristandade europeia pervertida, entre os índios pobres e simples. Mendieta sonhou fazer os indígenas da Nova Espanha viver “na virtude e na paz; a serviço de Deus, como em um paraíso terrestre” – fórmula à qual é preciso conferir todo o seu sentido escatológico. Essa era também a esperança dos jesuítas quando criaram as “reduções” do Paraguai em favor dos guaranis.

A convicção de que a América é o lugar a partir do qual ia estender­ se o reino universal de Cristo habitou igualmente – o que não é bem conhecido – os primeiros puritanos que foram estabelecer-se além-Atlântico. Na Inglaterra, em 1628, a um grupo que partia e que se tentava dissuadir de pôr-se ao mar, um dos iniciadores da aventura declarou: “Não retardeis vossa partida… Sabei que lá o Senhor criará um novo céu e uma nova terra, novas Igrejas e uma nova república [Commonwealth]”. Para o teólogo John Cotton, emigrado para a América no século XVII, a Nova Inglaterra ocupava “uma situação sem precedente na história”. Seus habitantes constituíam “uma sociedade liberta da Besta”. Para ele a América era “legível nas promessas”. Em 1652, John Eliot, o primeiro missionário protestante dos índios, afirmava que o reino de Cristo estava agora “em via de erguer-se nas partes ocidentais do mundo”.

Contudo, é na obra de Jonathan Edwards, iniciador do “grande despertar” – protestante, evidentemente – dos anos 1740-44, que se encontra a expressão mais brilhante de um milenarismo ligado à América do Norte. Ele declarou, notadamente:

Esse novo mundo provavelmente foi descoberto em nossos dias para que o novo e mais glorioso estado da Igreja de Deus na terra possa ter início aqui e para que Deus aqui faça começar um novo mundo espiritual, criando os novos céus e a nova terra. Deus já concedeu ao novo continente a honra de ali ter feito nascer Cristo, no sentido literal do termo, e de ali ter proprorcionado a Redenção. Ora, como a Providência observa uma espécie de igualdade na distribuição das coisas, não é desarrazoado pensar que o grande nascimento espiritual de Cristo e a mais gloriosa aplicação da Redenção devam começar aqui…

O outro continente matou Cristo e, de era em era, derramou o sangue dos santos e dos mártires de Jesus. Ele foi como que inundado pelo sangue da Igreja. Deus então provavelmente reservou a honra de edificar o glorioso templo à filha [= América] que não derramou tanto sangue, no momento em que vai começar esse tempo de paz, de prosperidade e do glória significado outrora pelo reino de Salomão […] Vários fatos me parecem indicar […] que o sol se levantará no Oeste.

Mais tarde o milenarismo americano laicizou-se um pouco. Mas tem­se sérias razões de pensar que constituiu um dos componentes da identidade da nova nação em via de se formar. Em 1785, o neto de Jonathan Edwards, Timothy Dwight, milenarista como ele, publicou um poema de título significativo, The Conquest of Canaan [A conquista de Canaã]. Os soldados mortos na guerra da Independência eram aí comparados aos hebreus conduzidos por Josué. Um novo Éden, o quinto império anunciado por Daniel, ia surgir – império “de paz, de justiça e de liberdade”. A nova república seria o agente e o motor do milênio. Um pregador assegurou em 1795 que os habitantes dos novos Estados Unidos podiam “dizer uns aos outros com rostos alegres: ‘Somos um povo particularmente favorecido pelo céu […] Os Estados Unidos são agora a vinha do Senhor’ “. Para um outro milenarista do começo do século XIX, David Austin, a pedra que, segundo a profecia de Daniel, desprende-se da montanha para encher toda a terra anunciava, com toda a evidência, a Declaração da Independência de julho de 1776, o acontecimento a partir do qual os mil anos de felicidade iam poder começar.

Neste momento de nosso percurso entrevêem-se já os laços que existiram entre o milenarismo, de um lado, e as utopias e a ideologia do progresso, do outro lado. As utopias constituíram um setor importante da literatura europeia a partir da publicada por Thomas More em 1516, e floresceram particularmente no século XVII. De início os autores imaginaram ilhas distantes cujos habitantes viviam felizes sob sábios governos e leis justas. Ali a igualdade ou a comunidade dos bens eram no mais das vezes apresentadas como a regra de ouro. Cada vez mais, porém, as uto­ pias visaram, enquanto situavam suas descrições fantásticas em um alhures irreal, sugerir mudanças para um futuro acessível. Portanto, o desejo de promover melhorias radicais na terra foi comum aos milenaristas e aos autores de utopias.

O elo entre os dois tipos de discurso aparece com clareza na obra do dominicano italiano Campanella (1568-1639). Contudo, o aspecto milenarista dos escritos de Campanella fora até aqui pouco ou nada observado, talvez porque as obras em que se exprime foram publicadas apenas na segunda metade de nosso século. Ora, em La profezia di Cristo [A profecia de Cristo],obra redigida em 1623 portanto uns vinte anos depois de A cidade do sol, Campanella anuncia, apoiando-se a uma só vez em Lactâncio e Joaquim de Fiori:

Então os bons serão separados dos maus e haverá um céu novo e uma terra nova. O brilho do sol será multiplicado por sete e a lua será como o sol hoje: e isso durante mil anos […] Essa primeira renovação das criaturas não será a que as tornará imortais, já que continuarão a procriação e a alimentação a partir das produções da terra: o que só pode ocorrer através da corrupçãodos elementos. Nesse tempo, as estrelas e os elementos sofrerão uma purificação parcial e verão impor-se a eles a ordem e a disposição que convêm ao século de ouro, durante o qual os santos possuirão o mundo humano.

