Vieira, o índio e o corpo místico
Resumo
O padre Antônio Vieira, quando trata da questão do índio, não é nem progressista nem ideólogo a serviço dos colonizadores. Seus Sermões devem ser lidos à luz das crenças da época: obrigação evangélica de “pregar a toda criatura” que justifica o direito missionário sem coação violenta; insistência nos efeitos desastrosos dos cativeiros injustos; confiança de que costumes viciosos possam ser corrigidos com paciência. Além disso, a ação espiritual fortalece o Estado português. Para Vieira, o valor do cativeiro é relativo (de acordo com a doutrina cristã que entende a liberdade como conhecimento do Bem), mas ele considera um crime descuidar da salvação da alma dos cativos. Sua atitude básica é conciliatória e coerente. Busca acomodar as posições contrárias dos jesuítas e dos colonos. E se há algum remorso em seus discursos é por não obter a independência administrativa das missões e a prerrogativa exclusiva (exigida por razões de eficácia) dos jesuítas sobre elas. Vieira também reconhece a dificuldade maior de conhecer a língua dos indígenas e, mais ainda, de enfrentar a docilidade enganosa com que eles aceitam a fé, o que obriga a um trabalho interminável para conduzi-los ao corpo místico da Igreja. Diante da “qualidade da gente” do Brasil é preciso pregar como às pedras, diz ele, aceitando esse fato como a provação do amor cristão. Vieira, portanto, não idealiza o índio, mas este se insere no seu projeto ideal e providencial de um Quinto Império de mansidão e sossego do qual a força de sua oratória é o anúncio.
Se é trabalho ouvir a língua que não entendeis, quanto maior trabalho será haver de entender a língua que não ouvis?
Antonio Vieira, Sermão do Espírito Santo
O tema do índio em Vieira admite muitas entradas, mais talvez do que as necessárias para um bom entendimento dele. É conhecido o seu apelido de “papai grande” dos índios do Maranhão; conhecida é sua dedicação como missionário que se embrenha pelo rio das Amazonas, depois de desfrutar das conversações das cortes de Haia, Roma, Paris e Lisboa, de ter privança com dom João IV, primeiro rei bragantino de Portugal, de ser confessor de seu primogênito, o príncipe dom Teodósio. Para contar como esta mudança se deu, o próprio Vieira não o faz sem perplexidade, à qual acaba assimilando uma chave providencialista. À lembrança de sua carreira na Corte interrompida bruscamente com a partida para o Brasil em um navio do qual, esperava, seria desembarcado por ordem expressa de el-rei; à dificuldade de crer que a ordem não tinha vindo afinal e de que já se afastava irremediavelmente sua caravela da baía de Lisboa, fazendo-se ao mar alto, Vieira sentia-se, como escreveu, certa vez, dentro nela e fora de si.[1] Posteriormente, comentando o caso em cartas ao rei, ao príncipe e a amigos, remete tudo à conta dos desígnios do Altíssimo: “Venceu Deus!”, dirá, conformado.[2]
Mas ainda mais o tema aturde quando se topa com o emaranhado de equívocos que alguma fortuna crítica acumulou sobre ele. Dois deles, em particular, têm complicado a interpretação verossímil da posição de Antonio Vieira no trato dos índios, e, por extensão, a dos jesuítas, no Brasil Colônia. O primeiro equívoco é do tipo que quer ver em Vieira um “progressista”, ou quase, um “consciência possível” no obscurantismo do passado compreendido em esquema histórico evolucionista. Aqui Vieira antevê e adota, quanto pode, a perspectiva de uma Razão universal que se opõe ao atraso da escravidão, e propõe Igualdade e Liberdade como os fundamentos da sociedade justa. É assim uma espécie de Vieira afrancesado e setecentista — pré-ilustrado — que surge daí, quando não um Vieira pré-marxista.[3] O segundo equívoco, em compensação, erra pelo lado contrário: o progressismo de Vieira, numa leitura rigorista de sua “consciência possível”, não seria outra coisa que a face mais amena, logo mais falsa, de um projeto decididamente autoritário e ideológico, em que a oratória das boas intenções não passa de ornato nocivo, a serviço da destruição das nações e valores indígenas promovida pela gente da Colônia, Metrópole e Igreja. O “progressista”, agora, é só quem o denuncia.[4]
Entretanto, a meu ver, nem ilustrado, nem ideólogo; nem libertário, nem retrógrado, Vieira precisa ser relido à luz da energia de seu estilo no campo de força das crenças de seu tempo: retirá-lo daí é, instantaneamente, renunciar a um retrato crível de sua pregação.
Mas, por outro lado, como acercar-se direitamente dele? Caminho prudente é delimitar o período a ser estudado, ao longo do século quase de sua vida. E é relativamente fácil proceder ao corte: em seus sermões e cartas nunca Vieira se dedicou tanto à questão indígena quanto no período que vai de sua saída atônita de Lisboa, em 1652, com destino às Províncias de Maranhão e Grão-Pará, até o ano de 1662, quando, novamente em Lisboa, comenta os sucessos que motivaram a sua expulsão e a dos demais jesuítas que militavam naquelas terras — isto já pouco tempo antes da subida ao trono de Afonso vi e início de seu processo inquisitorial. O intervalo inclui os escritos produzidos no ano de 1655, que Vieira passa também na Metrópole, cuidando de obter garantias de cumprimento das leis ditadas pelo Conselho Ultramarino que o governo da Colônia dificultava executar.[5]
Igualmente adequado, metodologicamente, pareceu-me subdividir o tema do índio em domínios mais precisos, nascidos já do próprio exame rigoroso dos textos de Antonio Vieira, no período delimitado. Feita uma análise tão exaustiva quanto possível do material pertinente, cinco aspectos mostraram-se recorrentes e predominantes no agrupamento das tópicas mais restritas levantadas nos sermões e cartas. A eles, pois.
TÓPICAS DA SEGUNDA ESCOLÁSTICA
Basta que se conheça o temário dos tratadistas espanhois da Segunda Escolástica que discutiram os títulos de justificação da Conquista, para que muito do que se tem atribuído a uma visão particularmente precoce de Vieira sobre o índio se revele apenas como uma retomada de questões já consideradas amplamente, e mesmo de maneira mais complexa, no século anterior. A insistente glosa do tema da obrigação evangélica de “pregar a toda criatura”, que se contrapõe à recusa de estender a fé ao índio sob a alegação de sua pouca inteligência e capacidade espiritual, é apenas um exemplo, entre tantos, desta retomada. Assim, para Vieira, como para os Escolásticos, o esforço da conversão é gesto cristão inalienável do contato com os novos povos, independentemente de seu grau de polícia, civilização ou racionalidade: um dever religioso que se impõe sobre qualquer consideração de inferioridade de natureza ou barbárie de costume.
O indígena, deste ponto de vista, está decididamente incluído na lei natural da potência humana análoga a Deus — capaz, portanto, de pertencer ao grêmio da Igreja, submeter-se ao Império de Cristo e ganhar a Bem-Aventurança. Esta pertença define-se, por sua vez, no interior de uma tripla condição: a de que não pode ser entendida fora da relação hierárquica que ordena o grêmio; a de que existe um conjunto de direitos adquiridos através dela, que os colonizadores devem reconhecer; e a de que existe, da mesma forma, um direito natural a ser reconhecido pelos índios sob pena de dar justa causa à guerra que lhe movesse o conquistador: tal é o direito missionário, derivado diretamente do mandado divino de pregação a toda criatura, em que nenhum povo age legitimamente ao impedir ou estorvar a pregação cristã entre sua gente.[6] Ou seja, assim como os índios não podem ser tomados como seres excluídos do direito natural e das gentes, por esta mesma inclusão, não podem, sob pena de guerra, impedir a ação missionária, causa última a providenciar a vinda dos cristãos ao Mundo Novo.
Não é também senão seguindo a posição defendida pela maioria dos autores da Segunda Escolástica que o padre Antonio Vieira vai admitir como legítimas as formas próprias de organização política dos índios e o direito de posse de seus bens — embora, aqui, esta questão da posse não tenha chegado a constituir um problema tão grande como na discussão dos espanhois: sem sombra de ouro ou prata, os brasis eram gente paupérrima, como vai alertar Vieira. Mas esta admissão de polícia e propriedade, embora bastante condicionada, como ainda se vai ver, bastava para impedir que se tomasse por justa causa de guerra a recusa das tribos de se descerem para as missões.
Da mesma maneira, quando Vieira faz a crítica do cativeiro, a partir do argumento de que a condição natural do ser humano, criado por Deus à sua imagem e semelhança, é a de liberdade, são os lugares-comuns escolásticos que lhe dão a munição teológica que precisa. Racionalmente injusta e religiosamente condenável, a redução do indígena à situação de escravo, agravada pela coação violenta, é crime temporal e espiritual. Apenas a prédica pacífica justifica-se quando não há agressão vinda do índio ou impedimento do direito missionário. A partir daí, o tema do “pecado mortal do cativeiro”, que celebrizou a Las Casas, tem igualmente em Vieira um afincado defensor e irado profeta — mas orador muito melhor. No Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, de 1653, Vieira interpela duramente seu auditório:
Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, o qual é o jejum que quer Deus de vós esta quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão, estes são os que Deus me manda que vos anuncie: Annuntia populo meo scelera eorum. — Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal, todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vos ides direitos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida.[7]
E reitera: “Todos ao inferno, sem ficar nenhum, porque onde todos perseguem, e todos cativam, todos se condenam”.[8]
Mas o aspecto em que Vieira insiste muito mais que os tratadistas ibéricos é o relativo aos efeitos desastrosos da manutenção dos cativeiros injustos, tanto para os senhores particulares como para o comum da Colônia, que se vê assolada por várias “pragas”: “Sabeis quem traz pragas às terras? Cativeiros injustos. Quem trouxe ao Maranhão a praga dos holandeses? Quem trouxe a praga das bexigas? Quem trouxe a fome e a esterilidade? Estes cativeiros”.[9]
Em carta endereçada formalmente ao rei dom Afonso vi, em 1657, quando este contava com apenas catorze anos e os negócios do Brasil, na verdade, estavam nas mãos de sua mãe, a rainha-regente dona Luísa de Gusmão, e do Conselho Ultramarino, Vieira é ainda mais duro na responsabilização da cabeça do Estado, omissa diante da prática injusta do cativeiro:
Senhor, os reis são vassalos de Deus, e, se os reis não castigam os seus vassalos, castiga Deus os seus. A causa principal de se não perpetuarem as coroas nas mesmas nações e famílias é a injustiça, ou são as injustiças, como diz a Escritura sagrada; e entre todas as injustiças nenhumas clamam tanto ao céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres, e as que não pagam o suor aos que trabalham.[10]
E relendo a desgraça dos Avis, sob a figura do crime que ameaça aos Bragança, carrega o futuro dos mais funestos presságios:
A perda do Senhor Rei Dom Sebastião em África, e o cativeiro de sessenta anos que se seguiu a todo o reino, notaram os autores daquele tempo que foi castigo dos cativeiros, que na costa da mesma África começaram a fazer os nossos primeiros conquistadores, com tão pouca justiça como a que se lê nas mesmas histórias.[11]
E ainda agrava o tom agourento, quando busca a analogia escritural dos desastres causados pelos cativeiros, que pesam sobre a consciência real:
Com grande dor e com grande receio de a renovar no ânimo de V. M., digo o que agora direi: mas quer Deus que eu o diga. A El-rei Faraó, porque consentiu no seu reino o injusto cativeiro do povo hebreu, deu-lhe Deus grandes castigos, e um deles foi tirar-lhe os primogênitos.[12]
Achada a figura deste castigo de morte, trá-lo cruamente ao presente da rainha-mãe, que, em 1653, perdera o filho mais velho, dom Teodósio, e a primeira das filhas, a infanta dona Joana. A ambas as mortes atribui a culpa à criação, naquele ano, de uma lei com muitas “larguezas na matéria do cativeiro dos índios”, a qual, depois, embora tarde demais para valer aos filhos, fora justamente revogada.
Mas voltando aos passos que Vieira dá em seguimento dos padrões fincados mais de meio século antes pelos tratadistas espanhois da matéria, ele vai se manifestar contrário à coação violenta dos índios, que considera ilegítima e ineficaz. O tratamento suave podia lograr maior êxito. Já na Carta Ânua, Vieira afirmava que os índios ficavam “cativos” do “bom trato e conversação”[13] que lhes dispensavam os jesuítas. Isto supunha evidentemente que os índios fossem dotados de entendimento e capacidade de aprendizado da doutrina cristã, crença já bem estabelecida entre os tratadistas espanhois do século anterior. Àquela época, esta posição opunha-se às teses conhecidas do teólogo John Major, depois reapresentadas por Juan de Quevedo e Juan Ginés de Sepúlveda, que não viam no índio senão o servo por natureza que Aristóteles distinguira na Política, e que se caracteriza pela força física, o engenho deficiente e a incapacidade de governar-se.[14] Um argumento pouco comum que Vieira traz para o debate é a lembrança irônica, dirigida às mulheres dos senhores de escravos que foram ouvir o seu Sermão da Primeira Oitava da Quaresma, de que também às almas do seu gênero “não faltou quem dissesse que não foram criadas à imagem e semelhança de Deus”.[15]
Na belíssima carta LXVI, escrita ao Provincial do Brasil, Vieira se refere à “memória e inteligência” e à “brevidade com que aprenderam” os guajajaras, que, examinados, respondiam com “prontidão e viveza de memória” e ainda com muita “expedição de língua”.[16] Em geral, portanto, Vieira retoma a tópica dos tratadistas espanhois do século XVI que reconhecem nos índios plena capacidade de ascender à doutrina, já por seu “bom natural” que os inclina à piedade e ao catecismo, “o qual tomavam com tanto gosto que nunca foi necessário que o Padre os chamasse, antes eles buscavam e chamavam o Padre muitas vezes”.[17] Mesmo os ferozes nheengaíbas, em relação à Cruz, “a tiveram sempre guardada e com grande decência, e respeitada com tanta veneração e temor, que nem a tocá-la nem ainda a vê-la se atreviam”.[18]
Vieira igualmente reconhecia, em geral, a existência de “polícia” entre os selvagens, vale dizer, de um sistema de governo regulado por leis reconhecidas como justas pelo conjunto de seus membros, o que, pelo direito das gentes, bastava para garantir a jurisdição autônoma de suas aldeias, e impedia que fossem subjugados por força com a justificativa de que eram incapazes de governo próprio. Exemplo patente de polícia, Vieira encontrara entre os negros de Cabo Verde, que conheceu ao sair de Lisboa, em 1652: “São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem dos europeus. Têm grande juízo e habilidade, e toda a política que cabe em gente sem fé e sem muitas riquezas, que vem a ser o que ensina a natureza”.[19] Também os tupinambás são elogiados por Vieira em carta ao rei dom João IV, em 1655, como gente que considerava a mais “nobre”, “valorosa” e “prudente”[20] de todas quantas havia naquelas terras.
