1992

Ver o invisível: a ética das imagens

por Nelson Brissac Peixoto

Resumo

As imagens contemporâneas também podem comportar uma ética. O desafio está em como mostrar o invisível na era da sobre-exposição, no mundo dominado pelo clichê. A resposta está em mostrar o invisível através de imagens que restituam um pouco do real, imagens que sejam capazes de restituir o drama das existências individuais e das grandes paisagens; Ir além da assepsia das imagens computadorizadas, que nada mostram, e dos instantâneos cruentos que, mostrando em excesso, banalizam a violência pela obscenidade.

É preciso saber ver, em determinadas imagens de hoje, aquilo que muitas vezes nos escapa. É preciso resgatar nas imagens o tempo necessário para que as coisas se cristalizem; voltar-se para o indiscernível; dirigir-se ao que não se deixa ver; ter um olhar espiritual que faz de cada gesto ou plano, algo que vai além do que é mostrado na tela.


Por um breve momento, diz Griffith — com a invenção do cinema —, deu-se uma aparição: a beleza do vento soprando nas árvores. Algo que não se mostra de imediato a todos os olhos, que não se deixa facilmente retratar. Um esplendor que, entretanto, acabaria desaparecendo — talvez para sempre — dos filmes.

A cena — em Ordet, de Dreyer — é inesquecível. Uma casa no campo, quase à beira-mar. Ao lado, uma colina, recoberta por um trigal. Uma escada conduz ao topo. Lá, postos para secar ao sol, estendidos num varal, lençóis brancos tremulam ao vento. Nenhum ruído ecoa na paisagem. Apenas a presença discreta mas consistente do vento se faz sentir, aragem que ondula a relva. Com a mesma força impalpável que o sagrado, por meio do louco, faz sua aparição na casa. Cena que não se pode descrever. Imagens do impensável. Um cinema que faz ver o indiscernível.

Assistir a um velho filme do cinema mudo. Na sala, nenhum ruído, salvo às vezes a música que o acompanha. O silêncio é completo. Vemos aquelas figuras fantasmagóricas se agitarem na tela com a certeza de que já pertencem ao passado. Os gestos bruscos e espontâneos ressaltam a naturalidade e a inocência com que se deixam retratar. Olhando sérios para a câmera. Aqui tudo é verdadeiro e transparente.

Então o cinema era capaz de uma apreensão imediata da realidade. Antes que esta lhe tivesse escapado, antes de o cinema ter se contentado com o “efeito de realidade”. Com os filmes mudos, as imagens eram dotadas de materialidade. Revestiam‑se do aspecto natural das coisas e dos seres. A imagem aqui remete a “uma natureza física inocente, a uma vida imediata que não tem necessidade de linguagem”. O cinema mudo, diz Deleuze, sempre mostrou a cidade e tudo aquilo do que ela é feita, “entretanto ele lhes dá uma espécie de naturalidade, que é o segredo e a beleza da imagem silenciosa”.[1]

Não é apenas o passado do cinema que se mostra nesses filmes. Estamos sendo confrontados com uma outra coisa: uma presença, vibrando particularmente nesses rostos e paisagens. É isso — esta evidência de algo que não podemos ver nem definir mas que nos arrebata — que dá consistência e verdade a essas imagens.

Retratos

Breve história de um gesto. Uma jovem acena, do portal de seu jardim, para o rapaz que acaba de deixá-la em casa. Um instante em que, sem pensar, ela se vira e levanta o braço, com leveza e graça, como se lançasse para o céu um balão colorido. Esse instante é maravilhoso. Todo o encanto da situação revela‑se nessa fração de segundo.

E, no entanto, inesquecível: a aleia de areia brilhava como um jato dourado sob os raios de sol e de cada lado da cerca floresciam arbustos de jasmim. Esse gesto, ao mesmo tempo tão simples e tão perfeito, fica na nossa memória como um traço de luz. Convidando para alguma viagem distante e despertando um desejo indeterminado e imenso, sublime.

Gesto que ocorre quando da necessidade de expressar algo de importante e belo, que as palavras não podem dizer. Talvez porque esse movimento incluía magicamente a indefinível ideia do amor, do qual a jovem ainda nada sabia. O aceno então brota nela para dizer em seu lugar aquilo que não soubera exprimir.[2]

Todas as nossas questões estão colocadas aqui: a fugacidade do gesto, como se fosse uma aparição, sua peculiar luminosidade e sua irredutibilidade às palavras. Os gestos — como os rostos e as paisagens — são da ordem do inenarrável.

O gesto não pode tornar-se uma coisa. Ele é inapreensível. Para evidenciá-lo, pintores e cineastas isolam o gesto, no espaço e no tempo. Isolado o gesto, retrata-se um tempo absoluto, uma plenitude determinada apenas pela amplitude. O mesmo efeito de grandeza que supõe o sentimento do sublime, a satisfação de apreciar o infinito, de ser sensível à imensidão.

Isolado, o gesto manifesta, sem grandiloquência, uma energia que nada pode medir. Aqui ele não exprime nada. Encarna uma emoção, em vez de significá-la. Não acolhe as estrelas nem aponta para elas, não diz os pensamentos nem os sentimentos. É a manifestação mais corporal possível do indefinido, a marca perceptível do inapreensível.

Qual é o destino do gesto nas imagens contemporâneas? A televisão, com a tela pequena demais, não lhe dá lugar. Mas a pintura, a fotografia e o cinema — esses veículos nos quais o sublime do gesto pode se manifestar — poderão talvez nos mostrar beaux gestes, tomados em si mesmos, na sua plenitude, capazes de enriquecer a visão da paisagem?[3]

O retrato — ou um close cinematográfico — pode comportar, diz Deleuze, um espaço e um tempo, como se os tivesse apropriado às próprias coordenadas das quais se abstrai. Ele então carrega consigo um fragmento de céu, de paisagem ou do apartamento — um rasgo de visão — com o qual o rosto se compõe. É como um curto-circuito do próximo e do longínquo.[4]

É assim que o rosto parece uma paisagem. O muito grande e distante encontrando o muito perto e pequeno. Imagens dotadas do mesmo relevo, exigindo o mesmo movimento. A imagem — fotográfica, sobretudo cinematográfica — tem esta capacidade de ir do exterior para o interior, da natureza para o homem. Mesmo se parte do rosto humano, ela o toma como se fosse uma paisagem. Esta união do homem com a natureza se dá no sublime.

Não o rosto — para Lyotard — mas a face é uma paisagem. O retrato de Beckett, aos oitenta anos: feito de terra fendida pela aridez. Pela trama das rugas, a miséria e as fraquezas se infiltram, são acolhidas. Só depois de ser paisagem é que a face se cobre de rosto. A inocência — aquela mesma dos antigos retratos —, de tanto perambular por ela, se submete à expressão. A lei toma conta do olhar. Apenas a cabeleira e a luz que emana da pele escapam à disciplina. Quando a tragédia das paixões e das dívidas ocupa a cena, ela evacua a paisagem.[5]

Mas, se o rosto pode ser apreendido na paisagem, a paisagem também pode ser captada no rosto humano. O cinema clássico russo ensina, segundo Benjamin, que o ambiente e a paisagem só se revelam ao fotógrafo que sabe captá-los em sua manifestação anônima em um rosto humano. O que esse cinema fez foi oferecer, pela primeira vez, uma oportunidade de aparecer diante da câmera a pessoas que nunca haviam pensado em fazer-se fotografar.

