A guerra ao vivo
por Jean Galard
Resumo
Ter a experiência da guerra “ao vivo” seria participar dela, sofrê-la no próprio corpo com a angústia de uma morte iminente. De modo contrário, as proposições que nos são feitas pela televisão e pela internet garantem-nos uma distância protetora. Assim, como conceber a articulação entre a imediaticidade do acontecimento visto “ao vivo” e a mediação da imagem retransmitida de longe?
Da guerra já nos foram dadas imagens em diversas circunstâncias: pela pintura histórica, pelo desenho (principalmente pelos croquis das imitações realistas), pelo teatro, pelo cinema (documentário e de ficção), pela televisão… De uma a outra dessas mídias podemos estabelecer uma gradação relativa ao “efeito do real”? Quando a imagem se refere à guerra, existirá, historicamente um progressivo abandono (e até mesmo um apagamento) da mediação representativa?
A cobertura jornalística da guerra de março-abril de 2003 no Iraque transpôs uma nova etapa na aproximação entre a experiência vivida e a reportagem ao vivo?
Se este é o caso, essa aproximação será capaz de romper o espetáculo do mundo, tornando-o psicologicamente insurportável, eticamente inadmissível e esteticamente impossível?
No âmbito de uma reflexão sobre a imagem e o espetáculo, a escolha do tema da guerra justifica-se de várias maneiras.
Em primeiro lugar, nos dias de hoje, a atenção para esse tema justifica-se por uma questão quantitativa. As guerras, há um século, têm sido grandes provedoras de imagens e, na época atual, alimentam o fluxo imenso da imprensa ilustrada, das televisões e da internet. Aqui, como sempre, a quantidade induz um efeito qualitativo. As imagens de guerra chegam-nos com uma abundância tal, passam com tamanha rapidez, substituem-se umas às outras tão rápido, que praticamente não temos mais tempo de vê-las: não dispomos mais desse “tempo da vidência e da evidência”, como o programa desse ciclo sugere, isto é, o tempo necessário para o desvelamento das ideias contidas em cada uma delas. Será que as imagens de guerra, pela abundância, tornaram-se inúteis?
Em segundo lugar, a escolha desse tema da guerra justifica-se, no contexto desse ciclo de conferências, porque a guerra sempre foi um objeto privilegiado de imagens, e até de espetáculos, bem antes da chamada sociedade do espetáculo. A representação da guerra é tão prolífica, ao longo da história da arte, que a escolha tem um aspecto bastante comum, sem dúvida, por demais banal.
O que é menos banal talvez, o que não é por demais tradicional, é o tema da guerra transmitida ao mesmo tempo por imagens e ao vivo. Poderíamos interessar-nos pela proeza técnica que isso representa. É, no entanto, mais interessante, ao que parece, examinar o efeito psicológico, o efeito político também, que o espetáculo transmitido ao vivo produz sobre os espectadores. A transmissão ao vivo não caracteriza certas imagens, não define um certo conjunto de imagens, ela determina antes certo tipo de relação entre as pessoas envolvidas pela circulação das imagens. Assim, a questão do ao vivo remete a uma frase célebre que funciona, de algum modo, como a epígrafe de nosso ciclo. No quarto parágrafo de seu livro A sociedade do espetáculo, Guy Debord escreve: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.[1]
A intenção desta conferência é evocar a relação social produzida pelo fenômeno relativamente novo da transmissão de imagens ao vivo. Mas a ideia condutora desta apresentação, parece-me, é bastante contrária à tese geral de Guy Debord. Pergunto-me se o espectador dos programas ao vivo é tratado como um espectador necessariamente passivo, tal como se diz frequentemente depois de Debord, e como um consumidor de imagens. Dizendo em poucas palavras: pergunto-me se ele não é antes chamado a constatar, pris à témoin, tomado como testemunha, no que denominamos “a guerra das imagens”. A transmissão de imagens ao vivo, em tempo de guerra, não teria grande sentido se o postulado fosse o da passividade do espectador. O pressuposto de todos os esforços empreendidos para fornecer-nos a cada dia imagens ao vivo é, talvez, não a passividade do público, mas o peso da opinião.
Eis através do que, de certa forma, me sinto justificado a intervir nessa reflexão sobre a imagem. Quando define a proposta do ciclo Muito Além do Espetáculo, Adauto Novaes vislumbra, ou sugere, um trabalho de reflexão sobre as imagens, porque, diz ele, “cada visível guarda uma dobra invisível que é preciso desvendar a cada instante e em cada movimento”. Gostaria, quanto a mim, de tentar desvendar o que a imagem faz, tanto em sua face visível como em sua dobra invisível, tentar descobrir o que as imagens fazem, na medida em que são forças e não somente objetos de contemplação passiva e consumidora.
A difusão da fotografia muito contribuiu, sem dúvida, para modificar a percepção da guerra naqueles que dela não participam. O olho fotográfico está próximo de seu objeto. Não tarda em privilegiar os detalhes, que são em geral horríveis. Tal proximidade é atualmente tão familiar que se tornou quase impossível conceber como a guerra pôde, durante tanto tempo, durante tantos séculos, em todas as partes do mundo, ser admirada, celebrada, magnificada, como se fosse o espetáculo por excelência. No entanto é verdade: todas as artes cantaram sua sublimidade, descreveram-na, puseram-na em imagens. Que o vencedor exalte sua vitória, isso se compreende. Mas é a guerra, ela própria, a batalha enquanto tal, que não cessou de constituir um belo espetáculo. A guerra é bela de se ver a tal ponto que parece existir um parentesco etimológico possível, em latim, entre a guerra (bellum) e o belo (bellus). Os viajantes franceses em estada pelo Brasil no século XVI, tais como Jean de Léry ou André Thévet, viram, diga-se de passagem, muita beleza nos combates que os índios travavam entre si. E Montaigne, segundo testemunhos que colheu, escreve: “A guerra deles é inteiramente nobre e generosa e tem tanta justificativa e beleza quanto tal doença humana pode apresentar”.[2]
Na Europa até o século XIX, apesar de Jacques Callot, apesar de Goya, poderíamos crer que se perpetuou uma verdadeira cegueira diante dos horrores da guerra. Num paradoxo, poderíamos acrescentar que hoje, ao contrário, o horror é superexposto, como se fosse preciso obter meios novos para produzir a mesma cegueira. (Mas isso, creio eu, não é senão uma boutade.)