Por tudo isto, em que o indígena apresenta-se dotado do lume da razão com que Deus fez análoga a si toda criatura, é injusto o cativeiro a que vem sendo submetido. Dom João IV, para fazer jus a seu título de restaurador da liberdade, deve estendê-la igualmente para os índios do Brasil:
Dou infinitas graças a Deus pelo grande zelo de justiça e salvação das almas que tem posto na de V. M., para que, assim como tem sido restaurador da liberdade dos portugueses, o seja também destes pobres Brasis, que há trinta e oito anos padecem tão injustos cativeiros, e tiranias tão indignas do nome cristão.[21]
Ao rei cabe integrar o indígena ao corpo político do Estado enquanto súdito naturalmente livre, e segunda vez libertado pelo nascimento na fé através da conversão. Nada é mais justo desde que, recebida a doutrina e o mistério dos Sacramentos, o indígena passa a fazer parte do corpo da Igreja.
Esta é, por sua vez, a única condição e o meio exclusivo através do qual o gentio pode aspirar à bem-aventurança, o que vale para os índios como para os negros de África, cuja vinda ao Brasil significa, a despeito de toda dor, misérias e trabalhos, a possibilidade real de integrarem-se ao corpo da Igreja e, no interior dele, tomarem a via salvífica oferecida, pela lei da Graça, ao homem. No décimo quarto Sermão do Rosário, de 1633, Vieira traduz da seguinte forma os versículos 12 e 13 da primeira epístola paulina aos Coríntios:
Assim como o corpo tem muitos membros, e, sendo os membros muitos, o corpo é um só, assim — diz S. Paulo — sendo Cristo um, e os cristãos muitos, de Cristo e dos cristãos se compõe um só corpo, porque todos os cristãos, por virtude da fé e do batismo, são membros de Cristo.[22]
E tira daí a seguinte decorrência local:
E por que não cuidassem, os que são fiéis e senhores, que os pretos, por terem sido gentios e serem cativos, são de inferior condição, acrescenta o mesmo S. Paulo, que isto tanto se entende dos hebreus, que eram os fiéis, como dos gentios, e tanto dos cativos e dos escravos, como dos livres e dos senhores.[23]
E Vieira, contrarreformista como não se pode pedir mais, insiste: o batismo, “sem o qual ninguém pode se salvar” e cujo “poder de consagração” reside na própria Igreja, representa para o gentio, que nasceu sem fé, um “segundo e novo nascimento”.[24]
A condução do gentio ao corpo místico da Igreja, através de sua prática cristã, conhecimento da doutrina e recepção dos sacramentos, representa a mais alta finalidade do descobrimento. Compreender a perspectiva em que se deu a conversão católica no Novo Mundo implica, de um lado, reconhecer a conversão não só possível como necessária, sendo o gentio apto para receber a revelação divina, e, em seguimento, a bem-aventurança, que apenas lhe é negada pela circunstância da ignorância de Deus e do seu estado atual de separação do corpo da Igreja; de outro lado, implica em entender que esta salvação ao alcance do índio existe justamente em virtude de sua integração ao corpo místico de Cristo, franqueada, exemplarmente, pelas práticas do sacerdote. Fora da Igreja, não há salvação para o gentio: “Porque ninguém pode subir ao céu, senão incorporando-se com Cristo, como todos nos incorporamos com ele, e nos fazemos membros do mesmo Cristo por meio da Fé e do Batismo”.[25]
Ou seja, que não haja engano: a condenação da coação violenta, já comentada aqui, não significa absolutamente a aceitação de qualquer forma de relativismo religioso: Vieira, como também o próprio Cristo, lá em seus tempos galileus, “não foi nenhum livre pensador liberal do século XIX a anunciar o Evangelho sem exigência de espécie alguma”,[26] como não foi nenhum teólogo da libertação a fazer revisionismo da história da Igreja e a proclamar contrito o mea culpa do “projeto autoritário” da Cristandade colonial. Trata-se aqui desnudadamente, orgulhosamente, de um “absolutismo do Evangelho”,[27] que, entretanto, deve impor-se nos limites das virtudes cristãs, e a partir do interior da própria comunidade eclesial. A qual, aliás, em tempo algum, deixou de prever formas coercitivas de seu exercício.
A posição católica que foi adotada como padrão pelos escolásticos que pensaram a Conquista vai, na verdade, no sentido muito mais de um esforço de ordem e limpeza internas, a partir da integração do gentio na “comunidade sobrenatural” e na “unidade jurídico-moral”, indissociáveis, da Igreja,[28] do que de uma ação de guerra contra o corpo estranho ao Orbis Christianus. Isto a distingue fundamentalmente da postura adotada, durante os séculos anteriores, no confronto com o gentio maometano, quando a questão era vencê-lo ou destruí-lo enquanto ameaça ao corpo universal, onde não tinha lugar, e não compeli-lo a entrar neste corpo, que, apenas assim, ganharia verdadeira universalidade. Estranha ao ambiente medieval das Cruzadas e guerras da Reconquista, ao menos enquanto procedimento geral e tradição estabelecida, a obrigação da conversão, como alguns estudiosos já assinalaram, era uma grande novidade dos Descobrimentos, e, como tal, bem diferentemente do que tem suposto o senso comum laico e cientificizante, fenômeno importantíssimo, “norma nacional e religiosa”[29] a participar da fundação da era moderna.[30]
Mas sigamos com as posições de Vieira adotadas dos neo-escolásticos. Como estes, ele se contrapõe à argumentação corrente de que fornecia causa justa de guerra ao indígena a existência entre eles de práticas contranatura, como a poligamia e o canibalismo, sobretudo. Para o jesuíta, como para a maioria dos tratadistas ibéricos da matéria, tais práticas, conquanto decididamente antinatu-rais, eram consequências não da má disposição do indígena, desumana e irracional, mas apenas de costumes viciosos que poderiam ser corrigidos pela conversão e o ensino. “Muitos há muito rudes e bárbaros”, vai escrever ao Provincial do Brasil, em 1654, “mas por falta mais de cultura que de natureza.”[31] No geral, porém, é gente que “não tem os vícios, nem os embaraços de consciência, com que vivem pela maior parte os homens de maior polícia”.[32] Contraposição, aliás, em que repõe um argumento de Manuel da Nóbrega em seu Diálogo sobre a conversão do gentio: entre o vil costume dos índios e a vã soberba dos filósofos, maior é o pecado destes, já que “não guardam a lei natural posto que a entendam”.[33]
Práticas acostumadas e “ignorância invencível” são atenuantes dos pecados contra-natura dos índios, que impedem a sua caracterização monstruosa ou desumana. Sem horror, aliás, conta Vieira que índios das nações que viviam na ilha dos Joanes, como era de sua prática ao “tomarem nome”, quebraram a cabeça de treze padres, e, “depois de mortos os assaram e comeram como costumam”.[34] A maior parte dos tratadistas já tinha batido na tecla da ignorância invencível, que atenua o crime pelo peso do costume e o retira de uma deformação natural. Missionários mais radicais, como Las Casas, chegaram a sustentar, inclusive, como é sabido, a intenção sinceramente religiosa que os movia durante os ritos sacrificiais humanos, que de modo algum podiam ser entendidos como ateísmo — embora, neste passo, poucos o tenham seguido.[35]
Disto tudo resulta nítido que Vieira, em termos genéricos, admite como verdadeiro o posicionamento delineado no século XVI pelos tratadistas da Segunda Escolástica, renunciando, entretanto, em geral, às posições mais idealizadas do índio, que nunca foram típicas dos jesuítas portugueses.[36] Destaca, por outro lado, a necessidade de se incorporar os gentios ao corpo da Igreja para que cheguem à salvação, assim como o fato de que o único título que dá sustentação virtuosa à submissão é a superação de seu estado de gentilidade através do contato com a religião dos cristãos, que não a podem sonegar aos seus domésticos. Reforça, portanto, através das teses que asseguram a humanidade e inteligência do índio, o papel mediador necessário da Igreja, representado modelarmente pelos missionários da Companhia, cuja missão é essencial para a reorganização da Monarquia católica universal e a sustentação do frágil Império português da Restauração.
Vieira inscreve-se, portanto, no seio de um pensamento e de uma ação que não é nenhuma novidade no seio da Igreja católica. Não há meio sequer de aplicar o termo “progressista” a ele: nem é “avançado” em relação ao seu tempo, nem busca qualquer finalidade subversiva em relação à instituição eclesial. Bem ao contrário, o lugar principal pelo qual se bate é certamente o do reforço das missões jesuíticas como condição do êxito da ação espiritual da Igreja e do fortalecimento temporal do Estado português. Este foi o emprego particular que deu às posições da Segunda Escolástica, que originariamente visavam a balizar a ética da Conquista espanhola, nos termos de uma “consciência cristã” — e, portanto, de um irredutível religioso[37] — e de uma codificação jurídica assentada no Direito natural. Opunham-se, assim, simultaneamente à antiga mentalidade imperial, superior aos Estados nacionais, e ao sentimento medieval curialista de uma teocracia submetida universalmente, no temporal e espiritual, ao papa.[38]
Os autores da Segunda Escolástica davam à Espanha um tratamento que supunha a sua projeção imperial, mas impediam que se justificasse como Império fora de sua própria expansão nacional. Em Vieira, pode-se dizer que este mesmo quadro é válido, apenas com o acento deslocado da Espanha para Portugal, e com extraordinário reforço do papel missionário da Companhia no cumprimento do plano salvífico da Providência tanto para a História humana, quanto para as almas individuais dos homens.
Já nos termos da situação particular das almas dos índios, para o padre Antonio Vieira, a grande lição a tirar tanto dos trabalhos e martírios dos missionários, quanto da mortandade maciça sofrida pelos indígenas entregues à cobiça dos coloniais, tampouco tem qualquer coisa de laico ou ilustrado. A lição, aliás, é a mesma, apenas mais evidente: a de que ali velava a Providência, mais que em qualquer outro lugar. Foram os seus desígnios, acima de todas as razões que se tinha direito de buscar, que fizeram com que os missionários cá viessem e buscassem a salvação da alma dos indígenas — a despeito de que, como obviamente notava, na prática, isto se fazia à custa de uma assombrosa mortandade, de que a causa era justamente o contato com as armas e doenças dos europeus. Mas esta Morte mesma era abençoada, garantia divina de salvação, quando havia tempo suficiente para que fossem ministrados os Sacramentos aos moribundos: “E como não se pode acudir juntamente a todos, acode-se em primeiro lugar aos enfermos. Destes foram alguns tão venturosos que, sendo tapuias pagãos, acabando de receber o batismo morreram logo, com evidentes sinais de predestinação”.[39]
OBRIGAÇÕES DOS ESCRAVOS
Um outro aspecto do tema do índio que é preciso ter em mente quando se busca uma visão mais consistente a seu respeito é relativo às obrigações dos escravos consideradas pelo padre Vieira, o que aparentemente desloca o tema do foco projetado pela Segunda Escolástica, que, de modo geral, tende a destacar os direitos dos índios entre os títulos da Conquista. Não há, entretanto, nenhuma contradição entre as partes. Visto a partir de dentro do corpo místico a que passa a pertencer, o gentio passa a ocupar um lugar hierarquicamente definido, pelo qual responde jurídica, política, moral e religiosamente. Acima de tudo, passa a ter obrigações com a religião que o acolhe na fé verdadeira.
No caso dos pretos, Vieira insiste particularmente em que o trabalho, brutal que seja, não os deve impedir de adorar o Rosário diariamente; o que o leva a propor, em analogia aos salmos pro torcularibus, que as orações do Rosário sejam feitas como cantares de alívio durante a jornada extenuante do engenho. Seja como for, em termos mais gerais, o nascimento para a fé implica em que, mesmo à custa do cativeiro, o gentio seja consciente de que experimenta uma imensa Graça: a que o trouxe ao seio da verdadeira religião. Eis como Vieira o diz em seu célebre sermão à Irmandade dos Pretos:
Começando, pois, pelas obrigações que nascem do vosso novo e tão alto nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazidos a esta, onde, instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos salveis.[40]
Nesta passagem fica admiravelmente nítida a questão do valor relativo do cativeiro frente ao bem da conversão: entre um e outro infinitamente maior peso tem o último. Sem proclamar, de maneira alguma, a bondade do primeiro, e mesmo sem retirar o sentido originalmente injusto da escravidão, o que Vieira considera é que esta nova situação vivida pelo gentio, ainda que cativo, ao fazê-lo ingressar na religião cristã, é decididamente melhor, ainda que mais sofrida, do que a anterior, ignorante de Cristo, ainda que livre. Aliás, de que liberdade se fala aí? A liberdade em que viviam seus pais? Entretanto, somente os seus filhos cativos estão nascendo para a vida eterna: salvavam-se! A rigor, para Antonio Vieira, apenas agora, mesmo que escravos, os gentios conheciam a liberdade, que, cristãmente, não se pode definir como ausência de subordinação temporal a um senhor e nem mesmo como autonomia da vontade, mas como a virtude que gera a melhor escolha a partir do reconhecimento do infinito bem de Cristo. A liberdade cristã é, neste sentido, acima de tudo, pelo conhecimento do bem, impossibilidade de pecar: o pecado, e não o cativeiro temporal, caracteriza essencialmente a escravidão.[41] Ignorar isto é ignorar o mais básico que sustenta a unidade do sermão vieiriano, e dá-lo como monstruoso: feito só de partes que se estranham e horrorizam entre si.
