2002

Vontade e contravontade

por Moacyr Novaes

Resumo

O problema da liberdade em Agostinho (354-430) surge de suas discussões sobre a origem do mal. Contra os maniqueístas, que negavam a vontade e viam o corpo como “cárcere da alma”, ele afirma que o mal não é uma substância ou um princípio, mas uma expressão da finitude. Sua concepção da natureza é ampla, dinâmica e hierárquica. O ser humano e as outras criaturas foram ordenados a voltar para o Criador, e o corpo só é inferior à alma no sentido de ser um bem menor. Agostinho chama de peso o impulso interno que orienta todo ser para o seu lugar natural. O corpo é levado pelo peso assim como o espírito é levado pelo amor (“Meu peso é o meu amor”, ele declara) e essa vontade é que faz do homem uma imagem (diferente da pedra que é só vestígio) de Deus. A liberdade é constitutiva da vontade humana, mas a soberba da razão, a mesma que produziu o pecado original, gera um conflito: quando se trata de comandar a alma, quero algo mas minha vontade não me obedece. O mal acontece porque a vontade se move na direção contrária àquela ditada por sua natureza. Ela furta-se ao bom movimento e assim engendra uma contravontade que é uma condição carente de liberdade. Para Agostinho, autor das Confissões e criador de um tipo de introspecção que examina os conflitos da alma, a liberdade é também submissão à ordem, obediência a si mesmo e à própria natureza. Ela pode e deve ser pensada como direcionamento da inquietude ou, segundo uma expressão de Hanna Arendt, como ordinata dilectio, “amor ordenado”.

 


Agostinho é “o primeiro filósofo da vontade”. Quem lhe confere esse título é uma importante estudiosa de sua obra. Trata-se de Hannah Arendt, em seu livro, já bem conhecido no Brasil, A vida do espírito.[1] A filósofa alemã falava com conhecimento de causa. Afinal, o capítulo dedicado a Agostinho nesse livro tem raízes na sua tese de doutorado, publicada em 1929 sob o título: “O conceito de amor em Agostinho”.[2] Tanto na tese doutoral, como em A vida do espírito, Arendt nos mostra de que modo o problema da liberdade concerne à concepção agostiniana da vontade, da vontade como amor, como dilectio. O que nos interessa destacar no trabalho de Arendt, neste momento, é o vínculo estreito entre a natureza humana e um movimento em direção ao verdadeiro objeto da dilectio. O homem é pensado, por Agostinho, como fundamentalmente dinâmico, como natureza inquieta. A compreensão dessa dinâmica é decisiva para situar a questão da liberdade na sua obra.

Para estudar os contornos gerais do problema da liberdade em Agostinho, vamos apresentar aqui um panorama muito simples, a partir de suas reflexões acerca da importância da vontade. Pretendemos simplesmente dispor algumas peças sobre um amplo tabuleiro, e indicar regras gerais para movimentar essas diferentes peças. O tabuleiro será a cosmologia agostiniana, a concepção agostiniana da ordem rigorosamente racional que preside tanto a criação como a conservação da totalidade dos seres. Sobre esse tabuleiro, serão peças fundamentais a natureza humana, a vontade do homem, a relação da alma racional com o corpo e, naturalmente, a liberdade.

Não há propriamente uma doutrina agostiniana da liberdade. Será mais adequado dizer que há uma constante reflexão sobre a liberdade, e nessa reflexão está em jogo uma caracterização da vontade humana e, mais profundamente, está em jogo uma concepção da natureza humana. Falar em natureza humana poderia remeter o problema para esferas demasiado abstratas, mas não se trata disso. Vamos mostrar que o núcleo da concepção agostiniana de liberdade depende de uma caracterização, precisa da natureza humana, e isso vai exigir uma difícil tarefa: fazer o elogio da natureza humana e, ao mesmo tempo, tornar claro o alcance desse elogio.

Todos sabem que a obra de Agostinho é extensa, não apenas porque seus escritos são numerosos, mas também porque estão distribuídos ao longo de mais de quarenta anos, desde os diálogos de Cassicíaco até seus últimos dias em Hipona. Ora, é natural que essa extensa obra seja também múltipla, e que o autor nem sempre tenha dito as mesmas coisas exatamente do mesmo modo. Certa vez, numa carta em que retomava justamente escritos nos quais a liberdade é uma questão fundamental, Agostinho lembra ironicamente um elogio que Cícero dirigiu a um ilustre romano, por não ter jamais dito ou escrito alguma coisa e depois voltado atrás. Belo elogio, diz Agostinho, e comenta que, se ele mesmo jamais retificasse algo que escrevera, se “pareceria mais com um tolo, do que com um sábio: Na verdade, afirma ainda o seguinte, na mesma carta:

“… confesso esforçar-me por pertencer ao número daqueles que escrevem ao progredir e progridem ao escrever”:11

Por isso, Agostinho foi capaz de legar aos seus leitores um livro singular e precioso. Já aos 72 anos de idade, o bispo de Hipona fez um reexame do conjunto de sua obra, uma revisão de seus numerosos textos — que já gozavam de notável repercussão no mundo romano. Trata-se de um livro cujo título em português poderia ser Revisões.

Naturalmente, estas Revisões são uma referência indispensável para entender a complexidade da obra de Agostinho. Ali são reexaminadas muitas passagens polêmicas. Agostinho declara arrepender-se de certas formulações, corrige aquilo que na maturidade veio a considerar excessos cometidos nos primeiros livros, e sobretudo — e é isso o que nos interessa aqui — tenta dar maior exatidão a textos que julga mal compreendidos. Isto é, Agostinho indica, na sua obra tardia, de que modo preciso certas formulações devem ser consideradas, para corrigir interpretações alheias ao espírito do seu pensamento.

Em particular, acerca da liberdade, ele retoma algumas expressões de seu diálogo Sobre o livre-arbítrio. Este diálogo, escrito a partir do ano de 387, quando tinha somente 33 anos, e não era ainda bispo de Hipona, contém uma tal afirmação da liberdade humana, que será preciso retomar o texto nas Revisões, quase quarenta anos depois, para fixar o seu sentido, respondendo a interpretações que julgava inaceitáveis.

