2009

A contingência do novo

por Newton Bignotto

Resumo

Uma das mais importantes obras da filosofia política, A condição humana (1958), de Hannah Arendt, começa com uma menção ao lançamento do primeiro satélite artificial e às perspectivas que se abriam para a Humanidade. A obra de Arendt ainda conserva o seu frescor graças ao fato de que, naquele momento que parecia de encantamento com o surgimento de um novo mundo, ela soube perceber o desafio que se colocava para a filosofia. Tornou-se necessário refletir sobre a maneira como as constantes inovações da ciência e da técnica alteram nossa compreensão do humano e destroem certezas arraigadas em nossa cultura, ou seja, pensar a relação do surgimento do novo com a maneira como concebemos a condição humana.

A força do pensamento de Arendt está em incorporar os dados surgidos da revolução científica e em identificar os pontos cegos de nossa reflexão acerca do significado do que estamos vivendo. Servindo-nos de suas intuições, podemos dizer que nas últimas décadas fomos submetidos a três mudanças que colocam em questão a ideia do humano.

A primeira, identificada por Arendt, foi a mudança – surgida com a corrida espacial – nos horizontes da existência humana. Nesse caso, a mudança diz respeito ao ambiente, ao espaço de sobrevivência, mas tem profundas repercussões na imagem e na maneira como concebemos a especificidade do humano. Durante a história, estivemos confinados ao planeta, ou muitas vezes, a pequenas parcelas dele, e esse fato foi decisivo para tentar compreender quem somos. Libertos da Terra, tornamo-nos seres sem morada definida, sem uma laço absoluto com o meio físico.

A segunda mudança diz respeito ao mundo do trabalho. Arendt, observa que, depois que a modernidade construiu sua identidade e induziu todos a pensar a partir do trabalho e de suas implicações éticas desse fato, a técnica botou abaixo a esperança de que pudéssemos encontrar nossa razão de ser longe das formas tradicionais de identificação com a religião ou com os valores da tradição. Quando a lógica do trabalho parece triunfar em boa parte do mundo, os processos fabris sofreram tamanha transformação que mesmo a ideia de alienação, desenvolvida por Marx, está aquém de uma realidade que ameaça condenar os homens ao desenraizamento. Arendt soube ver as consequências desse processo após estudar o surgimento do homem de massas e dos regimes totalitários. Se esses são para a autora novidades na história, eles são consequência direta das mutações sofridas pelas sociedades industriais contemporâneas. Perdido o vínculo com o mundo do trabalho, resta um vazio que se mostra fértil para experiências extremas e destrutivas, como o surgimento dos campos de concentração.

Por fim, nos anos recentes, as mudanças passaram a atingir o próprio corpo, que, para além da exploração de sua energia, transformou-se no objeto de experimentação das ciências. As promessas da genética vão muito além da cura de doenças e levam-nos a crer que o corpo é reprodutível como objeto. Hoje olhamos para o corpo como uma máquina, mas isso não é mais visto como metáfora. Mudar o funcionamento de órgãos, prolongar a vida por meios artificiais, confundir o corpo humano com suas extensões mecânicas são feitos tão banais que nem mesmo sabemos que ao usar a palavra humano ainda nos referimos a uma realidade reconhecível por meio de nossos instrumentos conceituais.


A segunda metade do século XX foi marcada por avanços espetaculares das ciências e pela dúvida quanto ao impacto que eles teriam nas sociedades contemporâneas. O início da conquista espacial e os benefícios que ela prometia soavam como uma redenção para os horrores produzidos pelos massacres intermináveis, que haviam devastado o mundo, e pelo temor provocado pela explosão da bomba atômica. Em 1958, Hannah Arendt publicou aquela que seria uma das obras mais importantes da filosofia política de nosso tempo: A condição humana.[1] Como ela mesma confidenciou mais tarde, o livro alcançou uma repercussão muito maior do que ela e seu editor previram.[2] Rapidamente foi necessário fazer uma segunda tiragem de um escrito complexo e que lidava com problemas do mundo contemporâneo de um ponto de vista totalmente diferente daquele de outros teóricos da política. O sucesso do livro talvez seja difícil de explicar, mas não sua pertinência para pensar nossa época.

No contexto dos anos 1950, o tema inicial do livro não podia ser mais chamativo. Logo na primeira frase, Arendt aponta para o lançamento do primeiro satélite artificial como um marco de nossa época. Como ela sublinha, pela primeira vez pareceu que poderíamos escapar dos limites de nossa natureza, escapar das fronteiras da Terra, que até então encerravam o único território cabível para a existência humana.[3] Não tinha como não prestar atenção ao que havia acontecido, e, nos anos que se seguiram, a corrida espacial foi percebida como uma grande esperança para a humanidade, que parecia contar com os meios necessários para forjar um novo destino para o ser humano. O fato só não foi mais espetacular porque se encaixava nas expectativas que eram depositadas nas ciências, desde que elas começaram a alterar nossa visão do mundo. Numa expressão que ficou clássica, muitos disseram que a história se acelerou, e a ciência era uma das responsáveis. O começo da corrida espacial forjava a imagem de um novo mundo, que passava a responder a uma lógica ao mesmo tempo em acordo com os sonhos humanos e fora de seu controle.

Passados cinquenta anos de sua publicação, a obra de Arendt conserva todo seu frescor. Isso se deve não tanto às soluções que ela aponta, pois esse nunca foi seu propósito, mas ao fato de que naquele momento, que parecia de encantamento com o surgimento de um novo mundo, ela soube perceber o desafio que se colocava para a filosofia, que ela resumia de forma quase singela ao dizer que seu intuito era simplesmente “pensar o que estamos fazendo”.[4] Essa tentativa de fazer de seu tempo o objeto privilegiado de suas investigações, aliada à preocupação de não perder o fio da tradição, marca a preocupação da autora com o fato de que a época de maior progresso das ciências foi também aquele de maior alienação do homem de sua história. Ora, Arendt nunca se deixou levar pelo entusiasmo como uma forma de progresso que parecia prescindir da liberdade para alcançar seus efeitos. Sob o manto das transformações na paisagem do território humano se escondia uma perda de ligação com a história e suas raízes que soava muito mais como uma ameaça do que como uma vitória contra as limitações da condição humana.