Homens que não pretendiam chegar à posteridade pelas fotografias e, por isso mesmo, transportavam para as imagens todo o seu mundo cotidiano. Aí, “subitamente, o rosto humano apareceu na chapa com uma significação nova e incomensurável”.[6] Ainda que não se trate mais, propriamente, de retratos. As séries de rostos reunidas pelo fotógrafo alemão A. Sander são antes, diz Benjamin, uma galeria fisionômica semelhante às elaboradas pelos cineastas russos, uma detalhada observação de todos os tipos sociais da época. Uma vista panorâmica, por meio de rostos, da Berlim de então.

As primeiras pessoas que tiveram suas imagens reproduzidas não eram identificadas. Nenhum texto fazia saber sobre suas vidas. Os jornais eram raros, a fotografia ainda não tinha virado seu instrumento, ainda não servia para ilustrar as notícias. Ao oposto do fotojornalismo atual, não havia como fundo o burburinho dos acontecimentos. Era como se tudo estivesse calmo, num mundo em paz. “O rosto humano era rodeado por um silêncio em que o olhar repousava.” Uma quietude própria da paisagem, não da rua ou da guerra. O mesmo silêncio reinante nos parques fotografados por Atget. O retrato resulta, para Benjamin, dessa suspensão. “Todas as possibilidades da arte do retrato se fundam no fato de que não se estabelecera ainda um contato entre a atualidade e a fotografia.”

Os primeiros retratos eram feitos — por imperativos técnicos — em parques pouco frequentados. A fraca sensibilidade das chapas primitivas exigia uma longa exposição à luz natural, o que obrigava o fotógrafo a colocar o modelo num lugar retirado, onde nada pudesse perturbar sua concentração. O tempo — a longa exposição — é o princípio mais importante do retrato, da constituição do rosto na fotografia.

A longa imobilidade resulta não apenas no conhecido rictus mortis mas, ao contrário, numa síntese da expressão. Faz aflorar os traços essenciais do rosto. Daí essas imagens evocarem no observador uma impressão mais persistente e mais durável que as produzidas — em geral — pelas fotografias modernas. São imagens mais autênticas. Imagens definitivas, feitas para ficar.

A exposição prolongada dá tempo para que a pessoa retratada encontre sua expressão diante da câmera. Trata-se aqui de uma questão de tempo. A própria técnica levava o modelo a “viver não ao sabor do instante, mas dentro dele”. Essas imagens davam o tempo que as coisas precisavam para se cristalizarem. As pessoas “cresciam dentro da imagem”. O oposto do instantâneo jornalístico, que decide da fama do retratado.

A pressa da vida moderna, o vórtice vertiginoso dos eventos históricos geram imagens condicionadas pela aceleração. Estas imagens não têm mais tempo. Uma exposição recente, Pictures of peace (MAM – Rio de Janeiro, 1991), foi organizada a partir da seguinte questão: “O que você fotografaria, se o mundo estivesse em paz?”.

A guerra — e o crime — instaura o domínio do instantâneo, das imagens de ação. O fotojornalismo, do qual o correspondente de guerra — além do repórter policial — é uma das modalidades. Imagens feitas no calor da hora, no ritmo dos acontecimentos. Imagens movidas a velocidade.

O oposto do repórter — e do fotógrafo de guerra — é aquele que vagueia, a câmera na mão, sem direção nem horário, pelas ruas. Ou aquele que, como um paisagista, contempla o panorama do mundo. Eles têm calma. Suas fotos têm uma coisa em comum: tempo. Eles sabem esperar. Deixar as coisas se configurarem ante os nossos olhos.

Se o mundo estivesse em paz — se pudéssemos olhar para ele com vagar —, as imagens teriam tempo. Não por acaso praticamente todas as fotos apresentadas nessa exposição são retratos e paisagens. Essa atitude paciente só poderia nos reconduzir aos gêneros mais tradicionais da pintura, os seus temas básicos. O muito pequeno e o muito grande. Ambos sugerem grandeza e infinitude. Tudo aquilo que as imagens apressadas não são capazes de apreender. Aquilo que em geral — apesar de estar sempre ali, na nossa frente — não conseguimos ver.

Essas cenas — feitas à margem do ritmo acelerado das informações e dos acontecimentos — consistem, em geral, justamente nisto: imagens do invisível. Todas mostram rostos, gestos e vistas de lugares. A percepção do tempo, de outra durée, resgata gêneros tidos como anacrônicos e superados na arte atual, o retrato e o paisagismo.

Nós nos acostumamos a só ver aquilo que é dinâmico, que se agita ante os nossos olhos, que acontece. É disso que trata a foto jornalística. Mas e quando nada, aparentemente, está acontecendo? O vento soprando nas árvores ou uma mulher que levanta a mão, com graça, como se fosse soltar um balão. Aí não se vê nada. Mas, de fato, tudo está acontecendo. Essas cenas são delicadas demais ou grandiosas demais para ficarem impressas na retina habitual ao que é passageiro. São cenas praticamente imperceptíveis, a expressão num olhar, um jeito de andar ou uma luz particular incidindo sobre as montanhas.

Rostos, gestos e paisagens exigem contemplação. A fotografia atual, porém, só consegue ver a paisagem como palco, só consegue olhar para um rosto em busca de uma história. Mas retrata então não rostos, apenas poses e ações. É preciso saber ver, em determinadas imagens de hoje, aquilo que muitas vezes nos escapa. Essas imagens têm a beleza dos pequenos gestos e das grandes paisagens.

É preciso ter tempo para ver os rostos e a paisagem. Para se evidenciarem a força e a atmosfera que deles emanam. O drama interior das pessoas, a serenidade dos lugares. Tudo aquilo que não se estampa de imediato.

Quando a obra de arte perdeu seu caráter de objeto de culto, o sagrado parecia se escoar cada vez mais das coisas. Libertando-se das representações do divino, a pintura — por volta do século XVII — estruturou-se como linguagem moderna a partir de dois gêneros: o retrato e a pintura de paisagens. O portrait do indivíduo burguês e o registro dos seus domínios. A pintura deixa de retratar apenas rostos de santos ou reis para poder imortalizar a figura anônima. Deixa de mostrar cenas divinas para descortinar baías, campos e cidades, para mapear o mundo como cenário da operosidade. O capitalismo recusa toda transcendência às coisas.

Nesse universo desprovido de alma, onde teria ido se refugiar o sagrado? Toda pintura que, preocupada com essa questão, se fez desde então tentaria entrevê-lo justamente nestas figuras primárias — o rosto (gesto) e a paisagem. Trata-se para ela de buscar aquilo — basicamente a luz — que faz um rosto ou uma paisagem nos falar. Pois — é isto que as faz essenciais — a princípio nada acontece ali. Nenhum evento que dê sentido para a imagem. Nada que não aflore da própria figura. Aquilo que faça um rosto ou uma paisagem nos devolver o olhar.