Em linhas gerais, devemos assinalar que a afirmação da liberdade, naqueles textos do final do século Iv, tem em vista o combate acirrado que o jovem Agostinho fazia ao maniqueísmo. O que está em jogo ali é a natureza humana e, particularmente, como se entende a relação, no homem, entre o corpo e a alma. O maniqueísmo, no final do século iv e início do século v, não era apenas uma palavra para designar certa mentalidade, certo modo de ver o mundo, mas designa rigorosamente uma corrente religiosa e filosófica.

Será contra este maniqueísmo, uma forma de cristianismo que representava um pensamento importante àquela altura da história de Roma, que Agostinho vai dirigir sua artilharia, e vai afirmar inequivocamente a liberdade humana.

Tentaremos em seguida apresentar essa defesa da liberdade contra os maniqueus. Mas antes é preciso ainda advertir para as consequências dessa afirmação da liberdade. Anos depois, no começo do século v, outros adversários de Agostinho farão um tal uso dessa defesa da liberdade, que ele se verá obrigado a dar maior exatidão ao sentido de suas afirmações antimaniqueístas. Esses novos adversários, os pelagianos, estarão no extremo oposto aos maniqueus; isto é, enquanto os maniqueus de certo modo negavam a liberdade da vontade, os pelagianos propunham uma interpretação da liberdade como autonomia, que Agostinho não podia admitir.

Neste pêndulo, entre negar e afirmar a liberdade do homem, estará em jogo mais uma vez a natureza humana. Contra os maniqueus foi preciso defender e elogiar a natureza humana, para afirmar sua liberdade; contra os pelagianos, será preciso mitigar o elogio, tornar claros os seus limites, mostrar que não se pode falar de natureza humana sem mais.

Além disso, para complicar o quadro, os pelagianos tentavam utilizar os textos de Agostinho contra os maniqueístas, de sorte a invocar, em favor das teses de Pelágio, a defesa da liberdade feita pelo jovem Agostinho. Isso o obrigará a retomar os escritos antimaniqueístas, para evitar interpretações pelagianas.

Em suma, entre dois extremos, era preciso afirmar a liberdade contra uns, sem incorrer nas interpretações dos outros. Tentarei agora apresentar a defesa da liberdade da vontade por Agostinho; depois, veremos o refinamento da sua formulação a partir das novas exigências.

O problema da liberdade surge no quadro de uma discussão sobre a origem do mal. De fato, um assunto premente para o jovem Agostinho era explicar por que o mundo contém imperfeição, sofrimento, erro, morte, mesmo sendo um mundo racionalmente organizado por um Deus de suprema bondade. Foi justamente esse problema o que o atraiu para o círculo dos maniqueus, os seguidores de Maniqueu (216-277). Era necessário conciliar a afirmação de um Deus bom e criador do mundo coma explicação racional do mal neste mesmo mundo. Este era o contexto imediato do problema da liberdade.

A solução maniqueísta corresponde bem à idéia transmitida pelo uso corrente da palavra maniqueísmo entre nós. A resposta maniqueísta para o problema da origem do mal consiste, antes de mais nada, em negar que o mal provenha de Deus. O mal provém de um princípio do mal, em conflito com Deus, que é o princípio do bem. Com efeito, para explicar a origem do mundo, e a “coexistência” nele de bem e mal, os maniqueus o concebem como fruto da iniciativa divina, isto é, do princípio do bem, contra os príncipes do mal. O mundo, tal como o conhecemos, é o lugar, ou melhor, o resultado de um embate entre duas forças, dois exércitos, duas legiões. Deus e Cristo (pois os maniqueus eram cristãos) estão empenhados em combater a legião das trevas. Esse combate se faz mediante a mistura de criaturas boas à população do reino das trevas.[3]

O homem, ele mesmo um misto de corpo e alma, é expressão desse combate de forças, combate de princípios opostos. O que pertence ao corpo, tudo o que é corpóreo, provém do princípio do mal, a alma humana convive com o corpo em que habita, mas convive sempre em conflito.

Como os maniqueístas tinham suas próprias Escrituras, vejamos alguns versos de um Livro de Salmos maniqueu:[4] “Conheci que minha alma e o corpo que está sobre ela [note-se que não é o meu corpo, mas o corpo que está sobre minha alma] são inimigos desde a criação dos mundos”.

Essa maneira de conceber o convívio de corpo e alma nos homens resulta não só em explicar o mal a partir de certa malignidade do corpo, que corrompe a alma, que a arrasta, fazendo com que se extravie do caminho do bem, na verdade, isso implica também caracterizar o corpo como “cárcere da alma”, expressão que concerne evidentemente ao tema da liberdade. Sendo assim, do ponto de vista maniqueísta, a liberdade da alma não será completa enquanto ela estiver aprisionada no corpo, seu cárcere.

O valor dessa metáfora para o maniqueísmo é decisivo para o problema da liberdade. A alma age mal quando dominada pelo corpo, na luta entre alma e corpo, entre uma parte do homem que vem do princípio do bem, e outra que provém do princípio do mal, ora vence uma parte, ora vence a outra. Isso faz com que um cristão maniqueísta esteja sempre repudiando o corpo que é obrigado a carregar, corpo que pesa sobre sua alma, em vista de encontrar sua autêntica pureza, em vista de se libertar.

Para termos uma dimensão dc3s. trunfos que tinha esta concepção maniqueísta, basta lembrar de uma passagem bíblica muito apreciada pelo próprio Agostinho, e importante até hoje para a identidade do cristianismo. Trata-se, pois, da Bíblia admitida por Agostinho, não de um texto aceito apenas pelos maniqueus. Essa passagem parecia corroborar e autorizar as afirmações dos maniqueístas acerca da natureza já corrompida do homem, pelo fato mesmo de a alma habitar um corpo. Refiro-me à Epístola aos romanos, na qual São Paulo afirma:[5]

percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros. Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? (Epístola aos romanos 7, 23-24.)

