A invenção da política
por Francis Wolff
Resumo
Nós e eles. O interior e o exterior. O amigo e o inimigo. De um lado, a paz (idealmente); de outro, a guerra (pré-concebida) – o que, se define a comunidade como tal, ainda não a define politicamente. Do contrário, para que crenças, mitologias, ideologias? Tudo isso que prova que, em política, não há “peixe dentro d’água”; antes, esforço e coerção. Eis o paradoxo mesmo, aliás: o pertencimento político à sociedade, que deveria ser natural, pressupõe, entre outros fatores, a coerção, como se necessária fosse uma segunda natureza. Mais: ela traz, em seu coração, a questão do poder – assim como deve ser para que tal sociedade continue existindo.
Daí que, mesmo sendo os homens sociáveis, é preciso forçá-los a entrar em sociedade, a acomodar-se em meio a seus semelhantes.
Contraditória essência, que impede de concluir se o político define-se pelo laço social ou pelo mando, conceitos presentes em todas as obras de filosofia política, seja, nelas, o mando um bem ou um mal (necessário). É isso ou uma sociedade em que entre ela e o poder houvesse uma fusão. Ou seja: em que a totalidade regulasse sua própria existência.
Ora, há sentido nisso?
Isso, ao menos, já aconteceu?
Sim. E duas vezes. Na Grécia clássica e no Brasil pré-cabralino. A começar por este.
Bem, o chefe indígena. Por mais presente que fosse, não agia por meio da coerção. Isso porque a função de tal chefe era apaziguar querelas, regular discórdias, nunca por meio da força, mas da influência, equidade e palavra.
Segundo Pierre Clastres, “a propriedade essencial desse tipo de sociedade é exercer poder absoluto sobre tudo que a compõe, ou seja, coibir a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a compõem, de modo a manter todos os movimentos internos que alimentam a vida social, conscientes e inconscientes, dentro dos limites e da direção desejada pela sociedade”.
Já na Atenas clássica – que data do século V a.C. –, vigia a democracia. Muito diferente da que se pratica hoje, inclusive nos atributos comuns entre ambas, que são a soberania do povo e a igualdade política, ela não se realizava por meio da representação, mas imediatamente, isto é, na Assembleia do Povo, onde qualquer cidadão podia pronunciar-se, debater e votar.
E quanto à máquina estatal? Ou seja: os magistrados, os membros do conselho e dos tribunais populares. Eles eram eleitos por sorteio, um mecanismo menos irracional do que parece; afinal, os candidatos não só eram voluntários como submetidos a exames acerca das virtudes cívicas.
Assim, o grego de então aprendia tanto a governar quanto a ser governado, assim como notou Aristóteles.
Enfim, se nenhuma sociedade inventou a vida política, as duas sociedades em questão inventaram, por meios bem diversos, o político, isto é, a fusão entre comunidade e poder.
Quando, há alguns meses apenas, em Paris, meu amigo Adauto Novaes propôs que eu abrisse este terceiro ciclo de conferências consagradas à descoberta do Brasil com uma exposição sobre a Grécia clássica intitulada “A invenção da política”, logo achei a ideia excelente e senti-me tão honrado com a proposta que aceitei de pronto. Foi depois (tarde demais!) que me pus a pensar. Afinal, perguntei-me eu, para que falar da Grécia quando se trata da origem do Brasil? E, sobretudo, por que falar da invenção grega da política? Não teria qualquer povo, à sua maneira, inventado a política e, entre eles, por que não, os índios da América de antes de Cabral? É verdade que os gregos são sólidos inventores em todos os domínios (na mesma época, inventam a ciência física, a demonstração matemática, a pesquisa histórica, a reflexão filosófica, para não falar dos cânones estéticos e da tragédia). E isso é verdade também no campo político: uma boa parte de nosso vocabulário político vem do grego — “tirania, “monarquia”, “democracia”, “aristocracia”, “oligarquia” e em particular a palavra “política”, derivada da Polis grega. Além disso, é claro que os primeiros pensadores políticos foram gregos, sejam eles historiadores (Heródoto, Tucídides), sofistas (Protágoras) ou filósofos (Platão, Aristóteles). Mas entre inventar palavras ou conceitos e inventar a coisa, a política ela mesma, há um abismo. Refletindo melhor, essa ideia de atribuir-lhes a invenção da política pareceu-me mesmo tão perigosa, quanto falsa.
Ideia perigosa porque etnocêntrica. Seria, me parece, fazer do político privilégio de um só povo e em particular do povo do qual a civilização ocidental vangloria-se de ser herdeira. Seria relegar à sombra do apolitismo ou do pré-político todas as formas de vida em comum anteriores aos gregos e sobretudo exteriores à civilização europeia. Porém, o que poderia fundamentar a superioridade desse modelo de poder para que tenhamos o direito de qualificá-lo, e a ele só, de “político”?
Ideia falsa porque isso seria confundir a vida política com uma de suas formas. Ora, todos os povos vivem politicamente. A partir do momento em que houve humanidade em alguma parte da terra, houve política. E isso todos nós sabemos… desde os gregos! A primeira sociedade particular na qual se reconheceu que a política não é característica de uma sociedade particular, mas do homem em geral, foi a sociedade particular grega. Assim, Protágoras explica que os homens devem viver politicamente, pois lhes faltam as qualidades biológicas de que dispõem as outras espécies animais para poder sobreviver na luta pela vida, e devem, portanto, se unir e dar prova das virtudes necessárias à cooperação e à vida em comum.
Platão explica a vida política a partir da insuficiência dos homens para satisfazer individualmente as próprias necessidades e da necessidade da divisão do trabalho.
Aristóteles vê no homem um “animal político” por definição, isto é, um ser que vive naturalmente em comunidades políticas e que não pode ser feliz senão nessa vida com seus semelhantes.
Era, portanto, à natureza em geral, ou pelo menos à natureza do homem, e não ao gênio grego em particular, que os pensadores gregos atribuíam a invenção da vida política. Sempre se pode, é claro, “ser mais realista que o rei” e atribuir aos gregos um privilégio que nem eles mesmos se concediam! Ou então dizer que a invenção particular dos gregos é justamente essa: a consciência de que eles nada têm de particular, o reconhecimento da universalidade do político, mas seria ainda uma vez confundir a reflexão política e a vida política, o conceito e a coisa. Mais vale concluir: ser fiel aos gregos, a seu gênio único, é dizer que o político é constitutivo do homem. Não existem inventores do político. Ele está na natureza do homem, que não o inventou…
E eu não deveria ter aceitado esta conferência.
E deveria menos ainda por situar-se ela no quadro de um ciclo consagrado à descoberta do Brasil. Ora, se todos os homens sempre viveram politicamente, esse é em particular o caso dos índios do Brasil de antes da descoberta. E era precisamente o que os descobridores europeus recusavam-se a reconhecer. Das tribos tupinambás, ele diziam com desprezo: “Sociedade sem fé, sem lei, sem rei”.
Mas era só porque eles não reconheciam sua fé, sua lei, seu rei, e porque identificavam o político com sua realização nas sociedades de onde eles próprios vinham, nas quais reinavam monarquias “absolutas” e “de direito divino”. Ao pretender falar, em um ciclo consagrado à descoberta do Brasil, da invenção grega do político, eu iria não somente ser infiel à mensagem grega a respeito da política, mas repetiria os mesmos erros da descoberta do Brasil.
Todavia, tendo aceitado, devo continuar. Devemos, portanto, nos deter um instante nessa descoberta grega da universalidade do político. O que significa aqui “político”? O que seria esta vida política constitutiva da vida humana, segundo os gregos?