A fotografia, de modo aparentemente inédito, deu sobre a guerra visões extraordinariamente próximas. Diminuiu as distâncias em vários sentidos. Primeiro, reduzindo a distância espacial entre o olho e o objeto de espetáculo (no extremo dessa diminuição, temos o grande plano, o close up). Em segundo lugar, ao reduzir a distância temporal entre o acontecimento e sua fixação em imagem (no limite do que, temos o instantâneo). Em terceiro lugar, ao reduzir a distância temporal entre o acontecimento e o olhar debruçado sobre sua imagem (é nesse terceiro sentido que, em última instância, temos o ao vivo).
Tomarei o “ao vivo” em um sentido amplo, incluindo essas três diferentes relações de proximidade que, de um modo ou de outro, evocam uma visão “direta” da realidade.
Para designar as imagens transmitidas ao vivo, dizemos, em francês, “en direct” — quer dizer “de modo direto”. Creio que essas expressões, “ao vivo”, “live”, “en direct”, são perfeitamente sinônimas. Há sempre, todavia, conotações diferentes entre palavras sinônimas. Nesse caso, para um ouvido francês, a expressão “guerra ao vivo” ressoa de uma maneira que não tem equivalente com o nosso “en direct”. Devo assinalar este fenômeno. “Guerra ao vivo” me parece uma expressão muito forte, comparada ao “direto”, porque evoca um combate contra o vivo mesmo, contra a vida. Ecoa como o grito horrível dos nacionalistas da Guerra da Espanha — “Viva la muerte!” —, o que não é o caso do “en direct”.
A relação direta que corresponde mais estritamente a isso que chamamos hoje de “ao vivo”, o “direct”, o “live”, é a imediatez temporal entre o acontecimento e o olhar levado a seu registro, ou seja, o que acabo de designar como a redução em seu terceiro sentido. É a abolição completa da distância de tempo entre o que se produz e a percepção que temos disso em imagem. O fenômeno é extraordinário, pois aqui uma mediação (a da imagem) coincide paradoxalmente com uma perfeita imediação (a do acontecimento visto). Pode ocorrer que momentos de guerra sejam trazidos assim, para nossas telas, no instante mesmo em que se produzem. Observamos, no entanto, que o “ao vivo” mais frequente deixa-nos em relação direta menos com os combates no momento em que acontecem do que com o correspondente de guerra ou o repórter a comentá-los. Em tempo de guerra, ou de outros acontecimentos relevantes (assassínios políticos, etc.), nós, telespectadores, estamos “ao vivo”, sobretudo, com os estúdios de televisão, com os especialistas, com os jornalistas. Não é a guerra que nos é mostrada ao vivo, é antes o ao vivo que nos é mostrado em espetáculo. A televisão ao vivo dedica sempre muito tempo a expor suas peripécias, as dificuldades que encontra para estabelecer a ligação, as proezas técnicas que desenvolve para mantê-la etc. A bem dizer, tais esforços de comunicação direta talvez não sejam muito úteis. Para o telespectador, a simultaneidade absoluta entre o acontecimento e sua transmissão não é muito importante. É menos, em todo caso, que a simultaneidade entre a transmissão e a possibilidade de assisti-la. A simultaneidade verdadeiramente importante situa-se entre a hora do telejornal e o momento de nossa própria disponibilidade para vê-lo. Uma leve demora na retransmissão nunca incomodou ninguém. Ao menos quando se trata da guerra (o caso é diferente quando se trata de acontecimentos esportivos, que não suportam nenhum adiamento em sua retransmissão).
Sobre esse tema do espetáculo ao vivo, ou seja, do ao vivo como espetáculo, existe um vídeo interessante de Gianni Motti. Foi produzido em 2003. Diz-se que ele é “sem título”. Durante uns dez minutos — ou mais, ou talvez menos, pois essa montagem é circularmente contínua — vê-se o presidente George W. Bush sentado atrás de uma mesa, preparando-se para pronunciar uma declaração televisionada. Ele não fala, olha a sua volta, expressa algumas mímicas, sorri, faz pequenos sinais com a cabeça para personagens fora do campo de visão, concentra-se (talvez esteja orando…). Ele espera a hora e o sinal para o início do programa em que ele irá intervir ao vivo. Alguém vem endireitar seus cabelos, a gola de seu paletó. Ao mesmo tempo uma voz feminina próxima, doce e tranquilamente solene explica que o presidente se prepara para dirigir-se à nação americana. “Enquanto ocorrem os primeiros bombardeios sobre o Iraque, que já duram quinze minutos”, diz calmamente a voz, “o presidente Bush vai se dirigir à nação para anunciar que a guerra contra o Iraque começou… Em alguns minutos, o presidente George W. Bush, cuja intervenção foi anunciada pelo porta-voz da Casa Branca, vai tomar a palavra para dizer que os bombardeios acabam de começar…” etc. Um retângulo colorido, na tela, mantém a palavra “live”, e um letreiro móvel na parte inferior da tela repete, em sete ou oito línguas: “Début des attaques sur l’Iraque”, “Ataque contra o Iraque começou” etc. A obra de Motti encena a espera familiar e cerimoniosa de um ao vivo futuro, que será desprovido de qualquer informação e que, portanto, não será ele próprio senão uma cruel cerimônia..