O sagrado não se entrega sem resistência. Sua última trincheira, diz Benjamin, é justamente o rosto humano. Não por acaso o retrato era o principal tema das primeiras fotografias. Estas foram capazes de captar tecnicamente, por meio do claro‑escuro, da transição contínua da sombra à luz mais clara, a aura que havia então em torno do olhar dos indivíduos. Aquilo que transmitia uma sensação de plenitude. “A aura acena pela última vez na expressão fugaz de um rosto, nas antigas fotos. É o que lhes dá sua beleza melancólica e incomparável.”[7]

Ao se retirar o homem das fotografias, a aura seria também eliminada. Com Atget a fotografia reagiria contra sua vocação, tradicional, ao retrato. Para voltar-se na direção do pormenor, o objeto isolado, o lugar sem atmosfera nem intimidade. Panorama do mundo contemporâneo. Lugares assim desertos, porém, não são paisagens, mas o local de um crime. Fotografados por causa das pistas que contêm, dos indícios de uma ausência. Essas imagens são, de certo ponto de vista, imagens de uma falta: do rosto, da paisagem.

Muitos dos retratos contemporâneos, porém — basta pensar nas fotos de Avedon — parecem evocar essa plenitude que só os rostos e as paisagens têm. Como as marinas fotografadas por Meyerowitz. Uma capacidade de nos olhar nos olhos. Uma força e um mistério que lhes parecem inerentes.

Mesmo as imagens que recorrem a técnicas mais recentes — vejam-se os retratos feitos por Cindy Sherman — sugerem, por vezes, o insondável desses relevos. Algo transparece neles, que se sente mas não se consegue definir. Indicação de que não depende exclusivamente de antigos procedimentos técnicos, da sombra que as câmeras mais sensíveis teriam eliminado. Não seriam os retratos e as paisagens depositários da significação e da grandeza que as imagens em geral perderam?

Ainda em meados do século passado começou-se a pintar — tanto pessoas como paisagens — por meio de fotografias. O resultado, diz Benjamin, são imagens humanas anônimas, não retratos. A pintura já conhecia rostos desse tipo, mas os quadros — a menos que ficassem com a família, na qual sempre haveria uma curiosidade pelo retratado — logo valeriam apenas como obras de arte.

Na fotografia, porém, surge “algo de estranho e de novo”: na mulher

[…] olhando o chão com um recato tão displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo, algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome de quem viveu ali, que na própria foto é real e não quer extinguir-se na “arte”.[8]

Uma presença. Outra vez, sob esse olhar recatado, o mesmo do cinema mudo, a beleza do vento soprando nas árvores.

Trata-se da possibilidade de a fotografia nos mostrar algo — o que um quadro nunca poderia fazer — que nem sequer fora visado pelo autor. Um relance de realidade imediata. A técnica mais exata pode, paradoxalmente, levar o observador a procurar na imagem algo que ali se imiscuiu, sem que o fotógrafo tenha planejado. “A pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem.” O invisível na fotografia, “o lugar imperceptível em que o futuro se aninha em minutos únicos, há muito passados, tão eloquentes que podemos descobri-lo olhando para trás”.

A fotografia logo substitui a pintura nos retratos de rosto e paisagem. Isso quando a introdução da pintura ao ar livre estava abrindo novas perspectivas. É que a fotografia dava mais conta do “efeito criado pela transparência da atmosfera”. Em suma: da luz. Aquilo que constitui a paisagem. Outra vez, o invisível.

Mas a verdadeira vítima da fotografia, com sua capacidade de captar a luminosidade das coisas, não seria, ainda segundo Benjamin, a pintura de paisagem e sim o retrato em miniatura. Nas primeiras fotografias “havia uma aura em torno dos indivíduos, um medium que atravessado por seu olhar lhes dava uma sensação de plenitude e segurança”. A mesma luminosidade que envolve a paisagem, ao pôr do sol.

Aqui também temos o resultado de uma técnica: o continuum da luz mais clara à sombra mais escura. O claro-escuro, decorrente da técnica pictórica renascentista do sfumatto. O imperceptível dégradé, a variação da sombra, que envolve a figura com um halo luminoso. Aquela auréola que circunscreve, de modo belo e significativo, a forma oval hoje antiquada da foto.

Essa aura seria depois expulsa da imagem, graças à eliminação da sombra por meio de filmes mais sensíveis e dispositivos de maior intensidade luminosa. O resultado, porém, foi um tom crepuscular, permeado de reflexos artificiais. Por meio do retoque, que reforçava essa auréola, a má pintura ainda se vingaria da fotografia. Mas então o gênero entraria em decadência.

Esse efeito é, no entanto, mais uma vez, produto do tempo. O “tratamento coerente da luz”, que segundo os fotógrafos da época “dá a estes primeiros clichês toda a sua grandeza”, resulta igualmente de um longo período de exposição. Assim como é o tempo que permite que a expressão, no rosto da figura fotografada, encontre sua forma mais sintética. As primeiras fotografias são portadoras de tempo.

Tudo nas primeiras imagens era feito para durar. Até as dobras de uma roupa duram mais tempo, são tão valiosas quanto as rugas no rosto do seu proprietário. Tudo nessas imagens — tidas, no entanto, como efêmeros retratos de momentos — é uma profunda marca do tempo.

Outra vez, a presença do invisível na imagem. Há na fotografia, diz Barthes, algo de insidioso: ela faz, por vezes, aparecer aquilo que nunca se percebe diretamente no rosto. Algo que se esconderia, paradoxalmente, nos seus traços: a descendência. Uma linhagem que se nota em retratos de família. A imagem em suspensão é capaz de conter o tempo, a continuidade da espécie. Aflora o que se depositou, imperceptivelmente, naquelas fisionomias. “A fotografia é como a velhice: mesmo resplandecente, ela desencarna o rosto, manifesta sua essência genética.”[9]

Por causa da sua força de evidência, a fotografia, para Barthes, é superficial. Não se deixa ver por dentro. Daí o problema dos retratos: queremos encontrar por inteiro, na sua essência, aquele que figura ali. É no caso do rosto, portanto, que essa superficialidade da fotografia é mais dolorosa: “ela só pode nos satisfazer por algo indizível, o air”. A atmosfera que emana do seu semblante, a expressão que estampa. Um ar de tristeza que o sombreie, um estado de graça que o ilumine. Um certo clima que envolve a figura, tomando todo o quadro. Algo que, apesar da sua rarefação, ela contém.

Aí reside o mistério do retrato. O look de um rosto é uma evidência. Dá-se por inteiro, como uma aparição. Não pode ser decomposto. Não é uma forma esquemática, como uma silhueta. “O air é esta coisa exorbitante que leva do corpo à alma.”

É como se o mesmo estupor que se tem ante a imensidão das cordilheiras ou dos mares pudesse ser experimentado com a fotografia. Quando nos deparamos com um retrato dotado desse misterioso clima. Aquilo que faz com que, ao percorrermos as fotos de alguém, uma nos leve à exclamação — “é isso! é ele!” — na qual acaba toda linguagem. Brusca iluminação, evidência, onde falham as palavras. A foto em que enfim a pessoa efetivamente está.

O sublime, contido porém não no maior, a paisagem, mas no menor, o rosto. O air é para Barthes aquilo que se dá graciosamente, despojado de qualquer significação. Aquilo que transparece quando o indivíduo apenas está ali, com naturalidade, se deixando fotografar. Para além de toda pose. Quando ele simplesmente se deixa revelar, transparência que creditamos como ingenuidade nos antigos retratos e nos filmes mudos. Quando desaparecem as máscaras, restando apenas a alma. “O air exprime o sujeito, na medida em que ele não se dá importância.”

O air é assim “a sombra luminosa que acompanha o corpo”. Aquilo que misteriosamente faz a vida de alguém se refletir no seu semblante. Diferente, portanto, da aura que Benjamin percebe nos velhos retratos, feita de luz. Trata-se aqui, antes, de um intangível inscrito no rosto. A fotografia tem de conseguir mostrar esse air. Nos dizeres de Barthes, “dar à alma transparente sua sombra clara”, o desenho dos seus contornos. É por meio dele que o fotógrafo dá vida — anima — ao retrato.