De ordinário, o termo “político” não evoca de forma alguma um caráter geral da vida humana, mas certos homens em particular (os “políticos”, deputados ou ministros, ou os militantes), certos aspectos determinados da vida humana (ambição, popularidade, lutas pelo poder…), certos momentos privilegiados da vida pública (campanhas eleitorais, manifestações), ou ainda certos setores da vida social (por oposição à economia, à cultura, à educação…). É preciso romper com essas imagens para compreender a essência do político e sua ligação com o humano em geral. É preciso também mudar de método: não mais enumerar empiricamente aquilo que é político, mas deduzir a priori o seu conceito, esforçando-se para imaginar o que aconteceria sem política.
Duas coisas seriam possíveis. Poderíamos imaginar, para começar, o homem vivendo como a maioria dos animais, em estado isolado ou em casais erráticos que se formariam de maneira mais ou menos sazonal, quem sabe em pequenos grupos familiares mais ou menos estáveis. Sabe-se que esse não é nunca o caso. Além dos indivíduos, dos casais, dos grupos de consanguíneos, existe sempre outra comunidade que os inclui, uma comunidade que tem uma permanência no tempo transgeracional e uma identidade no espaço transfamiliar.
Em outras palavras, existem comunidades políticas. Eis então um ponto acertado. Dizer que o homem vive politicamente é dizer que, de fato, vive e que, de direito, ele não poderia, indubitavelmente, viver fora dos laços que o unem a essa comunidade relativamente estável que transcende as relações biológicas. Uma comunidade política assim tende efetivamente a conservar sua unidade mantendo-se como espaço de coexistência, como meio de troca de bens reais ou simbólicos — as mercadorias, as palavras ou as mulheres, para retomar a tricotomia de Lévi-Strauss — e como recinto de uma experiência histórica idêntica, passado e porvir, real e imaginária. Nunca é somente o laço biológico que reúne os homens, embora às vezes os mitos originários que eles transmitem ou a ideologia nacionalista (a do sangue) que circula entre eles façam com que acreditem descender, todos, de um ancestral comum, fundador longínquo da linhagem ou pai da comunidade: esse tipo de ilusão, como qualquer outro laço simbólico, tende a soldar a comunidade e mantê-la unida. Concluamos este ponto: uma tribo, uma Cidade antiga, uma nação moderna, um império, uma federação são comunidades políticas; aqueles que fazem parte dela têm uma memória comum e um sentimento de pertinência, distinguindo o interior (nós) e o exterior (eles), muitas vezes até, mais radicalmente, o amigo e o inimigo, o civis do hostis.
O interior é, ou antes, deveria sempre ser, a paz. O exterior é, ou antes, sempre poderia ser, a guerra. A vida política é, portanto, a vida dessa comunidade enquanto tal, o que faz com que ela seja e permaneça sendo uma comunidade, além de todos os riscos internos (desordens, dissensos) ou ameaças externas (agressões, guerras).
Contudo, o comunitário não é suficiente para definir o político. Aliás, o próprio fato de que sejam necessários, por exemplo, as crenças, os mitos ou as ideologias que acabamos de evocar para garantir o laço politico, mostra bem que a vida política não é natural ao homem como a respiração o é. Os homens não vivem na comunidade como um peixe na água. Eles vivem todos e sempre de modo político, mas isso não quer dizer que tal aconteça sem esforço nem coerção. Eis o paradoxo: eles vivem necessariamente em comunidades políticas, mas não podem fazê-lo sem coerção, isto é, sem política, justamente. E viver politicamente é isso. É como se a natureza os obrigasse a viver contra a sua natureza. E essa dupla natureza é o político.
Expliquemo-nos. Perguntávamos há pouco o que aconteceria em um mundo onde seres em tudo semelhantes aos homens vivessem sem política. Nesse mundo, dizíamos, esses homens, que homens não seriam, poderiam viver dispersos, ou seja, fora de qualquer comunidade política. Mas existe outra possibilidade. Nesse outro mundo, seres que não seriam mais homens do que os precedentes poderiam viver nessas mesmas comunidades, mas sem política. Eles viveriam serenamente, harmoniosamente, no mais perfeito entendimento, sem conflito, estariam na comunidade, no seio de seus semelhantes como um peixe na água; a comunidade se manteria por si só em sua unidade e se reproduziria sozinha. Nenhuma necessidade de rei, de regras, de proibições, de castigos, de uma polícia, de um governo, em suma, de uma instância política para assegurar a sobrevivência da comunidade contra ela mesma ou contra as agressões exteriores, para evitar ou regrar os conflitos etc. Em uma palavra, nenhuma necessidade de um poder. (Esta quimera de uma comunidade sem poder, ou pelo menos dotada de um poder não-coercitivo, sem exército nem polícia, alimentou inúmeras utopias desde T. More até certas teorias “anarquistas” ou “comunistas”. Pode-se compará-la com um outro mito, o do paraíso como lugar imaginário onde os homens poderiam viver sem trabalhar. Como as utopias comunistas imaginavam um lugar onde as comunidades políticas poderiam viver e se perpetuar satisfazendo as próprias necessidades sem a obrigação do trabalho. Sem dúvida, o trabalho é para o homo economicus o que o poder é para o homo politicus. Eles são, um e outro, as duas faces da maneira humana de viver aqui embaixo.)
A política define-se, portanto, por dois traços essenciais. É preciso uma comunidade e é necessário que, no próprio seio dessa comunidade e não fora dela, exista uma instância de poder. Existe política a partir do momento em que uma comunidade se coloca a questão do poder ou desde que o poder exercido por alguns (tais indivíduos, tais castas ou tal classe social) se exerça no quadro de uma comunidade e tendo em vista o seu modo de vida. Dissemos poder e não hierarquia, autoridade ou comando. Talvez existam comunidades não-hierarquizadas, pode-se discutir essa possibilidade. Mas é certo que existem certas comunidades hierarquizadas, nas quais alguns homens comandam outros homens, mas que não têm poder político propriamente dito. Dessas comunidades, pode-se dizer que têm uma política, mas não que sejam comunidades políticas. É o caso, por exemplo, de uma universidade ou de uma empresa. Uma empresa moderna é uma comunidade fortemente hierarquizada, onde existem relações de autoridade, onde decisões são tomadas, ordens são dadas: logo, existe nesse sentido uma “política da empresa”. Mas não é uma comunidade política porque, nesta, as ordens e decisões só podem ser aplicadas, pelo menos normalmente, se forem garantidas pelo direito ou pela força do Estado, isto é, pelo poder propriamente político.
Tais são, portanto, os dois aspectos opostos e complementares constitutivos do político: de um lado, o comunitário, de outro o poder. Não há política sem a ideia de uma comunidade separando o “nós” e o “eles”. Mas também não há política sem um poder que assegure, e geralmente pela força, a continuidade da existência da comunidade.
Embora os dois polos do político estejam sempre associados nas sociedades humanas, como as duas faces de uma mesma moeda, é importante notar que conceitualmente eles são perfeitamente distintos. E, em certo sentido, até antagonistas. É o que prova o estranho laço que mantêm com a natureza do homem. É como se esta última fosse contraditória. Se, de fato, os homens pudessem viver naturalmente em harmonia, sem paixões egoístas, o poder seria supérfluo, a vida política seria espontaneamente uma vida comunitária; então seria possível uma comunidade sem poder, uma sociedade sem polícia; em outras palavras, uma vida política sem política. Se, inversamente, a concórdia fosse contranatura para os homens, se eles não pudessem viver juntos, se fossem por natureza rebeldes a qualquer sociedade, viveriam isolados, e a vida política reduzir-se-ia à violência e à guerra, isto é, não haveria nenhuma diferença entre a comunidade (onde reina, em princípio, sempre a paz) e seu exterior (onde pode sempre reinar a guerra). Ainda aqui, seria o fim do político. Os homens, são, portanto, de uma natureza tal, que querem viver em comunidade, no entanto só podem fazê-lo sob coerção. Eles são essencialmente sociáveis, mas é preciso forçá-los a entrar em sociedade e a acomodar-se aos outros. É o que Kant, em célebre fórmula, chamava de “insociável sociabilidade”.