Em nossos dias, as conquistas das ciências são outras. Se não acreditamos mais que será possível viajar para fora do sistema solar com facilidade e retornar ao nosso planeta, os avanços da genética e da robótica apontam para novas fronteiras do conhecimento, cujo significado estamos longe de conhecer todo. As ciências continuam sua marcha, que para muitos é inexorável. Essa percepção é hoje a fonte de uma angústia das civilizações, que não sabem, ou não acreditam ser possível, conter a marcha de um processo que transforma os horizontes do mundo, mas não desvela seu significado ao acontecer. Muitos pensam que o aparecimento de novas tecnologias e os impactos que geram na vida das pessoas são tributários de um processo teleológico, contra o qual nada podemos fazer. Em muitos momentos da história tentou-se compreender as mutações sofridas pelas sociedades recorrendo à ideia de que elas eram parte de um processo cujo destino final era possível elucidar. Algumas vezes esse destino foi confundido com o final dos tempos, como em várias experiências messiânicas, outras vezes com o desenvolvimento das possibilidades da razão, como para as filosofias da história do século XIX. A novidade de nosso tempo está no fato de que identificamos na razão instrumental a origem das transformações que sofremos, reconhecemos em seus filhos diletos – a ciência e a técnica – os propulsores do processo de mudança em vários domínios da existência, no entanto não sabemos mais para onde estamos indo. A razão partiu-se em várias dimensões, que a tradição não deixou de apontar desde Platão até Kant, mas não ofereceu a chave para entendê-las em seus infinitos desdobramentos práticos.

Nossa preocupação neste texto não é a de recuperar toda a complexidade do pensamento arendtiano, nem repertoriar o longo debate que se seguiu à publicação de A condição humana. Nosso intuito é, em primeiro lugar, o de nos servir de sua obra, para refletir sobre a maneira como as constantes inovações das ciências e da técnica alteram nossa compreensão do humano e destroem certezas arraigadas em nossa cultura. Em segundo lugar, trata-se de analisar a ideia de que diante da marcha da técnica só nos resta a passividade. Se a aceitação da inexorabilidade do processo de transformação do mundo pela técnica parece-nos problemática, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que as transformações operadas no mundo nos últimos cem anos exigem um aparato conceitual diferente daquele com o qual pensávamos nossa relação com a história no início da modernidade.

Para tornar mais claro nosso propósito, é preciso seguir os passos iniciais de Hannah Arendt, quando ela diferencia a natureza humana da condição humana. Ela se nega a tratar o tema da natureza humana por considerá-lo praticamente insolúvel, se tomado do ponto de vista da tradição, que aproxima o homem das coisas e presume que elas têm uma essência.[5] Ao nos remeter para o tema da condição, ela evita os caminhos tortuosos da união da antropologia e da metafísica para se dedicar ao estudo do homem em sua existência concreta de um ser mergulhado no mundo que não lhe é inteiramente compreensível, cujas determinações por vezes lhe escapam, mas das quais é possível falar e sobre as quais é possível pensar, uma vez que o mundo é para Arendt aquilo que aparece e se mostra como algo passível de ser povoado de sentido pelo homem.[6] Estar no mundo implica reconhecer na dimensão existencial aquela na qual encontramos uma forma de compreender o que estamos vivendo, mas é também desse fato que deriva a possibilidade de perdermos nossas referências, de nos desenraizarmos. Nosso tempo nos mostrou que muitas vezes o sentimento de sermos estrangeiros no mundo procede do fato de que o próprio homem produziu um território no qual ele mesmo não se reconhece. Esse sentimento aparece nas sociedades de massa durante processos próprios aos regimes totalitários, mas ele faz parte também de uma sociedade que avança pelas mãos de uma tecnociência que nos é estrangeira.

Nesse quadro, a distinção entre natureza e condição humana tem hoje uma grande atualidade, pois interpela diretamente uma das crenças que governa a transformação dos paradigmas usados para definir o que é o humano: a de que com os avanços da biologia tornou-se possível compreender o homem partindo diretamente de seu código genético. Esse esforço, que já produziu resultados em vários campos de investigação, até mesmo na psiquiatria, tende cada vez mais a deixar num plano secundário o que estamos designando como condição humana, para concentrar toda a atenção no que se acredita ser os elementos de determinação da natureza humana. Ora, a invasão do paradigma biológico no terreno das ciências humanas mostra que as fronteiras do conhecimento estão mudando e que uma nova ideia do homem emerge da marcha das ciências e da técnica. Arendt caminha em outra direção. Para ela não resta a menor dúvida de que um processo contínuo de mudanças está ocorrendo e redefinindo a condição humana. Para compreender o problema do surgimento contínuo do novo, ela não nos remete, no entanto, nem para uma teleologia da história, nem para uma forma qualquer de necessidade associada à natureza. Para ela, a categoria central para pensar nossa condição é a de ação, que está por excelência ligada à atividade política. Ora, nesse ponto cabe lembrar que Arendt pensa ser a liberdade a essência da política e vê nela a única atividade que permite ao homem escapar de suas necessidades básicas, inventar a si mesmo e ao mundo no qual pretende viver. Se o processo de criação do novo aparece como derivado de alguma forma de automatismo, a ação perde seu sentido criador e deixa de ser a forma pela qual o homem se encontra com sua história e pela qual ele pode forjar seu futuro. Isso dito, devemos lembrar que essas observações indicam apenas o norte de suas investigações, mas não desvelam a riqueza de seu trajeto.