Por que Agostinho recusa o maniqueísmo e a metáfora do corpo como cárcere, se a autoridade de Paulo também proclamava a luta entre duas leis no mesmo homem, uma lei do espírito e uma lei da carne? De que forma a vontade pode ser livre, se já está presa num cárcere que pertence à própria natureza do homem?

Agostinho bem conhecia esta metáfora. Há até mesmo um salmo que clama pela libertação da alma. Salmo 142,8: “Faze-me sair da prisão”. Que prisão é esta? O corpo, dizem alguns. E Agostinho recusa explicitamente essa interpretação. A alma está num cárcere, sim, mas este cárcere não é o corpo. Por isso, devemos acompanhar por que não é o corpo, e então assinalar o que é o verdadeiro cárcere da vontade humana. Mas isso exige reexaminar a relação entre alma e corpo.

O principal ponto a compreender é que Agostinho nega atribuir ao mal qualquer estatuto de substância. Ao contestar que o mal seja um princípio ou uma substância, Agostinho poderá reconsiderar a relação do corpo com a alma, e finalmente, poderá situar de outra maneira a liberdade humana.

O primeiro passo da solução agostiniana prende-se ao que se pode chamar de dimensão natural (ou metafísica) do mal. O mal não é um princípio substancial, ou uma natureza entre outras, como quer o maniqueísmo, mas deve ser visto antes e apenas como expressão da finitude de todas as naturezas, de todos os seres, pelo fato mesmo de serem criaturas. Entenda-se bem, criaturas de um único princípio, e não de dois princípios antagônicos.

Todos os seres estão ordenados, em graus que se aproximam da perfeição divina. O grau de “ser” e de perfeição constitui sua ordenação no mundo, dentro de um gênero determinado, isto é, aqui como pedra, ali como burro, cavalo, homem. Embora dessemelhantes de Deus, porque diferem de seu Criador, as criaturas são também semelhantes a ele, vestígios dele. Sendo assim, tudo o que existe é bom, todos os seres são bens na medida em que pertencem à ordem universal proveniente de um único criador, que é também o Bem supremo.

O que é o mal? Ora, o mal propriamente não existe; os bens, na medida em que não são perfeitos, infinitamente perfeitos, mas apenas seres finitos, dotados de um grau relativo de perfeição, também são de certa maneira maus. Dizer que são maus quer dizer simplesmente que não são equivalentes ao bem supremo, quer dizer que são bens parciais, bens finitos. Sendo assim, o mal vem a ser explicado em razão da dessemelhança relativa ao bem supremo: cada sei, à medida que não é integralmente idêntico ao Criador, não tem todas as perfeições. Esta falta, esta ausência, é um. mal, ou finitude de cada criatura, sua impossibilidade metafísica de ser plenamente (o que está reservado apenas ao Criador).[6] O que importa assinalar aqui é a dessubstancialização do mal: não se conta entre as criaturas, não é uma substância, nem muito menos um princípio. Todas as criaturas são bens, quanto à sua natureza; seu único mal é a imperfeição relativa.

Podemos ver como isso difere essencialmente da solução maniqueísta. O maniqueísmo afirmava a existência de dois princípios antagônicos, duas substâncias opostas, de cujo embate resulta o mundo, com suas virtudes e seus vícios. A resposta de Agostinho recusa que o mal seja uma substância; ele é apenas a ausência, a falta, o oco. Esta resposta todavia é parcial, porque poderia limitar o problema ao assim chamado mal natural (metafísico).

Mas como responder ao problema do mal moral, isto é, o problema da miséria humana, do sofrimento, do erro, do pecado? O que os torna possíveis, sem que sejam assimilados e neutralizados no espetáculo de degraus, tonalidades e contrastes da natureza? De fato, segundo aquela apresentação “metafísica” do mal natural, o mal não parece propriamente mau: as imperfeições das criaturas são apenas sombras e contrastes que contribuem para a beleza do todo. O que é feio em particular integra a beleza do todo, contribui à sua maneira para a harmonia universal.

Sobre isso, se lerá com proveito A cidade de Deus XII 4:

É ridículo considerar condenáveis os vícios das bestas, das árvores e das outras coisas mutáveis e mortais, privadas de intelecto ou de sentidos ou de vida completamente, vícios pelos quais sua natureza dissolúvel corrompe-se, pois essas criaturas atendem deste modo a um sinal do criador, para que passando e sucedendo-se realizem a ínfima beleza dos tempos, congruente em seu gênero próprio com as partes desse mundo.

É claro que não parece cabível considerar o mal moral estritamente deste modo. Não podemos reduzir o mal a essa descrição meramente relativa; como se não houvesse sofrimento real, mas apenas uma aparência de sofrimento, num conjunto finalmente reconciliado e feliz. Mas talvez valha a pena permanecer ainda um pouco nesse terreno, porque a recusa do maniqueísrno é mais do que a afirmação de um grande mosaico de seres mais ou menos perfeitos. Como assinalamos no início, com base em H. Arendt, a cosmologia agostiniana comporta um elemento dinâmico que será estratégico para compreender o que é a liberdade.

A carência metafísica significa também que toda criatura só é, só se realiza, mediante a semelhança, isto é, nesta imitação do ser supremo. Portanto, a hierarquia dos seres envolve ainda uma finalidade. Cada ser é vocacionado em direção à origem: não há uma dispersão da multiplicidade, mas sim uma diferenciação que remete sempre ao princípio de tudo. Com isso, já no plano da solução metafísica é possível reconhecer a articulação entre a caracterização do mal e um dinamismo próprio à hierarquia cosmológica.

Assim, o mal não está positivamente no mundo, não é uma substância, nem uma criatura: toda criatura é um bem. O mal é uma ausência, uma falta de perfeição. Mas, além disso, os graus de perfeição, ou imperfeição, são um modo de participação na perfeição divina; cada criatura volta-se para o Criador naturalmente, isto é, na medida mesma em que participa do ‘ser através de sua existência precária. Essa insuficiência própria dos seres finitos é um indício de que a estruturação hierárquica não edulcora o mal, eliminando o mal moral. O mal moral também poderá ser pensado a partir dela.

