1987

A inveja

por Renato Mezan

Resumo

A inveja é dificilmente confessada, salvo quando exprime admiração. Mas admiração e inveja são afetos diferentes. Na inveja há uma complexidade também difícil de deslindar. Num conto intitulado “A legião estrangeira” (em Felicidade clandestina), Clarice Lispector descreve uma menina, Ofélia, invejosa de um pintinho que a narradora possui. O movimento rápido e involuntário de seus olhos parecia querer se apropriar de “tudo”. Na teoria psicanalítica, a inveja (termo que vem do latim “vedere”, ver) mistura tendências antagônicas inconscientes de desejo e inibição, impulso e defesa. O invejoso quer o que o outro possui, mas privar o outro da alegria é mais decisivo que obter a posse da coisa invejada. Assim ele inveja com ódio e tristeza (como já haviam observado Tomás de Aquino e Espinosa). Isso se deve a uma idealização que é narcísica e destrutiva ao mesmo tempo. Narcísica porque o invejoso não quer ter carências; destrutiva porque esse desejo é frustrado, não elimina a angústia. A ideia freudiana de “inveja do pênis” (expressão que se presta a muitos mal-entendidos) exprime no fundo a impossibilidade de reinteriorizar algo que é projetado-idealizado pelas nossas fantasias narcísicas. Se tais fantasias se realizassem, o próprio ego desapareceria. Daí a função defensiva e tenaz da inveja, que é sempre inveja do impossível. E Ovídio já dizia, em suas Metamorfoses, que a inveja “dilacera a si mesma ao dilacerar os outros”, assim como Clarice diz que Ofélia sentia “a mordida de uma dor secreta”.


A inveja não goza de boa reputação. Contrariamente a outras emoções estudadas neste curso, como o medo, o amor, a esperança ou até o ciúme, a inveja é dificilmente confessada, e, quando o é, costuma vir acompanhada do qualificativo “saudável”. Nesse caso, o termo conota mais o desejo de se igualar a um outro, a quem se admira por este ou aquele motivo. Apesar das aparências, a admiração e a inveja não pertencem à mesma categoria de afetos, e o psicanalista discerne, na tentativa de apresentá-las como se fossem irmãs gêmeas, um movimento de defesa contra a vergonha que sempre acompanha a menção pública de tal sentimento: é um compromisso trôpego o que sustenta a ideia de uma “inveja saudável”. Mas por que surge esta vergonha? O que é, afinal, a inveja? E através de quais critérios podemos distingui-la de emoções análogas, como a cobiça, a admiração, o querer — isto se forem, de fato, emoções análogas?

OFÉLIA E O PINTO

Num de seus contos, intitulado “A legião estrangeira”, Clarice Lispector descreve o nascimento da inveja numa menina, Ofélia. A narradora foi à feira e de lá trouxe um pintinho; a garota, vizinha dela, vem visitá-la, senta-se e ouve o piar do pinto na cozinha. Depois de um rápido diálogo, no qual a narradora diz que aquele ruído é de um pinto piando, lemos o seguinte:

Do instante em que involuntariamente sua boca estremecendo quase pensara “eu também quero”, deste instante a escuridão se adensara no fundo dos olhos num desejo retrátil que, se tocasse, mais se fecharia como uma folha de dormideira. E que recuara diante do impossível, o impossível que se aproximara e, em tentação, fora quase dela: o escuro dos olhos vacilou como um ouro. Uma astúcia passou-lhe então pelo rosto — se eu não estivesse ali, por astúcia, ela roubaria qualquer coisa. Nos olhos que pestanejaram a dissimulada sagacidade, nos olhos a grande tendência à rapina. Olhou-me rápida, e era a inveja, você tem tudo, e a censura, porque não somos a mesma e eu terei um pinto, e a cobiça — ela me queria para ela. Devagar fui me reclinando no espaldar da cadeira, sua inveja que desnudava minha pobreza e deixava minha pobreza pensativa; não estivesse eu ali, e ela roubava minha pobreza também; ela queria tudo.[1]

Se prestarmos atenção a este texto, veremos que a descrição de Clarice faz surgir com notável acuidade os principais aspectos da inveja:

1) “do instante em que, involuntariamente…” — a inveja nasce em Ofélia sem que ela se dê conta, por assim dizer contra a sua vontade. O sentimento dela se apodera subitamente, e se traduz por certas modificações no corpo: a boca que estremece, os olhos que brilham e pestanejam, a sombra que passa pelo rosto. São indícios da intensidade com que a inveja a acomete;

2) “quase pensara…” — o “quase” se repete mais adiante, no “impossível que quase fora dela”; indica que o movimento inicial foi contra-arrestado por um outro, do qual nada sabemos por enquanto, a não ser que conseguiu deter o primeiro antes que este se completasse: houve portanto um conflito cuja resultante são os indícios corporais, que tampouco chegam a se traduzir num movimento completo ou numa fala. O quase sugere, além disso, um certo intervalo, uma distância que não chegou a se fechar entre a menina e a narradora. Outro signo desta situação nos é indicado na frase “porque não somos a mesma”;

3) “eu também quero” — o querer introduz a dimensão do desejo, que, como veremos, está associada à inveja; mas a arte de Clarice deixa o verbo sem complemento: não sabemos o que a menina “também” quer. Aliás, por que também? A narradora não queria nada, pelo menos até este ponto da história! Convém deixar em aberto esta questão; assinalemos apenas que, mais adiante, o querer reaparece, no “desejo retrátil” que se fecharia sobre “qualquer coisa”, esta “qualquer coisa” que a menina roubaria se a narradora não estivesse por ali. Roubaria, isto é, se apoderaria do “qualquer coisa” sem o consentimento da narradora: aqui encontramos outro componente da inveja, a intenção de privar alguém de algo que possui. Este aspecto é enfatizado no final do texto: “ela roubaria minha pobreza também”. E voltamos ao querer: “ela queria tudo”. Tal querer é perfeitamente indeterminado, visto que poderia ser satisfeito por qualquer coisa; e por outro lado é insaciável, já que somente se contentaria com “tudo”;

4) ‘‘a escuridão se adensara no fundo dos olhos…” — o tema dos olhos retorna várias vezes, e de modo muito peculiar: neles aparece a grande “tendência à rapina” (próxima do roubo e acentuando o fator agressivo presente neste último); neles se vislumbra a “dissimulada sagacidade”, ou seja, algo próximo da astúcia evocada anteriormente e que se necessita apresentar de forma encoberta; “olhou-me rápida…”, a rapidez fazendo eco àquele “involuntariamente”, “e era a inveja”: ela aparece precisamente através do olhar. Esta associação com os olhos está presente na própria etimologia da palavra “inveja”, que provém do latim invidia, formada a partir do radical ved-, que encontramos em vedére. Uma outra menção literária do laço entre o olhar e a inveja nos é oferecida por Dante Alighieri no Canto XIII do Purgatório: os invejosos são punidos com uma “orribile costura”, pela qual um fio de arame une suas pálpebras, impedindo-os de ver e castigando-lhes o mesmo órgão através do qual pecaram quando vivos.[2] A constância dessa associação nos parece por enquanto apenas curiosa; mais adiante, tentaremos ver se ela não exprime uma característica essencial do afeto invejoso.