Voltando ao problema do homem e de sua existência, podemos afirmar que sua condição se define pela e na história. Isso implica dizer que não podemos nos recusar a identificar as mutações de nossa época em nome de uma concepção do humano definido somente por suas características inatas, sejam elas biológicas ou outras. É óbvio que o recurso à psicologia, à psicanálise, à antropologia e a outras formas de conhecimento é útil e necessário. A questão, no entanto, é bem mais complexa, pois ela implica o reconhecimento dos limites dos saberes tradicionais em nos fazer compreender as transformações que observamos. O vigor e a força do pensamento de Arendt estão em aceitar esse desafio, em incorporar os dados surgidos da revolução científica e em identificar os pontos cegos de nossa reflexão acerca do significado do que estamos vivendo. Servindo-nos de suas intuições, podemos dizer que nas últimas décadas fomos submetidos a quatro mudanças, que, todas elas, colocam em questão a ideia do humano e apontam para a necessidade de compreendermos o significado da con­ tínua transformação do mundo que nos abriga.

A primeira transformação identificada por Arendt foi aquela operada nos horizontes da existência que definimos como humana, surgida com a corrida espacial. Nesse caso, a mudança diz respeito ao ambiente, ao espaço de sobrevivência, mas tem profundas repercussões na imagem e na maneira como concebemos a especificidade do humano. Durante toda a história estivemos confinados ao planeta e, muitas vezes, a pequenas parcelas dele, e esse fato foi decisivo para tentar compreender quem somos. Nossas diferenças com outros habitantes do planeta nunca levaram em conta o fato de que podemos nos libertar dessa “prisão”. Libertos da Terra, tornamo-nos algo que nunca sonhamos antes. Um ser sem morada definida, sem um laço absoluto com o meio físico, que permite sua existência e sua sobrevivência como espécie.

A segunda mudança diz respeito ao mundo do trabalho. Logo na introdução, Arendt observa que, depois que a modernidade construiu sua identidade e induziu todos a se pensarem a partir do trabalho e das implicações éticas desse fato, a técnica botou abaixo a esperança de que pudéssemos encontrar nossa razão de ser longe das formas tradicionais de identificação com a religião ou com valores da tradição. Quando a lógica do trabalho pareceu triunfar em boa parte do mundo, os processos fabris sofreram tamanha transformação que mesmo a ideia de alienação, desenvolvida por Marx, está aquém de uma realida ­ de que ameaça condenar os homens ao esquecimento de suas antigas certezas. Arendt soube ver as consequências desse processo ao estudar o surgimento do homem de massas e dos regimes totalitários. Se esses são para nossa autora uma novidade na história, eles são o fruto direto das mutações sofridas pelas sociedades industriais contemporâneas. Perdido o vínculo com o mundo do trabalho, resta um vazio, que se mostra fértil para experiência extremas e destrutivas, como o surgimento dos campos de concentração.

Uma terceira mudança, já assinalada em A condição humana, diz respeito à supremacia que o econômico alcançou em face do político. Cada vez mais pensamos nossos problemas comuns a partir da ótica da economia. Questões sobre a melhor forma de organizarmos, por exemplo, a questão da saúde, ou sobre a criminalidade, são olhadas a partir dos custos e dos benefícios financeiros que decorrem da solução dos problemas. No mundo atual, o objetivo das políticas públicas é reduzir o número de acidentes, mas isso ocorre não para preservar vidas e suas histórias, pelo reconhecimento do valor intrínseco da vida, mas para diminuir os custos finais das obras e para evitar que o processo produtivo sofra os efeitos do que lhe escapa e que soa como um ruído em sua cadeia de produção de mercadorias.

Por fim, nos anos recentes, as mudanças passaram a atingir o próprio corpo, que, para além da exploração de sua energia, que caracteriza o processo de produção nas sociedades capitalistas, mas não apenas nelas, transformou-se no objeto de experimentação das ciências. As promessas da genética, que vão muito além da cura de doenças, e que nos levam a crer que o que era único para nós, em suas misérias e prazeres, é reprodutível como qualquer outro objeto. Hoje olhamos para o corpo como uma máquina, mas isso não é mais visto como metáfora. Mudar o funcionamento de órgãos, prolongar a vida por meios artificiais, confundir o corpo humano com suas extensões mecânicas, tudo isso tornou-se tão banal que nem mesmo sabemos que ao usar a palavra humano não mais nos referimos a uma realidade reconhecível por meio de nossos instrumentos conceituais.

A tarefa à qual se dedicou Arendt foi investigar as raízes e o significado do aparecimento de novas formas de vida em comum, num contexto de esgotamento e cansaço das filosofias tradicionais e no qual as mudanças às quais aludimos se impuseram de forma decisiva. Mas não nos equivoquemos. Nossa pensadora não é futuróloga e nem acredita que a razão possa antever o que nos aguarda. No interior de um processo de mudança, podemos, e ela o faz com grande maestria, investigar as raízes e o significado das transformações aos quais estamos submetidos, sem com isso pretendermos descobrir a direção precisa do caminho que estamos trilhando. O problema para a filosofia não é, portanto, o de antecipar os progressos da técnica e da ciência e seus efeitos sobre nossas vidas, mas o de buscar conceitos que deem conta das mutações que experimentamos, sem ceder à facilidade de aceitá-los como parte de uma lógica inexorável das coisas.

Na busca por um aparato conceitual adequado a nossa época, devemos levar em conta alguns traços dominantes das sociedades industriais que governam muitos dos processos aos quais estamos nos referindo. Para nossos propósitos, o que mais chama a atenção é o encolhimento progressivo da esfera pública e os efeitos que isso gera na esfera privada. Num primeiro momento, podemos aceitar a afirmação de que isso decorre do desenvolvimento do individualismo moderno e das formas que ele tomou em nossos dias de referência contínua ao mercado e às suas implicações, e que teremos de conviver com uma alteração da relação entre o peso relativo da esfera pública e da esfera privada com relação à antiguidade clássica, se quisermos compreender as especificidades de nosso tempo. Posto dessa maneira, o problema é o do reconhecimento de nossa identidade pela afirmação de nossa diferença com outros momentos da história. Arendt, no entanto, não se contenta com a simples constatação da diferença entre os momentos históricos. Para ela, a existência de um espaço público vigoroso no mundo antigo era uma garantia “contra a futilidade da vida individual”, fazendo com que houvesse para cada cidadão um lugar para o que não podia ou não devia ser mostrado. Se o espaço público é o território do que deve ser visto, a vida privada era definida como um espaço de limitação e privação do que não devia ser exposto aos olhos de todos.