O caráter dinâmico da participação torna-se ainda mais patente se temos em conta que cada ser, ou degrau inferior, aponta para um degrau superior, que deve ser sua causa e regra de ser. Cada degrau proclama, justamente mediante sua imperfeição, que ele mesmo não é sua própria causa nem sua regra de ser. Cada degrau, deste modo, é também signo de uma causa que lhe é superior e assinala que é preciso procurar esta causa alhures, e acima dele. Ora, os degraus têm então de conduzir, segundo imperfeições cada vez menores, até a perfeição suprema, que coincide com o bem supremo, com a verdade suprema. A idéia mesma de que cada ser está ordenado no nível a que pertence remete ao princípio de ordenação, princípio que cada bem particular não pode por si mesmo conter.

Corn isto, os seres finitos não só foram criados por Deus, mas também ordenados de forma a voltarem para o Criador; em segundo lugar, sua finitude não se restringe a participar da composição de um mosaico de con‑trastes, mas sim tem o papel de um signo, uma vez que anuncia uma causa primeira e uma regra segundo a qual a hierarquia é estruturada.

A partir dessa cosmologia dinâmica, precisamos agora enunciar dois problemas. Em primeiro lugar, veremos que se modifica profundamente a maneira de conceber a relação entre alma e corpo, em segundo lugar, será necessário pensar o que é então o mal moral, o erro, o sofrimento, o pecado: donde provém, se não provém do corpo, mas também não tem sua origem em Deus?

A primeira questão, sobre a relação entre o corpo e a alma, implicará o elogio da natureza humana, como anunciamos. A segunda questão resultará numa limitação desse elogio.

Já vimos que a cosmologia agostiniana não condena o corpo como ser ou criatura naturalmente má, ao contrário, na medida em que é um ser, na medida em que tem existência na totalidade ordenada do mundo, então é um bem. Agostinho disse acerca do corpo:

Toda essa forma, a postura, o andar, os membros ordenados, as disposições dos sentidos, visão, audição, olfato, paladar, tato, toda esta compleição e harmonia de estrutura, não pode ter sido feita senão por Deus, que tudo fabricou, os seres celestes, os terrestres, os mais elevados e os mais baixos, os visíveis e os invisíveis.”

Isso resulta, em primeiro lugar, numa defesa da natureza humana. Nada no homem é mau por natureza, corpo e alma são bens. A alma habita o corpo, que será um cárcere ou uma casa, não meramente porque é corpo, mas por outras razões. A explicação desta isenção do corpo encontra-se na mesma cosmologia que acabamos de descrever muito brevemente. A ordem dos seres criados é uma ordem hierárquica, as criaturas não são apenas inferiores a Deus. Há criaturas mais próximas do ser perfeito, outras menos próximas. Ora, deste ponto de vista, algumas são piores do que outras, são bens menos perfeitos, do ponto de vista da perfeição absoluta.

Tal é o caso se compararmos uma pedra a um ser vivo. A pedra não é má por natureza, mas podemos dizer que tem um grau menor de perfeição, é um bem menor, se comparada a um ser animado, isto é, a um ser que tenha, além da natureza corpórea, também uma alma que o vivifica, que anima seu corpo.

Sendo assim, não é difícil compreender por que a alma — sobretudo a alma racional — é superior ao corpo, na medida em que é ela que comanda o corpo, na medida em que é ela quem preside as funções vitais do corpo, sem alma, sem um princípio regente, o corpo seria um mero cadáver. Não é preciso que nos alonguemos nisso. Importa aqui sublinhar que a superioridade da alma deve ser vista no interior de uma hierarquia de bens; o corpo é inferior à alma apenas no sentido em que ele é um bem menor. Seria legítimo afirmar que há algum mal no corpo, se com isso entendemos simplesmente que o corpo não tem algo que a alma possui, não tem uma perfeição maior.

Mas há ainda outra consequência a ser extraída dessa cosmologia antimaniqueísta. Um ser inferior não tem poder algum sobre um ser superior, se um ser é mais perfeito do que outro então não pode ser comandado por ele. O raciocínio vale com tanto maior força se o ser superior não apenas é superior, mas é superior justamente porque desempenha funções de regência sobre o ser inferior. Ora, uma vez que cabe à alma vivificar o corpo, uma vez que cabe à alma fazer com que o corpo mantenha ativas as suas funções vegetativas, bem como fazer com que procure alimento, fazer com que fuja do perigo, e assim por diante — então não é possível atribuir ao corpo nenhum poder sobre a alma. Em suma, o que é vivo é melhor do que o meramente corporal — um animal é melhor do que uma pedra, de modo similar, o que dá vida é melhor do que aquilo que recebe a vida: a alma é melhor do que o corpo.

Agostinho conhecia muito bem os apelos do corpo, ou melhor, os apelos da carne. O bispo de Hipona não era um filósofo que escrevia por ouvir dizer.[7] Sua movimentada vida juvenil, as viagens, as tentativas de sucesso como professor de retórica, a vida em comum com uma companheira amada que lhe deu um filho, tudo isso, depois que se tornou passado, não lhe valeu apenas como matéria para as Confissões ou de munição para seus adversários. Agostinho conhecia bem a força da carne. Mas ainda é preciso decifrar essa força. Ora, ela não pode vir meramente do corpo, se é a alma quem decide. Se a alma decide, decide porque quer, porque decide fazer isso ou aquilo, tendo em vista também as solicitações do corpo.

Numa palavra, se o corpo é mesmo inferior à alma, como admitiriam também os maniqueístas, temos uma sólida razão para não atribuir a ele as decisões da alma.