Essa natureza contraditória do homem traduz a dupla essência do político — a menos que seja o inverso. E é por isso que a história da filosofia política parecia hesitar bastante entre esses dois conceitos do político: ou o político é definido a partir do laço social — e o poder é então um simples meio de garanti-lo; ou é definido a partir das relações de coerção, de comando e de luta — e a comunidade é um simples meio de realizar sonhos de poder ou a perpetuação amortecida de uma violência originária. Ora as filosofias políticas são teorias da sociedade e do bem comum e ao mesmo tempo projetos de sociedades melhores; ora são teorias do poder (como alcançá-lo, conservá-lo), do bom governo (como comandar os homens, administrar as coisas) e de excelência da ação (oportunidade, decisão). As duas tendências, bem entendido, estão mais ou menos presentes em todos os autores, mas sua preponderância determina todavia estilos teóricos distintos. Não é difícil ver que os primeiros muitas vezes pintam o politico sob uma claridade luminosa, vendo nele a realização do Bem, enquanto os segundos insistem na inelutável perfídia do político, vendo nele um mal necessário.
Tais são, portanto, a essência contraditória do político e sua ligação com a natureza contraditória do homem. Eis por que todos os homens sempre viveram politicamente, do bando primitivo ao Estado moderno. Nenhuma sociedade é mais política que a outra. Nenhum homem inventou a política… E nenhuma razão justifica que eu lhes fale aqui da invenção da política.
No entanto, se houvesse uma sociedade na qual os dois conceitos opotos que definem o político — de um lado a comunidade, de outro o poder — se encontrassem reunidos a ponto de serem confundidos, indistinguíveis, poder-se-ia dizer de tal sociedade que ela, a seu modo, fundou a possibilidade da unidade do político e inventou, de certa maneira, seu conceito — um conceito único e não duplo. Se houvesse uma comunidade que, em lugar de manter-se por meio de um poder distinto dela mesma (uma instância organizada para esse fim, um chefe todo-poderoso, um grupo dirigente, uma classe dominante, um Estado), se conservasse em sua unidade apenas por sua própria potência, uma sociedade na qual o poder político só pudesse ser localizado na comunidade política em seu conjunto, poderíamos dizer dessa sociedade que ela realizou a ideia do político. Tal conceito de político, no qual se confundem os dois polos da comunidade e do poder, tem um sentido? Alguma vez existiu uma sociedade que realizasse esse conceito? Creio que sim. E vejo até duas — e nenhum delas é qualquer uma. Vejo justamente a Grécia clássica e… os índios do Brasil de antes da descoberta!
Consideremos, de fato, as sociedades indígenas da floresta, tais como descritas por P. Clastres (La société contre l’État).
Existe, é claro, uma instância política, encarnada nos chefes (os mburuvicha). Mas, salvo algumas exceções — atestadas por alguns grupos arawak localizados no Noroeste, onde as chefias são organizadas em castas eles não gozam de nenhum poder coercitivo; o papel do chefe é “apaziguar as querelas, regular as discórdias, não através do uso de uma força que ele não possui e que não seria reconhecida, mas fiando-se apenas nas virtudes de seu prestígio, de sua eqüidade e de sua palavra. Mais que um juiz que sanciona, ele é um árbitro que procura reconciliar”.
Logo, segundo a expressão de R. Lowie ele é um “fazedor de paz”, uma instância moderadora do grupo — e isso graças unicamente à sua palavra: é por isso que somente um bom orador pode ascender à chefia. O dever do chefe não é comandar, mas falar. Ele não dispõe de nenhum domínio direto das coisas ou dos homens, mas somente das palavras. Sua palavra tem como função restabelecer a ordem interior lá onde a desordem ameaça, reacomodar a unidade do grupo cada vez que o tecido social estiver correndo o risco de esgarçar. Mas esse tecido social e essa unidade da comunidade, não está em seu poder criá-los, assim como não dispõe de nenhuma arma, de nenhuma polícia ou milícia para garantir a ordem; o chefe tem autoridade, mas não tem poder; a unidade e a ordem não emanam dele, mas da própria sociedade: confundem-se com ela. Não é ele, portanto, quem exerce o poder sobre ela, é ela que exerce o poder sobre ela mesma através e por intermédio da palavra do chefe — pelo menos em tempo de paz, pois durante as expedições guerreiras o chefe adquire poder soberano e autoridade absoluta sobre todos. Falar para fazer a paz, comandar para fazer a guerra, estas são as duas funções opostas do chefe indígena — e, por assim dizer, as duas maneiras de garantir a existência da comunidade. Em tempo de paz, a coletividade é a fonte de todo poder, e o chefe lhe é subordinado, não tendo senão uma função mediadora; em tempo de guerra, o chefe é a fonte de todo poder, exerce um função de comando, e os membros da coletividade lhe são subordinados.
Assim, ao contrário de um poder que se exerce do exterior sobre a sociedade, um poder que, a exemplo do Estado moderno, dispõe do monopólio do direito e da força, para fazer de um monte de indivíduos um todo, é a própria coletividade que exerce, sem nenhuma violência, obrigação ou coerção, se não a sua própria existência, um poder absoluto sobre todos os seus membros, sobre todos aqueles que a compõem e que ela reúne em uma unidade. É assim que, como escreve ainda uma vez P. Clastres, a “propriedade essencial da… sociedade primitiva é exercer um poder absoluto sobre tudo aquilo que a compõe, é proibir a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a compõem, é manter todos os movimentos internos que alimentam a vida social, conscientes e inconscientes, dentro dos limites e da direção desejada pela sociedade” (La société contre l’État, p. 180). Todo o esforço da sociedade volta-se para impedir a constituição de um poder autônomo e estranho a ela mesma. Podemos ver o que opõe esse tipo de sociedade primitiva às sociedades modernas dotadas de um Estado. A sociedade primitiva resiste à possibilidade de nascimento do Estado concentrando em si mesma todo o poder possível, na coletividade como tal: nada de individual escapa ao império do coletivo. É o inverso do Estado moderno: o Estado define-se como poder absoluto e autônomo em relação à sociedade e como única autoridade legítima que a controla. Mas, em compensação, essa exterioridade do Estado em relação à “sociedade civil”, ou seja, essa onipotência do Estado em detrimento da coletividade permite, mais ou menos, a existência de uma esfera de liberdade para os indivíduos, deixa uma margem de independência, variável mas certa, às pessoas, às famílias ou aos grupos e garante um “jogo” para os movimentos multidirecionais da sociedade e para as ações centrípetas de seus membros, suas opiniões ou seus interesses. Ao concentrar no Estado, isto é, fora dela mesma, todo o poder, a sociedade moderna renuncia à onipotência da coletividade sobre os indivíduos e os grupos sociais. Inversamente, ao concentrar nela mesma todo o poder, que a cada instante só se exerce na palavra precária e desarmada do chefe, a sociedade primitiva renuncia a toda forma de violência legal, mas renuncia ao mesmo tempo a toda forma de lei, que é o que define o livre jogo da ação individual, garantindo-a. É nos regimes totalitários, nazismo ou stalinismo, onde são reduzidas a nada a identidade e até a existência da sociedade civil, que o Estado, por assim dizer, absorve o poder que, de ordinário, é exercido pela coletividade enquanto tal sobre os indivíduos e os grupos, e concentra, por assim dizer, as duas onipotências, aquela que é habitualmente sua, o monopólio da força e do direito, e aquela que, nas sociedades sem Estado, cabe à comunidade, a potência de unidade e de conformidade ao coletivo enquanto tal (até mesmo, como é o caso do nazismo, com o mito da unidade de proveniência original própria das sociedades primitivas). Assim, o Estado totalitário moderno aparece com a absolutização de um poder exercido contra a sociedade, assim como a sociedade indígena aparece, simetricamente, como a absolutização do poder exercido pela sociedade sobre ela mesma. À “sociedade contra o Estado” dos tupis-guaranis, respondeu, cinco séculos mais tarde, “o Estado contra a sociedade” dos regimes totalitários.