Dessas observações decorrem dois problemas que, embora interligados, abrem possibilidades diferentes de abordagem da questão da definição da condição humana e sua relação com o contínuo surgimento do novo. O primeiro ponto sobre o qual gostaríamos de chamar a atenção é o fato de que o elogio da grandeza da esfera pública grega não significa o desprezo quanto ao papel que a esfera privada tinha na estruturação da vida dos antigos. Se de fato o mundo privado não é o espaço de manifestação de nossas mais altas qualidades, ele é um refúgio necessário para o confronto do homem com seus limites. Por isso, Arendt pode dizer que “a privacidade era como o outro lado, escuro e escondido, do domínio público; ser político significava atingir a mais alta possibilidade da existência humana; mas não possuir um local próprio e privado (como ocorre com os escravos) significa não ser mais humano”.[7] Público e privado definem juntos a condição humana.[8] A alteração em um dos polos tem reflexos imediatos no outro, a tal ponto que a destruição de uma das esferas acaba acarretando a destruição da outra, o que levou Arendt a afirmar que “parece ser da natureza da relação entre as esferas pública e privada que o estágio final de desaparecimento da esfera pública seja acompanhado pela ameaça da destruição da esfera privada”.[9] Quando isso ocorre, estamos diante de uma sociedade totalitária, um dos grandes temas do pensamento arendtiano.[10]

Feitas as ressalvas anteriores, podemos passar para o segundo ponto, qual seja, a questão da futilidade associada à expansão dos valores próprios da esfera privada que, em nossos dias, caracteriza o que acreditamos ser uma marca inexorável das sociedades de consumo. Ora, não há como negar que o individualismo faz parte dos traços distintivos de nossa época e define os rumos de boa parte das sociedades democráticas. A preocupação com os direitos individuais revela não apenas a importância da questão do indivíduo, mas, sobretudo, seu impacto no território do direito e das liberdades associadas à democracia. Não é, portanto, a simples referência ao papel do indivíduo que esclarece as críticas arendtianas à destruição do espaço público. A futilidade de nossos atos privados se torna um sintoma inquietante para a vida política quando deixa de ser referida à cena da vida privada e aparece no espaço em comum dos homens como aquilo que verdadeiramente importa. Tudo se passa como se um certo pudor associado aos gestos privados fosse perdido e se impusesse à luz do dia como algo pertinente e importante ao convívio de todos. Sem a referência do que é comum e do que é significativo para a comunidade como um todo, a vida na cidade passa a ser a soma das pequenas idiossincrasias, que constitui o apanágio da vida de cada um em sua intimidade. A importância concedida aos reality shows é uma prova da invasão do espaço público por fatos e discursos que nada mais fazem do que repetir a vacuidade dos discursos privados diante da tarefa imensa de construir uma esfera pública na qual a cidade busca sua identidade.

A crítica do avanço da esfera privada sobre o que já foi o domínio exclusivo do público não deve, no entanto, nos conduzir ao erro de supor que a crítica arendtiana é semelhante àquela que encontramos em vários filósofos, e que opõe ao mundo das aparências um mundo de essências, ao qual poucos podem ascender por meio da reflexão. Futilidade e aparência não são a mesma coisa. Arendt se dedica em Vida do espírito a um combate vigoroso contra o que ela chama de “falácias metafísicas”. Para ela, trata-se de combater a ideia de que o pensamento em sua busca da perfeição última do ser alcança seu objetivo quando consegue se desvencilhar dos dados sensíveis para atingir uma região na qual ser e verdade se equivalem.[11] Ao contrário da tradição da metafísica, e mesmo de Heidegger, Arendt pretende encontrar um solo para o homem que não o expulse de sua vida para supostamente encontrar sua essência. Como resume Tassin: “Pois, não é, com efeito, o Ser, ou a questão do Ser que suscita o pensamento, mas o mundo.”[12]

O lugar do homem é, portanto, o mundo, um mundo constituído “pelas coisas naturais e artificiais, vivas e mortas, provisórias e eternas que têm em comum o fato de aparecerem e, por isso mesmo, de serem feitas para serem vistas, escutadas, tocadas sentidas e degustadas por criaturas sensíveis dotadas dos sentidos apropriados”.[13] Um mundo que não nos é estrangeiro e que não pode ser conhecido senão estando nele, imerso em sua aparência; que é o território de nossa existência, de toda existência à qual podemos nos referir. Para Arendt, nem o homem de ciência nem o filósofo podem fugir do que ela chama de “supremacia da aparência”.[14] Com isso ela não pretende negar o problema da dicotomia entre o ser e a aparência, e nem desconhecer as aporias que costumam acompanhar a referência ao império das aparências. Mas, ao resgatar alguns aspectos da fenomenologia contemporânea, Arendt faz mais do que retornar aos debates que desde Husserl ocuparam um lugar importante na cena filosófica. Ela abre as portas para uma reflexão sobre a vida em comum dos homens, à distância de um conjunto de considerações que levaram pensadores importantes do século XX a simplesmente se furtarem a pensar as questões de seu tempo em nome de uma busca por verdades atemporais, fora do alcance do homem comum.