Esta análise sumária do trecho de Clarice desvenda assim vários elementos cuja conexão, convenhamos, não é das mais evidentes. Recapitulemos: a inveja tem parentesco com o desejo, a agressividade, a astúcia e a sagacidade, o roubo e a rapina; há algo nela que tem a ver com os olhos; seu objeto é indeterminado, variando do “qualquer coisa” ao “tudo”; ela não é um sentimento simples, mas envolve algo como uma oscilação entre a distância e a coincidência, bem como fatores ligados à intensidade, à rapidez, ao involuntário; remete a um certo conflito, do qual resulta essa impressão de movimento esboçado e inconcluso. Qual pode ser o nexo entre estes diferentes aspectos, e por que são eles e não quaisquer outros que se apresentam quando tentamos precisar a natureza da inveja?

UM POUCO DE METAPSICOLOGIA

Para buscar resposta a estas questões, pode ser útil tomar as coisas por um outro ângulo. Com a ideia de um conflito entre tendências psíquicas, o psicanalista se sente em casa: é com efeito um dos princípios essenciais de sua disciplina o considerar que aquilo que ocorre na alma humana é passível de uma análise, isto é, de uma decomposição em fatores que interagem uns sobre os outros, produzindo os diferentes conteúdos e movimentos de que se constitui nosso funcionamento psíquico. Estes fatores tomam, na teoria psicanalítica, precisamente a forma de tendências antagônicas, e de sua mistura, combinação e inibição recíproca nascem as ideias, sentimentos e vivências que nos animam. Boa parte destas “operações” são inconscientes, e só temos notícia delas pelos efeitos que provocam; elas devem portanto ser inferidas desses efeitos, guardando com elas alguma proporcionalidade. Como é de se esperar, as tendências em questão não operam sempre na mesma direção, sendo mais frequentes os casos em que se verifica o contrário: de onde a ideia de que vivemos permanentemente habitados por um ou vários conflitos, resultantes dessa oposição entre tendências; e que procuramos negociar internamente tais conflitos obedecendo ao princípio que governa o funcionamento psíquico do ser humano: o princípio que ordena evitar o desprazer.

Se tentamos precisar o que se oculta através da palavra neutra “tendências”, o que surge é um conflito entre duas modalidades de “entidades” psíquicas: os impulsos e as defesas. Estas são também impulsos, que visam controlar ou suprimir o efeito dos primeiros; Freud tentou, em várias oportunidades, caracterizar o jogo dos impulsos e das defesas, através de diferentes conceitualizações que não nos interessam aqui e que resultaram no conceito de pulsão. O conflito último seria travado entre duas espécies de pulsões, espécies estas que se deixam representar e simbolizar em diferentes níveis. Uma destas pulsões, na obra de Freud, é sempre a sexualidade; sua antagonista varia ao longo dos textos. O importante aqui é perceber que a inveja se situa em algum ponto deste trajeto que vai do conflito pulsional último até aquilo que Clarice descreve em seu conto: os pensamentos que atravessam a mente da menina, os movimentos corporais, o jogo das emoções contrastadas mencionadas há pouco. Um sentimento como a inveja parece propício para mobilizar diferentes aspectos e níveis desse conflito, inclusive porque ela própria é parte integrante do conflito, como entrevimos ao falar brevemente do “quase”.

Essa espécie de mecânica da alma recebe o nome de metapsicologia, e o que procuraremos fazer na sequência destas reflexões é exatamente propor uma metapsicologia da inveja. Isso significa, antes de mais nada, situá-la numa das vertentes do conflito: em outras palavras, será a inveja um impulso ou uma defesa? À primeira vista, caberia incluí-la entre os impulsos ou, pelo menos, concebê-la como resultado de um jogo de impulsos: não dissemos que ela tem relações com o desejo, com a agressividade (roubo, rapina), com o involuntário? Decerto há um aspecto da inveja que se vincula aos impulsos, e podemos mesmo discernir a qualidade desse impulso: “eu também quero”, diz Ofélia. Trata-se, evidentemente, do desejo de se apropriar de algo, mas justamente este “algo” não é nada claro. Na história de Clarice, o “algo” é primeiramente um pinto; mas o que impede Ofélia de pedir à sua mãe que lhe compre um pinto igual ao que está piando na cozinha da narradora? Se a inveja se limitasse ao “também quero”, ela não se distinguiria do desejo; mas intuitivamente percebemos que não é assim. Não é qualquer pinto, qualquer outro pinto, que aplacaria a tempestade emocional que se apodera da menina. Isto nos é dito pela narradora: “ela roubaria qualquer coisa”, “ela queria tudo”, e também: “você tem tudo”. Estaríamos mais próximos da verdade se disséssemos que a personagem do conto não quer um pinto, mas este pinto; o que suscita a inveja é o pinto comprado pela narradora, e não um pinto indeterminado. Este ponto me parece fundamental, por dois motivos.

Em primeiro lugar, este pinto já tem dono; não é possível que pertença simultaneamente à menina e aos filhos da narradora. Isto explica por que é necessário que surjam as ideias de roubo e de rapina: aquilo que é invejado é invariavelmente algo que já pertence a outrem e cuja falta em mim percebo súbita e dolorosamente. O passo seguinte é cobiçar a posse deste “algo”, para o que, é óbvio, se necessita privar o outro do objeto em questão. O essencial da inveja é exatamente isto: arrebatar do outro a coisa invejada importa mais do que procurar obter a posse de um objeto análogo (o que estaria mais próximo da admiração). O caso do pinto é excelente para ilustrar esta faceta da inveja, já que existem inúmeros outros que poderiam perfeitamente satisfazer o desejo da menina de “ter um pintinho”. Mas, na lógica invejosa, tal asserção não é verdadeira: não existe “objeto análogo”, o que há é um objeto único, aquele que o outro tem e cuja ausência me faz sofrer. É o que nos diz Dante Alighieri, ao nos apresentar Guido del Duca, no canto XIV do Purgatório:

fu il sangue mio d’invidia si riarso

che se veduto avesse uom farsi lieto

visto m’avresti di livore sparso.

O gente umana, perché poni ‘l core

là ’v’è mestier di consorte divieto? (82-7)

Reparem que estes dois aspectos da inveja caminham sempre juntos. “Oh gente humana, por que pões o coração em bens aos quais é impossível fruir em companhia de outrem?” A resposta é simples: porque o bem em questão é sempre imaginado como único em seu gênero, portanto incompartilhável: se é do outro, não pode ser meu, e, se não é meu, é porque pertence a outro, o que não deveria acontecer. E isto não vale apenas para os bens materais, de que existem muitos exemplares: o invejoso do Purgatório diz a Dante que seu sangue fora de tal modo consumido pela inveja que lhe bastaria ver um homem se alegrar para que seu rosto se cobrisse de palidez. Aqui emerge com clareza o aspecto da inveja que a aparenta ao ódio: o que é insuportável para Guido é a alegria do outro, e lhe é mais necessário acabar com essa alegria do que ficar alegre por seu turno; ou melhor, há expectativa de que o término da alegria do outro também nele produza alegria. Assim como com a menina do conto, a inveja se apodera dele num átimo e com intensidade extrema: a lividez seria imediata. O invejoso procurará, dessa forma, destruir a alegria alheia, e nisso age movido também pelo ódio; mas a situação não se esgota aí, caso contrário a inveja não se distinguiria do ódio.