Quanto equívoco se tem escrito especialmente sobre a noção de liberdade defendida por Vieira entre os gentios. A sua posição verossímil, segundo se pode depreender dos argumentos de seus textos, e, se se tiver em vista os parâmetros de um jesuíta ibérico dos Seiscentos, é absolutamente coerente. Vale dizer, é a posição de quem reconhece, por fé e razão, a injustiça do cativeiro, mas, antes, em primeiro lugar, é a de quem considera com maior peso o ganho advindo do reconhecimento da nova fé e a possibilidade da Salvação eterna, do que o custo, em si mesmo, do cativeiro. Trata-se de um raciocínio hierárquico e de analogia proporcional frente ao gozo do Bem superior que tem em vista. Escravos ou não — e já ficou claro que isto não é indiferente para Vieira — o certo é que haverá sempre, na nova situação, desde que ao gentio sejam apresentados direitamente a doutrina e os sacramentos, o fato glorioso de que, apenas neste tempo profeticamente assinalado, “deixada a gentilidade e idolatria”, não mais “baterão as palmas, como costumam”, mas “se hão de ajoelhar diante do verdadeiro Deus”.[42] Milagre muito visível entre os negros, cuja redução à fé cumpre profecias escriturais dos tempos felizes da conversão dos etíopes — que pretende serem tipo, figuração profética, dos coevos:
Cumpriram-se principalmente depois que os portugueses conquistaram a Etiópia ocidental, e estão cumprindo-se hoje, mais e melhor que em nenhuma outra parte do mundo nesta da América, aonde trazidos os mesmos etíopes em tão inumerável número, todos com os joelhos em terra, e com as mãos levantadas ao céu, crêem, confessam e adoram no Rosário da Senhora todos os mistérios da Encarnação, Morte e Ressurreição do Criador e Redentor do mundo, como verdadeiro Filho de Deus e da Virgem Maria.[43]
Os etíopes escravizados, deste ponto de vista, sem que se considere a escravidão como necessidade natural da conversão, são, na prática providencial das coisas, sujeitos de uma eleição salvífica:
Assim como Deus na lei da natureza escolheu a Abraão, e na da escrita a Moisés, e na da graça a Saulo, não pelos serviços que lhe tivessem feito, mas pelos que depois lhe haviam de fazer, assim a Mãe de Deus, antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade esta vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá, como vossos pais, vos não perdêsseis, e cá, como filhos seus, vos salvásseis.[44]
São os pretos da Bahia, filhos de pais que permaneceram gentios em África, neste caso, o antitipo, a atualização em grau superior do anúncio típico contido nos fatos relativos aos filhos do “delinquente” Coré. Este, por castigo de sua rebeldia contra Deus, foi tragado vivo pela terra e sepultado nos infernos, mas teve, entretanto, poupados os seus filhos: “O maior milagre e a mais extraordinária mercê, que Deus pode fazer aos filhos de pais rebeldes ao mesmo Deus, é que quando os pais se condenam, e vão ao inferno, eles não pereçam, e se salvem”.[45] E aperta o argumento, comovidamente, deixando levantar o milagre oculto sob a escravidão:
Oh! se a gente preta, tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre? Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade. E que, perecendo todos eles, e sendo sepultados no inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao céu? Vede se é grande milagre da providência e misericórdia divina.[46]
E remata: “Esta é a singular felicidade do vosso estado, verdadeiramente milagroso”.[47]
A evidência, para Vieira, demonstra que os gentios que permanecem em África não têm nada a ganhar, pelo contrário, frente aos que se encontram cativos no Brasil: são estes os “filhos escolhidos”, e os que lá ficaram, em liberdade apenas aparente, já que desviada da fé de Cristo e, assim, fruto da ignorância e do pecado, aqueles, a dançar e bater palmas, são os “filhos reprovados”.[48]
Vieira fala-lhes, consequentemente, e com naturalidade, da “benção de que hoje gozais”, superior ao estado desgraçado dos irmãos livres “quanto vai da terra ao céu”, logo “motivo principal da vossa felicidade” e “obrigação” diante de Deus e da misericórdia de sua Mãe.[49]
O mesmo milagre e obrigação se estende aos índios, conquanto a causa segunda, como aristotelicamente diz Vieira, seja, agora, em primeiro lugar, a indústria e graça da Companhia de Jesus. Para começar a falar disto, talvez seja interessante destacar o que Vieira conta ao Provincial do Brasil, em 1654, sobre os termos em que os padres, no confessionário, acertavam falar das obrigações cristãs envolvidas no cativeiro, para senhores e escravos:
Cuidamos muito, nas confissões dos senhores, em lhes dizer tudo o que convém para o bem de suas almas, e também tudo o que for a bem dos índios, para que não cativem injustamente os livres, nem tratem mais rigorosamente do que convém os escravos. A estes, da mesma sorte, quando os confessamos lhes dizemos tudo o que for por parte de seus senhores, para que os respeitem, obedeçam, e sirvam em tudo o que os senhores lhes mandam.[50]
Obediência do escravo, pela graça da religião, e caridade do senhor, para zelar pela alma do cativo: eis as duas virtudes cristãs a que se obrigam uma e outra ponta deste “laço diabólico”. “Paciência”, análoga à do Senhor, é o que se pede de ambos: do primeiro, para aceitar sem rebeldia os trabalhos exaustivos que semelham a via crucis; do segundo, para fazer jus à posição de senhorio, que tem almas à sua conta.
* * *
Destas considerações vê-se o quanto é anacrônico postular o conceito de liberdade dos índios entre os jesuítas portugueses nos moldes de uma interpretação do conceito como valor absoluto ou autônomo à esfera religiosa: ora, pelo que se leu, é evidente que a categoria substancial a definir a existência da liberdade é o conhecimento e adesão ao grêmio da Igreja e o serviço da religião, não a independência liberal da vontade própria ou da ausência de superior hierárquico. O mesmo vale para outro anacronismo comum na leitura de Vieira: a ideia de igualdade. O que a define, para Vieira, é, identicamente, a referência ao corpo místico da Igreja, nunca a inexistência de hierarquia na Igreja ou no Reino. Isto, aliás, para Vieira, seria uma desproporção, uma vez que desiguais por natureza, os homens, necessariamente, para manter a proporcionalidade de origem, devem preservá-la no lugar relativo que ocupam no organismo coletivo.
Vieira, aqui, mais uma vez, está próximo de seus pares jesuítas do século XVII e do anterior, jamais dos ilustrados e liberais dos seguintes. Vieira levanta argumentos muitos mais afins, por exemplo, aos de Luis de Molina, este que é um dos mais importantes Magistri Hispanorum a ensinar em cátedras portuguesas, no último quartel do XVI. Defende Molina que “a escravidão sob domínio cristão conduz ao bem espiritual dos escravos”. É mesmo “um ato de caridade comprar a liberdade” deles “para que se tornem cristãos”.[51] Embora, por outro lado, também como Vieira, não duvide que, apesar da “vantagem” da conversão, melhor seria trocar o cativeiro pelo puro zelo missionário.
Em resumo, parece-me perfeitamente adequado aplicar a Vieira o que já foi dito pelo bispo de Munster a propósito dos éticos espanhois do Século de Ouro, isto é, que eles “jamais propugnaram por uma total igualdade de todos os povos e homens. É doutrina católica a desigualdade humana, em talentos naturais, em valores morais e em graça”.[52] O ponto em que se igualam, catolicamente, é um único: “Todo ser de rosto humano é um filho remido de Jesus Cristo”.[53] Remir aos índios e negros, definitivamente humanos, era o que pretendia o padre Vieira e os seus — ou a Companhia e com ela um de seus padres, Vieira: a remissão desta gente bruta era a melhor medida da liberdade e igualdade a que podiam chegar, fazendo-os efetivamente membros da Igreja hierárquica, e, também, ao afetar neles um sentimento de homogeneidade e de finalidade política comum, fazendo-os membros do corpus mysticum do Estado cristianíssimo de Portugal.[54]
MISSÃO PORTUGUESA NO MUNDO
Disse já que Vieira acentua extraordinariamente o papel missionário de Portugal no mundo, manifestando, desta maneira, em relação àquele Estado, os pressupostos nacionais admitidos comumente pelos neo-escolásticos em relação à Espanha. Pois, segundo Vieira, cabe a Portugal, mais que a qualquer outra nação cristã, avançar sobre o mundo gentio e reduzi-lo à cristandade. “Cabe”, definitivamente — e não apenas seria possível ou desejável —, porque os descobrimentos são, para ele, acima de tudo, matéria providencial.
Mais do que concordar com o cronista espanhol Lopes de Gómara, que, cem anos antes, acreditava serem os descobrimentos o maior acontecimento desde a Criação, excetuada a Encarnação, Paixão e Mate do Cristo,[55] para Vieira, eles são, substancialmente, uma nova Criação: “Uma das coisas mais notáveis que Deus revelou e prometeu antigamente foi que ainda havia de criar um novo céu, e uma nova terra. Assim o disse por boca do profeta Isaías: Ecce ego creo caelos novos, et terram novam”.[56] E pondera, literalmente, “que terra nova, e que céus novos são estes”:
Outros o entendem doutra maneira, não sei se muito conforme à letra. Eu, seguindo o que ela simplesmente soa e significa, digo que esta nova terra e estes novos céus são a terra e os céus do Mundo Novo, descoberto pelos portugueses. Não é verdade que, quando os nossos argonautas começaram e prosseguiram as suas primeiras navegações, iam juntamente descobrindo nova-s terras, novos mares, novos climas, novos céus, novas estrelas? Pois esta é a terra nova e estes são os céus novos que Deus tinha prometido, que havia de criar, não porque não estivessem já criados desde o princípio do mundo, mas porque era este Mundo Novo, tão oculto e ignorado dentro do mesmo mundo, que quando de repente se descobriu e apareceu, foi como se então começara a ser e Deus o criara de novo.[57]
Esta nova criação tem, entretanto, a peculiaridade de exigir o concurso de uma causa segunda, para consumar-se a história salvífica do homem:
Havendo Deus criado o mundo na primeira criação por si só, e sem a ajuda ou concurso de causas segundas, nesta segunda criação tomou por instrumento dela os portugueses, quase pela mesma ordem e com as mesmas circunstâncias, com que no princípio tinha criado o mundo. Quando Deus criou o mundo, diz o sagrado texto que a terra não se via porque estava escondida debaixo do elemento da água, e tudo escuro e coberto de trevas: Terra autem eratinvisibilis — como leem os Setenta — et tenebrae erant super faciemabyssi. Então dividiu Deus as águas; e criou a luz e cessaram as trevas: Divisitaquas; facta est lux; appareat anda. Este foi o modo da primeira criação do mundo. E quem não vê que o mesmo observou Deus na segunda, por meio dos portugueses?[58]
Quem não vê, não tem mais que acompanhar a maneira como o engenho conceituoso de Vieira desempenha a analogia substancial dos fatos:
Estava todo o Novo Mundo em trevas e às escuras, porque não era conhecido. Tudo o que ali havia, sendo tanto, era como se fosse nada, porque assim se cuidava e tinha por fábula. Terra autem erat vanitas etnihil, como diz o texto hebreu. O que encobria a terra era o elemento água, porque a imensidade do Oceano, que estava em meio, se julgava por insuperável, como a julgaram todos os antigos, e entre eles Santo Agostinho. Atreveu-se, finalmente, a ousadia e zelo dos portugueses a desfazer este encanto e vencer este impossível. Começaram a dividir as águas, nunca dantes cortadas, com as venturosas proas dos seus primeiros lenhos: foram aparecendo e surgindo de uma e outra parte, e como nascendo de novo, as terras, as gentes, o mundo que as mesmas águas encobriam, e não só acabaram então no mundo antigo as trevas desta ignorância, mas muito mais no novo e descoberto as trevas da infidelidade, porque amanheceu nelas a luz do Evangelho e o conhecimento de Cristo, o qual era o que guiava e levava os portugueses, e neles, e com eles navegava.[59]
A luz da conversão a romper as trevas da infidelidade indígena fornece a base do Direito da ação dos europeus no Novo Mundo, e resume a finalidade desta nova criação, providencialmente realizada com a participação portuguesa. Era o índio, e não as minas de ouro, que tocava descobrir e desentranhar — por isto, também providencialmente, estas não se achavam em terras brasileiras:
E para que comecemos pelos exemplos mais vizinhos, que utilidades se têm seguido à Espanha do seu famoso Potosi, e das outras minas desta mesma América? A mesma Espanha confessa e chora que lhe não têm servido mais que de a despovoar e empobrecer. Eles cavam e navegam a prata, e os estrangeiros a logram. Para os outros é a substância dos preciosos metais, e para eles a escória.[60]
Minas que cumpre buscar são as almas dos índios que se contam aos milhões na superfície mesma das terras brasileiras, “sem cavar nem romper montanhas”.[61]
Reduzir à fé as inúmeras nações dos gentios era atualizar a conversão da gentilidade figurada escrituralmente na conversão dos Magos, produzindo-se, então, um segundo nascimento da Cristandade, que aproxima a história de sua causa final:
A primeira vocação da gentilidade foi nos dias de Herodes: In diebus Herodisregis — a segunda quase em nossos dias. A primeira foi quando Cristo nasceu: Cum natus esset Jesus — a segunda quando já se contavam mil e quinhentos anos do nascimento de Cristo. A primeira foi por meio dos reis do Oriente: EcceMagi ab oriente venerunt — a segunda por meio dos reis do Ocidente, e dos mais ocidentais de todos, que são os de Portugal.[62]
O discurso do tempo,
que é o mais claro intérprete dos futuros, nos ensinou dali a quatrocentos anos que estes felicíssimos reis foram el-rei dom João, o Segundo, el-rei dom Manuel, e el-rei dom João, o Terceiro, porque o primeiro começou, o segundo prosseguiu, e o terceiro aperfeiçoou o descobrimento das nossas conquistas, e todos três trouxeram ao conhecimento de Cristo aquelas novas gentilidades, como os três Magos as antigas. [63]
Esta nova conversão, em seu mais alto sentido, fundava uma Nova Igreja universal capaz de reparar as dissensões e cismas sofridos pelo catolicismo, após o fim do Orbis Christianus medieval. Compensatórias deste fim, as novas fronteiras reveladas ao homem ofereciam um campo homogêneo de expansão da fé, em que a Igreja cobrava alento. Embora já se passasse um século, Vieira participa do ânimo comum aos primeiros missionários desembarcados na América, que, diante do rombo causado pela Reforma na “sólida rede do catolicismo”, atirava-os afincadamente ao estabelecimento entre os índios de uma “nova Igreja católica livre das dissidências religiosas que existiam na Europa”.[64] Era uma espécie de revitalização do grêmio exausto pela inclusão maciça de novos sócios, ignorantes das velhas querelas que os dividia. Neste sentido, a alma em “tábua rasa” do indígena, topos comum a teólogos, cronistas e missionários, era idêntica ao figurino que andava buscando a Igreja da Contra-Reforma.
Para Antonio Vieira, com a fundação desta Igreja nova, havia de cumprir-se, proximamente, o mandado de Cristo a Pedro de apascentar “as nações de todo o mundo, as quais Cristo queria trazer e ajuntar de todo ele, e fazer de todas um só rebanho, que é a Igreja, debaixo de um só pastor, que é S. Pedro”.[65] E antes de Pedro, Isaías, comentado no Apocalipse de João, já antecipara esta Igreja nova que está ao fim do Descobrimento:
E porque toda esta novidade do novo céu, da nova terra e do novo mar, se ordenava à fundação de outra nova Igreja, esta foi a que logo viu o evangelista, com nome também de nova: Etvidi civitatem Jerusalem novam descendentem de caelo. Finalmente, para que ninguém duvidasse de toda esta explicação, conclui que a mesma Igreja nova se havia de compor de nações e reis gentios, que nela receberiam a luz da fé, e sujeitariam suas coroas ao império de Cristo.[66]
Delegação muito superior ao belicismo medieval: “A verdadeira cavalaria” escreve ele, em carta de 1653, ao bispo do Japão — “é salvar almas”.[67]
E dada ser tal a finalidade da descoberta outorgada aos portugueses, é geral, entre eles, a obrigação missionária, e não exclusiva de eclesiásticos, a despeito de terem como guia a estrela da Companhia de Jesus, criada para este fim. Consequência primeira desta posição em que todos os portugueses estão obrigados a pregar é que se aperta mais a determinação religiosa entre senhor e escravo, e agrava-se o delito da falta de zelo no ensino da doutrina aos cativos domésticos. A não ser por aquela determinação e zelo, a escravidão, naturalmente injusta, é “laço diabólico” armado para ambos. Para dizê-lo de outra maneira, superar proporcionalmente a contradição das relações definidas pelo cativeiro implica a decidida aceitação da obrigação missionária. As almas todas, diz Vieira, “devemos desejar que se salvem”, mas aquelas dos escravos da casa estreitam as obrigações dos senhores: “ao menos não faltemos a estas tão desamparadas, às quais, por mais vizinhas, é mais devedora a nossa caridade”.[68]
Mas o que é importantíssimo notar aqui é que o mandado da conversão agrava o defeito natural da prática da escravidão, mas não a exclui completamente enquanto meio em que a conversão possa se dar. Pode-se dizer que a obrigação de ensino da doutrina aumenta coma escravidão, e também que o estado de in-justiça da escravidão não é simplesmente anulado com o cumprimento da obrigação, mas torna-se menos condenatório.