De todas as fotos que Barthes vasculha da mesma pessoa — sua mãe — é apenas numa que ele realmente a reencontraria. Em todos os outros retratos, ela apenas figura. Aqui, porém, tem-se A Fotografia. Aquela única em que não apenas a imagem se parece com ela, mas onde ela está. Onde a semelhança dá lugar à presença. Onde vibra o seu air. A fotografia como “imagem verdadeira”.

Para Valéry, a pintura reproduz em uma imagem o que os olhos não se fartam de ver. Algo que, portanto, nunca se oferece imediata e inteiramente, que sempre alimenta esse desejo. Algo que reside na profundidade da imagem, que nos é invisível.

É o que estabelece a distinção benjaminiana entre a pintura e a fotografia: aqui esse desejo é saciado. A fotografia nos mostraria tudo. Ela não tem espessura, não vai fundo na alma do que retrata. Pois a câmera registra a imagem do homem sem lhe devolver o olhar. Mas é inerente ao olhar a expectativa de ser correspondido por quem o recebe. Quem é visto, ou acredita estar sendo visto, revida o olhar. Perceber a aura de uma coisa significa investi-la do poder de revidar o olhar.[10]

Essa investidura — essa capacidade de despertar o olhar dos homens e da natureza — é o manancial da poesia. Uma expectativa — de ter o olhar retribuído — que hoje, entretanto, acaba frustrada. Defrontamo-nos com olhos que perderam a capacidade de olhar. O que significaria então, tendo em conta que se perdeu o fascínio da distância, retornar justamente para aquilo que foi o seu depositário, os rostos e as paisagens? Seria possível uma fotografia e um cinema que, como a pintura, reproduziriam o que os olhos não se cansam de ver?

Barthes observa fotos atuais, do fotojornalismo contemporâneo — pessoas na rua, carros, uma aglomeração, um acidente… — percorrendo-as na expectativa de que alguém, nas fotos, olhe de volta. Mas isso nunca acontece. Nas fotos amigas, porém — como nos primeiros filmes —, os indivíduos comumente encaravam, fixamente, com espontaneidade, a câmera.

A fotografia, no entanto, diz Barthes, tem o poder de nos olhar direto nos olhos. Uma concepção do destino da fotografia diferente daquela formulada por Benjamin, para quem essa capacidade de revidar o olhar — a aura — já teria se perdido definitivamente. Um olhar que, é certo, não vê. Mas é isso que para Barthes produz o particular do air. Sem ver, o olhar parece contido por algo interior. Ele retém emoções e sentimentos dentro de si. Nisso é que consistiria O Olhar.

Mas é um poder que efetivamente se perde cada vez mais na fotografia atual na medida em que — diz ele — a pose frontal tende a ser tomada por arcaica. Ou mesmo, como no cinema, proibida pela ficção. Aí em geral nunca ninguém nos olha. De fato, não se posa mais como se fazia, antigamente, rígidos e atenciosos, nos retratos. O olhar agora vaga em outra direção, perdido. Ou gestos suspensos, introduzindo a ação, quebram a imobilidade do retrato. É preciso atender, nas imagens contemporâneas, para ver aqueles rostos — e as paisagens — que estão nos encarando.

Imagens que procurem olhar o mundo nos olhos, que tentem deixar as coisas nos olharem. Perceber aquilo que faz as coisas falarem, a sua luz, o seu rio subterrâneo. Essa atitude — esse respeito pelas coisas — é ética. Olhar o mundo como uma paisagem, algo dotado de luz, de uma capacidade de nos responder ao olhar. Não se trata de procurar cenas naturais, mas de um modo de ver. Ver rostos e cidades como paisagens. Uma ética do olhar.

Paisagismo

Italo Calvino diz que existem duas maneiras de falar de uma cidade.[11] A primeira é descrevê-la. Dizer de suas torres, pontes, bairros e feiras. Todas as informações a respeito da cidade no passado, presente e futuro. É como inscrevê-la num atlas. Nesse mapeamento, porém, a cidade desaparece como paisagem.

As cidades, mais do que qualquer outra paisagem, tornaram‑se opacas ao olhar. Resistem a quem pretenda explorá-las. Uma simples panorâmica não dá mais conta de seus relevos, de seus rios subterrâneos, da vida latente em suas fachadas. Tornaram-se uma paisagem invisível. Um outro paisagismo é requerido para retratar esses horizontes que nunca resplandecem. Uma visão que se atenha ao encanto oculto em impressões fugazes, detalhes arquitetônicos, lembranças, nomes… Essas paisagens onde tudo o que se move à luz do sol é impelido pelas ondas que quebram sob o céu calcário das rochas. É o que Calvino vai pintar.

Todas as tentativas de descrição redundam numa mera enumeração que não dá conta da verdadeira paisagem. O desenvolvimento da fotografia e do cinema acarretou a morte da descrição clássica, os minuciosos painéis com que se reconstituíam lugares e personagens. O retratista e o escritor de folhetim são figuras desse período. Agora tudo se tornou visível demais. Com isso a literatura e a pintura perderam a paisagem.

A imagem explícita provoca o esgotamento da capacidade de descrever. O advento do cinema só aceleraria esse processo. Tudo passou a ser instantaneamente mapeado. A literatura — mas também todas as outras formas de olhar, inclusive fotográfico — voltou-se então para o menos evidente. Resgatar o que, na paisagem, não se destaca imediatamente contra o horizonte.

Sob a ditadura da visão imediata, o olhar perdeu sua abrangência panorâmica. Isso vale também para o rosto: hoje não há mais o costume sistemático de retratar, com o que se fez uma verdadeira fisionomia de uma época. Sem personagens nem rostos, a literatura tornou-se introspectiva, voltada para os mistérios e percalços da alma humana. E a pintura, por seu lado, mergulhou cada vez mais na abstração.

Como fazer o olhar recuperar a paisagem? Trata-se aqui das possibilidades de narrar a cidade sem ser pela descrição — pelas cifras arrecadadas pelos impostos ou pelas dimensões das novas avenidas. A questão: é ainda possível pintar paisagens?

Não por acaso Calvino recria o estilo fabular das histórias clássicas de aventuras. Na figura do viajante — Marco Polo — ele reedita o marinheiro de Benjamin, arquétipo do contador de histórias, para quem a perda da experiência no mundo contemporâneo impossibilita a narração. Calvino retoma as personagens e o tempo em que se relatavam terras distantes. Uma tentativa de resgatar a narrativa, “esta arte hoje em dia tão negligenciada”? Nesse gênero tão anacrônico — como o paisagismo — mas ao mesmo tempo tão atual, a literatura encontra a pintura.

O imperador ouve com particular interesse o explorador: recém-chegado e ignorando completamente as línguas da região, este não pode se exprimir de outra maneira senão “com gestos, saltos, gritos de maravilha e de horror”. O estrangeiro só pode transmitir as mesmas sensações que experimentara diante daquelas paisagens sublimes. Como se as estivesse contemplando naquele instante. Com o mesmo espanto e a mesma falta de palavras provocados pelo que é indescritível.