Com isso, podemos assinalar um outro elemento da polêmica anti-maniqueísta. Ao defender a liberdade da vontade diante do corpo, Agostinho está também defendendo a natureza humana, isto é, está recusando que o mal moral já esteja instalado no homem, por natureza. Os maniqueus acusavam o corpo de acarretar, por sua própria natureza, uma inclinação humana para o mal moral. Agostinho, ao contrário, não acusa a natureza humana pelo mal, nem mesmo o corpo, ele também integrado na escala de perfeições finitas. Se o corpo é mau neste sentido metafísico, por isso mesmo não pode dominar a alma; se o mal é pensado numa escala de bens, então um bem inferior não pode dominar um bem superior. Exatamente por ser inferior, o corpo não tem nenhum poder sobre a alma. Con) a dessubstancialização do mal e o caráter dinâmico da ordem cosmológica, foi possível redefinir as relações entre o corpo e a alma, e como que defender a natureza humana da apreciação negativa dos maniqueístas.

O segundo aspecto que nos propusemos abordar, o mal moral na alma, exige agora outra bifurcação. Primeiro, devemos considerar por que só a vontade pode, por si mesma, incorrer em erro, incorrer em faltas morais. Isso depende justamente de entender o que é o livre-arbítrio. Mas, em segundo lugar, será preciso considerar uma importante consequência dessa concepção da relação entre o livre-arbítrio e o mal moral, consequência que nos levará ao último lance: o paradoxo do livre-arbítrio sem liberdade.

É preciso pensar de que modo a alma racional está inserida na ordem universal, do ponto de vista da sua dinâmica. O que significa dizer que é a própria alma que está na origem do mal, do mal moral? Escusado o corpo, é sobre a alma racional que recai toda a responsabilidade. Como explicar essa responsabilidade no quadro dos movimentos naturais? O papel privilegiado da vontade explica-se em razão da natureza peculiar de sua participação na dinâmica universal. Vimos que toda criatura é dotada de uma dinâmica de conversão. Essa dinâmica tem um nome: peso. Toda criatura tende ao seu lugar natural, dirige-se inexoravelmente ao seu destino, consoante seu peso, consoante sua natureza. Peso não é, portanto, a força gravitacional que atrai a massa de um corpo, mas é o impulso interno que transporta todo ser para o seu lugar natural; a pedra tem peso, peso que a empurra para seu lugar natural, o centro da terra; o fogo tem peso, peso que o empurra para seu lugar natural, acima da terra.

Qual é o peso peculiar ao homem? O que move o homem? Responder a isso é declarar justamente o que está na base da natureza humana, o que confere ao homem seu papel na ordem dinâmica universal. Para Agostinho em particular, a noção de peso está intimamente vinculada à sabedoria que preside a constituição do mundo: não são raras as vezes em que cita e comenta uma passagem bíblica, do livro da Sabedoria: “[Deus] tudo [dispôs] com medida, número e peso” (Sb. 11, 21). Aqui vemos como H. Arendt tem duplamente razão: ao escolher o tema de sua tese de doutorado, e ao dizer que Agostinho é o primeiro filósofo da vontade; pois é ele mesmo quem declara: “meu peso é o meu amor”.’

Vejamos as consequências dessa frase tão conhecida. Podemos dizer que a vontade ocupa lugar privilegiado na inquieta cosmologia agostiniana porque é a vontade o que distingue as almas racionais, é ela que impulsiona o seu movimento. Se a ordem universal é dotada de dinamismo originário, então os homens, criaturas dotadas de vontade, participam ainda mais acentuadamente desta ordem, correspondem ainda mais ao princípio criador que deu impulso ao universo, à medida que seu dinamismo consiste justamente em poder acompanhar com livre-arbítrio aquele impulso de conversão à ordem. Enquanto as criaturas irracionais movem-se inexoravelmente segundo a ordem, as criaturas racionais o fazem por livre escolha.

Em termos físicos, a vontade da alma racional, imagem de Deus, pode ser descrita como seu peso natural, seu peso a desloca. “Pois o corpo é levado pelo peso assim como o espírito é levado pelo amor, aonde quer que seja levado.’ Entretanto, traduzir a vontade como peso, no intuito de inscrever o movimento da alma racional num cenário cosmológico, não deve nos levar a tomar a metáfora contrariamente à intenção de Agostinho. Não se trata de assimilar o movimento voluntário do espírito a um modelo baseado nos movimentos corpóreos. ”

O mundo físico é comparado ao espiritual, não o inverso.”[8] Com efeito, qualificar a vontade como peso permite assinalar que as criaturas irracionais, ao “tenderem” ao seu lugar natural, realizam um movimento que se assemelha ao dinamismo das naturezas espirituais, estas sim se movendo voluntariamente rumo ao Princípio. O modelo é a vontade racional, o peso dos corpos é uma pálida imitação desta vontade.

Por isso, ainda que a metáfora remeta à dimensão física, não podemos perder de vista sua dimensão moral. O livre-arbítrio da vontade não é apenas um entre outros movimentos, é justamente através dele, na verdade, que o homem é mais do que vestígio, através dele o homem é imagem de Deus. Se a ordem universal é dinâmica, a qualidade dos movimentos deve diferenciar as criaturas. O homem tem movimentos de ordem corpórea, tal como um animal ou mesmo uma pedra, mas seu principal movimento não é este. “O meu peso é o meu amor.” As criaturas, derivadamente, têm peso, mas apenas peso involuntário, o homem tem o privilégio de mover-se segundo a sua vontade, ou melhor, a sua vontade já é o seu movimento.

Isso faz com que a natureza humana tenha um privilégio, se comparada a todas as outras naturezas finitas, o que a define no interior do cosmo é o livre-arbítrio de sua vontade. Dessa forma, a alma racional não está meramente acima das demais criaturas, ela está numa posição máxima, na medida em que seu movimento coincide com sua própria natureza. Do ponto de vista da sua natureza, nada está mais ao alcance da vontade do que a mesma vontade. Em suma, temos aqui um primeiro horizonte do problema da liberdade.