Para acentuar estas relações, Vieira ressalta o desamparo em que se encontram os índios, e o crime contra a religião que cometem os moradores que, por cobiça, deixam de cuidar da doutrina e salvação das almas dos escravos a que estão obrigados, e de que lhes será pedida “estreitíssima conta”: “Oh que terrível conta há de pedir Deus no dia do Juízo a todos os que vivemos neste Estado, porque todos temos almas à nossa conta!”.[69]
E terrível verdadeiramente é a cena do Juízo que apresenta aos ouvintes do Sermão do Espírito Santo, pregado em 1657, em São Luís do Maranhão:
Se os Jerônimos, se os Hilariões, se as maiores colunas da Igreja temem de dar conta de uma alma depois de vidas tão santas, vós, depois das vossas vidas, que é certo não foram tão ajustadas com a lei de Deus como as suas, que conta esperais dar a Deus, não de uma, senão de tantas almas? Uns de cinquenta almas, outros de cem almas, outros de duzentas almas, outros de trezentas, outros de quatrocentas, e alguns de mil. Muito há que tendes hoje poucas, mas naquele dia haveis de ter muitas, porque todas as que morreram para o serviço, hão de ressuscitar para a conta. As que tivestes, as que tendes, as que haveis de ter, todas naquele dia hão de aparecer juntas diante do divino tribunal a dar conta cada uma de si, e vós de todas.[70]
Neste tribunal algo macabro em que os escravos ressuscitados reúnem-se para clamar por justiça contra o senhor que os levou a morrerem na ignorância da fé, Vieira atenua a culpa do escravo e aperta a desculpa do senhor:
Certo que eu antes quisera dar conta pela sua parte que pela vossa. O escravo escusar-se-á com o seu senhor; mas o senhor, com quem se há de escusar? O escravo poder-se-á escusar com o seu pouco entendimento, com a sua ignorância: mas o senhor, com que se escusará? Com a sua muita cobiça? Com a sua muita cegueira? Com faltar à piedade? Com faltar à humanidade? Com faltar à cristandade? Com faltar à fé?[71]
Então deixa exalar o gemido, que figura a ineficácia das escusas frente a juízo divino:
Oh! Deus justo! Oh! Deus misericordioso, que nem em vossa justiça, nem em vossa misericórdia acho caminho para saírem estas almas de tão intrincado labirinto! Se a justiça divina acha por condenar um gentio, porque não foi batizado, como achará a misericórdia divina por onde salvar um cristão, que foi causa de ele se não batizar?[72]
O sermão, a partir daí, toma um tom quase brutal na interpelação dos ouvintes:
Oh! que espetáculo tão triste e tão horrendo será naquele dia ver a um português destas conquistas — e muito mais aos maiores e mais poderosos — cercado de tanta multidão de índios, uns livres, outros escravos, uns bem, outros mal cativos, uns gentios, outros com nome de cristãos, todos condenados ao inferno, todos ardendo em fogo, e todos pedindo justiça a Deus sobre aquele desventurado homem, que neste mundo se chamou seu senhor?[73]
E passa a desfilai diante do auditório a multidão patética dos queixosos a cobrar vingança contra o senhor relapso:
Ai de mim, dirá um, que me condenei por não ser batizado! Justiça sobre meu ingrato senhor, que me não pagou o serviço de tantos anos, nem com o que tão pouco lhe custava, como a água do batismo! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por não conhecer a Deus, nem saber os mistérios da fé! Justiça sobre meu infiel senhor que, mandando-me ensinar tudo o que importava a seu serviço, só do necessário à minha salvação nunca teve cuidado![74]
E, sucessivamente, em enumeração de piores: “Justiça sobre meu desumano senhor”; “justiça sobre meu avarento senhor”; “justiça sobre meu tirano senhor”. “Isto dirá cada um daqueles miseráveis escravos ao supremo Juiz, Cristo. E todos juntos bradarão a seu sangue — de que por vossa culpa não se aproveitaram — justiça, justiça, justiça”.[75]
A eloquência da condenação, entretanto, não visa negar radicalmente a relação senhor-cativo, mas impedir que ela se possa desobrigar da contrapartida da obrigação religiosa, da publicação e extensão da fé. Neste ponto, entre outros, vê-se que é rigorosamente impossível entender-se de maneira laica a argumentação vieiriana do tema: não se trata necessariamente de extinguir a escravidão, mas de encontrar meio de conciliá-la com a missão catequística do Mundo Novo; não se trata de considerar justa a escravidão, que priva o índio do que tem posse por Direito natural, mas de acreditar que maior é o bem da Graça, trazido pela religião, que o mal temporal, temporário, do trabalho escravo; não se trata apenas de amenizar as dores do cativeiro com o unguento da doutrina, mas de acreditar piamente que a religião, e apenas ela, pode repor como caridade a liberdade tolhida ao indígena. Daí que falando dos escravos, conceda: “Tende-os, cristãos, e tende muitos, mas tende-os de modo que eles ajudem a levar a vossa alma ao céu, e vós as suas”.[76]
E há um outro aspecto desta questão, já anunciado atrás, que é necessário retomar aqui. O não-cumprimento da obrigação de facultar ao índio o ingresso na Igreja não é causa apenas da condenação de cada morador particular que incorre neste desmazelo, mas igualmente da ruína da Monarquia. Como corpo político e místico — ao qual foi dada a missão particular de propagação da fé no Novo Mundo, formulada juridicamente nas prerrogativas papais de Nicolau V, em 1454, e de Alexandre VI, em 1493-94, e tradicionalmente no “Juramento” de Afonso Henriques —, caso não se mostre capaz de cumpri-la, a consequência imediata será deixar de contar com a segurança do fundamento teológico que deu origem e ainda é o que só sustenta a Portugal.
Assim Vieira vai dizer, por exemplo: “O Reino de Portugal, enquanto reino e enquanto monarquia, está obrigado, não só de caridade, mas de justiça, a procurar efetivamente a conversão e salvação dos gentios, à qual muitos deles, por sua incapacidade e ignorância invencível, não estão obrigados”.[77] E apresenta os títulos desta dívida nacional:
Tem esta obrigação Portugal enquanto reino, porque este foi o fim particular para que Cristo o fundou e instituiu, como consta da mesma instituição. E tem esta obrigação enquanto monarquia, porque este foi o intento e contrato com que os Sumos Pontífices lhe concederam o direito das conquistas, como consta de tantas bulas apostólicas. E como o fundamento e base do Reino de Portugal, por ambos os títulos, é a propagação da fé e conversão das almas dos gentios, não só perderão infalivelmente as suas todos aqueles sobre quem carrega esta obrigação, se se descuidarem ou não cuidarem muito dela, mas o mesmo reino e monarquia, tirada e perdida a base sobre que foi fundado, fará naquela conquista a ruína que em tantas outras partes tem experimentado, e no-lo tirará o mesmo Senhor que no-lo deu, como a maus colonos.[78]
O não-cumprimento da missão, Vieira entende como um pecado de dupla heresia a ameaçar o Estado: religiosa, por considerar necessário o pecado do cativeiro à conservação dele, e política, porque na perspectiva antimaquiavélica que resulta na doutrina católica da Razão de Estado, “sobre os fundamentos da injustiça nenhuma cousa é segura nem permanente”.[79] A tirania, correlata excessiva e viciosa da prudente monarquia, define-se justamente pelo abandono das almas sob o seu cuidado o que é ameaça tanto ao corpo do reino como à manutenção legítima da coroa pelo rei esquecido de suas obrigações.
Quer dizer, em termos gerais, Vieira submete a finalidade bem como o êxito temporal e espiritual da ação portuguesa no Novo Mundo à sua estreita adesão a uma diretriz de influxo missionário, modelado pela Companhia de Jesus. A missão portuguesa ganha, desta forma, um relevo extraordinário como atualização histórica da Providência, e este papel é o que também dá sustentação ao seu Império. Fracassar aí é perder tudo: corpo, cabeça e alma. Acertar é acabar a história no Quinto Império, Paraíso Terreal, em que cada um se reconhece enquanto indivíduo e membro da comunidade eclesial e política, expandida e reunificada, e em que se concilia bem-aventurança e bens da fortuna.
CONVENIÊNCIA E CONSCIÊNCIA
A argumentação de Vieira contrária à subjugação violenta do índio e à interferência do governo colonial nas missões, que deveria ficar a cargo exclusivo da Companhia, sustentava que esta era a única maneira de que os moradores e o próprio rei tivessem seguras as suas consciências e asseguradas as suas conveniências. A ação justa frente aos índios seria, igualmente, eficaz frente aos sucessos terrenos. absolutamente essencial em Vieira este tipo de argumentação que busca acomodar aspectos temporais e espirituais: evidenciar os frutos histórico-políticos advindos da correta semeadura ético-religiosa.
Mas sobre este esforço de acomodação dos interesses espirituais e temporais há mais de um equívoco a superar. Tem-se dito que a perspectiva racional favorávél à libertação dos escravos, ou ao reconhecimento da alteridade indígena, posta em confronto com as condições reais das práticas de exploração colonial induz a posições contraditórias, em que a perspectiva supostamente progressista de origem vê-se obrigada a concessões que a acabam contrariando.[80]
Penso, como disse já, que esta interpretação é inverossímil, já não fora pelo seu “progressismo”, vale dizer, pelo evolucionismo histórico em que se apoia, e pelo seu idealismo, uma vez que supõe a origem autônoma de uma razão de “intenção” frente à matéria dos atos. Mas deixando de lado os equívocos de paradigma, que, de resto, são sempre secundários, e entrando no mérito particular da descrição do lugar de Antonio Vieira, esta interpretação é insustentável, primeiro, porque a posição original que ele toma raro se apresenta sem que tenha em vista questões muito concretas, ao menos para si e seu ambiente, incluindo-se aí as injunções econômicas, em que pretendia seguramente intervir — a ponto de Antonio Sérgio examinar a hipótese de incluí-lo em sua Antologia dos economistas portugueses. Fato, aliás, que, tradicionalmente, tendeu a chocar o espiritualismo burguês que o leu, espantado com a mêlée de religião e negócios em seus sermões.[81]
De um ponto de vista historicamente mais razoável, as condições reais da Colônia, se não se retira o sentido cultural e fictício constitutivo deste real, são o lugar próprio e insubstituível em que Vieira dá forma às suas ideias sobre a Colônia. E isto não apenas porque fora criado nela, mas porque, já segundo a chave teológica do período, a formulação de seu projeto não tem meios de ser exclusivamente espiritual, ou de afinar-se por um diapasão inteiramente idealista em que os bens da eternidade cristã estão propostos sem a circunscrição condicionante de práticas. “Ver”, em Vieira, já se sabe, implica antes em atender às “cegueiras da terra”.[82] O sentido básico, retórico, dos sermões, que visa mover e agir, obriga, desde o princípio, à consideração delas.
Mesmo a posição mais contrária aos interesses dos colonos e mais difícil de prevalecer — aparentemente, portanto, mais idealista — é formulada por Vieira a partir de questões concretas da Colônia. Exemplo são as missões da Companhia, que se viam abandonadas e sem peso na condução dos negócios dos índios, já que não havia meio prático, conquanto houvesse lei, capaz de promover a efetiva autonomia delas frente aos governos. É a percepção aguda de um impasse concretamente posto que o leva a adotar posições de maior ou menor confrontação com os coloniais, o Conselho Ultramarino, ou o rei, e não apenas crenças ou ideais que, em princípio, não lhes ligava maior importância, e, depois, fraqueja diante deles. Esta suposta contradição nascida da inadequação de posições idealistas ao real isola e esquematiza em momentos distintos o que, em Vieira, em termos verossímeis, passa-se de maneira muito diversa: o paradigma vieiria-no tem no caso uma chave imprescindível do modelo, e não na ideia a recusa do real.
E supor que o topos da conciliação, aplicado por Vieira como ponte entre as posições contrárias de jesuítas e colonos, é empregado exclusivamente em virtude de um choque do real que obriga à negociação política capaz de promover a efetivação dos planos, traz consigo ainda um outro engano de avaliação. A conciliação dos mundos material e espiritual é justamente o que mais pode haver de apriorístico em seus sermões, e assenta-se no pensamento neo-escolástico que repõe a analogia tomista essencial entre os dois universos, sem que percam as suas diferenças de natureza, isto é, sem que o mundo temporal seja tomado apenas como decaído ou desviante em relação ao espiritual. Inserida profundamente nisto está a mentalidade seiscentista e barroca de que Vieira participa até a medula: a essência humana dúplice, matéria e espírito, que determina o ser, é termo irredutível de sua gramática. Não há, genericamente, entre autores do barroco, qualquer engano no sentido de que seria possível falar a homens, mesmo palavras sagradas, sobretudo palavras sagradas, sem passá-las pela força e forja dos argumentos sensíveis e temporais.
Ler contradição entre a razão ideal e as condições reais das práticas econômicas da Colônia é, portanto, anacronismo em cascata: primeiro, confunde To-zão e perspectiva ideal; depois, distingue e distende temporalmente razão e prática, sendo que, nos pregadores da Contra-Reforma, é da essência das razões que se metam nas coisas; terceiro, ainda dispõe como circunstancial justamente o que não o é: a acomodação, a conciliação, a analogia entre a natureza humana e a divina, entre a finalidade histórica e a providencial — tudo justamente o que dá como fruto e decorrência lógica a Igreja Militante e a ação missionária.
Ou seja, bem considerados os pontos, eles retiram a razão dos Seiscentos e a vão tornar cópia da que vige nos Oitocentos: depois, quando volta, assim mudada, ao seu próprio século, parece inteiramente diferente dele e o que quer que faça toma ares de um tremendo esforço de adaptação ao que lhe é estranho. Estranho, porém, é o procedimento interpretativo que a faz imitação e arremedo do futuro que não é, nem sonha — nem o quereria, quiçá, se o conhecesse.