O aventureiro lança mão, para assinalar uma cidade, de pantomimas e objetos os mais variados, que é preciso interpretar. A relação entre os símbolos decifrados e os lugares visitados, porém, resta sempre incerta. Aqueles estranhos símbolos podem representar inúmeras coisas ou acontecimentos diferentes. Mas tudo o que ele mostra acaba ganhando o poder dos emblemas, que uma vez vistos não podem ser mais esquecidos.

Assim, mesmo depois de o viajante ter passado a fazer narrativas mais precisas e minuciosas, cada notícia traz à mente do imperador o primeiro gesto ou objeto com o qual o lugar lhe fora apresentado. As cidades estão agora dissecadas na sua frente, cada construção, cada ofício, mas ele só vê pedras douradas, plumas de avestruz e homens cantando para a lua. Tudo aquilo que, se fosse lá, não se poderia ver.

Mas o que o imperador considera interessante nos fatos referidos por seu inarticulado informante — diz ainda Calvino — é “o espaço que resta em torno deles, um vazio não preenchido por palavras”. Aquilo que não se poderia traduzir em linguagem, os limites da descrição, a possibilidade de nela se perder ou abandoná-la a meio caminho. Tanto é que, com o passar do tempo, as palavras — que servem melhor para apontar as coisas mais importantes — foram substituindo os objetos e gestos nas narrativas de Marco. Todavia, quando conta como devia ser a vida — esse indescritível — naqueles lugares, as palavras escasseiam e ele volta a fazer uso de gestos e caretas.

Uma outra maneira de ver a paisagem, de retratá-la, está se anunciando aqui. Pois hoje em dia a descrição está substituindo a paisagem. Não se pode, na maioria das vezes, dizer nada a respeito de uma cidade além do que seus próprios habitantes repetem. O que já se disse recobre seus contornos e nuances. Em certas horas, em certas ruas, surge a suspeita de que ali há algo de inconfundível, de raro, talvez até de magnífico. Procura-se até saber o que é, mas tudo o que se disse até agora sobre a cidade aprisiona as palavras e obriga a rir em vez de falar.

Nas cidades, os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas. Ícones, estátuas, tudo é símbolo. Signos urbanos, como as placas, letreiros, anúncios… Na natureza, a paisagem é muda, árvores e pedras são apenas aquilo que são. Aqui, porém, tudo é linguagem, tudo se presta de imediato à descrição, ao mapeamento da cidade. O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz como se deve vê-la. Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que conta e o que esconde, parece impossível saber.

Seria preciso saber ouvir — como faz o poeta C. Milosz — o seu silêncio, como se fosse uma paisagem feita apenas de árvores e pedras. Deixar as coisas como tais falarem. Livrar-se dos símbolos que anunciam as coisas. Só assim se pode entender a linguagem da cidade.

Uma outra paisagem, então, se descortina. Se não nos limitarmos às descrições costumeiras dos turistas, dos fiscais, dos cartógrafos e dos moradores habituais das cidades. Uma outra maneira de ver, um outro paisagismo. Cidades invisíveis se deixam entrever, ao se buscar contemplar essas paisagens essenciais. Vistas que até então passaram despercebidas dos lugares que já conhecemos, recantos que tinham ficado mergulhados na escuridão, edificações cujo perfil acabou esquecido.

Uma maneira diferente de falar de uma cidade: a partir das primeiras impressões que se têm ao chegar. A ideia que resulta daquele preciso instante, antes que o hábito venha criar outra imagem. Impressões de um olhar tomado pelo que jamais havia visto. Nenhum mapa ou almanaque estatístico, por mais abrangente que fosse, nos faria compreender como a cidade pôde abrir outras trilhas, para aquele que só conhecia as do deserto. Isso não está inscrito nas fachadas de seus prédios, não faz parte de seu traçado aparente.

Essas paisagens são feitas de cidades leves. Quando o mundo está recoberto de cidades que pesam sobre o solo e os homens, densas, sobrecarregadas de hierarquias e ornamentos, descortinam-se cidades delgadas, transparentes, capazes de crescer com leveza. Cidades que, como catedrais, apontem para o céu. Situadas no limite do alcançável, na extremidade do visível.

Elas podem ser também cidades desaparecidas, só imagináveis a partir das pedras e cinzas que restam delas mas que não poderão jamais reconstituí-las por inteiro. Ou então são cidades que ainda estão lá com todas as suas ruas, mas onde nada se pode ver de interessante: toda a sua antiga graça só pode agora ser apreciada por meio de velhos cartões-postais. Ou ainda cidades cuja imagem acabou indo residir nos seus nomes, capazes de evocar a vista, a luz, os rumores e até o ar no qual paira a poeira de suas ruas. É por meio de coisas assim — e não das descrições — que se pode obter um verdadeiro quadro dos lugares.

Essas são as tinturas com que Calvino desenha suas cidades invisíveis. Um paisagismo — fundado na luz, na cor, nos sons e na memória — que se assemelha ao delineado pelos panoramas urbanos de Benjamin. A mesma tentativa de surpreender o brilho intenso mas fugaz, a memória guardada nos objetos mais recônditos, o delicado sublime de horizontes quase desvanecidos. Em vez da grandiosidade da massa urbana, a beleza quase inapreensível presente nas primeiras impressões, na leveza, na memória e nos nomes das cidades.

Uma vontade insistente de fazer aflorar de cada frase — como se fossem pinceladas — mais uma coluna, mais um telhado, mais um vulto humano sentado à janela. Como se essas paisagens urbanas tivessem de ser resgatadas do limbo escuro em que ficaram confinadas e só se constituíssem nessas histórias. Como se as palavras — as imagens — tivessem de lutar sem descanso contra a opacidade e a retração da paisagem. Uma narrativa que se direciona sempre para um ponto onde algo ainda não foi dito, embora tenha sido obscuramente pressentido, que se desenvolve “na borda extrema do visível”.

O mundo está tomado por um lento mas inexorável processo de petrificação. O pesadume, a inércia e a opacidade aderem à paisagem, se não soubermos fugir delas. Assim como Valéry, ser o olho que transforma o muro em nuvem. Apoiar-se, diz Calvino, sobre “o que há de mais leve, as nuvens e o vento, e dirigir o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta”.[12]

“A leveza é um modo de ver o mundo”: toda uma paisagística está contida aí. Capaz de — sem deixar de dar concreção e espessura às coisas — subtrair peso do mundo. Leve, mas preciso e determinado como o voo de um pássaro. Capaz de tratar a gravidade com graça. “Retirar o peso” é transformar o mundo em paisagem, pintá-lo com aquarela, com pastéis. Buscar imagens de leveza — grãos de poeira que turbilhonam no ar, o vento soprando nas árvores. Aliviar a paisagem de todo o seu peso até fazê-la semelhante à luz da lua. Transformar tudo em luz: ideário clássico — por mais paradoxal que hoje possa parecer — da pintura de paisagem.

Nossa questão: quando é que se tem paisagem? Lyotard a formula esboçando a figura do paisagista. O que se entenderia, hoje, por paisagismo? A primeira referência é Kant: aquele que vê os objetos de outro modo, deslocado, de um ponto muito afastado. Como o desenho a voo de pássaro, que permite um julgamento de uma paisagem montanhosa muito diferente daquele que se teria da planície.

Mas, diz Lyotard, o rato da planície — em contraposição ao pássaro — também seria um paisagista. Um outro alienado, fora de lugar. Em vez do longínquo, a toca sem vista da toupeira. Não há privilégio de um elemento. “Haveria paisagem cada vez que o espírito se transportar de uma matéria sensível a outra, conservando a organização sensorial conveniente para a primeira, ao menos na lembrança.”[13] O campo visto pelo citadino. Enfim, um ponto de vista deslocado. “O desenraizamento seria uma condição da paisagem.”