O objeto verdadeiro do “ao vivo”, em tais situações, talvez não tenha muito a ver com o espetáculo. Tem apenas o rito e a aparência do espetáculo. Não há nada a mostrar, mas é preciso estabelecer a conexão, manter o vínculo. É preciso estreitar a comunidade. No reino do “ao vivo”, o que a teoria da comunicação chama de função fática torna-se predominante: é preciso manter a ligação, repetindo “alô!”, “estamos aí”, mesmo que não se diga outra coisa. (Na verdade, se diz “estamos juntos”, “estamos unidos”.) Ao contrário, o espetáculo, como muitos já o disseram, é um processo de não-contato, de distanciamento, de separação. Por tal razão, A sociedade do espetáculo, de Debord, lembra bastante a Carta a d’Alembert sobre os espetáculos, de Rousseau. O espetáculo separa, é disso que Debord e Rousseau o acusam. Separa os espectadores e o palco, separa também o ator e sua ação. O espetáculo dissocia, aparta e isola, enquanto o “ao vivo” valoriza o contato, favorece a ligação, cria uma efervescência (evidentemente efêmera).
Em um segundo sentido, a visão direta da guerra, a visão do vivo da guerra, seria a que nos põe a morte diante dos olhos no seu instante. A morte de um soldado republicano, fotografia tirada por Robert Capa em setembro de 1936, durante a Guerra Civil espanhola, foi com frequência designada como a primeira foto mostrando de perto, in loco, no próprio instante, a morte de um combatente. O corpo é atingido, ele cai para trás, a mão direita deixa o fuzil escapar. Quando essa foto foi publicada, ninguém nunca tinha visto, dizem, uma imagem como essa. Antes, ou os soldados eram fotografados de perto, já estando, porém, mortos; ou a batalha estava em curso, mas era vista de longe. Assim, houve dúvidas a respeito do surpreendente instantâneo de Capa (talvez seja uma composição, uma cena de treinamento…), e elas duraram muito tempo, até se provar que o homem, atingido por uma bala, era Federico Borrell, morto em 5 de setembro de 1936, na batalha de Cerro Muriano. Robert Capa soube tirar o melhor partido dos progressos quanto ao equipamento profissional: ele utilizava uma pequena Leica, que não atrapalhava os movimentos. Pôs essa vantagem técnica a serviço da tomada mais voluntária (como testemunha seu famoso conselho: “Se sua foto não ficou boa, é que você não estava suficientemente perto”) e a mais arriscada (em 1954, no Vietnã, na estrada de Thaï-Binh, ele esteve tão próximo dos combates, que lá ficou para sempre). A morte de um soldado republicano é uma foto que cumpre duas das reduções citadas anteriormente, mas não a terceira. Trata-se de um plano de perto, um instantâneo, mas que não nos chega ao vivo.
Algumas observações cabem aqui. De um lado, essa foto de Capa, estritamente falando, nunca foi vista ao vivo por ninguém, nem mesmo pelo próprio Capa, que mantinha o olho por detrás do visor, e não sobre sua foto. E, no entanto, ela funcionou como um ao vivo para os contemporâneos da guerra da Espanha, ao menos para aqueles que liam os jornais. Trata-se de saber se há uma diferença importante entre ver “estritamente” ao vivo e ver “praticamente” ao vivo. De minha parte, creio que não. Pois, quando um acontecimento é apanhado ao vivo, suas imagens são repetidas incansavelmente, bem depois de o fato não ser mais exatamente ao vivo. Dois anos depois do acontecimento, as imagens do atentado contra o World Trade Center continuam sendo mostradas “praticamente” ao vivo.
Por outro lado, observemos, a imagem que representou durante muito tempo, por excelência, a foto de guerra não pertence ao capítulo dos “horrores da guerra”. O homem que cai nada tem de vítima: apresentou-se voluntariamente, escolheu seu campo, sabendo que se expunha às balas, tinha convicções, logo inimigos. Atrás dele e diante dele, o céu é imenso. O homem de Capa está em plena luz, no espaço aberto.[3] O horror da guerra ao vivo, ao contrário, começa quando o olho fotográfico encolhe seu campo, até excluir qualquer possibilidade de escape, até eliminar o horizonte. O horror fotografado data, por “nós” (nós, os europeus? nós, os ocidentais?), da Guerra de 1914-1918, porque esta foi uma grande provedora de cenas fechadas e de imagens cerradas. Nas trincheiras estreitas, os soldados, e os fotógrafos entre eles, não tinham muito mais para ver do que a lama, os cadáveres, o céu tomado. Em suma, a imagem da guerra ao vivo, nesse sentido, é aquela em que não se vê nada, não se compreende nada do que está acontecendo.
É possível pensar que haja algo de “vivo” ou de “direto” na foto dita “instantânea”, ou seja, na imagem que abole o tempo da pose, que exclui a reconstituição. Mas uma foto tirada no impacto da ação, ou seja, um instantâneo, não é forçosamente mais “impactante” que uma foto realizada a posteriori. É terrível ver a execução sumária, naquele momento, no meio da rua, de um suposto vietcongue, no dia 10 de fevereiro de 1968, pelo chefe de polícia de Saigon, numa foto de Eddie Adams. No entanto, não perturba menos, ainda que com reações diferentes, até totalmente opostas, olhar a foto tomada a posteriori por Lee Miller, em 1945, de um soldado alemão morto, nas águas de um canal, em Dachau. Na verdade, a presença de cadáveres é da mesma forma intensa, tão tragicamente próxima, tão irremediavelmente longínqua, quando Alexander Gardner fotografa um atirador morto, estendido em sua trincheira depois da batalha de Gettysburg. A distância entre o instante dessa morte e o da tomada fotográfica não nos importa verdadeiramente — pelo menos no que se refere ao impacto emocional ou estético. Por outro lado, essa distância é importante porque é nela que intervêm muitas possibilidades de manipulação.