Nesse sentido, é preciso recordar uma observação que aparece logo no início da Vida do espírito e que condiciona seu desenvolvimento posterior. Referindo-se ainda à definição de mundo, ela diz: “Em outros termos, nada do que existe, na medida em que essa coisa aparece, não existe no singular; tudo o que é está destinado a ser percebido. Não é o homem, mas os homens, que povoam nosso planeta. A pluralidade é a lei da terra.”[15] A existência humana é sempre algo que se desenrola entre homens, que exige a constituição de um espaço comum, para que cada um possa ser visto em seu aparecer. Sem sermos vistos e ouvidos não somos nada para os outros e, por consequência, nada para nós mesmos. A novidade do pensamento de Arendt não está apenas na afirmação da natureza fenomenal do mundo, mas da recusa de um processo de formação da identidade dos indivíduos, que não dependeria dos outros para se realizar. Em outras palavras, para Arendt não há algo como uma essência do homem, que possa ser encontrada no mergulho do pensamento em si mesmo. O homem só é algo para ele mesmo quando aparece para os outros. Essa constatação serve para todas as coisas e se explica porque, “fundada sobre o critério único do acabamento e da perfeição da aparência, seria completamente arbitrária se a realidade não fosse antes de tudo de natureza fenomenal”.[16]

Essa afirmação serve de ponto de partida para os estudos que Arendt irá empreender ao longo do livro sobre o que ela caracteriza como a vida do espírito. Para nós, ela interessa por nos ajudar a compreender a natureza da vida em comum e a importância da constituição de um espaço público no qual os homens podem aparecer. É claro que também nossa vida privada pertence à esfera dos fenômenos e não pode ser desprezada em nossa investigação. Mas se estamos interessados em pensar a natureza das transformações que sofremos nas últimas décadas em função dos avanços da ciência e da técnica, é necessário observar que essas mudanças são significativas porque afetam diretamente o mundo, o espaço da pluralidade, e não apenas nosso espaço privado. Não é a intimidade de cada um que está em jogo em nossos dias, é o efeito da propagação de valores e comportamentos antes restritos a esse espaço que deve ser compreendido como um fenômeno que altera nosso mundo em comum. Ou seja, para falar em alteração da condição humana, é necessário prestar atenção aos efeitos das mutações que observamos na constituição do mundo em comum dos homens.

Nesse ambiente de reflexão, a questão da solidão nos faz reencontrar o problema da futilidade. Em nossa época, acredita-se que a atividade de pensar é por excelência uma atividade solitária, que retira o homem do convívio com os outros e o isola no interior de um eu solipsista. Ora, para Arendt, quando pensamos, nos desdobramos em dois. Multiplicamos nossos pontos de vista e, portanto, estamos longe de erigir a unidade em princípio da vida. O isolamento daquele que pensa não é nunca uma negação do mundo. A lei que rege o pensamento, o dois-em-um, “deixa entrever a pluralidade infinita que é a lei da terra”.[17]

Por isso, aquele que pensa experimenta no ato mesmo de se distanciar do mundo dos fenômenos a profunda conexão que o liga a esse mesmo mundo. Refletindo sobre essa dimensão plural do pensamento, Arendt lembra que “mesmo Sócrates, que amava tanto a praça pública, deve voltar para casa, onde estará sozinho, mergulhado na solidão, para encontrar o outro”.[18]

O verdadeiro problema de nossa época é daqueles que não pensam, que não são capazes de obter algum recuo das atividades diárias e se deixam levar pelo fluxo infinito dos acontecimentos, cujo sentido lhes escapa completamente. Mergulhados no tumulto das cidades, devorados pelo barulho de uma civilização cada vez mais povoada por maquinas, os homens mergulham no mundo, sofrem suas consequências, mas são incapazes de atribuir-lhes um significado e mesmo de compreender sua dimensão plural. Privados de pensamento, os homens são privados de sentido e, por conseguinte, se desancoram da experiência da convivência como os outros. Como afirma Arendt: “Uma vida desprovida de pensamento não tem nada de impossível; ela não consegue desenvolver sua essência, eis tudo – ela é não somente desprovida de significação; ela não é de fato uma vida. Os homens que não pensam são como son âmbulos.”[19]

Arendt foi pioneira em associar o desenraizamento dos homens do mundo comum, a solidão das sociedades contemporâneas, ao aparecimento dos regimes totalitários. Os “sonâmbulos” são presa fácil das ideologias e da propaganda, que substitui o verdadeiro pensamento e a associação dos homens na esfera política. Na lógica arendtiana, uma vida sem pensamento é também uma vida sem política, ou melhor, sem uma referência ao que é comum, ao que nos humaniza. Daí que solidão e futilidade são faces da mesma moeda. Ao perder a distinção entre o que é significativo e o que é apenas ocasional, perdemos o sentido do que é importante para os homens e acabamos por amalgamar as diversas esferas da existência num mesmo tecido amorfo, sobre o qual podem se colar todas as ideologias. A solidão sem pensamento é o correlato da desumanização provocada pela futilidade da vida vivida em total privacidade.

As constatações anteriores são um retrato das preocupações arendtianas quanto ao impacto das novidades trazidas pelo século XX para a condição humana. Para explorar seu pleno significado não podemos, no entanto, nos deixar conduzir apenas por seu pessimismo aparente. Se não há lugar para esconder o fato de que Arendt enxerga com olhos preocupados a marcha dos acontecimentos presididos pela destruição da única esfera que pode abrigar a pluralidade do mundo, essa observação, sozinha, não fornece uma explicação para a origem e o significado das mutações que alteram a face do humano. Por isso devemos retornar à Condição humana para prosseguirmos nosso estudo.