Quando vê um homem se alegrar, o personagem da Divina comédia não é apenas possuído por uma intensa emoção. Ele realiza um julgamento que permanece inconsciente, julgamento pelo qual estabelece uma relação de causa e efeito entre a alegria do outro e sua própria comoção: é porque o outro se alegra que eu me entristeço. Em outras palavras, a causa da afecção que me domina é posta na alegria alheia, de modo que a conclusão é inevitável: se o outro deixar de se alegrar, minha tristeza desaparecerá. E isso se vincula à ideia paralela de que o outro está alegre porque possui algo que o torna alegre, de onde a ideia de que, tomando dele este “algo”, ficarei feliz por minha vez. É assim que o objeto se constitui como único e como invejado, e portanto como incapaz de ser “usufruído em companhia de outrem”, Tomás de Aquino definiu a inveja como “tristitia de alienis bonis”, isto é, como a tristeza em relação às coisas boas dos outros.[3] E, por seu lado, Espinosa chega à mesma conclusão: “Se imaginamos que alguém se alegre com uma coisa que pode ser possuída apenas por um só, esforçar-nos-emos por fazer de maneira que ele não possua esta coisa. […] Vemos assim como os homens são geralmente dispostos por natureza a invejar aqueles que são felizes e a invejá-los com um ódio tanto maior quanto mais amam a coisa que imaginam na posse do outro”.[4]

Mencionei atrás que a inveja da menina por este pinto me parecia importante por dois motivos. O primeiro é o que acabamos de examinar: Clarice acentua o caráter único da coisa invejada e a necessidade inerente à inveja de arrebatá-la a seu possuidor pela violência (rapina) ou pela astúcia (dissimulada sagacidade). O segundo motivo diz respeito à natureza da coisa invejada, que não deixa de ser intrigante. Podemos colocar a indagação em outros termos: por que tem de ser única a coisa invejada? Este atributo de unicidade contrasta com outro, o da indeterminação. A menina que inveja a narradora porque esta possui um pinto que pia na cozinha, roubaria “qualquer coisa”; a análise de Espinosa pode nos ajudar a compreender este ponto. Com efeito, o invejoso a quem se refere a Ética imagina que seu semelhante se alegre com uma coisa qualquer (novamente indeterminada), e imagina também que o outro é feliz por possuir a coisa em questão. O psicanalista distinguiria aqui, com cuidado, o componente do “imagina” e o do “é feliz”. Vejamos isso mais de perto.

O pinto que pia na cozinha é, aos olhos da menina, muito mais do que um mero pinto; se assim não fosse, ela se contentaria com qualquer outro exemplar da mesma espécie. O que é este “muito mais”? É algo que não está no pinto, mas na psique da menina: uma fantasia. A meu ver, convém distinguir o que chamarei de suporte da inveja do que proponho denominar objeto da inveja. O objeto da inveja é um objeto imaginário ou fantasmático, algo que se supõe assegurar ao seu detentor um estado de felicidade e que, se estivesse em mãos do invejoso, asseguraria, a este último uma felicidade igual. O suporte da inveja é uma coisa empírica que encarna esse objeto imaginário: na história de Clarice é um pinto, no relato de Guido del Duca a alegria, e, segundo Espinosa, como aliás na vida de todos nós, pode ser isso ou aquilo. É por esta razão que a menina roubaria “qualquer coisa”: com isto, aprendemos que o suporte da inveja pode ser indeterminado precisamente porque seu objeto é determinado de maneira absolutamente unívoca. O objeto da inveja é este algo que torna o outro feliz, segundo a imaginação de quem inveja; e isto também nos é indicado, sutilmente, no texto de Clarice, quando ela escreve “eu também quero”, e depois “ela queria tudo”. A rigor, o “eu também quero” é uma formação de compromisso, apresentando a inveja como se fosse um desejo: deveríamos ler “que também”, e a palavra também seria o objeto direto do verbo querer. Quero também, isto é, quero esta felicidade cujo instrumento, cujo veículo, é a posse do pinto que pia na cozinha. E aqui não existe comunhão possível: como bem notou Dante, o coração do invejoso palpita por um bem que não pode ser compartilhado. Eis porque Clarice escreve, ao final do texto que citei: “ela queria tudo”. Tudo não significa aqui todas as coisas — mesmo que significasse, se um tem todas as coisas, estas não podem ser compartilhadas com outrem, o que é evidente. Tudo significa aqui, creio eu, um estado de completude e de preenchimento, assegurado imaginariamente pela posse do pinto. “Ela queria [ser] tudo.” Queria não ter carências, e supõe que atingiria esse estado se se apoderasse daquilo em que depositou sua fantasia de totalidade. Que a carência seja imaginariamente anulada pela posse de um pinto, ou de qualquer outra coisa, é absolutamente contingente: o que importa compreender é que o invejoso começa por atribuir ao outro um estado ou uma condição de que se imagina privado (“você tem tudo”) — este é o objeto da inveja —, para em seguida vincular este estado à posse de um “algo”, uma espécie de talismã, do qual é imperativo privar o outro seja por que meio for — e este algo é o suporte da inveja (“e eu terei um pinto”).

PARÊNTESE MITOLÓGICO

Para ilustrar estas noções, um tanto abstratas, gostaria de contar a história de Aglauros. Trata-se de um dos mitos narrados por Ovídio nas Metamorfoses; Aglauros é a irmã de Hersé, cuja beleza extraordinária atiça o desejo do deus Hermes. Este pede a Aglauros que favoreça seus amores; a moça concorda, mas exige em troca um punhado de moedas de ouro. Isto irrita Palas Atena, que já detestava a jovem porque esta a havia espionado numa outra ocasião. Não tolera ver a mortal recompensada por outro deus; decide vingar-se, e a vingança é terrível: Palas Atena vai até a morada da Inveja e ordena-lhe que vá “infectar com sua baba a jovem Aglauros”. A descrição da Inveja feita por Ovídio merece ser relembrada, pois é nela que se baseia Dante e de modo geral serviu de modelo para todos os que falaram deste sentimento:

A Inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas […]. A palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor […]. Assiste com despeito aos sucessos dos homens, e este espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício.[5]

Reparem na associação da inveja com o olhar (“assiste”, “o olhar não se fixa”); este tema é clássico, e ainda não encontramos uma explicação para ele. Os outros elementos nos são conhecidos: a Inveja se alegra com a dor de outrem, e a realização de seus propósitos tampouco a deixa feliz — ao dilacerar os felizes, ela se dilacera a si própria. Esta é uma forma poética de dizer que a Inveja contém desejo, mas não se reduz a ele; o desejo de privar outrem de sua felicidade é nela mais decisivo do que o de obter a posse da coisa invejada. E o que, na história de Ovídio, é a coisa invejada?

Quando entrou no quarto de Aglauros, [a Inveja] executa a ordem recebida. Coloca sobre o seio dela uma mão manchada de ferrugem, espeta seu coração com farpas pontiagudas, lhe insufla um vírus pernicioso, faz correr em seus ossos e espalha pelos seus pulmões um negro veneno […]. E põe sob os olhos dela a irmã, a fortunada união desta irmã, a imagem sedutora do deus, exagerando tudo. Irritada com o que vê, Aglauros sente a mordida de uma dor secreta; ansiosa, ela geme noite e dia, e, no ápice da miséria, se consome lentamente […]. A felicidade de Hersé a consome devagar […]. Muitas vezes quis morrer, para não mais ver tal espetáculo; muitas vezes quis denunciar tudo, como um crime, ao pai inflexível… [pp. 800 e segs.]