Como todos os milenaristas, Campanella se comprazeu em especulações aritméticas complicadas sobre os prazos escatológicos. Digamos, simplificando, que os acreditava muito próximos.

Para os milenaristas de todas as épocas, a passagem aos mil anos de felicidade terrestre deve operar-se, de acordo com as previsões do Apocalipse, através de um período de catástrofes. Ao contrário, quando, no fim do século XVII, sob a pena de pensadores como Fontenelle e Leibnitz, apareceu no Ocidente a noção de “progresso”, ela foi antes ligada à ideia de uma caminhada gradual e relativamente regular da humanidade rumo ao aperfeiçoamento de sua condição moral e material. No entanto, um ponto importante foi comum ao milenarismo e à ideologia do progresso: a saber, a certeza de que a humanidade ia em direção a uma melhora ter­ restre e de que um futuro radioso estava no horizonte. Daí o convite a investigar se passarelas não ligaram as duas prospectivas. Estou convencido, após averiguação, de que elas existiram.

O caso de Priestley permite esclarecer de maneira quase pedagógica os laços que uniram, no século XVIII, o milenarismo e a crença no progresso. Como cientista, ele demonstrou que a lei de ação entre cargas elétricas é a mesma que para a gravitação. Descobriu o oxigênio e isolou um gran­ de número de gases. Por outro lado, teólogo unitário, não aderia ao dogma da Trindade. No que se refere ao tema de que tratamos, estava persuadido de que Deus quer o homem feliz desde esta terra, e via na ciência o grande instrumento do progresso. É por ela que íamos nos encaminhar para o milênio. Graças a ela

os homens se tornarão pouco a pouco mais felizes, cada um por si mesmo, mas também todos mais capazes de comunicar a felicidade aos outros e, estou convencido disso, mais dispostos a fazê-lo. Assim, qualquer que tenha sido o começo deste mundo, o fim será glorioso e paradisíaco, além de tudo o que nossas imaginações podem agora conceber.

Favorável à Revolução Francesa, viu nela o tremor de terra previsto pela Escritura, que devia acelerar a passagem à situação edênica. Em 1799, ele escreveu uma moção aos judeus em que, baseando-se, como tantos outros milenaristas, nas revelações de Daniel e do Apocalipse, anunciava­ lhes um próximo retorno à Palestina, a reunião de todas as religiões, o aniquilamento do papado, dos turcos e dos reinos da Europa e, enfim, o estabelecimento do reino de Deus na terra.

A esperança de realizar a felicidade terrestre da humanidade constituiu uma das ideias-força do século XIX e foi expressa pelos espíritos mais diversos. Victor Hugo, por exemplo, dirigindo-se à juventude, exclamava em 1830: “Oh, o futuro é magnífico!/[. ..] Um século puro e pacífico/ Abre-se para vossos passos mais firmes;/[…] Veremos com majestade,/ Como um mar nas suas margens,/ Subir de etapa em etapa a irresistível liberdade”. A crença no progresso inspirou a uma só vez os positivistas e os socialistas. Pierre Leroux, inventor, ao que parece, da palavra “socialismo”, afirmou:. “o paraíso deve vir na terra”. E não é excessivo afirmar que a esperança milenarista laicizada foi então reinvestida no socialismo. Marx assegurou que a ação do proletariado ia suprimir a exploração do homem pelo homem e o comunismo ia resolver “o enigma da história”. Para Jaurès, graças ao socialismo, “pela primeira vez, a humanidade dominará as coisas” e a arte estará liberta. Ainda em 1921, o marxista Ernst Bloch em seguida ele iria tornar-se um dissidente do marxismo – escrevia, apoiando-se em toda a tradição milenarista que relembrava explicitamente: “É impossível que não advenha o tempo do Reino”.

Ao mesmo tempo, o milenarismo tradicional continuava sua carreíra, particularmente nos Estados Unidos – o que não é um acaso. Ele constituiu – e constitui sempre – um dos elementos importantes da doutrina dos mórmons, dos “adventistas do sétimo dia” e das “testemunhas de Jeová”. No credo mórmon, por exemplo, lê-se esta afirmação: “Cremos que Sion será edificada neste continente [a América]; que Jesus reinará em pessoa na terra, que a terra será renovada e receberá uma glória paradisíaca”. Enfim, um milenarismo bastante afastado do cristianismo acha-se· atualmente à espera da New Age. Para os que vivem nessa esperança, a era paradisíaca de 2160 anos (que deve começar logo), dominada pelo signo de Aquário, concentrará todas as aspirações “positivas” com que os humanos sonham desde tempos imemoriais.

Quantoa mim,não compartilho nem o otimismo sem dúvida um pouco ingênuo dos milenaristas nem o extremo pessimismo de muitos de nossos contemporâneos. Defendo um otimismo lúcido, porque creio que a vida – individual e coletiva – tem um sentido e faço meu o programa proposto por Teillard de Chardin: “Fazer avançar num passo igual o domínio do mundo e o reino de Deus”.

Tradução de Maria Lúcia Machado

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