A função paisagística da luz, por exemplo, seria então o deslocamento no mundo. A paisagem é assim o contrário do lugar. É desprovida de toda função. Como os quadros num museu. “Uma marina, um lago de montanha, um canal numa metrópole podem assim ser suspensos acima de toda destinação, humana ou divina, e deixados ali” (p. 194). Na sua presença, aqui e agora. Não vamos nos perder nelas, o sentido delas é que se perde.

Trata-se, para Lyotard, do privilégio dos desertos, montanhas, oceanos, céus e ruínas no paisagismo: não terem destino, um fim determinado. Serem, portanto, capazes de nos tirar do lugar. O indeterminado é que os descortina como paisagem.

Sempre falta alguma coisa para se alcançar a paisagem — muros, obstáculos. É a melancolia de todas as paisagens. Elas exigem a consumação do espírito. Sem isso, não seriam paisagens, mas lugares. A paisagem não é nunca um lugar — a que se pertence. Nesse sentido, ela é que leva ao deslocamento, não o inverso. “A paisagem desola o espírito.”

O que faz, então, um lugar tornar-se paisagem? Um lugar, diz Lyotard, tem de ser como um templo para se fazer paisagem. Mesmo uma praça, numa manhã de inverno, tomada por milhares de veículos. Um templo, espaço-tempo neutro, sem história nem geografia. Onde o caminhante solitário pode impor silêncio à intriga dos desejos e da inteligência. Não é preciso ter experiências ou opiniões sobre a paisagem. Ela existe sem associações ou sínteses. É preciso emudecer o espírito para que possa aparecer a paisagem. Aqui não há, definitivamente, como falar dela. Como, então, retratá-la?

Será que olhamos um quadro e vemos uma paisagem?, pergunta-se Lyotard. Como uma janela, diriam os italianos. “Mas o ideal da transparência, do suporte abrindo para uma visão em profundidade, cessou de comandar a organização figurativa.” A mise-en-scène se mostra na frente do que é representado. O artifício se assinala. “A paisagem e o rosto são assim colocados em sursis de presença.”[14]

A pintura, diz Lyotard, parece negar a presença. Mas aí, continua, por que pintar? Bastaria escrever. Porém, tudo num quadro — e sobretudo a cor — é signo de presença. O azul luminoso de uma certa manhã de verão, palidez muda que até hoje nos maravilha o espírito. E esse timbre cromático que o artista quer obter. Ou melhor: o quadro deve ser, para qualquer observador, um acontecimento, este azul, aquela manhã. A presença não se perde por ser representada, ela passa para o quadro.

Daí a importância dada à cor, em detrimento do desenho. A cor é a retração do traço. No desenho, a paisagem nos escapa — como se estivéssemos sentados de costas num trem. Na tela colorida a direção se inverte: a paisagem vem em nossa direção, revelada pela graça da luz, que o corte abrupto do traço ignora. “Um acesso à alma é aberto pelas tintas intermediárias entre noite e dia que banham o rosto e a paisagem.”

Então, pintar o quê? Não importa, na verdade, para Lyotard, o que é representado no quadro. Pintar retratos e paisagens, não para mostrar seus contornos e relevos, as expressões e os eventos que neles se deem. Ao contrário, pintar rostos e paisagens para testemunhar a presença. Aquilo que parece impossível estar ali: “o céu do entardecer no olhar de uma criança”. O que escapa à intriga e se aproxima — pela matéria, pela cor — do inenarrável.

Tentando fazer ver ao leitor as paisagens pintadas por Vernet, Diderot simula em seu texto que passeia por elas. Como se ele não estivesse diante da disposição das cores, mas em meio a elas. Com isso ele como que abole a oposição entre realidade e imagem, volume e superfície. Aqui reside, para Lyotard, a questão da pintura, mais atual do que nunca: ao mostrar que as imagens são exposições, Diderot sugere também que as exposições são paisagens. Esses quadros podem ser vistos como se fosse pela primeira vez, como se fossem paisagens.

É preciso, diz Lyotard, conseguir descrever a paisagem. Sempre o mesmo imperativo. Mas como, sem falar de como se chegou, quando — os acontecimentos, a ação? Basta ter o olhar desarmado. A narração faz correr o tempo, a paisagem o suspende. Não é impossível tornar-se disponível à invasão das nuances, tornar-se passível ao timbre. A cor é propícia a essa desmobilização do olhar. “Para ser passível da paisagem, é preciso se tornar impassível ao lugar.” Este é, enfim, para Lyotard, o desafio da pintura: fazer ver a presença.

Mas a imagem contemporânea pode falar da paisagem, do sublime? A imagem seria capaz de, como postula Deleuze, exercer um choque sobre a imaginação, levando-a ao seu limite? Um choque que force o pensamento a aventar a presença de algo que não pode ser pensado. Mas como podem as imagens abordar essa impotência essencial do pensamento? A imagem cinematográfica, diz, opera uma suspensão que, longe de tornar visíveis as ideias, dirige-se ao que não se deixa pensar, ao que não se deixa ver. O pensamento, no cinema, é confrontado com sua própria impossibilidade.[15]

Esses grãos dançantes não são feitos para serem vistos. O cinza, o vapor, a névoa — em Dreyer ou Kurosawa — constituem um “aquém da imagem” que não é um véu indistinto colocado diante das coisas, mas um “pensamento sem corpo”. Essas cenas, feitas de poeira luminosa, longe de serem abstratas, são as mais perturbadoras do cinema. Imagens em que a indiscernibilidade da terra e das águas, do céu e da terra, evidencia a impossibilidade do pensamento. Suspensão do mundo que torna visível. O visível do invisível.

Os amantes do teatro argumentam que ao cinema faltará sempre alguma coisa, a presença dos corpos. Ele só mostraria ondas e luzes que simulam coisas. Mas já se disse — desde A. Bazin — que existe outra modalidade de presença, cinematográfica, própria da imagem. Porque a imagem — operando com aquela “poeira luminosa” — afeta o visível de um modo que contradiz a percepção natural. Ocorre então a gênese de um visível que ainda escapa à visão. O advento de corpos em função de um branco, de um preto, de cores, de um começo de visível que ainda não é figura nem ação. Pois, para Deleuze, o problema não é o de uma presença de corpos, mas o de “uma crença capaz de nos devolver o mundo e o corpo a partir do que significa sua ausência”.[16] A presença — pela ausência — de rostos e paisagens.

Quando a mídia parece querer transformar o mundo em imagens, multiplicando-as ao infinito, destituídas de necessidade interna, de significado, o problema está precisamente, diz Calvino, em apreciar a beleza do vago e do indeterminado. A beleza daquilo que justamente não tem imagem. O vento batendo nas árvores.

Um esforço para dar conta do aspecto sensível das coisas, de tudo aquilo que não é dizível. Sair na perseguição daquilo que escapa à expressão, da infinita variedade das coisas mais humildes e contingentes. Um aproximar-se das coisas com discrição e cautela, respeitando o que as coisas comunicam sem o recurso das palavras. Desenvolver o poder de evocar imagens in absentia. Imagens de tudo aquilo que não é, mas poderia ter sido. Imagens que não constem do repertório disponível, cada vez mais confundido com nossa experiência direta. “Fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na primavera e a árvore no outono, a pedra, o cimento, o plástico…”

Tempo

Mas perceber esses horizontes invisíveis exige tempo. Assim como para apreender a expressão no rosto, o olhar que nos devolve. Mas poderiam as imagens contemporâneas salvar as coisas de sua crescente miséria? Haveria ainda imagens essenciais, realmente únicas e insubstituíveis? Será que elas ainda têm a força de significar e nos mobilizar?