Novamente aparece a relação da inveja com o olhar, mas isto não é o mais importante. O que Aglauros vê é a “afortunada união da irmã”, “a felicidade de Hersé”. Este ponto é capital: Hersé agora possui algo (o amor do deus) que faz sua felicidade, a completa no sentido literal da palavra. A meu ver, é absolutamente essencial compreender que Aglauros não quer o amor do deus, tanto que chega a pensar no suicídio para não ter de contemplá-lo. Mais uma vez, o importante é privar a irmã do que nela é invejado (“denunciar tudo ao pai inflexível”). O tema novo, contudo, e do qual penso que é possível tirar partido, é que a inveja a faz ver todas as coisas com grande exagero. O psicanalista discerne aqui um componente indispensável da inveja, análogo àquele que fazia Ofélia valorizar tanto o pinto no conto de Clarice: a dimensão da idealização. O objeto invejado é invariavelmente um objeto idealizado, isto é, sobrevalorizado, no qual se supõe conter atributos extraordinários, quase mágicos. É por esta razão que o suporte empírico deste objeto fantasmático é tido por único, embora possam existir muitos exemplares da mesma categoria. Neste objeto idealizado, portanto, existe um fator que não provém do próprio suporte, nem do detentor deste último, mas sempre, e sem exceção, da fantasia do invejoso. Este projeta no suporte em questão algo cuja natureza gostaríamos de examinar melhor, e do qual por enquanto sabemos apenas que diz respeito ao próprio invejoso, que se apresenta sob uma forma exagerada ou idealizada, e que, sem sua presença, não há inveja, porque, sem esta projeção, a coisa na qual se projeta este “algo” não seria única e, portanto, não se prestaria a ser invejada. Ora, uma das definições clássicas da essência é: “a essência de uma coisa é aquilo sem o que esta coisa não pode ser, nem ser concebida”. Se não há inveja sem projeção de um “algo” idealizado, é bem possível que por este caminho se nos desvele a essência da inveja, essência a partir da qual seria possível compreender a conexão entre os vários atributos dela que se foram tornando claros para nós ao longo de nosso percurso.

IDEALIZAÇÃO E NARCISISMO

Vamos então examinar mais de perto o fenômeno da idealização. Descritivamente, ele consiste na exaltação do objeto a cujos atributos se atribui um valor de perfeição. Do ponto de vista metapsicológico, a questão consiste em saber que tipo de energia pulsional está envolvido neste processo e qual sua dinâmica, isto é, em que tipos de conflito ele se inscreve, que papel cumpre nestes conflitos e de que modo este processo se combina com outros, inibindo-os ou intensificando-os. Em “Para introduzir o narcisismo” e em “Psicologia das massas e análise do ego”, Freud assinala que a idealização tem estreitas relações com o narcisismo, e, na tradição freudiana, os comentadores são unânimes em utilizar esta indicação. Já para Melanie Klein, a idealização corresponde a um mecanismo de defesa contra as pulsões destrutivas, na medida em que contribui para criar a imagem de um objeto perfeitamente bom, capaz de proteger a criança contra as ameaças emanadas dos objetos persecutórios, objetos estes que, por sua vez, surgem da projeção para o exterior das pulsões agressivas da própria criança.[6] Seja numa concepção, seja na outra, o que me parece importante assinalar é que a idealização não é um fenômeno “primitivo”, mas sim consequência de complexas interações psíquicas que põem em jogo a esfera das pulsões: pulsões sexuais para Freud, pulsões destrutivas para Klein.

Qual poderia ser o laço entre a idealização e o narcisismo? Convém lembrar que, em psicanálise, o termo “narcisismo” não tem qualquer conotação pejorativa: não designa nem a vaidade, nem o estar cheio de si, nem o egoísmo, embora estes sentimentos estejam dentro do cone semântico da palavra “narcisismo” e indiscutivelmente façam parte do setor narcísico da personalidade. O essencial do conceito psicanalítico de narcisismo reside na ideia de “amor em relação a si mesmo”. Mas este “si mesmo” está longe de ser uma noção simples. “Si mesmo” pode designar o corpo próprio, ou o indivíduo, ou então o próprio Ego, que não corresponde a toda a psique, mas apenas à parte dela cristalizada na autoimagem: um setor do mundo interno, ou da psique, mas de modo algum o único.

A teoria do narcisismo é uma das partes mais complicadas e obscuras da psicanálise, e nosso tema não é este; para nós será possível apenas abordar uma pequena parte dela. Vamos então nos limitar ao problema da idealização, que surgiu do nosso exame da inveja. Partamos da seguinte noção: o narcisismo é uma parte da vida sexual de todos nós, e Freud o incluiu entre os avatares da libido. O amor com que amamos a nós mesmos é um amor sexual, e a prova disso está na gama de fenômenos ligados ao autoerotismo, gama que vai da masturbação à ginástica, passando pelos cuidados com o corpo, com seu embelezamento e sua valorização. Em outros termos, nosso corpo e nosso Eu são objetos sexuais semelhantes aos objetos externos, e o investimento deles é um investimento sexual, como aliás ilustra o mito de Narciso, que se apaixona por seu reflexo na água. Freud considerou que, existindo em cada indivíduo apenas uma quantidade fixa de libido, a parte dela investida no Eu seria a subtrair do investimento objetal, e vice-versa. A libido narcísica, como a objetal, é eminentemente móvel e pode ser reinvestida nos objetos; quando isso ocorre, estes últimos ficam impregnados com uma qualidade particular, derivada exatamente do componente narcísico da libido que os investe. Para dar uma imagem disto: suponhamos que a libido narcísica seja de cor vermelha e a libido objetal de cor branca. Se a análise revela um objeto sexual cor-de-rosa, podemos ter certeza de que o investimento que o constitui como objeto sexual contém alguma proporção de libido narcísica, responsável por este elemento de vermelho que o objeto apresenta.

Ora, esta “qualidade particular” da libido narcísica é precisamente a perfeição, e o veículo pelo qual esta perfeição transita para os objetos é a idealização deles. Em algum recanto de nosso inconsciente, existe uma imagem de nós mesmos que é perfeita, completa, grandiosa: é o que os psicanalistas denominam Ego Ideal. Este Ego Ideal tem uma história, ou melhor uma pré-história. É formado por resquícios dos momentos mais primitivos de nossa vida, aqueles em que não tínhamos consciência da limitação, da imperfeição e da finitude que nos caracterizam como seres humanos. O bebê cercado de cuidados maternos, cujas necessidades são satisfeitas de maneira adequada, e que, no inconsciente de seus pais, representa uma reencarnação do momento em que eles próprios eram bebês, sendo portanto amado com um amor que contém fortes elementos de narcisismo infantil — este bebê nos dá uma imagem razoável desta instância psíquica, tanto mais que, segundo a teoria psicanalítica, aquilo que o satisfaz ( por exemplo, o seio no qual mama, o calor que o aconchega etc.) é por ele imaginado como fazendo parte dele próprio. A descoberta de que tais entidades não são “ele”, mas pertencem a outras pessoas ou, de modo geral, ao mundo externo, à realidade exterior ou material ( por oposição à realidade psíquica), costuma ser extremamente dolorosa e suscitar angústias de extraordinária intensidade. Não é difícil perceber que a fantasia de completude, de autarcia, de onipotência, não será eliminada por essa descoberta, mas irá se refugiar em outros setores da vida psíquica. Assim se constitui o Ego Ideal, cujas figurações empíricas podem ser numerosas e variadas. Tudo aquilo que contribui para reforçar a impressão de autossuficiência é assim passível de ser entendido e fantasiado como uma encarnação do Ego Ideal: por exemplo, “a inteligência, o saber, a virtude, o poder, o sexo, o corpo e sua beleza, ou ainda a independência de quem ‘se basta a si próprio em sua inacessibilidade’, como constatou Freud”.[7]