Afirmamos no início desta conferência que está em jogo aqui uma concepção de natureza humana, os maniqueus atacavam a natureza humana, ao passo que os pelagianos — no outro extremo — faziam um elogio impróprio. Por que impróprio? Porque o problema da liberdade não pode ser inteiramente formulado se nos mantivermos exclusivamente neste terreno da natureza. Do ponto de vista da natureza humana, é correto e imprescindível dizer que a vontade é byre; mas temos motivos para deslocar agora o foco do problema. Pensar a liberdade, para Agostinho, exige ir além de uma descrição geral da cosmologia, exige ir além de uma consideração da natureza do homem e do seu lugar privilegiado no conjunto da criação (não por acaso, Agostinho discutiu em detalhe o de natura de Pelágio). Reiterar a liberdade da vontade é correto, mas está aquém da complexidade do problema. Vamos tentar avançar um pouco agora.

A partir da resposta aos pelagianos, poderemos retomar brevemente três temas que estavam apenas anunciados. 1) O cárcere da alma — se não é o corpo, o que é?, 2) o paradoxo da liberdade, e finalmente, 3) a liberdade como submissão à ordem.

A formulação do problema da liberdade requer um dado que até agora temos evitado. A afirmação da liberdade da alma racional comporta uma ambiguidade: falamos da liberdade exatamente porque é preciso falar da falta de liberdade. Com efeito, o problema todo emergiu de uma questão. de onde vem o mal? Junto a ele, tínhamos uma outra pergunta: o que é o cárcere da alma? Se a vontade é livre, por que se fala de um cárcere da alma? Entenda-se corretamente: Agostinho não recusa que haja um cárcere, ele apenas recusa identificá-lo com o corpo.[9] É preciso rejeitar a interpretação maniqueísta, mas resta um problema que não pode ser escamoteado. O que é este “corpo de morte” de que fala são Paulo na Epístola aos romanos 7, 24?

A rigor, até agora apresentamos os dados do problema deixando de lado um ingrediente fundamental. O quadro cosmológico descrito fala apenas de um conjunto diferenciado de naturezas. Segundo esse quadro, a liberdade é constitutiva da vontade humana, e nada pode abalar sua perfeição… a não ser ela mesma. Pois é precisamente nesta ressalva — “a não ser ela mesma”— que está o nó da questão. Tendo a ordem universal como pano de fundo, ainda é preciso interrogar por que há sofrimento, miséria, e falta de liberdade. O modelo maniqueísta foi recusado, mas então como explicar o mal?

Digamos sem mais rodeios: trata-se de explicar a soberba. A soberba será a razão do paradoxo de um livre-arbítrio sem liberdade, de uma vontade naturalmente livre e aprisionada em si mesma. Mas para isso não devemos ter pressa.

Já se disse que Agostinho é autor de uma metafísica da interioridade. Talvez o mais importante a assinalar no seu exame da interioridade é a existência de uma “rixa interior”: aqui começa o verdadeiro problema (cf. Confissões VIIIv, 19 – XI, 27). Quem já teve a oportunidade de ler as Confissões de Agostinho pôde constatar um tema marcante: o diálogo interior, a introspecção. Contudo, isso não se faz em nome de uma pureza interior, de uma consideração laudatória de si mesmo, mas bem ao contrário: a introspecção é a oportunidade de um exame de conflitos da alma consigo mesma. Se o maniqueísmo pensava o mundo como embate, Agostinho projeta o embate para dentro de si mesmo; ali onde deveria enfim haver repouso, na pureza da alma, é justamente ali que há conflito, disputa, divisão. E não se trata de uma figura de estilo. As minuciosas análises do conflito interior nas Confissões não são um artifício. Agostinho pensava que conflito real, o conflito que deve ser pensado pela filosofia como verdadeiramente conflito é o conflito interior. E é justamente a vontade racional a sede desse conflito.

Se quero mover um braço, eu o movo, sem dificuldade; ele obedece prontamente. Tão prontamente, que mal percebo a distância entre minha vontade e meu gesto. Quero erguer a mão e lá está ela, erguida. Parece até que a vontade e o gesto são a mesma coisa. Em contrapartida, quando não se trata mais de comandar o corpo, mas de comandar a própria alma, a própria vontade, aí não se passa o mesmo; quero querer algo, mas minha vontade não me obedece; não quero querer algo, mas novamente a vontade se rebela, e quero aquilo que não queria querer. Quem não conhece essa luta da vontade consigo mesma? Ora, este é o embate mais importante, este é o embate paradoxal: a rixa de uma vontade consigo mesma. Ela comanda um outro, seu corpo, mas não domina a si mesma.

As finas análises das Confissões devem ser acompanhadas com o vagar necessário; não cabe fazer aqui um resumo, que resultaria em pastiche. Meu propósito aqui é tão-somente assinalar um problema que está no núcleo do Livro VIII das Confissões — o que já é muito pretensioso. Podemos retomar a inquietude originária da alma racional, o dinamismo da vontade (ou o amor, como mostrou H. Arendt), para caracterizar esse conflito, bem como o paradoxo da liberdade, e finalmente comentar a também paradoxal equação entre liberdade e submissão à ordem.

Ainda dentro do mesmo quadro, retomemos a origem do mal. Por que o livre-arbítrio é causa do mal? Como pensar o mal moral, o pecado, no quadro apresentado? Por que isso deve ser qualificado como soberba? Ora, o mal acontece porque a vontade se move na direção contrária à direção ditada por sua natureza. Enquanto as demais criaturas se inscrevem necessariamente na ordem e correspondem ao “movimento” criador realizado por Deus, o livre-arbítrio tem a possibilidade de se inscrever ou não, voluntariamente, isto é, de fazer ou não um movimento que espelhe a bondade e sabedoria do Criador.

Que movimento, então, gera o mal? Na verdade, não é propriamente um movimento, mas sim a renúncia ao impulso, ou à vocação natural, de procurar e se dirigir ao Criador. O mal consiste em que a vontade volta as costas ao rumo que deveria tomar, segundo a sua natureza. A vontade furta-se ao bom movimento. A vontade racional furta-se à dinâmica de conversão. Se o impulso correto pode ser qualificado como conversão, analogamente o mal será caracterizado como aversão, e mesmo como perversão da vontade, isto é, não apenas um movimento diverso, mas urna negação de movimento, que ofende e contraria a natureza dela mesma, vontade.