Um primeiro aspecto a ser ressaltado é o fato de que Arendt concebe a vida ativa a partir de uma estrutura tripartite, que pretende dar conta de aspectos diferentes de nossa existência. Essa partição entre o trabalho (labor), a obra (work) e a ação (action) é o ponto de partida para sua reflexão sobre a condição do homem moderno e depende do distanciamento da antiga divisão da vida em suas dimensões contemplativa e ativa.[20] Não vamos nos ocupar aqui com a explicação das vastas possibilidades conceituais derivadas da estrutura central da obra de Arendt. Ao chamar a atenção para o trabalho e a obra, a pensadora pretende não apenas oferecer uma chave para a compreensão da relação dos homens com o mundo, mas apontar para o processo de formação da modernidade como aquele da instauração de uma sociedade voltada para o consumo e para a necessidade.
Para Arendt, o trabalho define a atividade de reprodução da vida em seu nível biológico. Trabalhamos para manter funcionando o corpo e, para isso, erigimos a conservação do metabolismo vital como o núcleo de nossa existência.[21] Na esfera do trabalho, a solidão não implica separação dos outros homens, embora ela possa ocorrer, mas um confronto contínuo com a natureza e suas forças, que arriscam nos tragar se não soubermos combater pelo esforço de nosso corpo a tendência natural de degenerescência de todo organismo vivo. Por isso no curso da história humana a fabricação de ferramentas foi tão essencial na medida em que ao fabricar coisas que duram no tempo, e não são imediatamente consumidas pelos organismos em busca de energia vital para sobreviver, criamos um espaço propriamente humano, no interior da natureza, que aplica suas leis de forma indistinta a todos os seres vivos. De alguma maneira, fabricar coisas duráveis é uma etapa necessária na afirmação de nossa particularidade enquanto espécie, uma vez que permite nos distanciarmos do ciclo contínuo de reprodução da vida biológica.

O problema surge, na modernidade, no momento em que o desejo de nos livrar da ameaça representada pela necessidade presente em toda vida biológica é substituído pelo desejo da abundância, que parece representar o desiderato maior de um animal, que é capaz de fazer durar sua vida por meios alheios àqueles presentes na natureza. No lugar, no entanto, de centrar sua preocupação na produção de instrumentos de uso, os modernos se concentraram no trabalho e em seus resultados mais imediatos. Como resume Arendt: “A Revolução Industrial trocou todo fruto da fabricação (obra) pelo trabalho; o resultado foi que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do trabalho, cujo destino é serem consumidos, no lugar dos produtos da fabricação (obra), cujo destino é serem usados”[22].

Se nos ativermos à esfera do trabalho e da obra, o mundo que habitamos e as modificações que ele sofre poderão ser interpretados como o resultado do esforço de reprodução da vida e de perpetuação de suas condições. Ao se tornarem capazes de sobreviver e de fazer durar as condições que permitiram sua sobrevivência, os homens realizariam a essência de um animal que trabalha e, ao mesmo tempo, produz excedentes, não apenas para produzir mais, mas para criar um mundo de coisas, que ele compreende como sendo parte de sua condição. Nesse ciclo de reprodução e durabilidade, a categoria central é a do consumo; o objetivo da preservação da vida é secundado pelo da estabilização das condições de sua reprodução, de tal forma que o trabalho ocupa o centro da condição humana. Olhando por esse prisma, a moderna sociedade de consumo nada mais faz do que atacar o velho problema da luta da humanidade contra sua finitude. Não é à toa que a expansão da sociedade de consumo tem gerado a expectativa de que a vida possa durar cada vez mais, já que a questão da sobrevivência tendo sido resolvida por novos meios técnicos, nada parece se opor à ideia de que a técnica poderá se imiscuir no coração da vida biológica, alterando-lhe os parâmetros que comandam sua extensão no tempo, e isso independentemente do fato de que o avanço técnico tem colocado a nu os limites da exploração dos recursos naturais. O sonho de uma vida na qual o consumo se torna um processo cíclico parece se esquecer da crise provocada por esse movimento, que esbarra não apenas na destruição do meio ambiente, mas também no fato óbvio de que os recursos naturais são finitos e não podem ser repostos pelas mãos dos homens.

Ora, nesse universo, o novo é sempre o fruto de um trabalho ou de uma fabricação cujos propósitos são explícitos e conhecidos por todos: conservar a vida biológica e controlá-la. Olhadas por esse prisma, as sociedades de consumo não desafiam nossa compreensão, assim como suas mutações. Elas seriam sempre mutações do processo produtivo, fruto de avanços e descobertas das ciências, mas não a criação de um novo espaço para a vida. Para muitos, o trabalho comporta uma teleologia que pode ser até mesmo sua extinção, mas ele é o centro da vida dos homens. Despidos da ilusão de que podemos alcançar esferas elevadas da vida contemplando passivamente suas entranhas, o animal laborans triunfa ao fazer do mundo que cria o mundo dos homens em geral.

Há evidentemente uma dependência por parte dos homens dos frutos de seu trabalho e dos objetos fabricados para fazer durar a vida. Negar a dimensão essencial do processo de produção e consumo de bens corresponderia a voltar a uma concepção da condição humana baseada no elogio da vida contemplativa, típico da sociedade medieval cristã, mas que encontra correspondência com outras concepções de outras épocas. O que Arendt nos ajuda a compreender é que, se nos ativermos a pensar a condição humana a partir apenas das duas dimensões da vida às quais fizemos menção, estaremos de fato encontrando uma nova definição da condição humana baseada numa essência atrelada ao trabalho e à fabricação de ferramentas. Nesse movimento, preservamos não apenas o apelo do pensamento metafísico a uma essência fixa, mesmo que nesse caso ela seja colhida no processo material de reprodução da vida, que de fato não pode ser evitada, mas recusamos à ideia do novo sua pertinência filosófica. O materialismo assumido de pensadores como Marx ou o pretenso realismo dos cientistas sociais acabam prisioneiros da ideia de que a história, ou os processos sociais, possui um significado que se desvela no curso mesmo dos acontecimentos. Nesse sentido, o novo é apenas um sintoma da história, ou da estrutura, ou ainda da realidade dos homens, que se renova sempre no interior de um processo cujas variáveis são finitas.