Em virtude da mobilidade da libido, esta área do narcisismo — o Ego Ideal — pode ser também transposta para certos objetos, na vertente projetiva. Estes se convertem assim em duplos do indivíduo, ou melhor, em duplos de seu Ego Ideal: são precisamente os objetos idealizados, cuja característica é a de serem, como vimos, concebidos como perfeitos. E podemos compreender que esta perfeição consiste em serem contidos dentro de si mesmos, em se autobastarem e, mais ainda, em poderem dispensar o recurso a algo exterior para obter o gozo sexual, posto que são independentes, autônomos, não necessitando de nada que os preencha: numa palavra, são imaginados como possuindo extraordinárias capacidades de autossatisfação. Isto é verdadeiro a toda e qualquer idealização, mesmo que os atributos em função dos quais o objeto é sobrevalorizado nada tenham a ver, aparentemente, com o registro da autarcia e do gozo autoproporcionado; e não é difícil compreender por quê. Diante de um objeto idealizado, sentimo-nos dispensáveis, inferiores: nada temos a aportar que o objeto já não possua. Em outros termos, ele é para nós um objeto pulsional, mas não nos representamos como sendo para ele também um objeto pulsional. A principal característica do objeto idealizado é, assim, a de que “ele não precisa de mim”; daí a fantasiar que ele não precisa de nada nem de ninguém, porque é dotado da capacidade de se autossatisfazer (perfeição narcísica ligada à projeção do Ego Ideal), o passo é curto, e dado com invariável fatalidade.

Se prosseguirmos nesta reflexão, veremos que não é tão grande assim a oposição entre as concepções de Freud e de Melanie Klein no que concerne à idealização. O que acabei de expor é uma sistematização e um desenvolvimento das indicações de Freud; disse também que para Klein a idealização é uma das defesas contra as angústias persecutórias e contra as pulsões destrutivas que sustentam estas últimas. Ora, o fato de a idealização poder desempenhar esta função — como de fato desempenha — não diz nada sobre sua origem; e o que Melanie Klein afirma quanto ao objeto idealizado não me parece contradizer o que dissemos até aqui. Com efeito, o objeto idealizado possui, segundo Klein, a propriedade de se bastar a si mesmo, e também de deleitar-se com sua própria perfeição. É o caso do seio idealizado, imaginariamente capaz de produzir leite em quantidades infinitas e ilimitadas, e ainda de usufruir de todo o prazer que este leite pode proporcionar. O que caracteriza o seio idealizado (e, aliás, o torna objeto de inveja, segundo Klein) é a capacidade de engendrar a partir de si mesmo, o que é uma variante da capacidade de se autoengendrar, capacidade esta que é o conteúdo de uma das principais fantasias narcísicas repertoriadas pela psicanálise. Melanie Klein, no entanto, não desenvolve este aspecto, atendo-se mais à dimensão da proteção que o objeto idealizado poderia dispensar. Mas é fácil perceber que, qualquer que seja a medida desta proteção, ela estará sempre aquém do que o seio protetor poderia oferecer, já que a expectativa é a de que ele possibilite a eliminação completa de todas as angústias. Como isso não é possível — pois a angústia tem fontes internas que não podem ser alcançadas mesmo pelo mais idealizado dos seios — é inevitável que este último seja também fonte de frustração, acarretando, por conseguinte, emoções agressivas dirigidas contra ele. Pois, se “pode” fazer tudo o que a criança imagina, por que não o faz? Por má vontade, egoísmo, intenção sádica de prejudicar…

Vocês percebem que, por este caminho, nos aproximamos novamente da inveja. O seio idealizado é uma das figurações fantasmáticas do objeto invejado, pois é fácil incluí-lo na série das “criaturas” felizes porque possuem algo que, caso fosse meu, também me faria feliz. No caso, é esta capacidade ilimitada de fruição, ou de criação daquilo que satisfaz o desejo sem ter de passar pela dor da falta, dor que obriga a procurar o objeto fora de nós mesmos e a nos contentar sempre com aproximações substitutivas dele. Não é difícil entender que a pessoa invejada é sentida como detentora de um privilégio e que a inveja se constitui por meio de um movimento que visa a arrebatar dela tal privilégio, conforme vimos atrás. O que nosso trajeto permite evidenciar é que este privilégio tem raízes narcísicas, porque provém da projeção de partes do Ego Ideal, e em particular daquilo que constitui sua propriedade fundamental, a saber, a perfeição e a independência das limitações impostas pela realidade, pela diferença dos sexos, pela mortalidade do homem, pela finitude. No Ego Ideal, cumpre-se uma aspiração ao infinito; mas, para evitar conotações religiosas ou transcendentes, convém relembrar que este “infinito” se origina na ilusão infantil de autossuficiência e constitui uma forma de preservar a crença na existência dela, ainda que em algum ponto inacessível do espaço ou do tempo. E, de certo modo, tal crença tem sua razão de ser: apenas, este “ponto” é uma fantasia cujo lugar virtual é o inconsciente.

Podemos, assim, retornar à consideração da inveja, focalizando-a agora sob o ângulo de sua relação com o narcisismo. Esta relação talvez seja a única hipótese original que tenho a lhes apresentar; procurei desenvolvê-la em outros trabalhos,[8] e gostaria de me encaminhar para a conclusão deste trabalho assinalando os motivos que me levam a pensar assim, bem como o possível ganho de compreensão quanto à economia e à dinâmica da inveja que dela deriva. Não há dúvida de que a inveja contém um forte componente agressivo, visto que sua finalidade primordial é privar outrem de um atributo julgado precioso. Este fato poderia ser invocado como argumento contra a vinculação da inveja à esfera da libido narcísica? Não o creio; o narcisismo também participa das pulsões de morte, como aliás nos é indicado pelo mito de Narciso, que morreu de inanição contemplando sua imagem refletida na nascente. Mais ainda, a agressão contra o rival — que é manifestamente um duplo narcísico do indivíduo — figura como momento essencial na concepção do narcisismo segundo Lacan, a quem devemos uma importante renovação no que concerne a este problema. Não poderemos entrar na discussão das hipóteses avançadas por Lacan; basta indicar que, mais do que refutar a ideia que sugeri, a inclusão do fator agressivo na consideração do narcisismo vem apoiá-la, e portanto não impede, mas reafirma, a conexão deste último com a inveja. Aliás, o valor atribuí-do por Lacan à dimensão visual na constituição e nos destinos do narcisismo (o famoso “estágio do espelho”) poderia nos fornecer uma pista para compreender a enigmática associação da inveja com o olhar, contribuindo igualmente para legitimar sua origem a partir do narcisismo. O olhar desempenha um papel de relevo na constituição da imagem do corpo e da imagem de si, imagens com as quais o sujeito se identifica muito precocemente e que trazem, segundo Lacan, a marca da idealização, que, como vimos, é uma das dimensões em que se estrutura o narcisismo. Mas seguir esta indicação nos levaria muito longe dos aspectos mais evidentes desta vinculação, que me parecem prioritários no contexto em que nos encontramos.