A fotografia tirada por Alexander Gardner em 1863 é o contrário de um instantâneo. Não somente Gardner dispôs do tempo desejado para pose, como o refúgio do atirador sulista foi sem dúvida rearrumado para reforçar o efeito da foto. Os pertences do soldado estão espalhados a sua volta, seu fuzil foi cuidadosamente apoiado sobre as pedras da trincheira. Durante a Guerra de Secessão, Mathew Brady, ele também, usava o tempo que fosse necessário para retocar o terreno, quiçá até mesmo encenando, para obter imagens expressivas e sugestivas. Os fotógrafos, no século XIX, encontraram boas razões para preferir a verdade do conjunto à exatidão do detalhe, princípio que alguns operadores de cinema, no final do século, aplicaram com novos meios. Foi assim que William K L. Dickson pôde melhorar suas reportagens filmadas sobre a guerra anglo-bôer na África do Sul, em 1899. O cinema estava então em seus primórdios, o equipamento era pesado, pouco manejável. Dickson precisava às vezes realizar uma segunda tomada: pedia para os soldados e oficiais que repetissem os movimentos, ou mesmo modificassem as manobras, para filmá-los com uma luz melhor.[4]
O olhar de perto sobre a guerra não implica necessariamente uma tomada fotográfica instantânea sobre a morte — o que foi durante muito tempo impossível do ponto de vista técnico —, mas um efeito de proximidade. Eis um outro sentido que podemos conceder à ambição do ao vivo. Quando a imprensa semanal se tornou capaz, nos anos 1880, de imprimir boas ampliações fotográficas, provocou uma grande demanda pública de testemunhos visuais diretos. Um dos primeiros periódicos parisienses ilustrados por fotos, juntamente com Le Miroir e L’Illustration, intitulava-se, aliás, Sur le Vif. Mas o “ao vivo” da época não corresponde ao que o fotojornalismo de hoje e a reportagem televisiva ensinaram a considerar como tal. Para que se tivesse o sentimento de uma foto tirada “ao vivo”, era necessário e suficiente que uma imagem, trazida de longe, desse a sensação da proximidade e da familiaridade. Por isso, durante décadas, a imagem da guerra ao vivo é, sobretudo, a do soldado em repouso, seja na morte, seja em sua vida cotidiana, em ocupações nobres ou pateticamente triviais. Da Guerra da Crimeia à Guerra de 1914-1918, para um leitor da imprensa, ver a guerra de perto equivale a olhar situações corriqueiras, cenas de espera, momentos de passatempo.
Esse aspecto próximo e familiar da guerra, que se tornou um dos temas favoritos da imprensa ilustrada, opôs-se frequentemente ao caráter glorioso que a pintura conservava quanto ao domínio militar. Grande parte da pintura do final do século XIX e início do século XX soleniza a guerra, a heroiciza e idealiza, ao passo que a fotografia já começa a trazê-la para a dura realidade concreta. A invenção da fotografia estaria na origem — talvez fosse a própria causa — dessa transferência de interesse dos valores heróicos para as realidades prosaicas e vividas. A pintura permitia uma leitura épica e estética da guerra, enquanto a fotografia priorizava a emoção familiar, o contato, a participação.[5] Essa repartição dos papéis talvez não leve suficientemente em conta a prolífica produção pictural que, desde antes da expansão da fotografia de imprensa, mostrou soldados em situações ordinárias. Existe, na pintura também, um olhar de perto, que se lança sobre as cenas quotidianas tanto quanto sobre os momentos dramáticos vistos de perto, ou sobre a agonia em close.
Tenho consciência de que, com tais considerações, estou me afastando da teoria de Walter Benjamin, para quem a história das representações artísticas depende principalmente da evolução das técnicas de representação e de reprodução. Parece-me que o gosto pela verdade do traço, pela veracidade do detalhe, poderia ter-se contentado com uma certa pintura realista ou naturalista. Se esta última se tornou insuficiente, é talvez menos pela concorrência da fotografia como técnica nova que em função do pesadelo particular da Guerra de 1914-1918. O horror nesse momento tomou um rumo inédito. Os aviões, as metralhadoras, as ogivas, os gases, as trincheiras obstruindo a visão tornaram a guerra realmente inimaginável: sem comparação com as imagens passadas e, aparentemente, sem tradução possível para qualquer imagem que fosse. Alguns, como Apollinaire ou Marinetti, tentaram expressar seu êxtase diante da novidade absoluta, diante desse “fogo de artifício de aço”. Outros, como Max Beckmann, Georg Grosz, Otto Dix, Marcel Gromaire, mostraram visões alucinadas da guerra, que dificilmente seriam classificadas como pinturas militares, que tampouco entram no regime do espetáculo e que também não pretendem, claro, os efeitos do ao vivo.
Uma maneira possível de designar a transmissão direta ou ao vivo seria justamente opondo-a à intervenção da arte. Ao se comparar a pintura à fotografia, não se pode dizer que uma seja menos exata que a outra: o atoleiro das trincheiras aparece com tanta precisão nos quadros de François Flameng de 1915, quanto nas fotos de André Kertész do mesmo ano. A diferença essencial entre eles reside em outro ponto. O efeito de proximidade, ao qual o público aspirava outrora e que parece continuar esperando, pede uma caução: a autenticidade. Ora, nessa corrida ao verismo atestado, ao autêntico, a fotografia dispõe de uma vantagem imbatível, que não é nem a exatidão nem a precisão: a fotografia pode se vangloriar, no caso, de ser sem arte. Seria impossível para a pintura, fosse num quadro ou num panorama, fosse expressionista ou naturalista, renegar sua qualidade artística. A fotografia, ao contrário, tem o privilégio de ser uma arte capaz de se renegar, e até mesmo de se desdenhar. Os fotógrafos, sem dúvida, tiveram de se empenhar muito de início para que sua técnica acedesse ao estatuto estético: tiveram de “desmecanizar” sua arte, como seus predecessores das “artes mecânicas” haviam feito, de seu lado, alguns séculos antes. Uma vez adquirida essa dignidade, porém, tudo se passa como se, para muitos, o desafio fosse produzir contra isso a mais probatória denegação. Esta, sem dúvida, provém menos dos próprios fotógrafos que das agências empregadoras e, sobretudo, das publicações que utilizam seus trabalhos. Houve uma época em que o valor das fotos de imprensa era avaliado segundo a qualidade do enquadramento, da luz, do foco e da revelação. Em seguida, tornaram-se interessantes as fotos mal enquadradas, meio fora de foco (Robert Capa já sugeria que se produzisse um leve movimento), mal iluminadas, não compostas. A imperfeição técnica e estética é o sinal, até mesmo a garantia, de que as fotos não são montadas, de que foram tiradas na emergência; no meio do perigo, ao vivo.