Nesse ponto é que residem a força do pensamento de Arendt e sua importância para pensarmos o aparecimento do novo, contido em todas as mutações que experimentamos. A desqualificação da política, ou sua submissão à esfera do trabalho e da obra, é um indicativo claro da dificuldade que os homens comuns, mas também uma parte importante dos filósofos e pensadores da atualidade, encontram para lidar com o surgimento de novidades que desafiam nossa compreensão. Ora, ao remeter os acontecimentos a um esquema prévio, negando-lhes de fato o caráter de inovação e mistério, para classificá-los em uma das categorias com as quais a tradição nos ensinou a lidar com os eventos humanos, estamos afastando a contingência da história, mas não fornecendo um quadro conceitual capaz de dar conta dos problemas que surgem quando nos deparamos com uma série de eventos que não parecem caber nos quadros mentais herdados da tradiçao. Como nao é possível criar um novo arcabouço teórico a cada transformação, a única saída é voltar a pensar no significado para a condição humana de nossa capacidade de agir. O que significa agir? Qual o significado de atribuirmos a algo o caráter de novidade? Ao fazermos isso estamos supondo que a condição humana foi alterada, ou apenas reproduzindo um vocabulário do mundo do consumo, esvaziado de qualquer problema filosófico?

Esses são temas recorrentes na obra de Arendt. No quinto capítulo de A condição humana, ela aborda a questão do surgimento de novas formas de associação entre os homens, mas também de eventos que alteram o mundo dos fenômenos a partir da relação entre ação e discurso, que é parte fundamental em seu esforço para resgatar a dignidade da política em nosso tempo. Dadas nossas preocupações iniciais, interessam-nos aqui mais particularmente suas considerações a respeito da natureza das criações humanas, que transcendem tanto a esfera do trabalho quanto aquela da fabricação. Como lembra a pensadora, agir se liga diretamente à ideia de iniciar, de começar, e é desse ponto de vista que devemos abordar as mutações de nosso tempo. É claro que ao formular dessa maneira o problema estamos supondo que mutações são diferentes de simples repetições e de fato implicam uma transformação da paisagem do humano. Se assumirmos essa posição, poderemos enfrentar a objeção que pode ser feita à associação das mutações à ideia de início alegando que o que observamos hoje é um final, um término do processo da história, que a partir de agora nada mais fará do que repetir seus caminhos tornados estéreis. Essa consideração toma como correta a afirmação de que sofremos transformações radicais em nossa condição com o advento da técnica e da ciência moderna, mas aponta para um quadro no qual não há mais porta de saída.

Partindo de Arendt, podemos ver as coisas de forma diferente. Para ela, o ponto fraco daqueles que querem reduzir a condição humana a seu esforço para se reproduzir é que eles ignoram a “inevita­ bilidade com que os homens se revelam como sujeitos, como pessoas distintas e singulares, mesmo quando empenhados em alcançar um objetivo completamente material e mundano”.[23] Ou seja, o desejo de iniciar algo é inerente ao homem. A criação de coisas e relações novas não é um acidente, passível de ser atribuído às configurações específicas de uma época, mas faz parte das capacidades humanas e se atualiza a cada vez que a vida recomeça, seja pelo nascimento de um novo ser, seja pelas ações daqueles que tornam possível a transformação da paisagem do humano.

A consequência dessa capacidade humana de iniciar é que existimos no espaço de um fluxo de criações, que em seu aparecimento é totalmente imprevisível. Ora, o que chamamos de novo “sempre ocorre à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza”.[24] Por isso, é inútil especular sobre o futuro da humanidade, e mais ainda prevê-lo com base nos avanços da ciência. É certo que esses avanços farão parte da rede de relações em cujo interior existimos, mas também é certo que seus desdobramentos não podem ser previstos. O novo é sempre filho da contingência, mesmo quando acreditamos conhecer todas as variáveis de nosso tempo e suas implicações. Aceitar as teorias do fim da história, ou deixar-se tomar pelo pessimismo, não anula o fato de que nossa condição é sempre fruto de nossa liberdade, mesmo quando estamos premidos por condições objetivas tais que não parece ser possível alterar grande coisa no andar do mundo.

A contingência do novo não nos garante contra novas formas de domínio, nem implica dizer que os desastres provocados pela técnica e pela ciência serão corrigidos, fazendo com que elas voltem a ser o guia do progresso humano. Apenas nos sinaliza para uma característica de nossa condição, a natalidade, que governa nossa relação com o mundo, quando escapamos da esfera da reprodução ou da produção de ferramentas e máquinas para nos refugiarmos no universo aberto da ação e da palavra. O mundo da ação, que para Arendt é o universo do discurso, nos confronta com o fato de que nossa capacidade de criação será sempre exercida no espaço da pluralidade. Por isso, o traço mais terrível de nosso tempo talvez seja o surgimento das sociedades de massa e da solidão que as define. Para agir, é preciso estar no mundo junto com outros homens, partilhar espaço e dúvidas e aceitar diferenças. Se perdermos a capacidade de agir levando em consideração os outros, nos tornaremos a presa fácil de processos de repetição que se esgotam em si mesmos e de fato impedem o surgimento do novo.

Talvez seja exagero falar de otimismo de Arendt. Ela certamente não se reconheceria nessa forma de ver o mundo. Mas ao mostrar as raízes de nossa capacidade de começar novos tempos, ela nos fornece uma arma conceitual adequada para pensar um tempo que acredita ser produto de uma mutação, mas não encontra o sentido de sua travessia. O conceito de natalidade, sua associação com uma concepção da liberdade ligada à capacidade de agir na cena pública e não a uma qualidade metafísica de nosso ser fornecem uma armadura conceitual dentro da qual podemos abordar alguns dos problemas que levantamos, sem com isso sugerir que possamos resolvê-los de maneira definitiva. Isso se deve não apenas aos limites intrínsecos das ferramentas conceituais derivadas do pensamento de Arendt, mas, sobretudo, ao fato de que, se levarmos às últimas consequências a afirmação de que o novo é sempre contingente, que no mundo dos homens ele é o produto de sua capacidade de iniciar, de sua liberdade, e não de uma lei externa à sua condição, devemos nos confortar com a ideia de que não há como abordar os problemas de nosso tempo de um outro lugar senão aquele da angústia provocada pelo aparecimento de realidades que nos ultrapassam e ameaçam. A modéstia dos propósitos iniciais de Arendt possui, portanto, uma raiz teórica muito mais forte do que a que deixavam entrever suas belas formulações. Elas nos ajudam a escapar das formas de determinismos que se escondem em diagnósticos aparentemente sofisticados de nossa condição.