INVEJA DO PÊNIS

Talvez caiba aqui tomar um outro rumo, o que nos permitirá abordar uma das ideias de Freud que mais polêmica despertou: a noção de “inveja do pênis”. Este conceito costuma ser fonte de inumeráveis contrassensos, o primeiro dos quais é supor que ao concebê-lo Freud estaria depreciando o sexo feminino e que tal depreciação seria consequência de seus preconceitos vitorianos. Freud certamente tinha seus preconceitos, como todo mundo, mas disso não se segue que a teoria da inveja do pênis seja uma emanação direta deles. Ao elaborá-la, Freud tem em vista certos aspectos da sexualidade feminina que sugerem a existência de uma fantasia inconsciente dessa natureza. A inveja do pênis não é um conteúdo da consciência, e raramente a encontramos como conteúdo da consciência na análise de pacientes do sexo feminino; aliás, quando isso ocorre, a interpretação costuma revelar sob essa fantasia alguma outra, inconsciente, que é representada na consciência sob esta forma disfarçada. Na qualidade de fantasia inconsciente, ela se manifesta sob inúmeras roupagens que, aparentemente, nada têm a ver com a inveja do pênis; o que não é de se admirar, se nos lembrarmos que uma das duas forças psíquicas de cujo conflito é feita nossa vida mental e emocional tende precisamente a censurar os conteúdos inconscientes capazes de provocar desprazer. Tampouco cabe supô-la como exclusiva de pessoas do sexo feminino; como bem diz Hélio Pellegrino em outro texto deste volume, “os homens também sentem inveja do pênis, e como!”. Mais do que vociferar contra esta hipótese, ou buscar invalidá-la com argumentos psicologizantes, cabe tentar compreender do que se trata. E isto porque todo argumento psicologizante — do tipo “você diz isto porque é machista” — pode ser facilmente devolvido a quem o emprega, sob a forma de uma interpretação selvagem: “você pensa que a inveja do pênis não existe porque tem resistências a esta ideia”. Convenhamos que assim não se vai muito longe; não se refutam conceitos com acusações, nem podem eles ser provados com panegíricos. Procuremos então entender o que significa, realmente, a noção de inveja do pênis.

O contexto em que esta hipótese se situa é o das fantasias de castração e das defesas mobilizadas contra elas. A castração representa a perda de um órgão ou de um atributo narcisicamente valorizado e o pênis é certamente um órgão deste tipo. Mas seria ingênuo imaginar que o pênis invejado na fantasia estudada por Freud seja simplesmente o genital masculino: as feministas apressadas se esquecem de perguntar quais as significações que este pênis pode assumir, ou, para utilizar uma distinção proposta há pouco, de que objeto inconsciente tal pênis é suporte. Dito de outro modo, o que a inveja do pênis inveja no pênis? Não é difícil imaginar que o objeto invejado dificilmente coincidirá com seu suporte empírico, muito embora a descoberta deste último possa ser a ocasião para que se desencadeie o complexo de castração em sua versão propriamente feminina. Ao estudar este problema, Freud escreve: “A menina percebe o pênis chamativamente visível e grande; reconhece-o imediatamente como contrapartida superior de seu próprio órgão, pequeno e escondido; e a partir daí sucumbe à inveja do pênis. […] Ela julga e decide imediatamente: viu isso, sabe que não o tem, e quer tê-lo”.[9] Reparem que a descoberta da diferença anatômica dos sexos é uma ferida narcísica importante e que uma das dimensões em que ela recebe seu sentido é precisamente a do narcisismo: a menina faz uma comparação entre ela e o menino, constata uma diferença e a julga como significando uma inferioridade no que se refere a ela, como se sentisse uma falta por não possuir “isso”. Mas o essencial é que tal falta não é real: nada falta no corpo da menina, ela tem um órgão genital que lhe é próprio. Encontramos aqui uma fantasia de falta que se inscreve no contexto geral da vida psíquica infantil: nela vêm se expressar outros conteúdos, que a precedem e aos quais ela ajuda a atribuir sentido. Por exemplo, a ausência do pênis pode ser compreendida como um castigo, como um sinal de menos amor, etc.; se a menina acredita que, por tal ou qual motivo, mereceria ser castigada ou privada de amor, a constatação da diferença entre ela e o menino pode ser lida como confirmando a veracidade das acusações que se faz. Invariavelmente, a posse do pênis pelo menino é entendida como sinal de um privilégio do qual está excluída. O que a menina inveja é portanto este privilégio e o gozo dele, o pênis significando e permitindo segundo sua fantasia um desfrute que ela não pode atingir. Em geral, tal desfrute não é compreendido conscientemente como possuindo um sentido diretamente sexual; os psicanalistas de crianças costumam enfatizar que o privilégio em questão tende a ser figurado como um “mais amor”, um “mais poder”, ao menos no momento cronológico em que habitualmente se dá a descoberta da diferença anatômica, isto é, ao redor dos três ou quatro anos.

Se o que a inveja do pênis inveja no pênis é o gozo de um privilégio, é evidente que estamos diante de uma manifestação da idealização. O pênis invejado não é, assim, o órgão do menino, mas um objeto idealizado que a menina projeta neste suporte e que tem a ver com o mundo fantasmático dela. Que o pênis possa ser também idealizado pelo menino e concentrar todo um conjunto de fantasias dele é um outro problema, que não abordaremos aqui. O importante é perceber que o pênis acaba por funcionar como elemento de uma série cujo núcleo comum é a ideia de completude, como se vê consultando o Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Pontalis: “A inveja do pênis nasce da diferença anatômica dos sexos; a menina sente-se lesada em relação ao menino e deseja possuir, como ele, um pênis. Depois, esta inveja do pênis toma no curso do Édipo duas formas derivadas: vontade de adquirir um pênis dentro de si, principalmente sob a forma do desejo de ter um filho; vontade de gozar do pênis no ato sexual”.[10] O elemento do desejo aponta para a dimensão da plenitude, do estar preenchida por um bebê ou por um pênis. Mas a inveja do pênis contém igualmente a dimensão agressiva e pode se expressar sob a forma da fantasia de castrar o homem, de privá-lo do que supostamente a posse do pênis lhe permite; ou ainda sob a forma de inibições variadas, principalmente na esfera do prazer e da realização pessoal, a partir de uma forma derivada da inveja do pênis, e que costuma tomar a forma de uma fantasia segundo a qual a mãe possui um pênis gerador de prazer, pênis este obviamente idealizado, e cuja ausência na mulher a impediria de obter satisfação naquilo que empreende. Em todos os casos, o pênis invejado é um pênis idealizado, inclusive neste último, em que o gozo de um prazer é impossibilitado porque significaria castrar a mãe, arrebatar-lhe um “pênis” cuja posse é simultaneamente desejada e temida pela mulher. O essencial é dar-se conta de que o pênis funciona aqui como atributo e suporte da diferença, tanto da diferença sexual quanto da diferença entre mim e outrem, quanto ainda da diferença hierárquica numa escala imaginária em que me situo num degrau bastante baixo. O grande problema não é, assim, saber se a mulher inveja ou não o pênis do homem, mas saber por que escolhe, para recipiente e suporte do objeto idealizado, algo cuja posse material por ela é impossível, se figurarmos esta posse como a presença física de um órgão masculino no corpo de mulher. Parece que aqui deparamos com um traço inesperado, e que talvez pertença não apenas à constelação da inveja do pênis, mas também à inveja em geral: a idealização do objeto e sua projeção sobre um suporte externo — mecanismos constitutivos do afeto invejoso — resultam no desejo de se reapropriar do objeto idealizado/projetado, privando dele seu suposto detentor. Mas, para que este movimento resulte na inveja e não apenas na cobiça, no desejo etc, parece ser necessário que a recuperação do objeto em questão seja rigorosamente impossível. Será isto verdadeiro? E, se for, como dar conta desta situação, em termos metapsicológicos?