Mas é preciso ver nos textos como Vieira apresenta esta relação de conciliação essencial — que responde jesuiticamente ao maquiavelismo do tempo[83] — entre a consciência cristã e as práticas de eficácia temporal. De início, observem-se as formas de conciliação propostas à vista dos moradores do Brasil, adversários de toda lei favorável à liberdade dos índios. No Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, de 1653, pregado em São Luís, Vieira começa encarecendo o valor da alma, sem preço que a pague o bastante: “Se para segurar a consciência, e para salvar a alma, for necessário perder tudo, e ficar como um Jó, perca-se tudo”.[84] Entretanto, muito a tempo, não crê que seja o caso: “Bom ânimo, senhores meus, que não é necessário chegar a tanto nem a muito menos. Estudei o ponto com toda a diligência e com o afeto, e, seguindo as opiniões mais largas e mais favoráveis […]” — e lá segue ele a apresentar a solução que descobre, de modo que sempre se possa “com muita pouca perda temporal” ainda “segurar as consciências de todos os moradores deste Estado”; e de modo que estes, mantendo “muitos grandes interesses” possam também “melhorar suas conveniências para o futuro”. “Dai-me atenção”[85] — é o que pede. Sim, demo-lhe atenção: já pela grandeza inalcançada de seu português, ninguém perde nada, antes todos lucram tudo, quando Vieira se põe a conciliar.
No caso das missões, a acomodação que propõe é, resumidamente, a seguinte: posse apenas de escravos voluntários, os demais levados para as “aldeias d’el rei”; garantia de entradas ao sertão; resgate e cativeiro justo de índios “em corda”, isto é, aprisionados e condenados à morte por tribo rival; manutenção de cativeiro de índios escravizados em “guerra justa”; julgamento de todos os cativeiros por uma Junta de que participariam governador, ouvidor-geral dos índios, vigário do Maranhão ou Pará, e prelados das quatro religiões atuantes na Província, repartição pro rata, entre todos os moradores, dos cativos por justa causa; condução dos índios, cujo cativeiro não fosse confirmado pela Junta, para as aldeias, durante seis meses, em que trabalhariam para a própria família — os outros seis meses trabalhariam em casa de colonos, mediante pagamento de duas varas de algodão por mês. “Pode haver coisa mais moderada?” pergunta ele — “Pode haver coisa mais posta em razão que esta? Quem se não contentar e não satisfizer disto, uma de duas: ou não é cristão, ou não tem entendimento.[86]
Da conciliação, decorreriam quatro bens para os moradores: ficarem “com as consciências seguras”; tirarem de suas casas “esta maldição” de servirem-se “com suor e com sangue injusto”; haver “muitos resgates, com que se tirarão muitos índios, que de outra maneira não os haverá”; e, por último, ter uma proposta “digna de ir às mãos de Sua Majestade” que a aprove e confirme, por proveitosa e justa.[87] Ou seja, tais bens são a garantia de perfeita acomodação entre a salvação espiritual — ameaçada pelo pecado, em que vivem, do cativeiro injusto dos índios — e a manutenção mais adequada de certa prática do cativeiro, agora regulada por disposições de justiça jurídica e teológica.
O mesmo propósito de fazer vingar o conveniente ao Estado e à Religião manifesta-se mais detalhadamente nas dezenove medidas que, em carta de 1654, Vieira propõe a dom João IV. Interessa, talvez, agora, menos especificar quais sejam do que verificar como as justifica no interior do tópico da conveniência: “aqui não se trata só do justo” — escreve — “senão também do justificado”[88].Vale dizer: ao zelo deve somar-se a conveniência, ou ainda melhor, a conveniência participa do zelo.
O topos da conveniência é onipresente em Vieira. Um emprego recorrente dele é o de apresentar-se como argumento que tenta desmanchar a resistência dos moradores diante de leis ou projetos contrários ao cativeiro injusto, e também diante daqueles favoráveis ao exclusivo governo jesuíta das missões e entradas de resgate, mostrando-lhes as vantagens advindas da obediência e acatamento de tais leis e projetos. Mas Vieira igualmente aplica o argumento da conveniência nos discursos que representa ao rei e aos grandes do governo português. Aqui, em geral, dá-o como reforço ou justificativa da necessidade de mudança de uma ou outra disposição sobre as missões, que a “experiência tem mostrado” insatisfatória ou inexequível, de modo a dar “remédio” eficaz, “mais conveniente e praticável”,[89] à questão. Mais agudamente, também lança mão deste topos quando, desesperando já de mover aos moradores, Vieira vibra-o como prova da temperança e boa vontade de sua própria posição, que quase trai a missão cristã em favor da pacificação dos coloniais, e de que, estes sim, ao contrário, adotam postura herética, desleal para com o bem comum da república, fazendo do Maranhão e Pará “uma Rochela de Portugal”.[90]
É sobretudo na armadilha deste último ponto que caem os analistas que julgam que Vieira cede de suas convicções diante da realidade colonial: pois é exatamente esta a ideia que pretende demonstrar ao rei, a de sua própria tolerância e flexibilidade diante da irredutibilidade da cobiça dos moradores. Vieira, ele mesmo, faz pensar que transige nesta matéria, coisa em que, supondo casos particulares, até possivelmente acreditasse. Mas a questão importante é que, ao fazê-lo, aponta para um uso adequado do topos da conciliação: ele está e esteve disposto a encontrar uma solução comum; furtar-se a isto é intolerância, facciosimo, sem-razão.
Sustentando o ecletismo casuísta destes empregos, está a sua convicção fundamental de que, havendo ou não resistência dos moradores ao projeto das missões, o certo é que o bem comum da República é análogo ao projeto de salvação da comunidade religiosa. Isto equivale a crer que a verdade de toda consciência ou prática cristã adequada supõe necessariamente a efetuação de uma acomodação que a conduza ao desdobramento eficaz da história. Deixar de conciliar, ou acomodar, deste ponto de vista é abdicar do inabdicável: renunciar à eficácia histórica da pregação cristã.
Quando Vieira chega a fazer um mea culpa da muita conciliação que tentara de suas posições com as dos moradores, o que, ou quem, ele acusa, de fato? A sua própria “contradição” e a “condição ambígua da Igreja colonial” que, como pensa o professor Bosi, “o pungia como um remorso”?[91] Penitencia-se do seu esforço de conciliação, de harmonização das partes em conflito para assentamento de um meio-termo adequado? Certamente não; quedam acusados, isto sim, os que, com tanta demonstração de boa vontade e desejo de concórdia, ainda permaneceram aferrados à sua falta de piedade, à sua cobiça invencível, e à sua prática facciosa: indiferentes, portanto, a Deus, às leis e ao comum do Reino. É de ler um trecho deste que certamente é um dos mais belos sermões jamais escritos por Antonio Vieira: o da Epifania, pregado, como disse, diante da rainha-regente, do príncipe e toda a grandeza de Portugal. A auto-acusação afina a passagem:
Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito culpados. E por quê? Porque, devendo defender os gentios que trazemos a Cristo, como Cristo defendeu os Magos, nós, acomodando-nos a fraqueza do nosso poder, e à força do alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defensa. Como defendeu Cristo os Magos? Defendeu-os de tal maneira que não consentiu que perdessem a pátria, nem a soberania, nem a liberdade, e nós não só consentimos que os pobres gentios que convertemos percam tudo isto, senão que os persuadimos a que o percam, e o capitulamos com eles, só para ver se pode contentar a tirania dos cristãos: mas nada basta.[92]
A culpa, já se vê, não foi senão a do excesso de zelo de concórdia, insuficiente ainda para comover aos da Colônia.
Tanto mais contundente o mea culpa que faz de sua própria flexibilidade, tanto mais Vieira torna monstruoso o crime e a insaciabilidade dos coloniais irredutíveis: “Mas nada disto basta para moderar a cobiça e tirania dos nossos caluniadores, porque dizem que são negros, e hão de ser escravos”.[93] Quer dizer, o “remorso” que exibe é a demonstração da “calúnia” que sofre, não da imoralidade que nunca julgou ter praticado. E se algum arrependimento seu há aí não é o de esforçar-se por conciliar, mesmo à custa da limitação das liberdades indígenas, mas o de tê-lo feito sem lograr fruto, sem que tivesse resultado em acordo efetivo com os moradores: sem, portanto, que as tais limitações tenham podido estabelecer-se, de fato, como selo de um consenso que ajustaria os domínios de missionários e colonos na prática com os índios. Se há um erro que o punge é o da estratégia equivocada da acomodação — isto é, de que não precisaria ter oferecido tanto, se não havia de conseguir nada —, não o da má consciência por havê-la proposto. A consciência, esta, bem se vê que está limpíssima, e mais por ter tentado tudo, arriscado a si mesma, em nome do mais alto valor da fraternidade e concórdia no rebanho de Cristo e corpo do Estado.
E ao redimensionar a questão desta maneira, gostaria de deixar bem claro que a este trabalho não interessa absolutamente demonstrar o quanto é imoral, ou sem-consciência, Vieira ou a Igreja colonial, pois isto parece outra impropriedade do ponto de vista das referências epocais constitutivas dos sentidos em jogo, aqui. Vieira me aparece como um perfeito exemplo da moralidade eclesiástica mais sincera da Península nos Seiscentos — embora este topos da “sinceridade”, já refira a questão romântica, e não barroca. A questão relevante é levantar, com um mínimo de rigor histórico e textual, digamos, filológico, a gramática provável — não a gramática real, nem a ideal — da moral vigente, naquela situação e naquele tempo particulares, a propósito do tema do índio. Pretender a imoralidade, logo a condenação, parece tão anacrônico e revisionista quanto postular a moralidade impecável e o louvor do avanço. Fabricar um espelho verossímil daquelas práticas e letras, conhecer as razões que as punham conjuntamente em funcionamento: levantar a cultura, enfim, que lhes dava sentido e consistência, eis tudo — mais juízo ou ação não quer, nem pode arrogar para si este modesto estudo.
A REDUÇÃO DOS BRASIS
Já disse que Vieira condiciona o êxito das missões indígenas no Brasil a um acontecimento fundamental: o monopólio da Companhia de Jesus na condução dos negócios dos índios. Isto implica, imediatamente, duas coisas: prerrogativas frente às demais ordens religiosas e jurisdição independente das aldeias, sem interferência do governo da Província, a não ser em tempo de guerra, e sob condições restritas.
Para o primeiro ponto, os argumentos que mais emprega são os da falta de letras e de zelo das outras religiões. Escrevendo a dom João IV, em 1655, sobre a dificuldade que os padres da Companhia estavam encontrando para converter os tupinambás, atribui-a à presença lá de maus religiosos:
Foi este um dos grandes impedimentos que os padres acharam para reduzir estes índios; porque, quando lhes alegavam que eram religiosos e que os não haviam de cativar como tinham feito os capitães portugueses, lhes respondiam eles que também aquele era religioso e os cativara; e, se os índios das nossas cristandades lhes não explicaram o diferente modo dos padres da Companhia, bastara este exemplo para não se reduzirem.[94]
Em relação ao ponto da jurisdição independente das missões, o argumento básico que utiliza é o da experiência: esta demonstra que a submissão das “aldeias d’el rei” ao governo da Província coloca os índios à mercê de uma cobiça que explora até à morte os seus corpos, e abandona sem qualquer assistência as suas almas. Daí que Vieira vá exigir para a Companhia o “duplo gládio” do governo temporal e espiritual das reduções, sem o que condena-se ao fracasso a nova vocação da gentilidade:
Acabe de entender Portugal que não pode haver Cristandade nem cristandades nas conquistas, sem os ministros do Evangelho terem abertos e livres estes dois caminhos, que hoje lhes mostrou Cristo. Um caminho para trazerem os Magos à adoração, e outro para os livrarem de perseguição, um caminho para trazerem os gentios à fé, outro para os livrarem da tirania; um caminho para lhes salvarem as almas, outro para lhes libertarem os corpos.[95]
Retomando antigos argumentos teocráticos, e aplicando-os ao governo das missões, Vieira observa a impossibilidade, neste caso, de traçar limites rígidos entre as vias temporal e espiritual: “e querer dividir estes caminhos e estes cuidados é querer que não haja cuidado nem caminho. Ainda que um desses caminhos pareça só espiritual, e o outro temporal, ambos pertencem à Igreja e às chaves de S. Pedro, porque por um abrem-se as portas do céu, e por outro fecham-se as do inferno”[96].E desempenha analogicamente a questão cruzando a figura da conversão dos Magos com a do legado das chaves a Pedro, com que funda a Igreja e sinaliza a nova fundação das Conquistas:
Por isso é necessário que as chaves sejam duas, e que ambas estejam na mesma mão. Uma com que Pedro possa abrir as portas do céu, e outra com que possa aferrolhar as portas do inferno; uma com que possa levar os gentios a Cristo, e outra com que os possa defender do demônio, e seus ministros. E toda a teima do mesmo demônio e do mesmo inferno, é que estas chaves e estes poderes se dividam, e que estejam em diferentes mãos.[97]
A conclusão é que
só quem converte os gentios, os zela e os defende, e que, assim como dividir as almas dos corpos é matar, assim dividir estes dois cuidados é destruir. Por isso estão destruídas e desabitadas todas aquelas terras em tão poucos anos, e de tantas e tão numerosas povoações, de que só ficaram os nomes, não se vêem hoje mais que ruínas e cemitérios. Necessário é, logo, não só para o espiritual, senão também para o temporal das conquistas, que os mesmos que edificam aquelas novas igrejas, assim como têm o zelo e a arte para as edificar, tenham juntamente o poder para as defender.[98]
Os jesuítas são os “edificadores” das “novas igrejas” que, como os trabalhadores que construíram o Templo sob a permanente ameaça dos samaritanos (2 Esdr 4:17), necessitam ter numa mão a espada, e a obra na outra: “E se os mesmos trabalhadores não tiverem espada com que defendam o que trabalham, não só parará, como está parada a obra, mas perder-se-á, como se vai perdendo, quanto com trabalho se tem obrado”.[99]
E Vieira adverte e refuta o contra-argumento dos adversários de que “a espada é instrumento profano e leigo, e não diz bem em mãos sagradas”,[100] retomando o modelo paulino de ação eclesiástica:
Por que traz Paulo em uma mão o livro, noutra a espada? Porque Paulo entre todos os outros apóstolos foi o vaso de eleição escolhido particularmente por Cristo para preparador dos gentios: Vaselectionis est rnibá iste, ut portet nomen meun coram gentibus — e quem tem por ofício a pregação e conversão dos gentios há de ter o livro em uma mão e a espada na outra: o livro para os doutrinar, a espada para os defender. E se esta espada se tirar da mão de Paulo, e se meter na mão de Herodes, que sucederá? Nadará toda a Belém em sangue inocente, e isso é o que vemos.[101]
Construindo uma analogia de proporção entre governador da Província—Herodes; Belém do Pará—Belém de Judá; suplício dos inocentes—escravidão e morte dos gentios; o papel de são Paulo figura o da Companhia de Jesus.