Em primeiro lugar, trata-se de deixar de lado as teorias sociais que acreditam ter encontrado um fim para a história dos homens na afirmação da vitória do modelo liberal de sociedade sobre todas as formas do passado. Acreditando deixar de lado o materialismo de pensadores do século XVIII, esses autores apontam para realizações institucionais de nosso tempo como uma forma definitiva de racionalidade. Diante disso, a política fica reduzida a uma espécie de mecânica das instituições, cujas determinações finais podem perfeitamente ser conhecidas por uma teoria adequada do real. Arendt nos ajuda a seguir em outra direção. Ao afirmar o caráter contingente do novo, ela nos mostra que o homem possui a capacidade de reinventar constantemente sua condição. Isso não quer dizer que sempre o fazemos de forma positiva e nem mesmo que continuamos a fazê-lo em todas as circunstâncias. O que ela nos ensina é que a história é fruto de uma liberdade que se exprime por meio de ações cujo produto é sempre indeterminado. Os momentos de anulação da contingência não são aqueles de maior racionalidade, mas os de esgotamento das energias humanas e de sua capacidade criativa.
A segunda forma de determinismo a qual Arendt nos ajuda a combater é aquela dos cientistas que confundem os métodos de suas ciências com uma espécie de metafísica implícita do real. Tomando como verdade a crença no desenvolvimento contínuo das ciências e de seus frutos tecnológicos, alguns acreditam que é possível daí deduzir uma teoria geral da condição humana e de sua submissão aos processos inelutáveis da natureza. Ao abandonar a tópica da natureza por aquela da condição humana, o que Arendt faz é abandonar a procura por uma essência imutável do homem para forjar sua compreensão de nossa condição a partir de conceitos como os de liberdade e de natalidade, que anulam qualquer tentativa de transformar a análise de nosso tempo em um ponto de partida para a dedução do futuro.

Essas críticas podem sugerir que nossa pensadora termine nos conduzindo a uma forma radical de pessimismo, que faria dos homens a presa de processos que ele não controla inteiramente e aos quais está submetido como a forças cegas e irracionais, cuja imagem estaria próxima daquela da deusa Fortuna dos romanos. Ora, esse não é o caminho escolhido por ela. Em primeiro lugar, ela lembra que “a razão pela qual jamais podemos prever com segurança o resultado e o fim de qualquer ação é simplesmente que a ação não tem fim”.[25] Em segundo lugar, ela aponta para características nossas que nos permitem enfrentar o caráter indeterminado de nossas ações. A primeira delas é a capacidade de perdoar, que se junta àquela de fazer promessas. Como lembra Arendt: “As duas faculdades andam juntas na medida em que uma delas – perdoar – serve para desfazer os atos do passado, cujos ‘pecados’ pendem como a espada de Dâmocles sobre cada nova geração; a outra – obrigar-se por meio de promessas – serve para criar, no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, certas ilhas de segurança, sem as quais não haveria continuidade, e menos ainda durabilidade de qualquer espécie, nas relações entre os homens.”[26]

O que Arendt nos ajuda a pensar, portanto, é o caráter humano da contingência do futuro. Se não podemos nos livrar da angústia provocada por processos, que parecem escapar ao nosso controle, é enquanto seres livres que podemos esperar enfrentar as incertezas inerentes à nossa condição. Se aceitarmos como inexorável o domínio do mundo dos homens pelos produtos da técnica e da ciência, nos condenaremos a sermos sonâmbulos em um mundo que não mais acolhe a ação como fruto de nossa capacidade de iniciar, mas como simples ruído de um ser que perdeu a possibilidade de inventar a própria história e tomou-se prisioneiro de um mundo de coisas e objetos que o expulsam da história para o tempo frio das forças naturais.

Notas

  1. ARENDT, Hannah. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. Agradeço a Fausto Brito (FACE-UFMG) pela leitura crítica e pelas sugestões, que me ajudaram a melhorar este texto. 
  2. COURTINE-DENAMY, Sylvie. HannahArendt. Paris: Belfond, 1994, p. 312. 
  3. ARENDT, Hannah. The Human Condition, p. 1. No curso do texto, retomamos algumas traduções feitas por Roberto Raposo, modificando-as, no entanto, sempre que nos pareceu necessário. 
  4. Idem, p. 5. 
  5. Idem, p. 10. 
  6. Idem, p. 11. Ver também ARENDT, Hannah. La vie de l’esprit. La pensée. Paris: PUF, 1987, vol I, p. 33. 
  7. Idem, p. 74. 
  8. Sobre esse aspecto ver: COLLIN, Françoise. “Du privé et du public”. Le Cahiers du GRIF. Paris, n. 33, p. 47-68, (1991). 
  9. Idem, p. 60. 
  10. O tema do totalitarismo perpassa toda a obra arendtiana desde seu livro As origens do totalitarismo até seus últimos escritos. Para uma visão interessante da questão, ver: AGUIAR, Odílio Alves (org.). Origens do totalitarismo. Cinquenta anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. 
  11. ARENDT, Hannah. La vie de l’esprit. La pensée, vol. I, p. 41-45. 
  12. TASSIN, Étienne. “La question de l’apparence”. ln: ABENSOUR, M. (org.). Ontologie et politique. Paris: Éditions Tierce, 1989, p. 66. 
  13. ARENDT, Hannah. La vie de l’esprit. La peruée, vol. I, p. 33. 
  14. Idem, p. 39. 
  15. Idem, p. 34, Grifo da autora. 
  16. Idem, p. 37. 
  17. Idem, p. 213. 
  18. Idem, p. 215. 
  19. Idem, p. 217. 
  20. Conservamos aqui a tradução sugerida por Adriano Correia dos termos labor, work, action. 
  21. ARENDT, Hannah. The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Prees, 1998, p. 115. 
  22. Idem, p. 124. 
  23. Idem, p. 183. 
  24. Idem, p. 177-178. 
  25. Idem, p. 233. 
  26. Idem, p. 237. 

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