A INVEJA E O IMPOSSÍVEL

Vamos, então, por partes. O personagem da Divina comédia que empalidece ao ver a alegria alheia pode eventualmente obrar de modo a que o outro se entristeça, assim como Aglauros poderia realizar seu intento destruindo de algum modo a felicidade de sua irmã. Mas nem um nem outro conseguiriam por este meio mais do que um alívio em seu sofrimento; pois a inveja se faz acompanhar de um intenso sofrimento, como vemos pela descrição de Ovídio: ela “morde”, o espetáculo dos êxitos dos homens a “rói” e, “ao dilacerar os outros, ela dilacera a si mesma”. Há, portanto, uma assimetria que me parece fundamental entre o gozo que o invejoso atribui ao invejado e a condição a que ele próprio acederia, caso atingisse seu objetivo imediato, que é o de privar a pessoa invejada do atributo ou da coisa invejada. Tal condição não é do mesmo estofo que o gozo ou a felicidade, consistindo, na melhor das hipóteses, em um apaziguamento, logo seguido, porém, pelo renascer da inveja, que não deixará de buscar algum outro suporte no qual se investir. Da mesma forma, a menina do conto de Clarice Lispector acaba por matar o pintinho, mas é bastante claro que a eventual satisfação que este ato lhe proporciona não tem medida comum com a expectativa que acompanhava a inveja: “olhou-me rápida, e era a inveja, você têm tudo, e a censura, porque não somos a mesma e eu terei um pinto…”. A sequência dos pensamentos de Ofélia me parece significativa: “você tem tudo”, isto é, é plena, nada lhe falta; “porque não somos a mesma”, ou seja, existe entre nós um intervalo ineliminável, uma diferença cuja percepção é fonte de dor e de tristeza; “e eu terei um pinto”, isto é, encontrarei uma satisfação substitutiva análoga àquela que me proporcionaria a posse e a fruição daquilo em que encarnei a diferença entre nós. O “eu terei um pinto” vem assim como conclusão, após uma fantasia de plenitude (“você tem tudo”) e após o desmentido aportado a esta fantasia (“porque não somos a mesma”). O desejo que acompanha a inveja é assim determinado como um desejo de coincidência, de restauração da plenitude narcísica rompida com a descoberta do limite e da diferença, isto é, do intervalo entre um e outro. É por este motivo, penso, que o olhar desempenha na economia da inveja uma função decisiva: ele permite o contato — isto é, a busca da coincidência — e ao mesmo tempo permite a manutenção da distância entre o invejoso e o invejado; pois olhar é simultaneamente “pôr para dentro” e “manter fora”, é apreender de modo tal que se incorpora o apreendido, porém ele é conservado em sua irredutibilidade pela forma desta apreensão.

Se concordarmos que é assim, a inveja tomará o caráter de uma formação complexa na qual cabe distinguir uma vertente da ordem dos impulsos e uma vertente da ordem da defesa. A vertente pulsional tem uma faceta sexual-narcísica e uma faceta agressiva, como deve estar claro a esta altura. A vertente defensiva é patente pelo que acabei de dizer: ela se exprime na impossibilidade de reinteriorizar o projetado-idealizado, impossibilidade que necessita ser explicada, porque não é nada óbvio que isto deva se produzir. Quais seriam as condições metapsicológicas em que esta impossibilidade ganharia uma razão de ser?

A defesa — qualquer defesa — tem uma finalidade óbvia: evitar o desprazer. Isto não a impede de gerar, por vezes, um intenso desprazer; mas este último será sempre fantasiado como um mal menor, se comparado com aquilo que sucederia caso a defesa fosse abandonada. Boa parte do trabalho psicanalítico, aliás, consiste no reexame das fantasias e das angústias que povoam a vida psíquica do paciente, apostando-se na possibilidade de que, ao longo do processo, ele venha a perceber que suas defesas, ou parte delas, podem ser modificadas sem causar as situações temidas, situações cujo caráter infantil e mesmo arcaico exigiram em outros tempos o recurso a medidas de proteção de tal envergadura. Em todo caso, é possível inferir, do tipo e da intensidade das defesas, algo sobre a natureza daquilo cuja irrupção no espaço psíquico elas devem impedir, e que constitui, por assim dizer, o avesso delas. No caso que nos ocupa, a fantasia parece ser de molde a apresentar como realizado um estado de completude e de autarcia, intensamente desejado na medida em que atingi-lo seria atingir o Paraíso e desfrutá-lo por toda a eternidade. Este é, com efeito, o aspecto mais frequente sob o qual nos é apresentado o registro da onipotência. Mas a consideração atenta do sentimento da inveja nos deveria fazer rever esta concepção, ou pelo menos complementá-la com uma outra, pois o que caracteriza a inveja é exatamente a constituição desta fantasia (através da idealização cuja origem é o Ego Ideal) e a sua imediata projeção para outrem, seguida de um intenso desejo de reapropriação do projetado e da impossibilidade de efetuar esta reabsorção. Se é impossível efetuá-la, é porque isto provocaria uma situação psíquica sentida ou imaginada como aterrorizadora: e o grau deste terror pode ser avaliado pelo fato de que, a ele, é preferível a “mordida”, a “dilaceração” e o “roer-se por dentro” da inveja, a qual, repito, não deixa de ser fonte de grande sofrimento para aquele que a experimenta.

E o que haveria de tão horrendo na suposta realização da fantasia de onipotência? A meu ver, cabe refletir que tal estado, caso pudesse ser obtido, resultaria na supressão da subjetividade, isto é, na aniquilação daquele que o vivenciasse: pois a condição sine qua non da existência de um sujeito é precisamente a presença de um intervalo entre ele e os outros, intervalo assegurado pelo limite e pela finitude de nosso corpo e da nossa psique. O nascimento é, como sabemos, acompanhado pelo corte do cordão umbilical. Aquilo que Freud descreveu como o “horror do incesto” não provém de motivos morais, que condenariam a união sexual com a mãe. Pois o incesto do qual se tem horror não é a cópula genital com a mulher que nos deu à luz; se assim fosse, a mulher heterossexual não seria habitada pelo horror do incesto. A vinculação genital com a mãe é uma figuração plástica e logicamente concebível do retorno ao ventre materno, isto é, da dessubjetivação e da morte;[11] retornar ao ventre da mãe significa fundir-se com ela e deixar de existir como ser individuado. É característico que o Paraíso seja figurado, no imaginário religioso, como um lugar ao qual só se chega após a morte, ainda que nele — graças à denegação da morte — as almas conservem sua individualidade, seu nome e sua história. O Paraíso é um símbolo evidente da fusão com a mãe, porém concebido de modo a retirar desta fusão os elementos que contribuem para torná-la aterrorizadora.

A fantasia de autossuficiência, que estudamos brevemente ao falar do Ego Ideal, pode assumir a forma de um desejo de fusão com a mãe, pelo simples motivo de que, ao fundir-se, tanto o indivíduo como a mãe desapareceriam como tais. Ela é apta a figurar, deste modo, uma situação de ilimitação, de infinitude, de onipotência, ou como quisermos denominá-la, pois consiste sempre na supressão dos limites que, ao mesmo tempo em que nos fazem sofrer, são condição para a existência humana. Isso nos permite compreender por que o projetado/idealizado pode ser alvo de um imenso desejo e ao mesmo tempo de um imenso pavor: é possível que seja, aliás, tão desejado precisamente porque a reapropriação dele jamais pode se cumprir, posto que seu cumprimento seria idêntico à morte. Nesta perspectiva, a inveja teria uma função defensiva importante, protegendo o indivíduo contra o risco de precisar reinteriorizar algo que foi projetado exatamente para ser mantido à distância: a perfeição narcísica. Tendo sido projetada, ela se converte imediatamente em objeto de intenso desejo, desejo de coincidência com o objeto idealizado; como este é imaginado sob a forma de algo capaz de ser “possuído”, o desejo de possuí-lo é acompanhado pela intenção agressiva de privar seu detentor da posse e do usufruto dele; eis aí a origem da dupla determinação pulsional da inveja, isto é, de sua componente sexual-narcísica e de sua componente agressiva. Nela coincidem, se esta hipótese estiver correta, um impulso (ou melhor, um feixe de impulsos) e uma defesa bastante eficaz; esta situação permitiria compreender a tenacidade da inveja, a dificuldade de alterar as condições econômicas que a sustentam e a força das resistências contra a análise que nela se apoiam: escorada por assim dizer de ambos os lados, não é de se admirar que ela ostente uma estabilidade… invejável.