Em seu livro de 2003, Olhando o sofrimento dos outros, Susan Sontag defende essa ideia de que o testemunho de uma atrocidade tem mais peso quando parece mais imune a qualquer intervenção artística.[6] Uma foto menos cuidada, observa, não só se beneficia de uma mais provável autenticidade, como pode chegar ao gabarito das melhores imagens, a tal ponto foram ampliados os critérios para julgar se uma foto é memorável e significativa. Uma exposição organizada na Prince Street, em Manhattan, no final de setembro de 2001, mostrou isso indiscutivelmente. Um apelo foi feito a todos, amadores e profissionais, para que trouxessem as fotos que puderam tirar do atentado contra o World Trade Center e de suas consequências. As fotos foram apresentadas anonimamente e postas à venda sem que os compradores pudessem saber se adquiriam a obra de um fotógrafo famoso ou a foto de um desconhecido. A exposição Here Is New York tinha como subtítulo A Democracia dos Fotógrafos, sugerindo que fotos de amadores podiam ser “tão boas” quanto as de fotógrafos experientes. “E, de fato, era o caso”, comenta Susan Sontag… Em que registro de avaliação estamos aqui? O que é uma “boa” foto quando se trata de testemunhar uma catástrofe? Em que medida, no conjunto das imagens do desastre, uma foto pode figurar entre “as melhores”? Como se pode considerar uma foto “boa”, se nada ficou do antigo critério de avaliação estética?
Susan Sontag não ressalta essa estranheza, ou a deixa implicitamente em suspenso. A questão permanece em aberto.
Na competição que travam entre si as fotos mais atrozes, deveria haver várias premiações de ouro. As imagens de horror não concorrem todas na mesma categoria.
O grande prêmio do ao vivo, sem sombra de dúvida, só pode ser disputado pelas imagens de televisão. É preciso olhar a tela no momento certo, quando o acontecimento está se desenrolando, por exemplo, no instante em que o avião atinge a segunda torre do World Trade Center. Durante a campanha de 2003 no Iraque, podiam-se ver jornalistas de televisão entrevistando um ferido durante seu traslado de maca e, em seguida, emprestando-lhe um telefone para que ele pudesse falar (ao vivo, por definição) com seus parentes nos Estados Unidos.
Outras imagens talvez dêem um sentimento mais intenso de participação no perigo. Na cidade de Basra em guerra, um soldado munido de equipamento pesado desloca-se, com a arma apontada para um inimigo invisível. Na esquina de uma rua, ele cruza com civis, cuja presença nesse lugar nos surpreende. Essas pessoas, menos amedrontadas do que curiosas, parecem inúteis e deslocadas no meio da batalha, substitutas involuntárias das testemunhas que somos nós, os telespectadores, que ficamos em casa.
Na categoria especial de imagens que dão a mais viva impressão de proximidade, é provável que a fotografia de Don McCullin tirada em Hué em 1968 venha em primeiro lugar. Um soldado vietnamita do norte jaz no chão, morto, com os olhos abertos. Perto dele, vários objetos estão em desordem, que poderíamos crer terem sido artificialmente espalhados, como na foto do atirador sulista de Gettysburg realizada um século antes por Alexander Gardner; mas, dessa vez, diz a legenda, foram ladrões que desarrumaram o lugar. Um saco de munições esvaziado pela metade. Balas de metal brilhante, em primeiro plano, em cima de fotos pessoais. Uma delas mostra o rosto de uma menina, ou moça. O efeito intenso de proximidade que experimenta o espectador não se deve obviamente apenas ao fato de que, como Gardner em sua época, o fotógrafo aproximou-se de seu assunto. Deve-se antes à admirável composição dessa imagem, ao olhar que a menina parece nos dirigir, à posição dos braços do rapaz, à relação entre os dois rostos, ao contraste entre os olhos apagados de um e o olhar cheio de vida (ainda que duplamente fotografado) do outro, à intimidade dos dois jovens, ofertada ao mesmo tempo em que abolida.
A classe pletórica das imagens difíceis enriquece-se especialmente com as fotografias de vítimas: vítimas das guerras e da fome que resulta das guerras. É o abominável inventário dos cadáveres alinhados nos pátios, guardados em necrotérios improvisados, dos corpos calcinados, das carcaças humanas emergindo dos ossuários. “Algumas imagens podem chocar”, previnem as televisões. “Atenção, fotografia difícil”, anuncia a imprensa eletrônica.
Seriam tais imagens difíceis ou impossíveis, necessárias ou ignóbeis, inadmissíveis ou imperativas?
De que servem tais imagens? As coletâneas de fotografias de guerras, os álbuns e catálogos de exposições começam geralmente por evocar escrúpulos que os fotógrafos acharam no exercício de sua profissão e expõem as razões que encontraram para enfrentar.