Percebe-se, portanto, em que sentido é possível dizer que os índios do Brasil de antes da conquista inventaram de certa forma a ideia do político. Justamente no sentido em que são “sem fé, sem lei, sem rei”. Isso não é sinal de que vivem de maneira não-política, conforme a interpretação dos conquistadores, mas, ao contrário, de que realizam a essência do político, sem a mediação de uma fé para garantir sua autoridade, de uma lei para fazer reinar a ordem e de um rei para ordenar. Não há necessidade de uma fé para acreditar na palavra do chefe, não é um livro sagrado que dá fundamento ao poder, que não precisa ser fundamentado, pois se confunde com a existência mesma do grupo. Não há necessidade de rei comandando seus súditos, nem mesmo de uma instância enunciadora das leis para viver politicamente. É através dessas ausências, que não são faltas e sim recusas inconscientes da sociedade, que se define a unidade do político. Pois a instância comunitária, longe de ser, como é o caso na maioria das sociedades, distinta da instância coercitiva, forma com ela uma só, que é a própria instância política.
Existe outra sociedade histórica que, por vias totalmente diversas, realizou ela também a unidade das duas instâncias políticas opostas, aquela pela qual os homens vivem juntos e aquela pela qual eles se submetem uns aos outros. Trata-se da Cidade grega, mais exatamente da Atenas clássica do século V.
É sabido, com efeito, que os gregos inventaram uma forma de vida em comum na qual o poder político é exercido pela própria comunidade política. Trata-se da “democracia”? De fato, costuma-se dizer que os gregos inventaram a democracia. Mas se entendemos por democracia aquele regime sob o qual vivemos desde, por alto, o século XVIII, então isso é falso. O regime que conhecemos sob esse nome tem uma origem histórica bem diferente daquela da Grécia — foi tecido por três revoluções: a inglesa, a americana e a francesa — e repousa sobre princípios totalmente diversos daqueles da democracia ateniense, que aliás não se chamava a si mesma de “democracia”, mas de “isonomia” (= lei igual ou distribuição igual [do poder]).
Há, no entanto, entre os dois regimes, a “democracia” antiga e a moderna, dois princípios gerais comuns, aliás complementares. O princípio de soberania do povo e o princípio da igualdade política de todos os membros da comunidade política. Esses princípios comuns são suficientes para que se diga que, nos regimes que hoje chamamos de democráticos, é a coletividade que exerce o poder sobre ela mesma? Não, pois esses dois princípios gerais encontram-se completados e realizados em nossos dias em dois princípios particulares que têm justamente como objetivo, ou pelo menos como efeito, garantir a exterioridade entre a comunidade e o poder, enquanto na democracia antiga, ao contrário, esses dois princípios gerais vêem-se completados e realizados em dois princípios particulares que têm como finalidade garantir a mais completa identidade possível entre as duas instâncias constitutivas do político.
Nos regimes modernos, de fato, o primeiro princípio, o da soberania popular, se exerce e se realiza por meio de representantes (os deputados, os senadores, talvez os ministros) — o que é uma ideia perfeitamente estranha aos gregos e totalmente estranha à tradição democrática. Recordemos os propósitos severos de Rousseau contra a ideia de representação: “A Soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada…”; e o povo que vive sob este regime [o povo inglês] “pensa ser livre; está muito enganado, ele só o é durante a eleição dos membros do parlamento; tão logo estes são eleitos, ele se torna escravo, ele nada é. Nos curtos momentos de sua liberdade, o uso que faz dela bem merece que ele a perca” (Do Contrato Social, III, XV). E, como mostra B. Manin em seu livro Principes du gouvernement représentatif, o regime de representação destinava-se justamente, no espírito de seus fundadores, a afastar os membros da própria comunidade das decisões políticas e a reservá-las para alguns cidadãos particularmente selecionados. Ao contrário, na democracia o princípio de soberania popular se realiza imediatamente, e essa soberania se exerce na Assembleia do Povo, a Ekklesia, que é responsável em conjunto pelas principais decisões tomadas pela comunidade e para esta, a Polis: lá, as proposições são feitas por qualquer cidadão, e, depois de debatidas, as decisões são tomadas por maioria de votos. Pode-se perceber que em um dos casos a ideia de soberania popular não impede a constituição de um órgão de poder independente da própria comunidade (o Parlamento) e a constituição de um grupo, aquele dos “homens políticos”, especializado nos negócios de todos, enquanto, no outro caso, todo o esforço da instituição política parece destinado a garantir o exercício real do poder político por todos aqueles que fazem parte da comunidade política.
Nos dois regimes — “democracias” antiga e moderna — o princípio geral de soberania popular é completado por um segundo, a igualdade política de todos os membros da comunidade. Mas ainda uma vez, tal princípio se realiza de duas maneiras opostas. Entre nós, os Modernos, essa igualdade se realiza essencialmente na operação de escolha dos governantes, a eleição dos representantes segundo o princípio do sufrágio universal; uma cabeça, uma voz. E nada nos parece mais democrático que esse princípio. Não era assim entre os gregos, para quem a eleição é, por definição, um princípio antidemocrático, o princípio do governo que eles mais frequentemente opõem à democracia: a oligarquia. De fato, no espírito de seus defensores, a eleição serve para selecionar a priori aqueles que, no entendimento geral, são mais competentes para exercer determinados cargos dirigentes essenciais. Portanto, o duplo pressuposto da eleição é: de um lado, apenas “alguns” (oligoi), os melhores, devem exercer as funções de comando; em outras palavras, os interesses de todos dizem respeito à competência de alguns (pressuposto “tecnocrático”: poder da competência); de outro, uma competição entre os pretendentes a tal cargo deve permitir que se escolham os melhores — é a eleição, na qual intervêm nascimento, influência, autoridade, reputação pela experiência do passado, proposições para o futuro e outras considerações (pressuposto “aristocrático”: poder concedido aos melhores). Mais uma vez, é possível ver que o funcionamento dos regimes pseudodemocráticos modernos tem como efeito, se não por fim, confiar a alguns os interesses de todos, reservar o domínio político para uma elite especializada, ou seja, separar a instância do poder daquela da comunidade.
Muito diferente era o que acontecia com os antigos, entre os quais o princípio de igualdade não se realizava no sufrágio universal, mas em três instituições complementares que realmente completam o princípio de soberania popular: a isègoria ou igual direito de todos à palavra política, a rotatividade dos cargos e o sorteio — instituição absolutamente oposta à eleição, e verdadeiramente definidora da democracia antiga.
Comecemos então por ele. Na democracia ateniense a seleção dos políticos se fazia essencialmente através do sorteio.
À primeira vista, isso parece absurdo, ainda mais porque o sorteio diz respeito a numerosas e importantes funções: são escolhidos dessa forma não somente a maioria dos “magistrados”, isto é, os funcionários da administração pública (cerca de 600 dos 700 magistrados do século V), mas também os 500 membros do Conselho (a Boulè, Assembleia que prepara as reuniões e aplica as decisões da Assembleia do Povo), assim como todos os membros dos tribunais populares, os 6.000 heliastas que dispunham de importantes funções políticas, pois a Heliéia acabava funcionando como uma espécie de “Conselho Constitucional” encarregado de controlar a legalidade das decisões da Assembleia. A eleição, que está no princípio do regime aristocrático, é a exceção na democracia e não concerne senão os cargos públicos que necessitavam, aos olhos dos atenienses, de competências especiais, essencialmente as funções militares (em particular os “estrategos”, o que valeria a Péricles a eleição para tal magistratura quase vinte vezes) — às quais virão se juntar no século IV as magistraturas financeiras. Como explicar essa instituição do sorteio, que parece politicamente enigmática e mesmo irracional, pois, conforme observavam os antigos adversários da democracia, Xenofonte e Platão, permite que qualquer um, não importa quais sejam as suas aptidões, exerça uma função pública?