Seriam a fotografia e o cinema — para não falar da televisão — comumente associados à avalanche de imagens que inunda nosso horizonte visual, ao clamor ensurdecedor com que coisas e sentimentos reivindicam sua presença, capazes de contribuir para sustar a fugacidade de tudo o que nos cerca? A reprodução técnica, tida sempre por responsável pela cancerosa proliferação das imagens, pelo fluxo vertiginoso em que nada dura, em que tudo se desfaz, poderia servir para selecionar e conservar as coisas? Para isso, é preciso que as imagens tenham tempo, que saibam esperar. Deixar as coisas crescerem, as situações se cristalizarem.

As imagens atuais têm tempo? Será que elas teriam história, a possibilidade de evidenciar passado? Seriam capazes de durar mais, de não passar tão rapidamente sob os nossos olhos? Nada parece mais impertinente e anacrônico do que pedir a estas imagens inquietas e vertiginosas que fiquem. Agora que tudo serve para ir cada vez mais rápido, não se trataria, ao contrário, de restituir lentidão às imagens?

A rapidez — um dos preceitos da cultura contemporânea — inclui também, como nota Calvino, o retardamento. Um olhar que, como na pintura, se demora. Agilidade combina com divagação, o saltar de um assunto a outro. A digressão é uma multiplicação do tempo. A literatura — diríamos também a imagem — deve levar em conta este “tempo que flui sem outro intento que o de deixar as ideias e sentimentos se sedimentarem, amadurecerem, libertarem-se de toda impaciência e de toda contingência efêmera”.[17] O tempo pedido pelas coisas.

Uma durée que se acredita própria apenas à literatura. Em meio a tudo aquilo que proclama insistentemente sua existência — em particular pela publicidade — seriam as imagens mais contemporâneas também capazes de fazer cada coisa esperar a sua vez? Poderiam servir para, em vez de descartar as coisas, preservá-las?

Todo um cinema surge daí, capaz de observar a matéria se acumular, a geologia de elementos, lixo e tesouros que se constitui vagarosamente. Aí a imagem mais plana se vinca quase insensivelmente, se estratifica, formando zonas de espessura que forçam o percurso. É esta lentidão que conserva. Não se trataria então — seguindo o conselho de Godard — de ensinar as imagens contemporâneas a andar mais lentamente?[18]

Afinal, diz ainda Deleuze, por que se viaja, se não é para verificar? Verificar uma coisa qualquer, algo inexprimível que vem da alma, de um sonho ou pesadelo. Ainda que seja para saber se uma cor improvável, um raio de luz verde ou uma atmosfera púrpura existe mesmo em algum lugar. Ir ao Japão para verificar como o vento de lá desfralda as bandeiras de Ran, de Kurosawa. Sempre o vento, este invisível. Mas, como não ventava naquele dia, simples éolos vão substituí-lo e “como por milagre vão trazer à imagem este suplemento interior indestrutível, esta beleza ou este pensamento que a imagem conserva porque só existem na imagem, porque a imagem é que os criou”.

O cinema é capaz de mostrar cenas como esta — a indizível beleza do vento nas árvores — porque ele conserva. Aparente paradoxo sugerir que um material tão frágil e perecível possa conservar. Mas, diz Deleuze, é a própria imagem cinematográfica que, em si mesma, é capaz de preservar. Ela conserva as crianças, as casas vazias, os plátanos… Ela conserva o vento. Não as grandes tempestades, mas quando a câmera brinca com o vento adiantando-se ou voltando atrás dele. O cinema preserva todas essas coisas que, de outro modo, não veríamos mais. Mas conserva apenas “porque o tempo cinematográfico não é o que flui, mas o que perdura e coexiste”.

O cinema de Ozu, Bresson e Dreyer — para nos atermos aos mais citados — são exemplos de cinemas de imagens transcendentais. Imagens em que o tempo, liberado de suas amarras, apresenta-se em estado imediato. Imagens sem relação com o espaço e a ação. Presentação direta, contemporaneidade do passado e presente, do tempo. Os momentos — como que lapsus de tempo — de suspensão, em que nos filmes de Ozu o vento sopra ou passam trens.

O cinema foi capaz de efetivamente fazer aflorar essa dimensão essencial, a temporalidade. Mizoguchi inventou — em filmes como Crisântemos tardios (1939) — o “plano-sequência”. De qual cultura, com efeito, poderia provir olhar cinematográfico mais contemplativo? Esse plano, também conhecido como one scene/one shot, consiste em fazer uma sequência inteira em uma só tomada, sem cortes. Não há montagem. Em vez de reconstituir, pela edição de diversos pontos de vista, sinteticamente, um acontecimento, a câmera — estática ou percorrendo a cena — apenas observa o seu desenrolar.

Não é o cinema que cria o evento, mas este é que ocorre à nossa vista. Faz-se presença. O plano-sequência é mais longo, dura mais. Dá tempo para o acontecer. O cinema respeita o ritmo e a disposição das coisas. É o que faz com que suas imagens sejam reais. Imagens únicas, essenciais. Esse distanciamento, a não interferência no fluxo da realidade filmada, é para esse cinema condição para se chegar à essência do real. Poucos são os momentos, no cinema contemporâneo, em que podemos sentir o escoar do tempo. No geral, ele é arrastado pela vertiginosa intensidade da ação e da violência.

Tarkóvski — autor de Stalker (1979) e O sacrifício (1986), dentre outros filmes — é que, no cinema atual, nos faz sentir o tempo. Para ele, o tempo é a própria condição de existência da imagem. O cinema, antes de mais nada, é a possibilidade de — pela primeira vez — apreender um fenômeno na sua duração. Mas não é só isso: a imagem, para ele, torna-se verdadeiramente cinematográfica quando não apenas vive no tempo, mas quando o tempo também está vivo em seu interior, em cada um de seus fotogramas.

O ritmo, então, é aqui o fator determinante da imagem cinematográfica. Mas esse fluir do tempo se dá não na montagem, e sim no interior do quadro. As tomadas já são impregnadas de tempo. Uma tendência interior do material filmado, a sua natureza e unidade essenciais, acaba determinando — se soubermos reconhecer este seu significado e princípio vital — o ritmo das imagens.