O fotojornalista esteve in loco, entre as populações martirizadas. Fez seu trabalho, que consiste em colher imagens de ruínas, de crianças esfomeadas, de refugiados em marcha, de corpos mutilados. Cumpriu sua missão: informar, fazer saber, testemunhar. Arriscou a vida. Viveu o inferno. Mas uma repartição dos papéis e uma distinção dos temperamentos impõem-se rapidamente. O profissional da reportagem relâmpago envia para sua agência imagens da atualidade mais quente. Encontrava-se lá antes dos concorrentes, retornou antes de todo o mundo. Pula de uma guerra para outra, de um helicóptero para outro. Alguns fotógrafos, ao contrário, decidem não ter pressa (Sebastião Salgado, James Nachtwey). Pouco a pouco, são aceitos pelas populações. Permanecem por longo período entre elas. Aprendem a compartilhar as emoções das pessoas. Mostram o desamparo dos seres humanos, sua vulnerabilidade, sua solidão, seu sofrimento, sua dignidade.
A concorrência das reportagens televisivas favoreceu a primeira atitude, a maneira rápida. O método lento convém antes às revistas e ainda aos álbuns, às exposições. Livre para se expressar à vontade, o fotógrafo escrupuloso descreve suas intenções, suas dúvidas, suas provações íntimas. Não revela apenas suas fotos, mas também as razões que o levaram a mostrá-las. Diz de sua ira, da raiva que experimenta diante do imenso desamparo humano. Quis publicar seu testemunho na intenção de mudar o mundo. Fotografar o horror não tem sentido, se não for para contribuir para seu fim. As fotos são portadoras de um ensinamento para o futuro. São feitas a fim de que coisas semelhantes não aconteçam mais…
Esse é o discurso principal. Mas o horror está em toda parte, o escândalo ressurge de toda parte. O testemunho não tem peso, é sem efeito. Ao mesmo tempo que tem dúvidas quanto à influência de seu trabalho, o fotógrafo confessa o tormento que tem em exercer seu ofício, ou em tê-lo exercido. Relata que esteve a ponto de abandoná-lo. Quis deixar tudo de vez. Ter exercido tal profissão foi a vergonha de sua vida (Don McCullin). Incessantemente confrontado à monstruosidade, ao horror humano, vive com um sentimento constante de impotência. Interroga-se sobre o que faz.
E é verdade que o espectador, ele também, pode perguntar-se sobre o que o fotógrafo fazia ali (e o que ele próprio está a fazer ao olhar tais fotos). A divulgação de fotografias trágicas e revoltantes pode parecer hoje não ter influência nenhuma. “Quem acredita ainda que a guerra possa ser abolida? Ninguém, nem mesmo os pacifistas”, escreve Susan Sontag.[7] Opor-se à guerra, acrescenta, no entanto, Sontag, não era uma coisa tão fútil ou ingênua nos anos 1930. Fotos de paisagens devastadas, de cidades aniquiladas, de cemitérios, de combatentes desfigurados — as que Ernst Friedrich publicou em 1924 sob o título de Guerra à guerra — puderam contrabalançar com eficácia a ideologia militarista. Tiveram a função de uma “terapia de choque”. Por um lado, o número de fotos que chocam cresceu consideravelmente, seu efeito pôde se amainar com o tempo, o fluxo das imagens televisivas anestesiou nossos sentimentos. Sobretudo, e esse é o argumento de Susan Sontag, a foto de uma cena de horror corre o risco de não significar nada além de um horror generalizado da guerra, o que equivale a descartar a história singular do país em que ocorreu, a levar ao desinteresse por ele, a não se ver ali senão a guerra genérica, o escândalo eterno, ou seja, na verdade, a não se ver nada. Sebastião Salgado torna-se aqui um alvo privilegiado. Suas fotos, em especial as de Êxodos, mostram pessoas marcadas pela mais diversa infelicidade, em diferentes países, por razões que não são as mesmas. Ora, o trabalho do fotógrafo resulta numa apresentação global de todo esse desamparo humano. Diante de sofrimentos tão extensos, tão amplamente espalhados pelo mundo, não se vê muito bem que intervenção política precisa viria a modificar o que quer que seja. A imensidão da miséria terrestre não pode ser dada em espetáculo, sem suscitar um imenso sentimento de impotência. Ao examinar de perto as críticas feitas a Salgado, corre-se o risco de perder a esperança de que outros fotógrafos saibam fazer melhor. Ele peca, por exemplo, por não indicar, na legenda, o nome das pessoas que fotografa. Mas quem o poderia fazer? Suas fotos, carregadas de uma impotência emblemática e alegórica, são desprovidas de função explicativa. Mas que fotografia poderia explicar o que mostra? Fixa por definição, suspende o tempo; como poderia a foto incluir a duração necessária ao comentário e à compreensão?
É possível que a publicação de certas fotografias tenha agido sobre o curso da história. Supõe-se que isso tenha ocorrido na Guerra do Vietnã, cujo final teria sido apressado pela difusão de fotografias de situações insustentáveis (por exemplo, a foto, feita por Nick Ut em 1972, de uma menina correndo nua numa estrada após um bombardeio com napalm). E verificou-se que muitas fotos ocuparam um lugar importante no arsenal bélico (a da morte do pequeno Mohamad Al Dura, em Gaza, em setembro de 2000; a do linchamento de dois soldados israelenses em Ramallah alguns dias depois).