O sorteio democrático por muito tempo pareceu tão irracional para os historiadores modernos, que outrora eles o explicavam por razões religiosas. A sorte, diziam eles, não era para os gregos um acaso cego, mas vontade divina: são os deuses e não os homens que escolhem aqueles que desejam colocar à frente da Cidade. Essa interpretação é, hoje, unanimemente rejeitada. Observa-se primeiramente que a aparente irracionalidade da instituição é temperada pelas seguintes considerações: não poderiam ser escolhidos senão os candidatos voluntários, o que, tendo em conta o peso dos encargos e dos riscos incursos em caso de má gestão, implicava uma auto-seleção severa; depois os candidatos eram submetidos a um exame — a dokimasia — não de suas competências, mas de suas virtudes cívicas; em seguida, todos os cargos sorteados eram assumidos colegialmente, o que diminuía os efeitos nefastos de escolhas infelizes e conferia um papel determinante à deliberação coletiva; por fim, cada magistrado poderia ser suspenso em curso de mandato por um voto da Assembleia, sob a simples acusação de qualquer cidadão, e deveria de todas as formas, ao final do mandato, “prestar contas” publicamente de sua gestão.
Mas não basta que a irracionalidade do sorteio seja temperada por essas condições de aplicação para que possa ser justificada politicamente. Ele se torna, contudo, facilmente explicável e perfeitamente legítimo na medida em que se guardam na memória os conceitos que destacamos: o sorteio é o sistema mais eficaz para impedir a constituição de uma instância do poder distinta da instância da comunidade — e em última instância oposta a ela; é também o único sistema que permite que todos os membros da comunidade, enquanto tais e não como políticos especializados, participem de seu governo. Examinemos essa questão mais de perto.
Para compreender melhor a razão de ser do sorteio, é preciso aproximá-lo de um outro princípio do funcionamento da democracia, o princípio da “alternância dos cargos”, que significa duas coisas: para começar, negativamente, que ninguém poderia exercer por duas vezes o mesmo cargo — o que implica, dado o número de postos a preencher em relação ao número de cidadãos, que uma proporção importante deles deveria ser levada, mais dia menos dia, ao exercício de uma função pública; mas o princípio de alternância implica também, positivamente — é um ponto sobre o qual os democratas gregos insistiam —, que todo o cidadão deveria ser alternadamente “governante e governado”.
É justamente o que define, para Aristóteles, a virtude cívica; “ser capaz de bem comandar e bem obedecer” (Pol. III, 1277-27). Só pode comandar bem, deleitavam-se os gregos em repetir, quem obedeceu.
Conforme observa B. Manin: “A alternância dos cargos fundamentava assim a legitimidade do comando. O que conferia títulos de comando era o fato de ter ocupado a outra posição” (Principes du gouvernement représentatif, p. 46). E tem mais: “na medida em que aqueles que comandavam num dia haviam obedecido anteriormente, eles tinham a possibilidade de levar em consideração, em suas decisões, o ponto de vista daqueles a quem as decisões eram impostas(…) Melhor ainda (…): aquele que comandava num dia era dissuadido de tiranizar seus subordinados porque sabia que teria, em outro dia, que obedecer-lhes” (ibid., p. 47).
O princípio da alternância e o princípio do sorteio formam, portanto, um sistema e definem um regime que visa à mais perfeita adequação entre aqueles sobre os quais se exerce o poder — ou seja, a comunidade — e aqueles que o exercem, a mais perfeita identidade entre os dois polos do político.
Mas esse princípio do sorteio democrático — oposto ao princípio oligárquico da eleição — forma um sistema sobretudo com a instituição complementar que realiza a igualdade dos membros da Cidade democrática, a isègoria. Sabe-se que, na Assembleia do Povo, órgão da soberania popular, todos os cidadãos são convidados a se levantar para opinar sobre a decisão a ser tomada ou a lei a ser votada. De forma que a democracia implica não apenas que se tomem decisões em maioria, mas sobretudo que a elas se chegue por meio do debate público, isto é, da defesa argumentada das posições opostas. E lá onde prevalece a autoridade da deliberação coletiva domina a persuasão e, portanto, a retórica. É o que acontece em todos os lugares políticos em que se joga coletivamente a sorte da Cidade: tribunais, assembleias populares ou reuniões comemorativas. É o que observa Aristóteles, que assim nos leva a distinguir três tipos de retóricas, nas quais se opõem o justo e o injusto, a fim de julgar o que foi feito no passado (retórica judicial do tribunal); o útil e o inútil, a fim de julgar o que convém fazer no futuro (retórica política da Assembléia do Povo); ou o bem e o mal, a fim de que a Cidade possa lembrar seus valores presentes (retórica epidíctica das reuniões cívicas).
Mas isso leva Aristóteles a fundar o caráter naturalmente político do homem em sua aptidão para a palavra, pois o homem está não somente predisposto a viver em sociedade (apto a viver em comunidade, como outras espécies gregárias) — o que, segundo a análise que propusemos, é apenas uma das duas condições do político —, mas também a nela viver politicamente, isto é, a colocar justamente a questão do poder — o que constitui para nós o outro polo do político. Essa aptidão para o poder, no entanto não se manifesta de modo algum, para Aristóteles, na capacidade natural de certos homens para comandar, por exemplo, mas precisamente na aptidão de todos para falar — a falar não para dar ordens aos outros ou para expor-lhes a ordem do mundo, mas para argumentar, opor prós e contras, dizer o bem e o mal, o justo e o injusto.
Ora, o que é notável é que essa ligação entre o político e a linguagem está inscrita na instituição mesma da isègoria: todos os homens, e todos os homens igualmente, simplesmente na medida em que falam, estão aptos a viver em comunidade e, precisamente porque falam e podem dizer o justo e o injusto, a participar do poder da referida comunidade. Encontra-se no funcionamento da isègoria até mesmo uma aplicação do princípio igualitário idêntica àquela que se encontra na instituição do sorteio. De um lado, o órgão supremo da decisão política, a Assembleia: através da instituição da democracia direta, ela está aberta igualmente a todos os membros da Cidade, e, pela instituição da isègoria, a palavra é dada a todos os cidadãos voluntários, de modo que todos aqueles que querem colocar sua opinião a serviço da Cidade podem pesar igualmente na decisão, qualquer que seja a sua competência a priori; o funcionamento é no fundo análogo para as magistraturas, órgãos do governo e de administração pública: elas são abertas igualmente a todos os membros da Cidade e, através da instituição do sorteio, a tarefa é confiada a todos os cidadãos voluntários, de modo que todos aqueles que queiram colocar as próprias qualidades a serviço da administração pública possam pesar igualmente, qualquer que seja a sua competência a priori.
Pode-se ver, portanto, como a Cidade grega e seu regime isonômico, bem melhor que as ditas democracias modernas, aplicam, em seus princípios de funcionamento, os princípios gerais de soberania popular e de igualdade de todos. A democracia moderna aplica o princípio da soberania popular por meio de representantes e não dá igualdade a todos senão como direito de eleger os próprios representantes. Tudo se passa como se esse regime se esforçasse para constituir, fora da comunidade política da qual ela deveria emanar, uma instância separada encarregada de exercer sobre ela o poder e de governá-la do exterior. A democracia antiga, ao contrário, aplica o princípio de soberania popular por intermédio da isègoria, e além disso dá, através do sorteio, direito igual a todos de participar da administração pública. Tudo se passa como se esse regime se esforçasse para impedir qualquer dicotomia entre a comunidade e o poder e para reconciliar as duas instâncias do político. De modo que, a despeito de seus dois princípios aparentemente comuns, a democracia antiga e a democracia moderna são na verdade dois sistemas opostos. A democracia parlamentar permanece sendo um regime politicamente “bipolar” entre comunidade e poder, entre governados e governantes, entre coletividade de todos aqueles que vivem politicamente e a casta estreita daqueles que vivem da política, mesmo que — por oposição a todos os outros regimes — a ideia de representação pareça oferecer a garantia de que o segundo polo saiu do primeiro, que é um seu reflexo depurado, filtrado, como que ideal. Por oposição, a Cidade democrática oferece um dos raros exemplos de regime “unipolar”, em que nenhum grupo particular da coletividade monopoliza o político e onde nenhum setor particular da vida pública é excluído da vida política. É como se tudo o que fosse comum fosse político porque todos aqueles que participam do comum são políticos. É por isso que a Atenas democrática nos parece uma das raras sociedades a não viver politicamente, seria o caso de todas, mas a inventar uma maneira política de viver baseada na essência una do político.