Assim, não é a extensão das tomadas, mas a pressão do tempo que passa através delas que deve modular a montagem. Tempo que se torna perceptível, em cada sequência, quando sentimos algo de significativo para além do que está sendo mostrado, indícios de algo que não se esgota no quadro, que leva a imagem a apontar para o infinito. Ao diretor cabe captar esse fluxo temporal, registrado no fotograma. Permitir que o tempo escoe com independência e dignidade, pois só assim as coisas encontrarão nele o seu lugar. Fazer cinema é “esculpir o tempo”.[19]

A montagem pode, efetivamente, ser uma maneira de inscrever o tempo nas imagens cinematográficas. As diversas modalidades de montagem são, para Deleuze, modos de criar — ainda que indiretamente — esse impalpável. Modos de retratar as coisas na sua durée. Assim é que, no cinema soviético, o todo se sobrepõe às partes, como uma imensidão. Aqui as coisas mergulham verdadeiramente no tempo e tornam-se imensas, porque ocupam um lugar sem medida. Onde tudo encontra simultaneamente tanto o passado mais longínquo quanto o futuro profundo. Onde as imagens se comunicam com uma história milenar.[20]

É possível continuar produzindo imagens dotadas da mesma duração, portanto de permanência? Imagens tão carregadas de tempo quanto os planos-sequências? É ainda difícil dizer. Só podemos evocar situações nas quais a magia da técnica antiga parece subsistir nas novas imagens. Como Dekalog, a série — inspirada nos dez mandamentos judaico-cristãos — feita para a tv pelo polonês Krzysztof Kieslowski, em 1988.

Todas as histórias tratam de dilemas morais, de indivíduos tomados pela necessidade de valores e a dificuldade de sustentá‑los num mundo em que as diferenças entre bem e mal, verdade e mentira, tendem a se diluir. Quando a mídia é dominada por histórias em que nada tem significado — a ação se justificando por si mesma — e por personagens desprovidas de qualquer drama interior, Kieslowski nos apresenta indivíduos confrontados com a crença, a integridade, a intimidade e a verdadeira entrega amorosa.

Não se poderiam imaginar questões mais distantes do horizonte da indústria cultural contemporânea. E, no entanto, o resultado são situações comoventes, carregadas de suspense e dramaticidade. Quando tudo é cada vez mais encenado e artificial, temos um mundo inequivocamente humano e vital. A tv pode ser veículo de histórias morais.

Um universo menor, povoado por gestos sutis, tensões pouco explicitadas e dramas pessoais que, no entanto, transcendem seus limites para atingir o essencial. As questões básicas da existência humana, da vida e da morte. Todo supérfluo é descartado, tudo é reduzido ao fundamental.

Essas imagens evitam a banalidade do atual: cada instante é a cristalização de toda uma existência. Uma mulher chora ao descobrir que estava sendo verdadeiramente amada por alguém que parecia espioná-la; um médico mente para fazer a paciente ter um filho que não é de seu marido… Consistência e sentido são devolvidos a esses gestos tão simples. Esses momentos são verdadeiros estados de graça.

O destino das imagens não está mais sendo jogado no experimentalismo de vanguarda nem no engajamento ideológico, discursos completamente integrados no sistema de produção de clichês. O futuro das imagens está na procura do sublime. O sagrado, refugiado nos objetos e paisagens tão sem transcendência do mundo contemporâneo. Poderiam a fotografia e o cinema — ruidoso universo do descartável — nos emudecer e voltar nossos olhos para o infinito? Poderiam suas imagens ganhar poder evocatório, carregando-se de história? Para isso, porém, é preciso saber ouvir o seu peculiar silêncio, sentir o ritmo particular da vida nos seus rostos e paisagens.

Ética

A questão da paisagem é hoje ética. Retratar o mundo como paisagem, deixá-lo se constituir em horizonte. Mesmo que não se possa mais vê-lo como totalidade. Contemplar a cidade, permitir que ela se configure como paisagem, em vez de construí-la como cenário. Respeitar a estrutura, o tempo, a história do lugar. O quadro, a foto, o plano cinematográfico devem permitir — no enquadramento, na duração — que a paisagem se faça presente. Ainda que apenas para afirmar sua problematicidade.

Que fazer ante o intolerável do mundo e, logo, a impossibilidade de pensar, de retratar? Acreditar, diz Deleuze. Não em um outro mundo, mas na ligação do homem com este mundo. Reatá‑lo novamente ao que ele vê e ouve. É preciso que o cinema filme não o mundo, mas a crença nele, este invisível. No que consistiria, enfim, a ilusão cinematográfica? Devolver-nos a crença no mundo, este é o poder do cinema moderno. A questão não é mais: “o cinema nos dá a ilusão do mundo?”. Esse projeto — do século XIX — se esgotou na sobreexposição hiper-realista. Mas é: “como o cinema nos resgata a crença no mundo?”. Esse ponto que instaura o reino do que não tem medida. Quando as imagens rompem seus laços para se reorganizarem segundo outras ordens. Aqui não há mais representação do exterior nem expressão do interior. Apenas a imbricação de ambos naquilo que, na imagem, é o invisível.

A mesma ética que esboça Calvino. Também uma profissão de fé no mundo. Mas naquilo que no mundo é menos evidente, menos granítico. Uma aposta na “persistência do que há de mais aparentemente perecível e nos valores morais investidos nos traços mais tênues”.

É aqui que, para Barthes, se põe a questão ética. Não que a fotografia seja, como se dizia, imoral ou diabólica. Mas, ao se generalizar, ela “desrealiza” por completo o mundo dos conflitos e desejos. Passamos a consumir apenas imagens, eliminando toda experiência direta.

Daí suas referências aos momentos em que a fotografia parece religada imediatamente ao mundo. Como no caso do retrato. O air para Barthes teria algo de moral, refletindo misteriosamente no rosto de alguém o seu caráter, os seus princípios de vida. É essa capacidade de aflorar o mais interior de alguém, sua alma, que faz essa imagem mais verdadeira.

Essa exigência de se abrir ao que, na paisagem, não se evidencia, é que, por fim, para Lyotard, é ética. A pintura atesta a presença. Ética: testemunhar este evento. Exigência de apresentar o inapresentável, dizer o indizível. A pintura procura tornar visível, presente — não alguma coisa, mas a própria presença. O azul daquela manhã de verão. A possibilidade deste impossível: a ocorrência da paisagem. A beleza do vento soprando nas árvores.

Notas

[1] G. Deleuze, L’image-temps, Minuit, 1985, pp. 292-3.

[2] M. Kundera, A imortalidade, Nova Fronteira, 1990.

[3] A. Masson, “Le geste, en peinture et sur l’ecran”, em Peinture et cinema, Quimper, 1986.

[4] G. Deleuze, op. cit., p. 147.

[5] J. F. Lyotard, L’inhumain, Galilée, 1988, p. 200.

[6] W. Benjamin, “Pequena história da fotografia”, em Obras escolhidas I, Brasiliense, 1985.

[7] Idem, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, em Obras escolhidas I, op. cit., p. 174.

[8] Idem, “Pequena história da fotografia”, op. cit., p. 93.

[9] R. Barthes, La chambre claire. Note sur la photographie, Gallimard-Seuil, 1980, p. 162.

[10] W. Benjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire”, em Obras escolhidas III, Brasiliense, pp. 139-40.

[11] I. Calvino, As cidades invisíveis, Companhia das Letras, 1990.

[12] Idem, Seis propostas para o próximo milênio, Companhia das Letras, p. 16.

[13] J. F. Lyotard, op. cit., pp. 193-4.

[14] Idem, Que peindre?, ed. de La Difference, 1987, p. 10.

[15] Idem, L’inhumain, op. cit., p. 162.

[16] G. Deleuze, L’image-mouvement, Minuit, 1983, p. 262.

[17] I. Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, op. cit., p. 17.

[18] G. Deleuze, “Optimisme, pessimisme et voyage”, pref. S. Daney, Ciné-Journal, ed. Cahiers du cinema, 1986.

[19] A. Tarkóvski, Esculpir o tempo, Martins Fontes, 1990, p. 11.

[20] G. Deleuze, L’image-mouvement, op. cit., p. 58.

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