Mas, geralmente, as imagens mais terríveis não revelam nada além do que já sabemos, ou que se supõe que saibamos. São editadas, reiteradas, expostas, quando os acontecimentos de que testemunham já ocorreram, quando o horror já se consumou. É tarde demais para mobilizar-se contra esse massacre, tal êxodo já cessou, a guerra acabou. Nada podemos fazer, a não ser nos surpreender pelo fato de que alguém, no auge da tragédia, no momento exato, in loco, escolhera esse gesto: pegar a máquina, multiplicar as tomadas, tirar fotos. A estranheza dessa postura foi amplamente comentada. “A não-assistência a pessoas em perigo é um correlato frequentemente inevitável do ato fotográfico.”[8] Fotografar é por essência um ato de não-intervenção. “Como o voyeurismo erótico, trata-se de uma maneira de encorajar, ao menos tacitamente, por vezes abertamente, aquilo que acontece a continuar acontecendo.”[9] Tais observações são ao mesmo tempo injustas e inevitáveis. É evidente que Eddie Adams, no dia 12 de fevereiro de 1968, não podia impedir que o chefe de polícia de Saigon executasse no meio da rua o suposto vietcongue. Existe, apesar de tudo, um certo mal-estar quando se observa que a divisa do fotógrafo, profissionalmente ocupado com seu trabalho, em quaisquer circunstâncias, poderia ser “faça como se eu não estivesse aqui”, e que seu gesto mais corajoso, quando a vergonha é forte demais, não significa nada além de “continue sem mim”.
Ressalta-se logo que esse “mal-estar”, todavia, deve ser examinado mais de perto. Pois, na verdade, o que nos causa “mal-estar” é que o fotógrafo, cujo ato foi olhar e deixar acontecer, se encontra no mesmo espaço que a cena a que ele assiste. Nós, ao contrário, espectadores da foto, não estamos no mesmo espaço. Mas que distância é necessária para não se estar mais no mesmo espaço? Que distância exatamente, ou que distância mais ou menos? O que é um mesmo espaço? Até onde se estendem seus contornos e suas fronteiras? E o que é, muito especialmente nos dias de hoje, estar num mesmo espaço, ou estar em um outro espaço? Uma foto de Daoud serviu de emblema para a “guerra das imagens” que israelenses e palestinos travaram entre si, em outubro de 2000, com fotos de acontecimentos particularmente cruéis (a morte do pequeno Mohamad, o linchamento dos dois soldados): um homem jovem, visto de costas, lança uma pedra por cima de um muro, embaixo do qual, de nosso lado (e do seu), está enfileirado um grupo numeroso de fotógrafos em ação. Esse combatente isolado, sem armas, e os repórteres zelosos, que trabalham para “nós”, estariam eles no mesmo espaço ou em espaços diferentes? Uma foto de David Silverman torna talvez a questão ainda mais sensível, porque a proximidade, neste caso, fica mais estreita fisicamente, enquanto a distância é maior psicologicamente, pelo aspecto estético da fotografia (que o combatente não pode perceber).
A pergunta que se põe a respeito da extensão, possível ou necessária, do que se pode compreender como um mesmo espaço, essa questão também se traduz, evidentemente, em termos iguais ou análogos, no que diz respeito à extensão necessária para que haja um mesmo tempo. O que é estar no mesmo momento, na mesma época, no mesmo instante? Do que somos contemporâneos? Quanto tempo permanecemos contemporâneos do que acontece?
Realizar uma foto com todo o cuidado requerido, em uma situação de atualidade quentíssima e a despeito da repugnância que se experimenta em fazê-la, é decidir fixar um instante que nos traz o sentimento de que ele deve ser conservado a todo custo. Essa é a justificação do ato fotográfico. É preciso captar esse momento, que vai desaparecer, opor-se a que ele deslize no passado e talvez no esquecimento. “Faço imagens para fixar esse presente que tenho dificuldade em viver” (Raymond Depardon). Fotografar uma cena horrível é tentar torná-la inesquecível, fazer de modo que o horror sofrido seja conhecido e que o horror cometido seja indelével. O ato fotográfico parece frequentemente levar a indecência a seu cúmulo, quando, por exemplo, a máquina entra na casa das pessoas, é clicada em meio aos restos de uma carnificina, demora-se sob o olhar de infelizes sobreviventes. James Nachtwey chocou muita gente não só pelas fotos de atrocidades, mas também pela maneira pela qual é visto tirando-as, no filme que Christian Frei dedicou-lhe em 2001: diante do rosto de uma mulher que gritava sua dor na chegada de um caixão, o fotojornalista mede sua luminosidade antes de começar uma interminável série de tomadas. Mas, como Nachtwey explica, ele próprio, nesse filme, com uma calma gravidade, as pessoas que ele fotografa conhecem-no bem, aceitaram sua presença, até quiseram que ele estivesse ali. Pediram-lhe que mostrasse ao mundo o que acontecia com elas. Ora, alguns o admitem, esses testemunhos se perderiam na indiferença geral se ” certa beleza” não se ligasse a eles. Os fotógrafos da agência Magnum foram criticados por desenvolverem uma estética da violência, reconhece Michael Ignatieff,”mas aqui se trata sem dúvida de parte de sua tarefa: imprimir certa beleza ao horror a fim de que ele se torne inesquecível”.[10] A beleza, ousemos chamá-la assim, é a condição de sobrevivência daquilo que não deve se perder na desatenção, na amnésia, em seguida, na mentira. Sebastião Salgado diz com frequência: não quer que suas imagens sejam miserabilistas, que suscitem a compaixão; as faz para nos forçar a olhar. Se, de quebra, são belas, terão alguma chance de ser intensamente rememoradas.
Muitos desses fotógrafos, cujo trabalho é de fato memorável, declaram-se antes “concernidos” por seus objetos, ou “implicados” nas situações que vivem, do que “engajados” numa causa. Nachtwey sempre tentou “tomar partido das vítimas”, mas “sem engajamento político em favor de um ou outro campo” e até, acrescenta às vezes, “sem consideração ideológica”. Essa tradição, já longa, da expressão pessoal no âmbito do fotojornalismo inscreve-se em falso não somente contra o tema do engajamento, mas também diante da quimera contrária da objetividade. O fotógrafo concernido não cede nem diante da militância política nem diante da afetação de neutralidade. Afirma seu olhar sobre o mundo. Em vez de veicular a informação bruta, o que as televisões sabem fazer cada vez mais rápido, se não cada vez melhor, assume seu ponto de vista subjetivo, toma o tempo de firmar sua posição de autor.