Isso é perfeitamente coerente com a dessubstancialização do mal, novamente, vemos como o mal é apenas um oco, um vazio, uma ausência. Acontece que essa carência[10] tem suas consequências, se a pensarmos sob a rubrica da soberba. Com isso, encerraremos esse tabuleiro, que resultou mais complicado do que esperávamos.

Recusar o movimento significa uma aversão ao movimento natural de aproximação do bem supremo, isto é, significa tomar a si mesmo e ao mundo como bens a serem desejados e amados por si mesmos. Sendo assim, não se trata mais de uma recusa qualquer, na medida em que é uma recusa da vontade que, no mesmo golpe, suprime a si mesma. Ao eleger-se como seu próprio fim, e esquecer o bem supremo como fim último de sua natureza, a vontade pervertida suprime o dinamismo natural de tal forma que se vê impossibilitada por si mesma de restaurar sua natureza livre. A renúncia ao dinamismo natural é uma renúncia à liberdade, e por isso significa fazer-se cárcere de si mesma. Neste sentido, podemos falar em perversão da vontade: uma paradoxal decisão voluntária de deixar de ser vontade.

A análise agostiniana do pecado original mostra que seu traço fundamental é a soberba, que consiste notadamente na pretensão de igualar-se a Deus. A cena do paraíso, quando a serpente propõe a Eva o fruto proibido, contém uma promessa que vai merecer uma análise detalhada de Agostinho. A serpente promete (Gênesis 3, 5) que o fruto os tornaria, a Adão e Eva, iguais a Deus; ora, está aí a raiz de todos os males, a vontade perversa de suprimir de um só golpe a distância entre o homem e o bem supremo; ao pretender igualar-se a Deus, o homem perverte sua vontade, porque aspira a permanecer satisfeito consigo mesmo, aspira a deixar de aspirar, tem vontade de não mais ter a vontade que constitui sua própria natureza livre.[11]

A pretensão de se alçar à condição divina significa uma imobilização voluntária, da qual ele mesmo, por seu próprio arbítrio, não pode mais sair. “Pudemos deformar a imagem de Deus em nós, não podemos reformat” A natureza humana, tal como criada, é boa; por isso, Adão não tinha necessidade de pecar. Seu livre-arbítrio, como natureza espiritual, podia ser plenamente exercido; mas, uma vez que pecou escolhendo não mais se mover em direção a Deus, perdeu por si mesmo a liberdade. A natureza humana perverteu seu movimento em paralisia, “pois, vencida a vontade pelo vício em que tombou, careceu de liberdade a natureza.

A partir daí explica-se a “rixa interior” (Confissõesvm yin 19) como fratura na vontade. A vontade da alma racional, como núcleo da criação, é também a sede da liberdade, porque a vontade coincide por natureza consigo mesma. Porém, a mesma vontade opera uma cisão em sua própria identidade. Isso faz com que a rixa interior seja um problema real, uma fratura na realidade para a qual só existe uma linguagem, a linguagem do paradoxo. Um livre-arbítrio sem liberdade é uma vontade livre por natureza e atada por si mesma. Só está atada porque sua natureza é livre; mas carece de liberdade porque renunciou voluntariamente ao seu peso natural. Se quisermos utilizar um vocabulário mais preciso, podemos dizer que sua natureza é livre, mas a soberba engendra uma condição carente de liberdade.

Os maniqueus e os pelagianos permaneciam numa discussão sobre a natureza humana, má ou boa. Agostinho desloca a questão: a natureza é boa, sim, mas o problema da liberdade deve ser pensado a partir dos conflitos da alma racional consigo mesma, conflitos que são sintoma de uma “condição” cindida. Assim se pode compreender a expressão “contravonta-de”. Não é uma outra vontade, mas a mesma vontade em conflito.

Dessa forma, podemos ler sobretudo nas Confissões uma abundância de passagens que indicam a condição humana como distância do homem com relação a si mesmo; isto é, a soberba, ao pretender concentrar-se em si mesma, acarreta a perda do dinamismo próprio ao homem, levando portanto ao perverso afastamento de si mesmo.

Por isso podemos afirmar que, para Agostinho, a liberdade será lugar de um paradoxo e de um conflito. Em primeiro lugar, porque a liberdade não coincide com o livre-arbítrio; na verdade, o livre-arbítrio da vontade humana é até mesmo carente de liberdade. Esse paradoxal divórcio entre livre-arbítrio e liberdade é mais do que um desencontro entre o uso habitual da palavra liberdade e o sentido exato que o conceito de liberdade adquire na filosofia de Agostinho. Tampouco se trata de um conflito artificial, gerado pela manipulação das palavras liberdade e livre-arbítrio. É preciso ter em conta que o conflito deve ser examinado na sua dimensão real, isto é, como um conflito entre a vontade do homem, espírito livre por excelência, e a mesma vontade, privada de liberdade por si mesma. Sendo assim, a liberdade da vontade é lugar de um paradoxo porque a reflexão sobre o problema da liberdade torna patente um conflito real da vontade consigo mesma.

Desse modo, ao usar uma linguagem repleta de paradoxos, Agostinho emprega uma linguagem bastante mais próxima da realidade, do que esperaríamos em princípio. O conflito entre as palavras (pugna uerborum, De doctrina christianai vi 6) pode ser encarado simplesmente como a expressão verbal de um fato bruto, seu correlato real, a rixa interioris.

Finalmente, a análise da soberba mostra por que a liberdade não pode ser autonomia, auto-suficiência. Justamente porque a natureza humana é vida, é dinâmica, amor e alienação. Dizer que a liberdade é submissão à ordem pode ser, a princípio, também uma expressão contraditória. Temos, pois, um novo paradoxo, a liberdade como submissão. A liberdade deveria consistir em que a vontade possa seguir a si mesma, sem constrangimentos alheios. Mas Agostinho adverte que, se aparece como paradoxo, é porque a soberba gerou um afastamento do homem, um afastamento de si mesmo, de sua natureza e do fundamento de seu ser.