Desse ponto de vista, e a despeito do abismo que separa as duas sociedades, suas dimensões, seu modo de produção econômica, suas relações sociais, seu estágio de desenvolvimento técnico, sua cultura, sua história, existe justamente uma analogia entre a tribo tupi-guarani de antes da descoberta do Brasil e a Cidade ateniense. Tudo se passa como se uma e outra se esforçassem para impedir a constituição de uma esfera do poder político autônoma. Sem dúvida, nos dois casos verifica-se certamente o exercício de uma função propriamente política e órgãos encarregados de exercê-la: o chefe entre os índios, as Assembleias e magistrados em Atenas. Mas, a despeito das aparências, nem um nem os outros são distintos da sociedade. Eles não têm, por eles mesmos, nenhum poder, sua autoridade depende de um poder que está na própria sociedade, a coletividade tribal de um lado, a Cidade reunida do outro. O chefe indígena não tem outro poder se não aquele de que a coletividade dispõe sobre seus próprios membros e que ele se limita a relembrar em seu discurso. Assim também, o que permite que os órgãos políticos governem Atenas não é o seu próprio poder, pois eles não são, em sua composição como em seu modo de funcionamento, mais do que a comunidade, ela mesma sendo atriz de sua própria vida, sujeito e objeto do político. E, assim como P. Clastres pode falar da tribo indígena como de uma “Sociedade contra o Estado”, pode-se dizer que Atenas era uma “Cidade contra o Estado”, se entendemos por Estado o aparelho que, nas sociedades modernas, monopoliza o poder político, isto é, o direito e a força que se impõem a todos.
Talvez seja possível levar mais longe o paralelo. Vimos que a tribo indígena é política justamente ao ser, como, sem perceber, bem diziam os primeiros colonos, “sem fé, sem lei, sem rei”. Assim também, mutatis mutandis, para a Cidade grega. É claro, como os índios, os gregos são religiosos; seus deuses são até deuses cívicos. Mas, como observa M. Finley, “a religião não fornecia nenhuma justificação doutrinal ou ética, no sentido próprio, nem para a estrutura do sistema [político] como um todo, nem para as ações realizadas ou projetadas pelo poder”.
Da mesma forma, os gregos clássicos não têm um monarca — é, aliás, o que chocava os seus visitantes estrangeiros na antiguidade, assim como chocava os conquistadores ocidentais dos índios no século XV. Ao arauto de Tebas que se espanta com tal ausência, Teseu responde, em As Suplicantes: “Esta cidade não é governada por um só homem; ela é livre. Nela o povo é rei; cada um recebe o poder alternadamente por um ano. Ela não concede nenhum privilégio à fortuna, mas os pobres e os ricos nela possuem direitos iguais (404-408).” Por fim, sem dúvida, os gregos dispõem de leis, ao contrário dos índios — eles talvez até sejam os inventores da ideia moderna de lei, fórmula geral que determina direitos e deveres sem distinção de pessoa. Mas não dependem de nenhuma lei anterior nem exterior a seu próprio poder absoluto de legiferar, não obedecem a nada além das leis que conscientemente deram a si mesmos, e enquanto eles próprios não se dotarem de outras. Conforme observa C. Castoriadis, no caso da Grécia antiga, existe um “reconhecimento do fato de que a fonte da lei é a própria sociedade, de que nós fazemos nossas próprias leis, de onde resulta a abertura da possibilidade de colocar em causa e em questão a instituição existente da sociedade, que não é mais sagrada”.
Nesse sentido, o nomos grego, que no século V significava apenas “costume” e opunha-se à necessidade, à constância e à universalidade da natureza, é tão frágil e precário quanto a palavra do chefe indígena. Em todo caso, nada que o iguale ao absoluto de uma lei fundamental, à onipotência de um texto canônico ou à idéia moderna de “lei da natureza”, necessária e universal. De modo que, do ponto de vista do fundamento de suas instituições políticas, pode-se muito bem dizer que os gregos, eles também, são “sem fé, sem lei, sem rei”.
Eis então o primeiro princípio, aquele da soberania: nossas duas sociedades, indígena e grega, têm soberania absoluta sobre si mesmas. Mas existe um segundo princípio fundamental necessário à unidade do político, aquele da igualdade de todos os membros do corpo social diante do poder. Vimos como todo esforço das instituições governamentais atenienses era de preservação. Pode-se mesmo acrescentar outra instituição estranha e típica da democracia grega, o ostracismo, que permitia excluir da Cidade por dez anos qualquer cidadão cuja reputação eminente ou cujas qualidades excepcionais pareciam constituir uma ameaça à democracia e um risco de retorno à tirania. Com isso, a Cidade parecia dizer a quem queria ser chefe: lembra-te de que não és mais que os outros. Encontra-se o mesmo igualitarismo entre os índios. P. Clatres escreve: “Em virtude mesmo do estreito controle ao qual a sociedade submete, como todo o resto, a prática do líder, raros são os casos de chefes colocados em situação de transgredir a lei primitiva: tu não és mais que os outros.” Pois em sua relação normal com seus semelhantes, o chefe não se faz de chefe. Esse é o testemunho do cacique Alaykin, chefe de uma tribo abipone do Chaco argentino, respondendo “a um oficial espanhol que queria convencê-lo a lançar sua tribo em uma guerra que ela não desejava: ‘os abipone, por uma ordem recebida de seus ancestrais, fazem tudo de seu jeito e não do jeito de seu cacique; se eu usasse as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me voltariam as costas. Prefiro ser amado por eles e não temido por eles’” (La société contre l’État, op. cit., p. 177).
Existe ainda um último ponto comum entre nossas duas sociedades. Vimos que, segundo sua função ordinária, o chefe deve garantir a unidade e a perenidade do grupo apaziguando os conflitos internos unicamente através da autoridade de sua palavra. Mas o chefe tem também uma função excepcional em caso de agressão exterior. Essas duas faces da vida política encontram-se em todas as sociedades, conforme já observamos, mas na Atenas clássica elas se apresentam da mesma maneira que entre os indígenas. De fato, os textos antigos que descrevem a vida política associam frequentemente os dois tipos de líderes da Cidade em uma expressão única, “os oradores e os generais”, uma fórmula que reunia, por assim dizer, os dois meios políticos de garantir a existência da comunidade: a palavra entre amigos (os cidadãos) e a guerra com os inimigos. Recordemos, além disso, que os militares, e notadamente os estrategos, fazem parte das raras magistraturas eleitas, isto é, daquelas que supõem uma competência e sobretudo uma autoridade reconhecida e aceita por todos (como aquela do chefe militar das sociedades indígenas). É como se as duas sociedades inventoras do conceito de política colocassem em evidência em suas instituições as duas relações possíveis entre a comunidade e o poder. No interior, em tempo de paz, o poder vem da comunidade, pois quem quer que seja, chefe indígena ou orador ático, não dispõe senão da força persuasiva de sua palavra, e suas opiniões não têm efeito, exceto quando encontram a adesão coletiva. No exterior, em tempo de guerra, o poder vem do exterior da comunidade, do guerreiro indígena ou do estratego ateniense: é como se ela lhe delegasse por um tempo, aquele em que sua própria existência se encontra ameaçada, seu próprio poder, um poder do qual, de ordinário, ela não abria mão e que se confunde com a potência de falar para convencer.