Em outra analogia, figura da Companhia é o “pastor”, que não pode esquecer a dupla função de seu cajado:
Respondei-me: Quem tem obrigação de apascentar as ovelhas? O pastor. E quem tem obrigação de defender as mesmas ovelhas dos lobos? O pastor também. Logo o mesmo pastor, que tem o cuidado de as apascentar, há de ter, também, o poder de as defender. Esse é o ofício do pastor, e esse o exercício do cajado. Lançar o cajado à ovelha para a encaminhar, e terçá-lo contra o lobo para o defender. E vós quereis que este poder esteja em uns, e aquele cuidado em outros? Não seja isso conselho de lobos![102]
Apenas algum “político, mau gramático e pior cristão”[103] quererá que o pastor se restrinja a apascentar, sem defender. É exatamente pela consciência desta dupla função, que não se exime do temporal para fazer vingar a saúde espiritual do rebanho, que se distingue o “pastor” do “mercenário”, pois este, como se lê em João (10:11 ss.), “quando vê vir o lobo para o rebanho, foge, e deixa-o roubar e comer as ovelhas”.[104]
E, neste ponto, numa estupenda inversão do topos da não-humanidade do índio proposto por vários conquistadores, desde o XVI, Vieira nega a humanidade dos que, como lobos, visam à destruição do novo rebanho de Cristo: “O Senhor não fez a comparação entre ser bom e ser mau, senão entre ser, ou não ser. Diz que o que defende as ovelhas é bom pastor, e não diz que o que as não defende é mau pastor: por quê? Porque o que não defende as ovelhas não é pastor bom nem mau. Um lobo não se pode dizer que é bom homem, nem que é mau homem, porque não é homem”.[105]
A estas dificuldades fundamentais, Vieira não deixa de apontar várias outras, como a falta de padres, igrejas, recursos etc. Mas para ficar apenas no essencial a respeito de sua posição sobre a redução indígena, será preciso considerar aqui algumas preocupações suas que, em termos gerais, retomam posições muito pouco eufóricas dos jesuítas sobre as possibilidades reais da catequização — embora raro cheguem a tomar tons tão sombrios quanto aqueles que descobrimos, sobretudo, no Diálogo sobre a conversão do gentio, do padre Manuel da Nóbrega. Sem deixar de adotar as tópicas propostas pelos doutores do século XVI, como se viu já, Vieira aponta dificuldades fortes para a conversão efetiva — de que ele, entretanto, jamais chega a duvidar desde que se cumpram as duas condições comentadas: a independência administrativa e econômica das missões e a prerrogativa exclusiva da Companhia sobre elas.
Estas dificuldades incluiriam, ao menos, as relativas ao aprendizado das línguas; à falsa facilidade de aprendizado mostrada pelos índios; e à “má qualidade” das gentes — item com que, através de conceituoso equívoco, Vieira atinge tanto o índio americano, quanto o português da Conquista. Todos estes três tópicos estão recorrentemente tratados em alguns dos seus sermões e cartas mais importantes. É ir a eles.
A DIFICULDADE DA LÍNGUA
A necessidade de conhecer as línguas das nações indígenas para ter eficácia a pregação é lugar-comum dos missionários de que Vieira participa inteiramente: “Se eu não entendo a língua do gentio, nem o gentio entende a minha, como hei de convencer e trazer a Cristo? Por isso temos por regra e instituto aprender todos a língua ou línguas da terra onde imos pregar, e esta é a maior dificuldade e o maior trabalho daquela espiritual conquista”.[106] E dá a seguinte medida dos trabalhos que se apresentam tão logo o pregador tenta aprendê-las, tomando por texto de base a Ezequiel (3:4 ss.), quando Deus o manda pregar aos seus:
Distingue Deus no ofício de pregar três gêneros de empresas: uma fácil, outra dificultosa, outra dificultosíssima. A fácil é pregar à gente da própria nação e da própria língua: Vadead filios Israel; a dificultosa é pregar a uma gente de diferente língua e diferente nação: Adpopulum profundi sermonis et ignotaelinguae; a dificultosíssima é pregar a gentes não de uma só nação e uma só língua diferente, senão de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes línguas, desconhecidas, escuras, bárbaras, e que se não podem entender.[107]
E justamente
a segunda e a terceira empresa ficou guardada para os apóstolos e pregadores da lei da graça, e entre eles particularmente para os portugueses, e entre os portugueses, mais em particular ainda, para os desta conquista, em que são tantas, tão estranhas, tão bárbaras e tão nunca ouvidas, nem conhecidas, nem imaginadas as línguas.[108]
Japão, China, Mogor, Pérsia, Preste João, para todos estes confins, Portugal manda missionários, mas em todos eles, mesmo que variem as províncias e os reinos, a língua é única, encarece Vieira. A terceira tarefa, a dificultosíssima, esta ficou reservada para os missionários do Maranhão, “porque vêm pregar a gentes de tantas, tão diversas e tão incógnitas línguas, que só uma coisa se sabe delas, que é não terem número”.[109] E projetando meton.imicamente o sem-número das línguas no tamanho do Amazonas, Vieira lembra que também o chamam Rio Babel, o que lhe parece pouco, ou “curto”, já que mais tem de “mar doce”, e já se conhecem cento e cinquenta línguas das nações que habitam seus “imensos braços”, todas “ocultas” e de “nunca ouvida inteligência”, contra apenas setenta e duas da antiga Babel.[110]
No Sermão da Epifania, cinco anos passados, volta-lhe à mente a analogia entre o Rio e a Torre:
Na antiga Babel houve setenta e duas línguas: na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de cento e cinquenta, tão diversas entre si como a nossa e a grega; e assim, quando lá chegamos, todos nós somos mudos, e todos eles surdos. Vede, agora, quanto estudo e quanto trabalho será necessário, para que estes mudos falem e estes surdos ouçam.[111]
Diligências verdadeiramente milagrosas são necessárias para “dar fala ao mudo e ouvidos ao surdo”:
É necessário tomar o bárbaro à parte, e estar e instar com ele muito só por só, e muitas horas, e muitos dias; é necessário trabalhar com os dedos, escrevendo, apontando e interpretando por acenos o que se não pode alcançar das palavras; é necessário trabalhar com a língua, dobrando-a e torcendo-a, e dando-lhe mil voltas para que chegue a pronunciar os acentos tão duros e tão estranhos; é necessário levantar os olhos ao céu, uma e muitas vezes com a oração, e outras quase com desesperação; é necessário, finalmente, gemer, e gemer com toda a alma; gemer com o entendimento, porque em tanta escuridade não vê saída, gemer com a memória, porque em tanta variedade não acha firmeza, e gemer até com a vontade, por constante que seja, porque no aperto de tantas dificuldades desfalece, e quase desmaia.[112]
O topos da “escuridade” da língua dos indígenas, presente em tantos textos de cronistas e missionários, Nóbrega, Soares de Sousa, Gândavo etc., retomado em vários sermões e cartas de Vieira, remete tanto à ideia de que se trata de línguas desconhecidas como à de que são desordenadas e sem articulação, em que estão ausentes a luz da razão e a da Graça. O que é dito a respeito das trevas da língua é semelhante ao que se diz do estado da alma dos índios, a que ainda falta o saber da doutrina e a fé de Deus.
Converter o indígena através da prédica, portanto, não obriga apenas a aprender um idioma que se desconhece, mas a esforçar-se por penetrar na selva de um entendimento defeituoso, e descobrir lá a luz da imagem divina oculta pela barbárie dos costumes.[113] Este ponto fundamental faz com que Vieira retome o topos da “falta de letras” que o Gândavo, em 1576, já utilizara: “A língua geral de toda aquela costa carece de três letras: F, L, R: de F, porque não tem fé, de L, porque não tem lei, de R, porque não tem rei: e esta é a polícia da gente com que tratamos”.[114]
Estabelecer a gramática e repor as letras faltantes é o análogo que figura e prepara a fundação dos sãos costumes, as práticas de melhor polícia, e a salvação da alma: traz-se assim para a luz da inteligibilidade da língua o que não parece ter ser. Antes da redução do índio, portanto, o grande trabalho é reduzir línguas de “tão escura e cerrada pronunciação” ao audível inteligível.
Também sobre isto, Vieira escreve uma de suas passagens mais extraordinárias, em que a prosa portuguesa, esta sim, vê nascer a nitidez engenhosa que ainda não experimentara antes dele — “exprimir de ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive”[115] diria Pessoa —; ei-la:
Por vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do bárbaro, e ainda do intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem perceber as vogais ou consoantes de que se formavam, equivocando-se a mesma letra com duas e três semelhantes, ou compondo-se — o que é mais certo — com mistura de todas elas: umas tão delgadas e sutis, outras tão duras e escabrosas, outras tão interiores e escuras, e mais afogadas na garganta que pronunciadas na língua, outras tão curtas e subidas, outras tão estendidas e multiplicadas, que não percebem os ouvidos mais que a confusão, sendo certo, em todo o rigor, que as tais línguas não se ouvem, pois se não ouve delas mais que o sonido, e não palavras desarticuladas e humanas.[116]
O esforço de aprendizado dos missionários é inestimável, mormente os do Brasil: “Que será aprender o nheengaíba, o juruuna, o tapajó, o teremembé, o mamaiana, que só os nomes parece que fazem horror?”.[117] As “letras hieroglíficas” dos chinas, japões e egípcios ainda têm o atenuante de ser de “gente política” que se estuda “por letra e por papel”.[118] Já com os brasis, cinco trabalhos dividem-se e acrescentam-se à valentia de aprender as suas “línguas bárbaras e barbaríssimas”: o primeiro “é ouvi-la; o segundo, percebê-la; o terceiro, reduzi-la a gramática e a preceitos; o quarto, estudá-la; o quinto — e não o menor, e que obrigou a S. Jerônimo a limar os dentes — o pronunciá-la”.[119]
E tudo isto é apenas o começo: simples e necessárias “disposições” para o trabalho efetivo da conversão; evidentemente que, tanto mais Vieira faz pesar estes trabalhos enormes de desbravamento da língua, que é selva e brenha, escuridade múltipla e disforme, tanto mais, proporcionalmente, encarece junto à. Coroa a dedicação amorosa e desinteressada dos jesuítas à empresa indígena. Estes, ao descobrir-lhe sacrificadamente a forma que ainda não tem, não fazem outra coisa que zelar pelo fortalecimento do Estado e missão da Igreja:
Haver de arrostar com uma língua bruta, e de brutos, sem livro, sem mestre, sem guia, e no meio daquela escuridade e dissonância haver de cavar os primeiros alicerces, e descobrir os primeiros rudimentos dela, distinguir o nome, o verbo, o advérbio, a proposição, o número, o caso, o tempo, o modo, e modos nunca vistos nem imaginados, como de homens enfim tão diferentes dos outros nas línguas, como nos costumes, não há dúvida que é empresa muito árdua a qualquer entendimento, e muito mais árdua à vontade que não estiver muito sacrificada e muito unida com Deus.[120]
A FALSA FACILIDADE DO APRENDIZADO
Os tratadistas e missionários ibéricos, particularmente, jesuítas e dominicanos, esforçaram-se, como se viu já, por demonstrar a perfeita aptidão do índio para a fé católica em oposição àqueles que o consideravam aristotelicamente servos por natureza, dotados apenas de força física e incapazes de bom entendimento, bem como praticantes de vícios contra-natura, como a sodomia, o incesto, a poligamia, o sacrifício humano e o canibalismo, além de se mostrarem usualmente inconstantes e preguiçosos. Vieira, a despeito de, também como se viu, adotar os pontos básicos dos neo-escolásticos, vai dar à discussão um rumo bastante moderado, se se tiver em mente as posições mais radicais de, por exemplo, Las Casas, de um lado, e Sepúlveda, de outro.[121] Vieira vai reconhecer cabalmente a dificuldade essencial do aprendizado do índio, assentada não propriamente sobre a sua pouca inteligência, mas sobre a excessiva facilidade com que toma a lição. Quer dizer, ele vai retomar o topos da “docilidade” levantado pelos defensores do índio, não mais como elemento demonstrativo a favor dele, mas como signo da resistência da sua incredulidade. Não à toa, escrituralmente, São Tomé é a figura factual do missionário do Brasil, mandado por Cristo para aqui a fim de que pagasse a pena de sua falta de crença.
Eis como dificulta e desempenha o ponto:
Não há gentios no mundo que menos repugnem à doutrina da fé, e mais facilmente a aceitem e recebam, que os brasis; como dizemos logo, que foi pena da incredulidade de Santo Tomé o vir pregar a esta gente? Assim foi — e quando menos, assim pode ser — e não porque os brasis não creiam com muita facilidade, mas porque essa mesma facilidade com que crêem faz que o seu crer, em certo modo, seja como o não crer. Outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos. Em outros gentios a incredulidade é incrédula, e a fé é fé; nos brasis a mesma fé ou é, ou parece incredulidade.[122]
E aperta a contradição:
Tal é a fé dos brasis: é fé que parece incredulidade, e é incredulidade que parece fé; é fé, porque crêem sem dúvida e confessam sem repugnância tudo o que lhes ensinam, e parece incredulidade, porque, com a mesma facilidade com que aprenderam, desaprendem, e com a mesma facilidade, com que creram, descreem.[123]
O que, a rigor, “é gênero de incredulidade mais irracional, que se nunca creram”.[124]
E a arte de engenho solicita agora a ponderação misteriosa:
Pois, naquelas nações se conservou a fé por tantos centos de anos, nestas por que se não conservou? Porque esta é a diferença que há de umas nações a outras. Nas da Índia, muitas são capazes de conservarem a fé sem assistência dos pregadores; mas nas do Brasil nenhuma há que tenha essa capacidade. Esta é uma das maiores dificuldades que tem aqui a conversão. Há-se de estar sempre ensinando o que já está aprendido, e há-se de estar sempre plantando o que já está nascido, sob pena de se perder o trabalho e mais o fruto.[125]
Ou, em síntese metafórica: “É necessário, nesta vinha, que esteja sempre a cana da doutrina arrimada ao pé da cepa, e atada à vide, para que se logre o fruto e trabalho”.[126]
A contribuição alegórica de Vieira à argumentação relativa ao excesso de facilidade de crença dos brasis é insuperável:
Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casa de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé.[127]
É importante notar, na linha argumentativa desenvolvida pelo padre Antonio Vieira, que a crítica do índio não se faz de modo a defender a sua subjugação preparatória pela força, posição comum entre humanistas e franciscanos; nem de modo a desistir de sua pregação, tendência comum entre os primeiros hu-guenotes que aqui vieram e que, numa leitura rigorista do dogma da predestinação, consideraram o indígena excluído da Bem-aventurança;[128] ou tampouco de modo a entregá-la, algo ceticamente, à Graça operante de Deus, posição a que tende o padre Manuel da Nóbrega. A alegoria constroi-se de modo a argumentar sobretudo sobre a necessidade radical de permanência e convívio estreito do jesuíta junto ao índio, justificada pela sua atitude mesma diante da fé, que sempre necessita correção — e nunca, defende-se, por desejo da Companhia de Jesus de ter o exclusivo usufruto de seu trabalho, como acusavam os moradores.