Equivale a dizer que ele se torna artista. O ato fotográfico é um ato interpretativo. “As fotografias são uma interpretação do mundo, no mesmo título que os quadros e os desenhos” (Susan Sontag). Uma foto de guerra, se é uma interpretação do que mostra, é um ato criador. “A foto que funciona melhor é a que contém mais ambiguidade, a que oferece o máximo de possibilidades de interpretação”, diz Gilles Peress, numa fórmula perfeitamente conforme à definição que o romantismo alemão deu da obra de arte.
Com uma concepção tão deliberadamente artística e estética da fotografia, encontramo-nos no oposto do ideal de uma transmissão direta, “ao vivo”, da realidade. Estamos no regime do retransmitido, da demora. Esta, finalmente, não seria a função mais honesta da fotografia? As imagens não testemunham. Valem pela emoção que provocam, como obras. Não valem como provas.
Finalmente, existiria um efeito específico da imagem transmitida ao vivo? Sim, evidentemente, pois a transmissão de certas imagens exige a mesma rapidez e a mesma precisão cronológica que a utilização de certas armas. De fato, muitas imagens são armas. Não são provas, são armas. Isso ficou evidente no caso do atentado contra o World Trade Center: as imagens não foram a cópia, a dobra do evento; fizeram parte do evento. De maneira geral, a imagem ao vivo é o instrumento de uma guerra em curso. Logo, ela pede um uso imediato. Por exemplo, a queda da grande estátua de Saddam Hussein, no dia 9 de abril de 2003, na praça Firdos, no centro de Bagdá, foi encenada, sabe-se agora, pelas forças americanas que abateram, na verdade, a estátua com um blindado. Mas essa imagem estratégica só tinha utilidade, é óbvio, se aparecesse no momento exato do acontecimento, como a realidade do movimento espontâneo da população iraquiana. Pode-se dizer o mesmo da encenação do salvamento do soldado Jessica Lynch, no dia 1° de abril de 2003: essa encenação, que foi revelada posteriormente, só teria interesse se fosse imediatamente veiculada. De fato, foi transmitida ao vivo, apesar de falsa.
Quais são os destinatários desse tipo de imagens? O adversário, que se trata de intimidar, sem dúvida. Mas também, ou sobretudo, a opinião pública nacional e, às vezes, internacional. O cuidado que se toma com relação a isso mostra o peso que lhe é atribuído. E, com efeito, a opinião pública não é inteiramente desprovida de influência: em parte, coincide com o eleitorado. Há, pois, uma boa razão aparente para concordar com que essas imagens nos cheguem ao vivo: dão-nos a possibilidade (se esse “nós” existir) de reagir a tempo, de nos manifestar, se ainda estiver em tempo. A circulação das imagens, todavia, é passível de dúvida; ela é suspeita demais de manipulação para que possamos, em sã consciência, contentar-nos com elas. Além das manipulações intencionalmente enganadoras, a imagem sempre opera um recorte no espaço (e é, cada vez mais, o espaço das vítimas, despertando a compaixão: outrora, se dava o espetáculo do inimigo vencido; hoje, cada um exibe seus mortos e feridos para provocar ou manter a indignação mundial). Fora dessa superfície recortada, estende-se o que chamamos de “fora-do-campo” (hors-champ). Trata-se da ampla zona de invisibilidade na qual se mantêm os fatores decisivos e os atores principais. A conjunção de diversos meios é necessária, entre os quais a linguagem, essencialmente, a fim de estabelecer alguma continuidade entre as imagens, a fim de preencher o intervalo, a lacuna, da interimagem. Teríamos de ser vivos o bastante, de estar prontos o bastante (ou seja, informados de antemão), para compreender esse intervalo com uma rapidez comparável à velocidade que caracteriza a própria imagem quando ela nos é transmitida ao vivo.
Notas
[1] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997), p. 14.
[2] Jean de Léry, Histoire d’un voyage en terre de Brésil. Na edição comentada que publicou do livro de Léry (Paris: Le Livre de Poche, Bibliothèque Classique, 1994), Frank Lestringant lembra que, no século XVI, a beleza da guerra indígena é celebrada não somente por Léry, mas também por Thévet e Montaigne (p. 351, nota 1). A respeito da questão etimológica, remete para Georges Pinault, “Bellum: la guerre et la beauté”, em De Virgile à Jacob Balde. Hommage à André Thill, boletim da Faculdade de Letras de Mulhouse XV Mulhouse, 1987, pp. 151-156.
[3] A respeito dessa fotografia de Capa, ver a bela análise (ele prefere dizer “exercício do olhar”) de Régis Debray, em L´oeil naïf (Paris: Le Seuil, 1994), pp. 146-153.
[4] William K. L. Dickson, The Biograph in Battle, its Story in the South African War, apud Hélène Puiseux, Les figures de la guerre, représentations et sensibilités, 1839-1996 (Paris: Gallimard, 1997), pp _ 179-180.
[5] Hélène Puiseux, Les figures de la guerre, représentations et sensibilités, 1839-1996, cit. Ver, em particular, pp. 81-91, 136-137.
[6] Susan Sontag, Regarding the Pain of Others (Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2003). Ver, em particular, pp. 26-28. Ed. portuguesa: Olhando o sofrimento dos outros (Lisboa: Gótica, 2003).
[7] Susan Sontag, Regarding the Pain of Others, cit., p. 5. Ver também pp. 9-10, 14-15, 78-79.
[8] Serge Daney, Le salaire du zappeur (Paris: POL, 1993), p. 83.
[9] Susan Sontag, On Photography (Nova York: Farrar, Strauss and Giroux, 1973). Ed. francesa Sur Ia photographie, trad. Philippe Blanchard (Paris: Christian Bourgois, 1993), pp. 25-26.
[10] Michael Ignatieff, Magnum (Paris: Phaidon, 2000), p. 56.