Pois é evidentemente pelo papel central, e por assim dizer único, que nossas duas sociedades, indígena e grega, concedem à arte retórica, na vida política, que elas são as mais próximas uma da outra. Sabe-se que, na Atenas clássica, o nascimento e o desenvolvimento da retórica estão ligados ao nascimento e ao desenvolvimento da democracia. E é bem natural: se é o povo que é soberano, e não um homem ou uma casta, o poder real vem não daquele que fala, mas daqueles a quem ele se dirige. São eles que decidem. A única competência possível, nessa concepção do político onde não existe competência política, é a arte de persuadir, a retórica. Por isso, pode-se dizer que Atenas é uma “civilização da palavra pública”. Tudo que deriva do comum, isto é, da comunidade política, deve ser colocado em comum, isto é, comunicado pela palavra. O mesmo acontece, conforme vimos, com o chefe indígena. Como ele não tem outro poder que não aquele que lhe vem de todos, não tem outra função a não ser a de falar, e uma só competência exigida, a retórica.
Mas façamos um resumo. Eu deveria, no quadro de um ciclo sobre a descoberta da Brasil, falar-lhes da invenção da política na Grécia. Mas todas as sociedades, não importa quais sejam, parecem inventar a política à sua maneira, pois todos os homens, sempre, vivem politicamente, ou seja, em comunidades políticas e em conformidade com relações de poder, sendo os dois constituintes heterogêneos do político. Eu não deveria, portanto, ter aceitado esta conferência. No entanto, percebemos que existem sociedades cujas instituições inventam a ideia do político, pois conseguem reunir os dois polos opostos – e trata-se justamente das sociedades indígenas dos tempos do descobrimento e das Cidades democráticas gregas. Em certo sentido, portanto, fiz bem, finalmente, em aceitar o desafio. Com a condição de frisar que a Atenas antiga, a despeito da inventividade extraordinária de suas instituições políticas, não gozava, no plano dos princípios, de nenhuma exclusividade, pois parecia apenas ter reencontrado a intuição primeira de certas sociedades primitivas, notadamente as indígenas, e inscrito em suas instituições o seu princípio fundamental: a comunidade é o princípio e o fim de todo poder; consequentemente, a coletividade é soberana, e todos os seus membros o são igualmente. Tal seria então a invenção do político.
Invenção do político, talvez. Mas trata-se da invenção da política? Não haveria, desse ponto de vista, um privilégio dos gregos?
Retomemos o último ponto comum entre os índios tupis-guaranis e a Atenas clássica, a onipotência da retórica, e vejamos de fato como ela se realiza nos dois casos. O que faz o chefe indígena para persuadir os eventuais criadores de tumulto a se acalmarem? P. Clastres observa que “os meios do chefe limitam-se ao uso exclusivo da palavra nem sequer para arbitrar as partes, pois o chefe não é um juiz e não pode, portanto, tomar partido de um ou de outro, mas para tentar, armado unicamente de sua eloquência, persuadir as pessoas de que é preciso apaziguar-se, renunciar às injúrias, imitar os ancestrais que sempre viveram em bom entendimento” (La société contre l’État, p. 176). Assim, a palavra do chefe “não é feita para ser ouvida”. Ritualizada, ela diz, cotidianamente e em horas fixas: “Nossos antepassados estavam bem vivendo como viviam. Sigamos o seu exemplo e, dessa maneira, levaremos juntos uma vida agradável” (ibid., p. 135). Oporemos essa retórica àquela dos oradores áticos.
Três traços as distinguem. Enquanto a palavra do chefe é uma palavra essencialmente repetitiva, ritualizada, cujo conteúdo é mais ou menos sempre o mesmo, não importa quem sejam os ouvintes ou a situação crítica, é rompendo com todas as formas rituais de discurso que nasce a retórica. O orador de Assembleia deve inventar argumentos sem cessar, modelá-los para seu público particular e sobretudo adaptá-los à situação presente e à crise singular que a Cidade enfrenta. É por isso que é tão difícil ser um bom orador; também é por isso que, desde a aparição da retórica no século V, proliferam Manuais retóricos que tentam inferir os procedimentos de persuasão dos auditórios. Mas nenhum deles, nem mesmo o de Aritóteles, vai conseguir enunciar receitas gerais de sucesso, fixas e certas, pois a regra de ouro do discurso é aquela do misterioso kairos, regra sem regra, princípio de oportunidade e de ocasião.
Há uma segunda diferença entre os dois usos da retórica, o do chefe indígena e o dos oradores antigos. O discurso do chefe é, por assim dizer, dele para a comunidade. Não é assim entre os gregos. Sem dúvida, por oposição à dialética, que é a arte da argumentação dialogada, a retórica antiga é uma arte do discurso monológico. O orador grego fala sozinho; portanto, para a comunidade reunida. No entanto, seu discurso opõe-se, de direito e freqüentemente de fato, a outro discurso que sustenta — ou poderia sustentar — a tese contrária. É assim nos tribunais, na Assembleia ou nas reuniões cívicas. Trata-se sempre de sustentar uma tese contra outra, de opor os prós e os contras: é justo ou injusto condenar Sócrates, é útil ou nocivo à Cidade construir longos muros, é feio ou bonito vingar-se dos inimigos? Em outras palavras, a retórica grega é sempre virtualmente antilógica — e é por isso que ela permite, como diz Aristóteles, “concluir os contrários” (Ret. I, 1355 a 33). Pode-se ver, desse ponto de vista, tudo que a contrapõe à arte oratória do chefe indígena. Este não precisa saber concluir os contrários, não tem necessidade de opor o pró e o contra, sua argumentação não se choca com nenhuma argumentação que deveria ser refutada. De fato, ele se contenta em invocar a necessidade de fazer cessar a discórdia entre membros da comunidade. Mas o que o orador faz é justamente o inverso! A Cidade grega coloca em cena incessantemente a oposição de teses, põe em evidência a contradição no discurso, representa na palavra a oposição trágica dos contrários. A retórica, e também a política grega, imita a guerra na palavra. Ela representa o máximo de contradição no mínimo de violência, pois toda oposição se exprime e se resolve na linguagem. No interior da Cidade, só conta o logos; entre cidadãos, só vale a luta dos argumentos, enquanto no exterior o combate é real, a luta armada. É como se nessa disputa interna, que causa tanto temor aos membros da sociedade primitiva a ponto de eles fazerem tudo para apaziguá-la, para negá-la, a sociedade grega se deleitasse em afirmá-la, em exacerbá-la — jogá-la politicamente para evitar que se torne apolítica.
E há uma terceira diferença entre as duas retóricas, e não se refere mais à forma do discurso ou a seu contexto, mas à sua mensagem. O chefe indígena tem um argumento essencial para manter a ordem: a imitação dos ancestrais: como estes últimos permitiram que a sociedade se perpetuasse tal como era até a sociedade tal como é, deve-se voltar à harmonia de ontem para reencontrar a harmonia de hoje; e basta, para fazer cessar a desordem presente, retornar à ordem passada e perpetuá-la no futuro. A sociedade deve enfrentar as crises tomando o seu passado como único modelo. A verdade política existe no eterno ontem, e basta repeti-la. É o inverso na cidade grega. Como diz Aristóteles, a retórica política tem por objeto não o passado, mas o futuro: o que fazer amanhã, que decisão tomar, o que é mais útil? Ela tem que enfrentar situações sempre novas e inventar respostas originais, resolver as crises sem que nenhuma solução esteja antecipadamente garantida — e é justamente por isso que nenhuma argumentação pronta é universalmente válida; por isso é preciso opor os prós e os contras, argumentar sem jamais ter nenhuma certeza a priori da verdade, pois esta não está inscrita em parte alguma, em nenhum modelo preestabelecido.