Eis como Vieira o diz, em verdadeiro prodígio de estilo e argúcia:
Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil — que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.[129]
A MÁ QUALIDADE DAS GENTES
Esta visada sobre a incredulidade do selvagem brasileiro, cuja ausência de resistência é, na verdade, maneira de furtar-se ao aprendizado da doutrina, é uma especificação de um topos mais amplo brandido por Vieira, referente ao que chama de “qualidade da gente” do Brasil: “A mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo”.[130] Este é, por ora, o ponto de chegada deste trabalho e aquele que deve permitir reunir as pontas da imagem vieiriana do índio. Pois é aqui que será possível verificar a maneira como as tópicas da Segunda Escolástica — que visam a delimitar jurídica e eticamente a capacidade dos indígenas de entendimento, polícia e religião — compõem-se, nos textos de Vieira, com as duríssimas observações que formula a respeito deles, em cada um desses itens.
Retomando o célebre lema missionário da “obrigação de pregar a toda criatura”, que os teólogos foram buscar em Marcos (16:15), Vieira encarece o sentido desta obrigação “dificultando” o seu entendimento:
Pois, se os apóstolos hão de pregar a todas as criaturas, hão de pregar também aos brutos? Hão de pregar também aos troncos? Hão de pregar também às pedras? Também, diz Cristo: Omni creaturae; não porque houvessem os apóstolos de pregar às pedras, e aos troncos, e aos brutos, mas porque haviam de pregar a todas as nações e línguas bárbaras e incultas do mundo, entre as quais haviam de achar homens tão irracionais como os brutos, e tão insensíveis como os troncos, e tão duros e estúpidos como as pedras.[131]
Esta entrada ajuda um pouco a entender o modo como Vieira arma um discurso bastante duro sobre a condição do índio, sem, ao mesmo tempo, negar absolutamente a possibilidade da conversão, a eficácia da pregação em prol da Fé, da Lei e do Rei. Na verdade, muito outro é o alvo de Vieira ao rebaixar fortemente a aptidão e natureza do indígena. Não pretende com isto, como no caso de Sepúlveda e outros que se deram ao trabalho de argumentar tecnicamente a respeito, defender que esta baixa condição aconselha e legitima uma política de justa guerra que os reduza a uma situação de cativeiro, separe-os de um meio de costumes viciosos, e prepare a sua adesão à fé. Antes, de um lado, Vieira ataca a ausência destes mesmos princípios entre os próprios cristãos da Colônia, que, a julgar por aí, igualam-se aos bárbaros, e descem abaixo deles, já que não têm o atenuante da ignorância. De outro lado, Vieira faz a apologia da provação experimentada pela Companhia, cujos soldados apenas são capazes, por indústria construída e Graça derramada, de abrandar aqueles brutos, que vão de lobos a basiliscos, e integrá-los, como ovelhas, no grêmio da Igreja. Mais é acompanhar o que Vieira diz:
O rebanho que Cristo encomendou a S. Pedro não era rebanho feito, senão que se havia de fazer, e as ovelhas não eram ovelhas mansas, senão que se haviam de amansar: eram lobos, eram ursos, eram tigres, eram leões, eram serpentes, eram dragões, eram áspides, eram basiliscos, que por meio da pregação se haviam de converter em ovelhas. Eram nações bárbaras e incultas, eram nações feras e indômitas, eram nações cruéis e carniceiras, eram nações sem humanidade, sem razão, e muitas delas sem lei, que por meio da fé e do Batismo se haviam de fazer cristãs, e para apascentar e amansar semelhante gado, para doutrinar e cultivar semelhantes gentes, é necessário muito cabedal de amor de Deus, é necessário amar a Deus.[132]
Deus dá a missão ao seu pastor e só o amor extremo dele pode fazer com que se cumpra, tamanha a sua dificuldade. Isto dá à pregação o estatuto de uma verdadeira provação: torna-a análoga a um sacrifício que tanto mais vale e conta quanto mais é elevado o seu custo e preço. A boçalidade dos gentios, neste caso, quanto mais monstruosa for, tanto mais atesta a pura fé dos missionários que a reduzem, sem escravizá-la, à cordura da ovelha da grei cristã. Vê-se, por este simples exemplo, que nem de longe é a imagem do “nobre selvagem” apenas a que atesta posições contrárias ao seu cativeiro. Se não a de “porco sujo”, a de “fera” é largamente utilizada, aqui, como encarecimento do agente pacífico e amoroso da transformação do gentio em “doméstico” do Senhor.
E não apenas isto: ao afirmar a missão como provação, e condicionar o seu cumprimento ao testemunho de amor a Deus, Vieira traz para o primeiro plano da conversão eficaz a exigência da fé, e a oposicão, portanto, a toda heresia. Sob este ângulo, igualmente, a construção minuciosa da estupidez do índio tem um emprego que não se volta diretamente contra ele: tanto mais boçal e indômito o selvagem, tanto mais é herético o que não cuida de salvá-lo, porque tanto mais se evidencia a exigência amorosa e são denunciados aqueles a quem, por faltar a fé, cabe a culpa, o pecado e a pena da perda de sua alma. Assim, o morador que duvida da possibilidade da conversão, e reclama seus direitos de escravização do índio, pela mesma razão que duvida expõe-se à crítica da falta de fé, que manda ensinar mesmo às pedras, e cujo êxito depende da estrita obediência e crença na verdade do mandado, não da análise racional de sua possibilidade.
Este voluntarismo, diga-se, não retira o discurso vieiriano da linhagem to-mista: não o exclui do esforço de levantar as razões que se lêem naturalmente nas coisas criadas, mas ressalta que o principal esforço nele é conciliá-las com os casos da experiência da conversão, e não o contentar-se com a sua formulação abstrata ou conceitual. Irredutivelmente casuísta e imersa na prática missionária é, portanto, a acomodação que sofrem os topoi da Escola na sala de tesouros da invenção oratória de Antonio Vieira.
Pois bem: se a boçalidade do índio não induz a que se admita ou legitime a escravidão, mas a que maior seja o amor de Deus e a confiança na possibilidade de conduzi-lo à superação de seu estado de barbárie, então, neste caso, os primeiros culpados por descrença são os moradores que os escravizam. Exemplares, por outro lado, são os missionários jesuítas, cuja fortaleza de amor divino mantém-nos apegados ao exercício de sua tarefa sobrenatural, de que não podem sair vencedores sem o concurso da Graça. Apenas a grandeza deste amor a Deus pode dar a razão que move estas estrelas da nova cristandade a “deixarem as cadeiras das mais ilustres Universidades da Europa” e acomodarem-se
à gente mais sem entendimento e sem discurso, de quantas criou, ou abortou a natureza, e a homens, de quem se duvidou se eram homens, e foi necessário que os Pontífices definissem que eram racionais, e não brutos. A estrela dos Magos parava, sim, mas nunca tornou atrás; as nossas estrelas tornam uma e mil vezes a desandar o já andado, e a ensinar o já ensinado, e a repetir o já aprendido, porque o bárbaro boçal e rude, o tapuia cerrado e bruto, como não faz inteiro entendimento, não imprime nem retém na memória.[133]
Muito pior que “acomodar-se ao passo dos dromedários de Madiã” em que iam os Reis Magos acompanhando a estrela-guia é acomodar-se “ao sono dos preguiças do Brasil”, com o que Vieira bate aqui no que talvez seja o máximo lugar-comum dos vícios indígenas levantados pelos conquistadores. Mas o que cumpre ressaltar, novamente, é que o encarecimento das dificuldades encontradas com os índios redunda invariavelmente em favor da vanguarda da história, e instrumentos favoritos da Providência, que são os jesuítas do Brasil. É destes, por isto mesmo, a tarefa mais pesada:
A estrela dos Magos fez sua missão entre púrpuras e brocados, entre pérolas e diamantes, entre âmbares e calambucos, enfim, entre os tesouros e delícias do Oriente: as nossas estrelas fazem as suas missões entre as pobrezas e desamparos, entre os ascos e as misérias da gente mais inculta, da gente mais pobre, da gente mais vil, da gente menos gente de quantos nasceram no mundo.[134]
Isto que parece o ofensivo de um discurso construído diretamente contra o índio, uma vez compreendido adequadamente em vista da prédica feita à rainha e aos nobres do Conselho Ultramarino, visava, antes de mais nada, à demonstração do valor das missões, ao comprometimento definitivo do governo com as prerrogativas obtidas pela Companhia, e à defesa contra as acusações que lhe lançavam os coloniais de que era seu propósito tomar para si o privilégio exclusivo da escravidão indígena. Eis um trecho do Sermão da Epifania em que fica claro que o emprego da tópica da “boçalidade do índio” é habilmente mobilizada por Vieira de modo a representar publicamente contra a maledicência da murmuração:
Uma gente com quem meteu tão pouco cabedal a natureza, com quem se empenhou tão pouco a arte e a fortuna, que uma árvore lhe dá o vestido e o sustento, e as armas, e a casa e a embarcação. Com as folhas se cobrem, com o fruto se sustentam, com os ramos se armam, com o tronco se abrigam, e sobre a casca navegam. Estas são todas as alfaias daquela pobríssima gente, e quem busca as almas destes corpos busca só almas.[135]
Bem pesadas as coisas, portanto, lidos os textos como partes de uma prática persuasória, definitivamente ligada ao período histórico em que o sermão é pregado, vê-se que, em Vieira, o rebaixamento do índio não significa negação dos elementos positivos reconhecidos neles pelos escolásticos do século XVI, mesmo porque, como se viu, são eles que lhe dão as principais balizas da sua posição e a munição mais pesada que guarda em sua inventio. Vieira apenas promove uma mudança de foco neste legado de maneira a concentrar o fogo nos adversários da condição que considerava sine qua non para a consecução da finalidade da conquista: o privilégio da Companhia no governo independente nas missões, a prerrogativa, temporal e espiritual, de que fosse entregue aos jesuítas a direção dos trabalhos, de obrigação geral, relativos à condução do índio ao corpo místico do Estado. O que não obsta que pense do índio isto mesmo que diz, e que é muito distante da idealização a que deram margem tanto os católicos de Castela, como os calvinistas de França e Genebra, um e outro, diga-se, sem deixar de olhar para si, através do espelho do índio.
Se há idealização, em Vieira, não é diretamente em relação ao índio, mas ao projeto universal em que se insere: o do avanço decisivo do exército dos novos conversos, sob o influxo do cristianíssimo Portugal e da Igreja militante da Companhia, primeiros instrumentos a afinar os desconcertos da história com o oculto da Providência e gerar o sublime de um Império, Quinto e Último, que se estende, em mansidão e sossego, milenarmente, até quando chegue o Juízo do Fim.
E, para abreviar este esboço, que já se alonga, do retrato do índio em Vieira, se está bem claro que, para ele, as missões são providência divina, como providência foi a sua tornada ao Brasil como missionário, também o deve ficar que, segundo julga, providencial é a própria força da sua oratória que ordena a condução e o avanço. Assim é que ele, um pouco como se observasse de fora o milagre da intervenção de Cristo através de sua palavra, escreve o seguinte ao Provincial do Brasil, comentando o sermão, já citado, que pregara em São Luís, na Primeira Dominga da Quaresma, de 1653:
Uma das causas que pareceu em Portugal podia ajudar muito a entrada da Companhia nestas terras, era o respeito da mercê que el-rei me fazia, a autoridade das suas cartas, e a recomendação que nelas faz a todos seus ministros e povos acerca de mim e da missão. Os efeitos de todas estas cartas e recomendações foi querem-nos lançar fora, e a mim particularmente, pelos respeitos acima referidos, não havendo, em todos aqueles primeiros dias, quem de tudo isto fizesse mais caso que se tal cousa não houvesse.[136]
E diante do fracasso das provisões reais, que parecia enterrar o projeto das missões, revela-se, súbito, um poder mais levantado:
E quando todos estes respeitos não tinham alguma valia, e os ânimos dos homens estavam tão alheios de nós, e tão odiada com eles nossa vinda, uma vez que subi ao púlpito, e preguei o evangelho de Cristo, foi tanta a sua eficácia e autoridade, e tal o respeito que nós concebíamos com ela, que mudados em um momento os juízos e vontades de tantos homens, e tão interessados, anoitecemos amados, respeitados, louvados e seguidos dos mesmos que, na manhã do mesmo dia, nos aborreciam, nos murmuravam, nos perseguiam, e tanto a seu pesar nos tinham entre si. Oh! força das forças de Deus! Oh! portentosa providência do Altíssimo! Quam in-comprehensibilia sunt judicia Dei![137]
E remata: “Não há melhor carta que o evangelho de Jesus Cristo pregado e muito melhor imitado”.[138]
Se alguém venceu aqui foi a Literatura — a de Deus, naturalmente.
Notas
[1] Cartas do padre Antonio Vieira, coordenadas e anotadas por João Lúcio d’Azevedo, tomo primeiro, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925. Citação à p. 292.
[2] Idem, ibidem.
[3] É o caso da impressão que deixa o artigo do professor Alfredo Bosi, “A cruz da desigualdade” (Novos Estudos — Cebrap 25), que justapõe, a meu ver, e salvo o respeito que me merece o eminente estudioso, de maneira inteiramente equivocada e anacrônica as palavras de Vieira sobre os negros de um engenho, que não gozam do mel de suas oficinas, e as de Marx, em que o trabalhador é privado das maravilhas que produz. Ora, se neste a afirmação remete à crítica radical do sistema injusto de exploração do trabalho pelo capital, em Vieira, muito ao contrário, como deve ficar claro ao longo deste trabalho, a exclusão do gozo do bem material produzido pelo escravo é motivo de encarecimento de sua imitação desinteressada da Paixão de Cristo, que, se não lhe dá de provar o mel do engenho, dá-lhe o gozoso da Bem-aventurança, que, para ele, ao menos, é muito melhor.
[4] Tal é o caso, para referir a um artigo relativamente recente na bibliografia vieiriana no Brasil, do trabalho de Luís Palacin (Vieira e a visão trágica do barroco, São Paulo, Hucitec/Pró-Memória/INL, 1986) que não hesita em denunciar uma “ruptura lógica” naquele: “[…] aceita as formas de opressão institucionalizada da sociedade em que viveu; justifica-as como convenientes e necessárias para a estabilidade social, e opõe-se, com isso, à sua transformação. É, em suma, um conservador apesar de si mesmo” — apenas para citar um trecho (p. 52) dos tantos neste mesmo sentido, que não desconfia haver outra “lógica” a não ser a do dogma evolucionista que adota e revisa a história primitiva anterior a ele.