A cisão fundamental engendrada pelo pecado original faz com que a liberdade pareça estranha a uma ordem universal cujo fundamento transcende a vontade privada de cada homem. O afastamento de si próprio é como uma fratura na identidade, e por isso oculta que a ordem é o lugar da identidade da alma racional. A submissão à ordem não é submissão a algo exterior, alheio. Por isso, não é impedimento à liberdade.

Como submissão, a liberdade é sim obediência a si mesmo, preservação da identidade, obediência à própria natureza. Mas a vontade cindida, posta por si mesma contra si mesma, está afastada de sua identidade e tem sua natureza paralisada. A verdadeira e autêntica identidade da vontade racional está preservada apenas no plano da ordem universal e transcendente. Como vimos, a ordem universal é dinâmica, e a vontade racional participa deste dinamismo, com o privilégio do livre-arbítrio. Por isso, a liberdade reside nesse dinamismo da ordem universal. Se nossa natureza é inquieta, positivamente inquieta, uma vez que é aspiração ao princípio supremo,[12] então a liberdade pode e deve ser pensada do ponto de vista de um direcionamento da inquietude, ou para retomarmos uma expressão cara a H. Arendt: amor ordenado, ordinata dilectio.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

As obras de Agostinho foram citadas a partir do texto do Corpus Augustinianum Gissense,

editado por C. Mayer. As traduções foram feitas por mim, salvo menção em contrário.

  1. Arendt. A vida do espírito. O querer(a vontade), vol. 2, Rio de Janeiro: Relume-Dumará

e Editora da UFRJ, 1995.

  • . O conceito de amor em santo Agostinho: ensaio de interpretação filosófica. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
  • . Der Liebesbegriff bei Augustin. Versuch einer philosophischen Interpretation. Berlim: Julius Springer, 1929.
  • . Love and Saint Augustine. Edição e ensaio de introdução de Joanna Vecchiarelli

Scott e Judith Chelius Stark. Chicago e Londres: Chicago University Press, 1996.

P Brown. Augustine of Hippo. Berkeley-Los Angeles: University of California Press, 1969.

P Courcelle. Les Lettres grecques en Occident, de Macrobe a Cassiodore. Paris: E. de Boccard, 1943.

H.-C. Puech. Sur le manichéisme et autres essais. Paris: Flammarion, 1979.

  1. Rudolph. Gnosis, the nature & history of gnosticism, tradução editada por R. McL. Wilson. São Francisco: Harper & Row, 198O.

[1] Arendt, H. A vida do espírito. O querer (a vontade). Rio de Janeiro: Relume-Dumará e Editora da UFRJ, 1995, vol. 2, p.248.

[2] Der Liebesbegriff bei Augustin. Versuch einer philosophischen Interpretation, Berlim: Julius Springer, 1929. Há tradução portuguesa: O conceito de amor em santo Agostinho. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. Os leitores de Hannah Arendt podem reportar-se a uma excelente edição em inglês, com revisão e acréscimos substanciais da própria autora, que também tomou parte na tradução para o inglês, já nos anos 60.

[3] Uma exposição da doutrina maniqueísta, com longas citações de textos mani-queus, encontra-se num texto do próprio Agostinho, “Sobre a natureza do bem” — De natura boni. Consultem-se também Puech, H.-C., Sur le Manichéisme et autres essais. Paris: Flammarion, 1979, e Rudolph, K. Gnosis, The Nature & History of Gnosticism, tradução editada por R. McL. Wilson. San Francisco: Harper & Row, 1980.

[4] Traduzimos do inglês: Alberry, Manichean Psalmbook, p. 56, apud Brown, P Augustine of Hippo, p. 49.

[5] Citamos os textos bíblicos conforme o texto da Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulinas, 1989. Eventualmente nos pareceu necessário adaptar a tradução à interpretação de Agostinho.

[6] Naturalmente, as criaturas são perfeitas em seus gêneros respectivos, mas não são absolutamente perfeitas, não têm a perfeição no sentido estrito, divino.

[7] Confissões VIII v 11: “Portanto, eu compreendia por experiência própria o que havia lido: que a carne tem desejos contrários ao espírito, e o espírito tem desejos contrários ã carne”. Tradução de M. L. Amarante. São Paulo: Paulinas, 1984.

[8] Die physische Welt steht im Gleichnis zur geistigen, nicht umgekehrt”, Bernhart, em nota ao Livro XIII das Confissões: Confessiones-Bekenntnisse, Munique: Kõsel, 1955, pp. 912-3.

[9] Agostinho também suspeitou do corpo, como atestam certas expressões dos seus primeiros diálogos. O bispo de Hipona também as retificará nas Revisões, pois pareciam o eco de uma frase do neoplatônico Porfírio — omne corpus esse fugiendum —, num espírito formado sob a influência do maniqueísmo. Entre os textos de juventude, depois revistos, consultem-se Contra academicos I III 9 e Soliloquia I  XIV 24. Mais tarde, Agostinho fará a crítica de Porfírio: A cidade de Deus X 24-29 e XXII 28; Sermão 241, 7,7; v. Courcelle, P. Les lettres […]p. 167 e ss.

[10] A rigor, para sermos mais exatos, o pecado envolve mais do que negação ou ausência, porque há aqui propriamente carência. A paralisação da vontade não é meramente uma ausência, no sentido, por exemplo, em que falta visão a uma pedra. Para a natureza da pedra, a falta de visão é uma imperfeição natural. Seria mais apropriado dizer que o imobilismo da vontade equivale a uma carência, no sentido em que um olho cego carece de visão. A visão é da natureza do olho; se lhe falta visão, há propriamente carência, e não simplesmente ausência.

[11] A soberba paralisante e a atenção à promessa da serpente são comentados por Agostinho no seu “Comentário literal ao Gênesis”: de Genesi ad litteram XI XV (sobre Eclesiástico 10, 15) e De Genesi ad litteram XI XXX (sobre o diálogo entre Eva e a serpente).

[12] A própria palavra “filosofia” pode ser glosada nessa dimensão dinâmica: uma aspiração ou amor à sabedoria, e não a posse da sabedoria. Cf Confissões III IV 8.

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