Portanto, as três diferenças entre as retóricas se completam. É porque faz apelo à repetição da ordem antiga que o discurso do chefe indígena é repetitivo; é porque é garantida a priori pela existência passada da comunidade que sua argumentação corre em sentido único. Ao contrário, é porque a Cidade afronta uma ordem sempre nova que o discurso dos oradores deve ser sempre oportuno; é porque ela não encontra no futuro incerto nenhuma garantia de verdade que a argumentação retórica é antilógica e deve inventar sem cessar as suas razões.
Em suma: entre essas duas maneiras de utilizar politicamente a retórica, há toda a distinção existente entre uma comunidade que evita a política e uma outra que inventa a política. Pois esta é no fundo a verdadeira diferença, não apenas entre suas retóricas, mas, de uma forma mais geral, entre as duas maneiras de nossas duas sociedades inventarem o político. Uma inventa o político fazendo tudo para conjurar o risco da política outra inventa o político inventando também a política, ou seja, pela primeira vez e em uma das raras vezes na história, fazendo política.
As sociedades indígenas fazem de tudo para não fazer política. Elas resistem com todas as forças a tudo aquilo que se assemelha ao poder. Talvez seja a esse temor, a esse ódio pela política, e mais particularmente à escalada do poder das chefias por ocasião da conquista, que se deve atribuir a reação de fuga das comunidades para esses movimentos proféticos em busca da Terra sem Mal. Como se o mal aqui embaixo fosse a política, isto é, o poder de alguns ou a ação coletiva voltada para o futuro. Temendo um e não podendo inventar a outra, elas fugiam e se dissolviam. Como se, ao contrário da Cidade grega, essas sociedades primitivas não tivessem conseguido inventar a prática coletiva do poder para fazer face a um poder que ameaçava se impor fora da coletividade. Aconteceu o contrário na Grécia. Havia como que um desejo, um amor pela política. Pois a Cidade ateniense, como também todas as outras sociedades, vivia politicamente, mas como nenhuma outra, sem dúvida, vivia da política. A invenção da política foi para ela a outra vertente da invenção do político.
O que é, de fato, essa invenção da política pelos gregos? Pode-se defini-la nos termos de J.-P. Vernant: é a “emergência de um campo privilegiado em que o homem se percebe como capaz de regrar por ele mesmo, através de uma atividade de reflexão, os problemas que lhe concernem, depois de debates e discussões com seus pares.
Portanto, inventar a política não é somente, como inventar o político, fazer com que não haja outro poder exceto aquele que a própria comunidade exerce sobre si mesma para se perpetuar e proteger; é também inventar os meios para que a própria comunidade tome o poder para enfrentar o mundo. Nos dois casos, as comunidades tentam por todos os meios, conforme vimos, impedir a constituição de uma casta política separada e especializada. Mas não do mesmo modo. A sociedade indígena se defende da tirania de alguns confiando a um chefe a incumbência de representá-la junto a ela mesma e de chamá-la, de modo incessante, à sua própria ordem. Os gregos fizeram diferente. Costuma-se dizer com frequência que eles temiam acima de tudo a profissionalização da política. Creio que é preciso retificar esse ponto. Não é que eles impedissem a profissionalização da política; o que eles evitavam era que alguns fossem profissionais, e não todos. O ideal seria uma Cidade em que todos fizessem política profissionalmente. Ideal em parte realizado, aliás, com a retribuição aos cargos públicos, tais como a participação nos tribunais, nas magistraturas e mesmo nas seções da Assembleia do Povo. Aristóteles via, a justo título, nessa misthoforía um dos sinais mais seguros da democracia: em todo caso, é um dos mais originais. Nele, pode-se ver, como diz Vidal-Naquet, “a tomada de consciência da autonomia do político”. Mas é preciso entender sobretudo que, com essa reforma, Atenas assegurava que todos os cidadãos, qualquer que fosse a renda que percebessem, poderiam, não apenas de direito mas também de fato, participar dos negócios públicos. Ela fazia da atividade política negócio de todos e de cada qual um profissional da política. Mas esse ideal de uma comunidade que faz política está inscrito não somente em suas instituições, mas também em seu imaginário. Para um grego, fazer política é, de fato, o gênero de vida mais elevado: como, conforme queria Aristóteles, a vida humana é política, o que poderia ser mais digno de um homem do que viver para a política? a “identificação de si com a política, transformada em identidade, fazia com que a vida política (…) fosse considerada a única”.
O estilo próprio da democracia grega não é o triunfo dos valores populares, mas a extensão a todos dos valores militantes e éticos da nobreza. Enquanto os tupis sonham com uma coletividade em que fosse possível ser apolítico, uma comunidade em que ninguém teria o poder, os gregos sonham com uma Cidade em que todos fossem políticos, em que todos tivessem o poder.
Podemos ir mais adiante dizendo que a invenção do político entre os tupis e os atenienses tem de singular o fato de que eles vivem politicamente, tanto uns como outros, sem fé, sem rei e, de certa forma, sem lei. Podemos então precisar mais as coisas em relação a Atenas. A invenção da política é a ideia de que é preciso inventar coletivamente o futuro da comunidade e de que para isso é necessário enfrentar três vazios: o Céu, antes de tudo. Sem dúvida, o Céu está cheio de deuses, mas eles não decidem nada por nós, somos nós que decidimos. Está vazio também o lugar do Mestre, como diria C. Lefort: é esse lugar que os índios se recusam a ocupar e que os atenienses querem ocupar coletivamente. É vazia sobretudo a imagem que a Cidade tem de si mesma, vazia de modelo, e por isso é preciso imaginá-la, construí-la, inventando o que ela será amanhã. De modo que a comunidade indígena tenta incessantemente reproduzir sua identidade passada, enquanto a Cidade ateniense deve sem cessar inventar sua identidade futura.
Em um texto extremamente sugestivo, C. Lévi-Strauss opõe dois modelos de sociedade: as sociedades-relógio, que, como as primitivas, são máquinas “frias”, e as sociedades-máquina a vapor, que, como as modernas, são máquinas “quentes”. As primeiras “produzem extremamente pouca desordem, o que os físicos chamam de ‘entropia’, e têm uma tendência a manter-se indefinidamente em seu estado inicial, o que explica, aliás, o fato de elas nos parecerem sociedades sem história e sem progresso”. No lado oposto, as sociedades modernas “utilizam para seu funcionamento uma diferença de potencial, que se encontra realizada em diferentes formas de hierarquia social (…) a escravidão, a servidão ou(…) a divisão em classes”.
É como se elas usassem as diferenças econômicas e a desordem social para criar história e progresso. Talvez seja possível aplicar tal distinção à esfera política. Diríamos então: dois tipos de sociedade inventaram o político, ou seja, a unidade da comunidade e do poder: sociedades frias, como as tribos tupis, e sociedades quentes, como a Atenas clássica. Nas primeiras, é como se a coletividade assimilasse e digerisse todos os poderes para fazê-los seus a fim de que ninguém em particular os possua, e se esforçasse para reproduzir o seu próprio passado, para manter-se o mais identicamente possível, como um relógio — logo, para fazer o menos possível de política. Nas segundas, é como se, ao contrário, o poder tivesse tomado conta da comunidade para fazê-la sua a fim de que todos dele participem igualmente, de que ela possa produzir seu próprio futuro e seguir indefinidamente adiante como uma máquina a vapor, e de que todos façam o máximo possível de política.
Assim, se nenhuma sociedade inventou a vida política, se os brasileiros de antes da descoberta do Brasil inventaram o político, foi com certeza a Atenas democrática que inventou a política.
Logo, fizeram bem em pedir-me para falar da invenção grega da política na Grécia clássica em prelúdio à descoberta do Brasil. Cabe a vocês dizer se fiz bem em aceitar. Em todo caso, agradeço a todos por terem me ouvido.
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