[5] Fora deste período pretendo remeter apenas a dois textos muito importantes como dados de comparação: a Carta Ânua, de 1626, que narra a invasão holandesa de Willekens, em que Vieira trata pela primeira vez do índio, e o décimo quarto Sermão do Rosário, de 1633, o seu sermão mais antigo a tratar do tema da escravidão negra.
[6] 0 dominicano Francisco de Vitoria, um dos principais nomes da Segunda Escolástica, vai afirmar no De Indis (in Relecciones teologicas, ed. crítica de Luis Getino, Madri, 1933-34, vol. II, p. 368) que “Os cristãos têm o direito de pregar, de anunciar o Evangelho aos bárbaros em todas as regiões”; no De Temperantia (Madri, Annuario de la Asociación Francisco de Vitoria, 1931, vol. II p. 63) vai especificar que “se a pregação for impedida, os espanhois podem aceitar ou declarar a guerra, por causa disto, se for necessário”. Por outro lado, “se os bárbaros permitirem aos espanhois a pregação do Evangelho, livre e sem impedimentos, quer aceitem, quer não aceitem a fé, não é lícito fazer-lhes guerra nem ocupar-lhes as terras” (De Indis, op. cit., vol. II, p. 370). Para um comentário geral da questão entre os neo-escolásticos, ver Josef Höffner, Colonização e Evangelho, 2 ed., Rio de Janeiro, Presença, 1977, pp. 304 ss.)
[7] Para todas as citações dos Sermões uso a edição paulista, de 1957, em 24 volumes, da Editora das Américas. Citação à p. 184 do volume XXI.
[8] Idem, p. 189.
[9] Idem, p. 187.
[10] Cartas, pp. 467-68.
[11] Cartas, p. 468.
[12] Idem, p. 468.
[13] Cartas, op. cit., vol. I, p. 68.
[14] Política, livro primeiro, especialmente o cap. 5 (na edição das Obras, da Aguilar madrilenha, ocupa as pp. 684-87). Sobre a utilização do texto aristotélico nas disputas sobre o estatuto dos índios, ver em especial os trabalhos de Lewis Hanke (Aristotle and the American indians, Bloomington, Indiana University Press, 1970; La humanidad es una, 2 ed., México, Fondo de Cultura Económica, 1985) e Silvio Zavala (Filosofia de la Conquista, México, Fondo de Cultura Económica, 1 reimpr. da 3 ed., 1984). O Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los indios, de Sepúlveda, tem uma boa edição moderna da Fondo de Cultura Económica, com estudo de Manuel Garcia-Pelayo. Li-a na 2 reimpr., de 1987. Uma comparação lado a lado dos textos de Aristóteles e Sepúlveda é feita por Pelayo às pp. 21 ss.
[15] Sermões, VII, p. 212.
[16] Cartas, I, pp. 397-98.
[17] Idem, I, p. 396.
[18] Idem, p. 562.
[19] Idem, p.295.
[20] Idem, p. 450.
[21] Cartas, I, p. 422.
[22] Sermões, IX, pp. 245-46.
[23] Idem, p. 246.
[24] Idem, p. 247.
[25] Idem, p. 248.
[26] Joseph Höffner, Colonização e Evangelho — Ética da colonização espanhola no Século de Ouro, 2 ed., Rio de Janeiro, Presença, 1977. Citação à p. 48.
[27] Idem, ibidem.
[28] Idem, ibidem.
[29] Cf. J. Höffner, Colonização e Evangelho, op. cit., p. 98.
[30] Ver a propósito o que diz Lewis Hanke em La humanidad es una, México, Fondo de Cultura Económica, 1985, pp. 28 ss.
[31] Cartas, I, p. 398.
[32] Idem, I, p. 400.
[33] Manuel da Nóbrega, Diálogo sobre a conversão do gentio, ed. Mecenas Dourado, Rio de Janeiro, Ediouro, s.d. Citação à p. 118.
[34] Idem, I, p. 394.
[35] Lewis Hanke, La humanidad es una, op. cit., pp. 124 ss.
[36] Sérgio Buarque de Holanda já havia notado esta tendência entre os jesuítas do Brasil; ver especialmente pp. 292 ss. da Visão do paraíso, 2 ed., São Paulo, Nacional/usP, 1969.
[37] A propósito, e para que se evite uma leitura exclusivamente “intelectualista” das motivações que conduziram aos esforços mais decididos de balizamento ético das Conquistas, ver sobretudo a terceira parte do já citado livro de J. Hõffner, Colonização e Evangelho, pp. 177 ss.
[38] Sobre o movimento curialista, ver J. Höffner, Colonização e Evangelho, op. cit., especialmente a primeira parte de seu trabalho, dedicada ao estudo da “mentalidade do Orbis Christianus” (pp. 17 ss).
[39] Cartas, I, p. 352: ao Provincial do Brasil, 1653.
[40] Sermões, IX, p. 250.
[41] Sobre a noção de “liberdade” no cristianismo, especialmente em sua linhagem tomista, ver Étienne Gilson, L’esprit de la philosophie médiévale, Paris, Vrin, 1983 (2 ed., 4 reimp.). Consultar especialmente pp. 284 ss.
[42] Idem, IX, p. 251.
[43] Idem, IX, p. 251.
[44] Idem, ibidem.
[45] Idem, IX, p. 253.
[46] Idem, ibidem.
[47] Idem, ibidem.
[48] Idem, IX, p. 257.
[49] Idem, IX, p. 258.
[50] Cartas, I, p. 404.
[51] Apud J. Höffner, Colonização e Evangelho, op. cit., p. 346.
[52] Idem, p. 376.
[53] Idem, ibidem.
[54] O jesuíta Francisco Suárez, talvez o mais importante autor da Segunda Escolástica, ao lado do dominicano Francisco de Vitoria, distingue uma “multidão de homens”, enquanto “agregado qualquer sem nenhuma ordem ou união física ou moral”, de um “corpo místico” justamente na medida em que este, “mediante uma vontade especial ou de comum acordo” reúne estes homens “em um corpo político, por meio de um vínculo social para se ajudarem mutuamente em ordem a um único fim político” (De Legibus, lib. iii, c. 2, n. 4: a tradução é de J. Höffner).
[55] Primera parte de la historia general de las Indias, Madri, Biblioteca de Autores Españoles, vol. 22, 1894. À p. 156 encontra-se a comparação superlativa.
[56] Sermões, VII, p. 320.
[57] Idem, VII, pp. 320-21.
[58] Idem, VII, p. 323.
[59] Idem, VII, pp. 323-4.
[60] Sermão da Primeira Oitava da Páscoa, de 1656. Op. cit., VII, p. 202.
[61] Idem, p. 219.
[62] Sermão da Epifania, op. cit., VII, p. 318.
[63] Idem, pp. 319-20.
[64] Lewis Hanke, La humanidad es una, op. cit., pp. 26 ss.
[65] Sermão do Espírito Santo, op. cit., V, p. 213.
[66] Sermão da Epifania, op. cit., VII, p. 322.
[67] Cartas, I, p. 300.
[68] Sermão da Primeira Oitava da Páscoa, op. cit., VII, p. 222.
[69] Sermão do Espírito Santo, op. cit., v, p. 252.
[70] Idem, V, p. 252.
[71] Idem, p. 252-53.
[72] Idem, p. 253.
[73] Idem, pp. 253-54.
[74] Idem, p. 254.
[75] Idem, ibidem.
[76] Idem, p. 255.
[77] Sermão da Epifania, op. cit., VII, p. 387.
[78] Idem, ibidem.
[79] Cartas, p. 469.
[80] É o caso nítido da chave interpretativa encontrada pelo artigo já citado do professor Alfredo Bosi. De início, considera que Vieira, ao contrário de Gregório, “poeta saudoso do ‘Antigo Estado’, sabia que a máquina mercante viera para ficar, irreversível, inexorável” (op. cit., p. 28); e considera também que “Vieira não recua” diante do “espaço profano aberto pelo fundador da ciência burguesa do poder” a partir “da distinção entre fins e meios” (p. 31); que “o discurso de Vieira parece, nessa ordem de razões, avançado e moralmente impecável” (p. 35); que “o projeto político de Vieira em Portugal, favorável à aliança entre a Coroa e o Terceiro Estado, soa para nós como progressista, quando comparado com o vetor reacionário da Inquisição e de boa parte da nobreza” (p. 39). Diante disto, julga o prof. Bosi, que apenas pode pungi-lo “como um remorso”, de que se “penitencia”, a “contradição” de estabelecer um “compromisso político” com os portugueses no sentido de “domesticar e reduzir os aborígenes à obediência” (pp. 40-1); e de construir um “arrazoado” que “vale-se da memória de pactos antigos fundados em uma distinção cavilosa: cativeiro lícito, cativeiro ilícito” (p. 43); de buscar “forma de contornar o problema fundamental da licitude, ou não, do cativeiro” (p. 44); de apelar “para a noção do sacrifício compensador” (p. 47) e para “o velho discurso sal-vacionista, gestado ao tempo das Cruzadas contra os árabes” (p. 48). E conclui, dando ao “remorso” a sua explicação de tom materialista: “A moral da cruz-para-os-outros é uma arma reacionária que, através dos séculos, tem legitimado a espoliação do trabalho humano em benefício de uma ordem cruenta. Cedendo à retórica da imolação compensatória, Vieira não consegue extrair do seu discurso universalista aquelas consequências que, no nível da práxis, se contraporiam, de fato, aos interesses dos senhores de engenho. A condição colonial erguia, mais uma vez, uma barreira contra a universalização do humano” (p. 49). Ressalvado, mais uma vez, o respeito que me merece o trabalho do eminente pesquisador, toda esta explicação bem poderia não ser mais que manifesto revisionismo explicado pelo esforço, anacrônico, de conciliação entre dois paradigmas, absolutamente estranhos a Vieira e seu tempo: o católico liberal e o marxista. O que não é conciliável entre ambos, e de ambos com a mentalidade barroca e contra-reformista que é a única que a verossimilhança textual e histórica dá a Vieira, vai tudo à conta de sua “contradição”, que apenas se salva de tomar um caráter definitivamente oportunista, senão velhaco, pelo pungente da mea culpa.
[81] Os exemplos são inúmeros; fiquem-se com os casos acabados, respectivamente no Brasil e em Portugal, de João Francisco Lisboa (Vida do Padre Vieira, Rio de Janeiro, Clássicos Jackson, 1952) e Teófilo Braga (Os Seiscentistas, Porto, Chardron, 1916).
[82] Esta questão tratei já, com vagar, em meu artigo “O demônio mudo”, publicado no volume O olhar, São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
[83] Especificamente a respeito de ressonâncias maquiavélicas nos sermões de Antonio Vieira escrevi o estudo “Vieira, o Anti-Maquiavel”, que fez parte do Curso Livre sobre ética, promovido pela Secretaria paulistana de Cultura, em 1991, e publicado em Ética, São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
[84] Sermões, op. cit., XXI, p. 193.
[85] Idem, ibidem.
[86] Idem, p. 196.
[87] Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, XXI, pp. 196-97.
[88] Cartas, I, p. 439.
[89] Cartas, I, p. 309.
[90] Cartas, I, p. 422.
[91] “A Cruz da Desigualdade”, p. 42.
[92] Sermões, VII, p. 368.
[93] Idem, VII, p. 369.
[94] Cartas, I, p. 451
[95] Sermões, VII, p. 355.
[96] Idem, VII, p. 356.
[97] Idem, VII, p. 357.
[98] Idem, ibidem.
[99] Sermões, VII, p. 358.
[100] Idem, ibidem.
[101] Idem, VII, pp. 358-59.
[102] Idem, VII, p. 359.
[103] Idem, VII, p. 360.
[104] Idem, ibidem.
[105] Idem, VII, p. 361.
[106] Idem, VII, p. 342.
[107] Sermão do Espírito Santo, V, p. 227.
[108] Idem, V, pp. 227-28.
[109] Idem, v, p. 228.
[110] Idem, v, p. 229.
[111] Sermões, VII, p. 343.
[112] Sermões, VII, pp. 343-44.
[113] João Adolfo Hansen, em artigo ainda inédito, intitulado “Sem F, sem L, sem R: cronistas, jesuítas & índio no século XVI”, trata especificamente desta questão tomando por texto de base a História da Província de Santa Cruz, de Pero Magalhães Gândavo, publicada em 1576. À página 6 do original datilografado de que disponho, Hansen escreve: “O topos da falta de letras é nuclear e em sua concepção teológica se imbricam dois discursos, um falante, o outro mudo. Nele se evidencia a unidade de uma participação reta da língua que se constitui como o limite da semelhança malvada em que a universal identidade divina se ausenta, como a luz num espelho embaçado. O discurso do cronista se recorta, assim, como unidade da boa imagem e limite do visível e do dizível, fora dos quais se tem o campo vazio onde a ausência da linguagem são simulacros do Demônio”. Em Vieira, porém, como se vai ver, o Demônio opera sobretudo sob as várias formas de impedimento ao trabalho missionário de reconstituir a integridade natural da língua, e suprir no índio, pela fé da religião verdadeira, a falta que as trevas do costume impuseram.
[114] Sermão da Epifania, op. cit., vu, p. 350.
[115] Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Lisboa, Ática, 1982. Citação à página 16.
[116] Sermões, V, pp. 229-30.
[117] Idem, V, pp. 230-31.
[118] Idem, V, p. 231
[119] Idem, V, p. 230.
[120] Idem, v, p. 231.
[121] Para o exame das posições de um e outro, no célebre debate de agosto de 1550, em Valladolid, por ordem de Carlos V, ver, por exemplo, o já citado La humanidade es una, de Lewis Hanke, que examina ponto a ponto as argumentações dos adversários.
[122] Sermão do Espírito Santo, op. cit., v, p. 218
[123] Idem, p. 219.
[124] Idem, ibidem.
[125] Idem, V, p. 220.
[126] Idem, v, p. 221.
[127] Idem, v, pp. 221-22.
[128] Frank Lestringant, em seu Le huguenot et le sauvage (Paris, Aux Amateurs de Livres, 1990) faz uma série de considerações, de extrema acuidade, em que percebe que a figura do “nobre selvagem” entre os huguenotes, a despeito de fortemente assentada em motivos edênicos, mantém simultaneamente traços infernais, e que, a rigor, há uma discriminação radical entre o europeu e o americano. Ele vai falar então de uma “conversion manquée” (p. 10) e de um “simulacre de conversion” (p. 15), ceticamente — e também nostalgicamente — pensada entre os huguenotes.
[129] Idem, V, p. 222.
[130] Idem, V, p. 216.
[131] Idem, V, p. 212.
[132] Idem, V, p. 214.
[133] Sermão da Epifania, op. cit., VII, p. 349.
[134] Idem, p. 350.
[135] Idem, ibidem.
[136] Cartas, op. cit., I, p. 342.
[137] Idem, ibidem.
[138] Idem, ibidem.