DA CAPO

Nosso último passo permitiu estabelecer que a inveja é inveja do impossível, e que este impossível representa um estado de coincidência com o outro que nada mais é do que uma faceta do narcisismo, precisamente aquela que sustenta as fantasias de autossuficiência e de perfeição idealizada quanto a si mesmo. Para concluir, gostaria de reler o texto de Clarice Lispector nesta perspectiva, a fim de ilustrar este excurso metapsicológico e demonstrar que ele não é apenas um malabarismo especulativo.

“Do instante em que, involuntariamente, sua boca estremecendo quase pensara — eu também quero — deste instante a escuridão se adensara no fundo dos olhos, num desejo… que recuara diante do impossível, o impossível que se aproximara e em tentação fora quase dela.” Creio que podemos interpretar este “impossível” como a figuração de um desejo de fusão narcísica, de coincidência com a plenitude que dolorosamente falta à menina, e que é subitamente sentida quando esta percebe o piar do pinto. Mas esse movimento é acompanhado pelo seu contrário, isto é, pelo repúdio da “tentação”: é o que sugere o “quase”. “O escuro dos olhos vacilou como um ouro”: é o instante da vacilação, do entre-dois-desejos. Ofélia recuou frente ao horror do incesto, mas não desistiu do desejo de obter o “impossível”. “Uma astúcia passou-lhe então pelo rosto”: das duas tendências opostas, surge um compromisso, expresso pela inveja, que é o sintoma deste compromisso: a garota vai tentar manter simultaneamente, lado a lado, o desejo de coincidência e de plenitude e a defesa contra ele; daí a ideia da astúcia. “Se eu não estivesse ali, ela roubaria qualquer coisa. Nos olhos, a dissimulada sagacidade; nos olhos, a grande tendência à rapina.” O ideal de completude mobilizado pela percepção de que nela não coincidem o Ego e o Ego Ideal será deslocado para um suporte qualquer, que os olhos procuram avidamente: qualquer coisa serve como suporte neste momento, contanto que pertença à narradora, que, com toda a clareza, neste momento figura um duplo narcísico de Ofélia. Os olhos serão o veículo por excelência deste movimento, porque ao apreender a imagem da coisa a mantêm, por isso mesmo, fora do espaço corporal, realizando o compromisso exigido pelas duas tendências que se defrontam, e, de certa forma, satisfazendo a ambas. “Olhou-me rápida, e era a inveja: você tem tudo.” Você tem o atributo da perfeição e da completude; reparem que esta condição é metonimizada num objeto que, por ser limitado, pode ser imaginado como capaz de circular: o “ser” converteu-se num “ter”, com a evidente vantagem de que se pode roubar algo que o outro tem, enquanto é impossível roubar aquilo que ele é. “E a censura: porque não somos a mesma, e eu terei um pinto.” O fato de não sermos a mesma vem cristalizar toda a raiva, como se dependesse da narradora que “fôssemos a mesma”. A referência a “ser a mesma” indica que o movimento é de índole narcísica, e, de certo modo, Ofélia tem razão: algo dela (o Ego Ideal) acaba de ser projetado na narradora, e, sob este aspecto, elas “são a mesma”; mas esta projeção estabelece uma diferença insuperável entre ambas, porque uma “tem” (o Ego Ideal da outra) e a outra “não tem”: daí a censura, porque não somos a mesma. Tão logo realizado, o movimento projetivo é alvo de uma repressão; o objeto narcísico idealizado vem então habitar um suporte empírico, capaz de ser desejado sem que a suposta efetivação do desejo resulte na fusão indiferenciadora: “e eu terei um pinto”. A narradora, contudo, não se engana: Ofélia não queria apenas um pinto, “ela me queria para ela”. “Devagar fui me reclinando no espaldar da cadeira”. A agressão é sentida, e a narradora esboça um movimento de proteção, afastando um pouco seu corpo da menina cobiçosa. “Sua inveja que desnudava minha pobreza e deixava minha pobreza pensativa; não estivesse eu ali, ela roubava também minha pobreza”: quem a imagina feliz e deleitando-se com o pinto é a menina, já que tal fantasia é dela. Clarice nos diz assim, com infinita sutileza, que o invejado não compartilha desta fantasia, nem pode compartilhar, porque todo o movimento se dá no espaço psíquico do invejoso. O invejado sente que o outro deseja algo dele, sem no entanto saber o que é; daí o gesto de retração, como quem diz: — Não tenho isso que você cobiça. Haveria talvez muito a dizer sobre o que se passa na psique do invejado, mas não nos será possível entrar neste terreno aqui. Direi apenas que, confrontado com a idealização invejosa, o objeto desta idealização pode sentir-se ameaçado e constrangido, pois percebe com frequência o componente agressivo e destrutivo do movimento idealizador; talvez por isso, reaja muitas vezes através da denegação daquilo que de fato possui e é. “Ela queria tudo”: queria, mas também não queria, queria só um pinto, e queria qualquer coisa; sobretudo, queria não ter de sentir a falta, o limite, que naquele instante eram motivo de ódio e de dor. Tinha desejos, raiva, vontade de se reapropriar daquilo que projetara, medo e angústia diante da possibilidade de que isso ocorresse: numa palavra, Ofélia “sentia a mordida de uma dor secreta” — ela experimentava a miséria da inveja.

Notas

[1] “A legião estrangeira”, in Felicidade clandestina, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1971.

[2] Dante Alighieri, A divina comédia, Purgatório, XIII, 23-84.

[3] Summa Theologica, II-II, Questão 36, artigo 1.

[4] . Ética, livro III, proposição 32 e seu escólio.

[5] Metamorfoses, livro II, 770 e segs., trad. J. Chamonard, Paris, Garnier-Flammarion, 1966.

[6] Ver, por exemplo, a secção II do “Some Theoretical Conclusions regarding the Emotional Life of the Infant” (1952), bem como o capítulo ii de Inveja e gratidão (1957).

[7] Guy Rosolato, “Le narcissisme”, Nouvelle Revue de Psychanalyse, 13, 1976, p. 15.

[8] “Desejo e Inveja”, in Manoel T. Berlinck (org.), O desejo na psicanálise, Campinas, Papirus, 1985, pp. 67-103; “O escuro dos olhos brilhou como um ouro: notas sobre a inveja, a castração e o narcisismo”, Teoria da prática psicanalítica, 4, Rio de Janeiro, Campus, 1986, pp. 95-121.

[9] S. Freud, “Algumas consequências psíquicas da diferença sexual anatômica”, 1925, Studienausgabe v, pp. 260-1; Biblioteca Nueva, v. III, p. 2899.

[10] Laplanche e Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse, Paris, Gallimard, 1967, artigo “Envie du pénis”, p. 136.

[11] Cf. Conrad Stein, L’enfant imaginaire, Paris, Denoël, 1970.

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